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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.74 Rio de Janeiro jul./sept 2023  Epub 06-Dic-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.75509 

Políticas de currículo para a docência na Ibero-América

DOCÊNCIA, FAMÍLIA E CURRÍCULO: o vazio de sentidos para a docência na política curricular familista

TEACHING, FAMILY AND CURRICULUM: the void of meanings for teaching in family curriculum policy

ENSEÑANZA, FAMILIA Y CURRICULUM: el vacío de sentidos para la enseñanza en la política curricular familiar

Melanie Laura Mariano da Penha Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-1550-2516; lattes: 8931031560073385

1Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)


Resumo

O artigo discute o esvaziamento de sentidos docentes a partir do fortalecimento de políticas curriculares familistas no Brasil, as quais endereçando-se prioritariamente à família tradicional, como instância de ensinoaprendizagem, invertem a prioridade do interesse público para investir na ordem privada. Com o objetivo de analisar o esvaziamento discursivo da formação docente como um desdobramento da onda reacionárioconservadora da última década, realiza-se uma análise discursiva ancorada na pesquisa qualitativa documental, a partir de materiais do Programa Conta pra Mim que integra a Política Nacional de Alfabetização (PNA). Para tanto, este texto adota a perspectiva pós-estrutural da teoria do discurso de Laclau e Mouffe (2015) como arcabouço teórico-analítico, junto a considerações amparadas na filosofia da diferença de Derrida (2016) e no conceito de lógicas fantasmáticas de Glynos e Howarth (2007). Ante a isto, os achados permitem significar o Conta pra Mim como uma proposição de currículo embebida no familismo contemporâneo, afeita a sedimentação de sentidos neoconservadores e neoliberais e aliada aos interesses daqueles que intentam fragilizar os espaços-tempos da docência nas disputas por hegemonia educacional.

Palavras-chave: currículo; docência; discurso; familismo

Abstract

The article discusses the emptying of teaching meanings from the strengthening of family-oriented curriculum policies in Brazil, which, by addressing primarily the traditional family, as a teaching-learning instance, reverse the priority of the public interest to invest in the private order. With the objective of analyzing the discursive emptying of teacher training as a result of the reactionary-conservative wave of the last decade, a discursive analysis is carried out based on qualitative documental research, based on materials from the Programa Conta pra Mim that integrates the Policy National Literacy Program (PNA). To this end, this text adopts the post-structural perspective of discourse theory by Laclau and Mouffe (2015) as a theoretical-analytical framework, along with considerations supported by Derrida's philosophy of difference (2016) and the concept of phantasmatic logic by Glynos and Howard (2007). In view of this, the findings allow us to signify Conta pra Mim as a proposal for a curriculum steeped in contemporary familism, affected by the sedimentation of neoconservative and neoliberal meanings and combined with the interests of those who attempt to weaken the space-times of teaching in disputes for hegemony educational.

Keywords: curriculum; teaching; discourse; familism

Resumen

El artículo discute el vaciado de sentidos de la enseñanza a partir del fortalecimiento de las políticas curriculares orientadas a la familia en Brasil, que, al abordar principalmente la familia tradicional, como instancia de enseñanza-aprendizaje, invierten la prioridad del interés público para invertir en el orden privado. Con el objetivo de analizar el vaciamiento discursivo de la formación docente a raíz de la ola conservadora-reaccionaria de la última década, se realiza un análisis discursivo a partir de una investigación documental cualitativa, a partir de materiales del Programa Conta pra Mim que integra la Política Nacional del Programa de Alfabetización (PNA). Para ello, este texto adopta como marco teórico-analítico la perspectiva postestructural de la Teoría del Discurso de Laclau y Mouffe (2015), junto con consideraciones sustentadas en la filosofía de la diferencia de Derrida (2016) y el concepto de lógica fantasmática de Glynos y Howard (2007). Frente a ello, los hallazgos permiten significar Conta pra Mim como una propuesta de currículo impregnado del familismo contemporáneo, afectado por la sedimentación de sentidos neoconservadores y neoliberales y combinado con los intereses de quienes pretenden debilitar el espaciotiempos de la enseñanza en disputas por la hegemonía educativa.

Palabras clave: curriculum; enseñanza; discurso; familismo

INTRODUÇÃO

Desde a última década, o campo educacional brasileiro experimenta um período histórico e político que reflete o recrudescimento de lógicas neoliberais e neoconservadoras no social, os deslocamentos de sentidos provocados pelo pânico moral no que diz respeito aos debates de gênero e sexualidade nos currículos, bem como as tentativas de censura ou desqualificação de professores em meio a formulação das políticas públicas curriculares. Neste ínterim, diversos documentos curriculares foram interpelados discursivamente tanto na esfera federal, como foi o caso do Plano Nacional de Educação (PNE) ciclo 2014-2024 e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) quanto nas esferas estaduais e municipais, visto que os planos educacionais de estados e municípios no Brasil inteiro (PENHA SILVA, 2017; OLIVEIRA, OLIVEIRA, 2018) foram alvo das cruzadas reacionário-conservadoras contra os currículos. Este processo de vigilância e interdição curricular ressoou das políticas curriculares da educação básica à área da formação docente, disputando e esvaziando os sentidos do que se compreende por docência ou profissionalização do magistério. Ao usar as noções de vazio ou esvaziamento, este artigo adota uma perspectiva da teoria do discurso laclauniana para explicitar um processo em que as tentativas de ampliar demasiado os significados sobre algo terminam por criar um significante vazio/esvaziado que pode conter variados significados sem fixar nenhum. Assim sendo, este excesso de significação e o consequente esvaziamento dos significantes são atos possibilitados pela disputa por hegemonia à medida que mobiliza a produção de sentidos.

Considera-se aqui também a perspectiva discursiva de teoria curricular de que trata Lopes (2015), segundo a qual toda proposta curricular pode ser compreendida como uma luta pela significação do que vem a ser currículo. Outrossim, pode-se inferir que a disputa hegemônica pela formação de professores como espaço-tempo curricular emerge em paralelo aos discursos de doutrinação ideológica que propõe a vigilância docente, aos projetos de lei que intentaram regulamentar o homeschooling e o Escola sem Partido ou ainda junto ao silenciamento de propostas e no enfraquecimento das políticas de formação docente do país. Tal disputa encontrou solo ainda mais propício a partir de 2016 quando a lógica neoliberal de mercado logrou maior força para seus projetos educacionais, que fragilizaram a educação pública, ante ao golpe praticado contra o segundo mandato da presidenta eleita Dilma Rousseff e com a instauração do governo Michel Temer.

O objetivo daquele governo que tomou de assalto o poder com o golpe de 2016 foi o de asfixiar o financiamento da educação brasileira, de modo que, sem orçamento, todo o sistema educacional público entrasse em colapso, fomentando de forma tácita, mas também explícita, ainda mais a educação privada no Brasil (ARAÚJO FILHO, 2022, p. 228).

Em 2019, com o início do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, as demandas curriculares que esvaziavam a noção de formação docente ou de docência conseguiram espaço institucional em meio a gestões desastrosas do Ministério da Educação (MEC) que resolveram privilegiar projetos aqui denominados de familistas cuja intencionalidade era a de sobrepor a ordem privada ao interesse público, colocando a fantasiosa família tradicional no centro do currículo. Este movimento é compreendido neste artigo como uma estratégia interpelativa do familismo contemporâneo na disputa pela hegemonia curricular.

Em face do cenário apresentado, o artigo analisa os sentidos docentes perscrutados no discurso da Política Nacional de Alfabetização (PNA), especialmente no que diz respeito a significação contida nos materiais do Programa Conta pra Mim que aposta na estratégia de literacia familiar como principal prática alfabetizadora para as infâncias. Analisa-se aqui que tal montagem de currículo, endereçada totalmente para as famílias, esvazia os sentidos da formação docente, bem como sucateia as possibilidades de construir esforços em prol de professores e profissionais da educação que atuem na rede pública de ensino no âmbito da educação infantil.

Ante a isto, considera-se importante perceber como as políticas curriculares familistas da última década no Brasil promoveram o arrefecimento de sentidos sobre a formação docente. Enxergando esta ação enquanto um desdobramento da onda neoconservadora e neoliberal na educação, um fato transnacional que instala-se na América Latina sobretudo a partir de pânicos morais ao redor do fantasmático sintagma da ideologia de gênero com o objetivo de sucatear a educação pública para que ela fique mais suscetível a projetos salvacionistas de organizações privadas e para que os debates que não interessam a ordem neoliberal ou neoconservadora, tais como as irrupções da diferença, sejam expurgados do negociado território curricular.

IMPLICAÇÕES DO FAMILISMO CONTEMPORÂNEO PARA A DOCÊNCIA NAS DISPUTAS POR HEGEMONIA CURRICULAR

Para construir a noção de familismo, Banfield (1958) pesquisou a base moral de uma pequena comunidade na Itália, notando que naquele contexto de extrema desigualdade social e escassez, os laços de solidariedade ficavam restritos ao seio familiar. Assim, o familismo amoral foi significado como um comportamento que visava acumular riquezas e vantagens de forma restrita a parentela, impedindo o progresso social daquele vilarejo. Uma articulação mais recente de estudos que analisa o familismo (COOPER, 2017; BROWN, 2019) classifica-o como não só uma tentativa de acúmulo de riquezas, mas de governo da vida pública, a partir de uma cadeia de valores e aspectos culturais ancorados na tradição moral.

Esta articulação e as considerações de Biroli (2020) sobre a ascensão dos movimentos neoconservadores no Brasil enquanto demandas conservadoras aliadas aos valores de mercado do neoliberalismo e à racionalidade política nele engendrada, expressando-se principalmente por uma agenda de regulação sexual, permitem significar o familismo contemporâneo como uma articulação de sentidos neoliberais e neoconservadores que demanda a defesa da família num intenso jogo político-discursivo de retórica reacionária visando frear os debates de gênero e sexualidade no social. Deste modo, o familismo contemporâneo ao adentrar o campo educacional, visa disputar a construção dos currículos para impedir que sejam discutidos os conhecimentos comprometidos com o campo dos direitos humanos, dos direitos sexuais e de gênero, bem como da equidade social frente às desigualdades baseadas nestes aspectos.

Neste ínterim, os agentes articuladores de demandas familistas movem-se violentamente contra os currículos, mas também contra professores, atuando para o esvaziamento das políticas de formação docente. Entre os governos Michel Temer e Bolsonaro houve a elaboração, o lançamento e o recolhimento da Base Nacional Comum de Formação de Professores (BNC Formação) que integra a Política Nacional de Formação de Professores (PNFP), proposta pelo Ministério da Educação desde 2017. No contexto do desmonte e dos ataques à docência, de ruptura com as instâncias de deliberação coletiva da educação, De Farias (2019) avalia que o recolhimento da BNC-Formação favoreceu o silenciamento sobre a formação de professores, além de refletir um movimento característico desta imposição contínua de políticas sem debate por parte do MEC. Sabendo-se que:

A definição de textos orientadores da formação de professores passa por processos de produção da política curricular baseados em articulações em torno de demandas formuladas e difundidas pelos diferentes sujeitos e grupos sociais que constituem essas comunidades epistêmicas. [...] Na luta pelo reconhecimento de demandas em torno dos sentidos para o currículo da formação de professores, há processos de incorporação pelo Estado dos discursos em defesa de demandas (DIAS, LOPES, 2009, p. 83-84).

Pode-se dizer que as demandas neoconservadoras produziram condições de possibilidade para a institucionalização de uma lógica familista que, sendo também neoliberal, age contra a ordem pública contribuindo para que os esforços direcionados à formação docente fossem negligenciados. Principalmente na gestão anterior, eleita com a pauta da defesa das crianças contra os perigos da suposta ideologia de gênero e comprometida com projetos de homeschooling, houve a necessidade de se concentrar massivamente na disputa das políticas curriculares para as infâncias. Tendo tais políticas, neste período, um caráter privatista e familista, analisa-se que elas colaboraram com o esvaziamento da formação docente, através da desqualificação da profissão de professor da educação básica, ao elaborarem materiais que subjetivam coletivamente a ideia de que o ensino é uma atividade instrucional simples, possível de ser realizada no lar pelos pais ou responsáveis.

Esta ideia estava contida desde os projetos de lei propondo regulamentação do homeschooling, a exemplo do PL n. 1338/2022, de autoria da Câmara dos Deputados que: “Altera as Leis nos. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), e 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para dispor sobre a possibilidade de oferta domiciliar da educação básica” (BRASIL, 2022, p. 1). Neste PL há disputa de sentidos sobre a docência quando o texto trata das condições a que os pais ou responsáveis devem atender para requerer a modalidade de educação domiciliar, entre elas: grau de instrução, antecedentes criminais, parceria e contato com alguma unidade escolar, formação continuada nas escolas. Em sua proposta de modificação do artigo vigésimo terceiro da LDB, o projeto de lei traz a palavra preceptor, ressaltando o rechaço que o homeschooling faz aos professores e a educação pública, visto que os preceptores são instrutores particulares contratados para atuar em domicílio, sem exigência de compromisso com os pressupostos filosóficos, estéticos e práticos da docência.

Note-se que as substituições e ocultamentos da palavra professor dos textos curriculares oficiais ou das propostas ditas educacionais posicionam-se na ordem do não-dito discursivo, conforme Sales Jr. (2006) isso ocorre quando se quer dizer algo, sem aceitar a responsabilidade por ter dito, como nos projetos de homeschooling que não pretendem responsabilizar-se por dizer que não se interessam pelo fortalecimento da docência ou da educação pública brasileira. Assim, seus não-ditos subjetivam coletivamente a lógica de desprestígio docente, reforçam a percepção de que professores são substituíveis e corroboram para enfraquecer a compreensão sobre a necessidade de profissionalização docente que justifica (entre outras coisas) o aparato de políticas públicas e investimentos de todos os tipos voltados para a área de formação de professores.

Estes interditos, negociações e consensos-conflituosos (MOUFFE, 2015) são aspectos relacionados ao caráter político do currículo.

Se considera que el curriculum es una propuesta político-educativa en la medida en que se encuentra estrechamente articulado al, o a los, proyecto(s) políticosocial(es) amplio(s) sostenido(s) por los diversos grupos que impulsan y determinan un curriculum. El carácter político del curriculum no se centra en una cuestión partidista (DE ALBA, 1998, p. 4).

Assim, o projeto político-social de currículo neoliberal e neoconservador enfoca a família, não por um compromisso genuíno com ela, mas por que subjetivar a noção de supremacia familiar é útil a este projeto de poder, pois desarticula as chances de movimentos populares em prol da educação pública contarem com a adesão massiva da sociedade. Estimular as ideias de que o Estado é ineficaz, insuficiente ou ainda perigoso, uma ameaça ideológica à educação de crianças e adolescentes, faz parte das estratégias discursivas que visam endereçar o social para que os projetos privatistas e familistas de educação não sejam questionados.

Outro indício do desprezo que projetos neoliberais e neoconservadores logram aos professores e à educação pública, está nas tentativas de se regulamentar o Escola sem Partido (ESP). Este movimento idealizado pelo advogado Miguel Nagib, ganhou espaço na sociedade civil tendo como umas das principais frentes a criminalização da docência e a censura a professores. O ESP:

[...] se ancora em uma visão negacionista da História, perseguindo os profissionais do magistério de nosso país, acusando-os de comunistas e propagadores do ateísmo, além de coibir o ensino de matérias ligadas à educação sexual de adolescentes e jovens. A partir de seus defensores, esse movimento conservador e reacionário ataca a liberdade de cátedra desses profissionais [...] (ARAÚJO FILHO, 2022, p. 229).

No projeto de Lei n. 246/2019 que visava instituir o Escola sem Partido há um anexo com os deveres dos professores cujo objetivo era disciplinar e interferir na prática docente. A significação do PL sustenta a ideia de professor-doutrinador como ameaça a crianças e adolescentes, além de pôr os estudantes na posição de manipulados e explorados politicamente, implicando-se nesta percepção a compreensão equivocada de que estudantes são sujeitos passivos no processo de ensino-aprendizagem. Além de insistir no significante doutrinação, o PL contém sentidos familistas, ao impor entre os deveres que: “O Professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (BRASIL, 2019, p. 4). Condicionando dessa forma a prática docente àquilo que as famílias, cada uma segundo sua régua moral e religiosa, aprovasse.

Nem os projetos de educação domiciliar e nem os que tratavam do Escola sem Partido, foram aprovados, no entanto a não regulamentação destas propostas não significa o cessar das lutas pela significação do currículo e da prática docente. Através de uma análise apresentada a seguir, demonstra-se como esta luta (re)articulou-se para seguir disputando a hegemonia e borrando a institucionalidade. Desse modo, atacando-se a dimensão institucional do currículo:

La dimensión institucional es el espacio privilegiado del curriculum, toda vez que es la institución educativa donde se concreta la síntesis de elementos culturales (conocimientos, valores, creencias, hábitos y actitudes) que conforman una determinada propuesta académico-política. Es válido afirmar que la dimensión social amplia (cultural, política, económica, social e ideológica) se expresa y desarrolla en la institución escolar a través de mediaciones y particularidades (DE ALBA, 1998, p. 8).

Portanto, políticas curriculares familistas ao imobilizar a atuação docente e conformar a educação a projetos de instrução familiar que desconsideram essa síntese de elementos culturais ou a ampliação da dimensão social da educação, sendo estes aspectos postos em prática quanto mais bem formados forem os quadros docentes da rede pública, são políticas aliadas aos processos de sucateamento da docência brasileira. Quer atuem pelo dito ou pelo não-dito, tais políticas são aliadas ao projeto neoliberal de desprofissionalização do magistério (ARAÚJO FILHO, 2022) e ao projeto neoconservador de regulação da vida pública. O recolhimento e o silenciamento de propostas para os professores percebidos durante os dois últimos governos brasileiros são úteis aos projetos familistas curriculares, pois fazem parte desta empreitada cujo objetivo último é o enfraquecimento do Estado e da democracia para que as estruturas públicas construídas sejam cooptadas pelos interesses privados e moralistas.

CONTA - OUTRA - PRA MIM: A POLÍTICA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO E O ESVAZIAMENTO DOCENTE NOS DISCURSOS CURRICULARES FAMILISTAS

A política nacional de alfabetização brasileira - ainda em vigor - foi escrita nos meandros das relações interministeriais entre o Ministério da Educação (MEC) quando a pasta esteve sob o comando do economista Abraham Weintraub e o antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) quando a pasta esteve sob a direção da advogada e pastora evangélica Damares Alves. Com a sua elaboração coordenada especialmente entre estes setores, a PNA foi formulada também quando Carlos Francisco de Paula Nadalim, reconhecido defensor do ensino domiciliar que mantém o blog “Como educar seus filhos em casa” e que possui filiações ideológicas com o pensamento de extrema direita de Olavo de Carvalho, chefiava a Secretaria de Alfabetização (SEALF) do MEC.

Além do viés político-ideológico destes agentes articuladores de demandas estar identificado com o campo neoconservador, há que se salientar que a PNA fora lançada em forte articulação político-discursiva com outros dois projetos, também implicados no familismo contemporâneo, e, portanto, envoltos nas significações neoconservadoras e neoliberais, quais sejam: o Programa Criança Feliz e o Programa Mães do Brasil, especialmente no seu Projeto Mães Unidas. Ante a isto, há o reforço a uma análise que permite significar a PNA como um exemplo de política curricular familista cuja articulação discursiva está comprometida em promover o sentido de que na família é às mães e mulheres que cabe a responsabilidade pela educação das crianças. De forma ainda mais enfática, Lima e Campos (2022) analisam que ações como o Programa Criança Feliz lançado ainda na gestão de Michel Temer e continuado no governo do ex-presidente Bolsonaro como uma ação da Secretaria Nacional de Atenção à Primeira Infância (SNAPI), ligada ao Ministério da Cidadania, embora pareçam repletas de boas intenções e comprometidas com uma agenda de proteção às infâncias, pretendem erradicar a pobreza responsabilizando as mulheres por isso.

Em uma conjuntura na qual existe um avanço de uma agenda conservadora, entendemos que esse tipo de programa é uma grande ameaça aos direitos das crianças, das mulheres e das famílias. Nesse sentido, é importante lembrar que a proposta do Criança Feliz é uma ação focalizada, fora da esfera da política pública social do Estado, consolidando seu aspecto assistencialista e de voluntariado (LIMA, CAMPOS, 2022, p. 1437-1438).

Neste mote, os programas formulados para as infâncias e as famílias, seja na pasta educacional ou na pasta das cidades, ou ainda na pasta supostamente relacionada aos direitos humanos, constituem-se discursivamente como empreitadas familistas, permeadas por fantasias neoconservadoras que desejam a cooptação e a acomodação das subjetividades das mulheres à vida privada. Por isso, esforçam-se em rearticular os sentidos de uma performance de gênero (BUTLER, 2003) submissa que na literatura ficou conhecida pela expressão anjo do lar através da obra feminista da escritora Virgínia Woolf. O que os projetos de políticas públicas supracitados fazem é investir no retorno discursivo a um passado neoconservador mítico, em que a mulher estava destinada unicamente ao lar e com toda a carga pela criação e pela educação das crianças.

Considerando-se ainda um contexto político-econômico-social em que a vida torna-se precária (BUTLER, 2011) devido aos desmontes das estruturas de bem estar social, promovidos pelo neoliberalismo pelo menos desde os anos 1980, a responsabilização da esfera privada através de discursos igualmente neoliberais que aguçam a fantasia do sujeito super capaz de se autogerir e independente das garantias sociais do Estado, consiste numa tentativa interpelativa de significar a fantasiosa onipotência individual no que ela possui de útil ao inflar de egos dos indivíduos e aos projetos de desmonte do público e do coletivo. Neste processo de desmonte, os alvos prioritários são as mulheres e as crianças, posto que os sentidos neoliberais e neoconservadores buscam fragilizar estes grupos, retorná-los à submissão e dependência patriarcal e minimizar o ressentimento (KEHL, 2015; BROWN, 2019) masculino e branco diante das conquistas resultantes da pluralização do espaço público e dos esforços por equidade de gênero e racial em todo o mundo.

Este cenário que atiça as lógicas da fantasia (GLYNOS, HOWARTH, 2007) neoliberais e neoconservadoras é o ponto de partida e de articulação para que demandas familistas construam projetos e disputem a significação hegemônica dos textos das políticas públicas brasileiras. Este trabalho enfoca as políticas curriculares significando-as também como políticas públicas de educação, acenando para um cenário em que o familismo contemporâneo tenta ditar as regras na educação nacional. Porém, como demonstrado outrora, esta disputa do discurso familista pela hegemonia social alcança outras áreas com o mesmo propósito de enfraquecer o significado de coisa pública em privilégio à expansão da chamada esfera pessoal protegida e conforme aponta Brown (2019) de sua régua de valores culturais e morais para o governo da vida em sociedade. No tocante ao campo educacional, e em especial às políticas curriculares, destaca-se aqui a PNA por ser destinada às infâncias e por sedimentar os sentidos neoconservadores e neoliberais necessários à implementação de demandas familistas nos currículos. Ademais considera-se que os principais materiais que integram esta empreitada esvaziam os sentidos de formação docente e de docência. A Política Nacional de Alfabetização (PNA) regulamentada por meio do Decreto n. 9.765, de 11 de abril de 2019 surge num contexto de esfacelamento do diálogo com a sociedade civil, de descredibilização docente e de enfraquecimento dos órgãos colegiados como os conselhos de educação. Especialmente no Programa Conta pra Mim, estabelecido pela Portaria n. 421 de 23 de abril de 2020 e destinado aos familiares de crianças em idade de alfabetização, a política pública curricular revela seu caráter familista. O Programa considerado um simulacro de educação literária (RAMALHETE, 2021) fora forjado naquele contexto em que o grupo afeiçoado ao homeschooling e, encabeçado pelos sujeitos anteriormente mencionados, chegava ao poder. Assim, tanto a PNA quanto seus instrumentos como o Programa Conta pra Mim, foram analisados em estudos que demonstraram suas fragilidades pedagógicas e literárias e suas filiações político-ideológicas (MORTATTI, 2019; MACEDO, 2019). O engendramento da política curricular por discursos familistas que sucateiam a luta por uma educação pública, universal e gratuita, só é possível também graças a mobilização de discursos cujas lógicas fantasmáticas privilegiam as fantasias beatificas (GLYNOS, HOWARTH, 2007) educadoras que atendem a demandas privadas.

A Política Nacional de Alfabetização, ao propor a literacia familiar como principal estratégia alfabetizadora, ignorou os ritos de institucionalização de propostas democráticas e plurais de educação ao acenar positivamente para a demanda familista do ensino em casa e incorporá-la no currículo brasileiro. Promulgando uma política curricular que põe a família no centro do processo de ensino-aprendizagem, ainda que o ensino domiciliar não tenha sido formalmente aprovado. Deste modo, a PNA incorpora uma lógica de política curricular neoconservadora e neoliberal que atende aos preceitos familistas do homeschooling, uma vez que tira do processo de alfabetização e letramento as ferramentas públicas necessárias para garanti-lo com qualidade. Considerando-se dentre estas ferramentas, os investimentos contínuos e sistemáticos nas políticas de formação de professores, quer sejam iniciais ou continuadas.

Iniciando a discussão dos achados pela análise do caderno Guia de Literacia Familiar, nota-se que ele tem um total de 72 páginas, nelas a palavra professor aparece somente cinco vezes, destas em apenas duas refere-se aos profissionais de educação. Numa primeira vez quando diz: “Desde o início da vida escolar, os professores passam grande parte das informações pela fala” (BRASIL, 2020, p. 19), sendo este discurso problemático, pois embora foque na oralidade, rica em possibilidades pedagógicas, o faz descontextualizando-a de um processo sistematizado de apreensão de conhecimentos. E numa segunda menção, o material alude ao trabalho dos professores posicionando-os como meros consultores educacionais a quem pode-se escolher recorrer ou não, como visto no seguinte trecho: “Peça dicas de livros para professores, livreiros, bibliotecários e pais mais experientes na prática da leitura. Pesquise na internet.” (BRASIL, 2020, p. 48).

No tocante às outras três menções, uma trata-se de uma referência consultada para elaborar a PNA e nas outras duas o material coloca os pais ou responsáveis no lugar dos professores, como na frase: “Encene situações sociais com seu filho. Façam de conta que estão em uma ligação telefônica; que você está em um restaurante e seu filho é o garçom; que você é o professor e sua filha, a aluna. Use a imaginação!” (BRASIL, 2020, p. 26). Recorrendo a uma articulação de sentidos que acaba por cobrar os pais ou responsáveis familiares que desenvolvam posturas lúdicas como requisitos para a familiarização da criança com a leitura, a PNA ignora que a ludicidade no processo de alfabetização e letramento também decorre do trabalho pedagógico densamente elaborado por profissionais e pesquisadores da educação.

Ainda no que diz respeito ao aparente desprezo que a PNA e seus materiais endereçados às famílias têm pelo professor e pela formação docente, chama atenção o fato de que dentre as vinte e sete referências bibliográficas do Guia de Literacia Familiar absolutamente todas são oriundas de estudos e pesquisas estrangeiros, grande parte estadunidense. Deste modo, estes materiais integrantes da política curricular nacional nasceram desprezando professores e pesquisadores brasileiros que são referências renomadas nacional e internacionalmente nos estudos sobre os processos de alfabetização e letramento. Desta forma, a PNA:

Assume a condição de subalternidade ao se negar a reconhecer o avanço que a pesquisa sobre alfabetização no Brasil alcançou nas últimas quatro décadas. Avanço esse expresso nas centenas de teses e dissertações defendidas nos programas de pós-graduação não apenas na área da educação mas também nas várias outras áreas que tangenciam as questões da alfabetização e da educação, tais como a psicologia, a antropologia, a sociologia, a linguística, a história, dentre outras (MACEDO, 2019, p. 63).

Isso nos revela o descompromisso do governo anterior com a ciência e o conhecimento produzido no país, sobretudo na universidade pública brasileira, permitindo-se ainda inferir que o desinvestimento na coisa pública - prática de ordem neoliberal - perpassou todo e qualquer tratamento que o MEC conferiu à educação brasileira, incluindo-se neste bojo as pesquisas acadêmicas e, também, as políticas e práticas de formação de professores. No segundo material analisado, a playlist de vídeos formativos Conta pra Mim - Literacia Familiar, nota-se um viés discursivo moralizante e familista que atravessa a significação do Programa, qual seja, a de que pais e responsáveis podem substituir professores sem maiores prejuízos. Já no segundo vídeo, o Programa é enfático ao dizer, tanto no Guia quanto na playlist de vídeos do site Youtube que a: "Literacia familiar é o reconhecimento de que os pais são os primeiros professores de seus filhos” (BRASIL, 2020, p. 13), ensejando uma visão problemática de literatura e letramento, visto que:

O termo literacia familiar é uma adjetivação para a literacia, expressão aportuguesada de termo literacy [...]. O uso desse termo no programa parece reduzir as práticas de leitura, oralidade e escrita às experiências do cotidiano. Além disso, vincado a uma ideia de ludicidade, brincadeira, despolitiza as práticas de leitura, apartando-as, destarte, de suas vertentes sociais, culturais, críticas, estéticas e políticas (RAMALHETE, 2021, p. 154).

Focando na literacia familiar como estratégia principal, o Conta pra Mim convoca os familiares a colocarem-se como educadores capazes de seus filhos e filhas, ao fazer isto o Programa retira do cenário de aprendizagem o docente da educação infantil como figura importante no processo de letramento e alfabetização.

A ideia do responsável familiar como professor, na prática de literacia, sutilmente é atravessada pelo conflito entre a identidade profissional dos/as professores/as na educação infantil e o papel da família, pois a percepção “ingênua” desconsidera a trajetória histórica dos profissionais da Educação Infantil, marcada por lutas, conquistas e desafios na educação das crianças em relação com adultos. [...] Nessa perspectiva, o trabalho do profissional de educação infantil é destituído de profissionalização, tem menor valor e é capaz de atuar em condições estruturais físicas irrelevantes (SOUZA, 2021, p. 54).

Há então, a preferência pela esfera privada em detrimento da pública, quando a PNA deixa de lado esforços na formação docente continuada e cria seus materiais, especialmente o Guia de literacia familiar e a playlist de vídeos Conta pra mim, endereçados aos pais e responsáveis, orientandoos a conduzir o processo de aquisição da leitura das crianças pela estratégia de literacia familiar. Assim, desinveste na disseminação do conceito de letramento e da prática de contação de histórias na rede pública de educação básica, conforme aponta Souza (2021), como práticas pedagógicas que devem estar sob a responsabilidade dos docentes.

Para o Estado neoliberal, isso implica, entre outras coisas, ignorar a obrigação de políticas públicas de formação docente inicial e continuada que preparem para essa responsabilidade profissional. Ao ignorar professores e focar no grupo família como protagonista da literacia, a PNA retorna ao mundo doméstico o processo de aquisição da leitura, ignorando que este momento se torna crítico e enriquecedor quanto mais partilha da vida social e das diferenças. O que permite inferir que a PNA consiste também numa tentativa de contenção da polissemia e da contingência proporcionadas pela leitura na produção de sentidos sobre o mundo.

Pontua-se aqui que a demanda familista na política curricular além de ensejar descuido e descaso com a formação de professores da educação infantil, é uma demanda de estreitamento da significação sobre o que é necessário aos currículos das infâncias e da formação docente. Ainda no tocante a disputa dos sentidos de prática pedagógica, profissionalização e formação docente, dentre os materiais audiovisuais do Programa Conta pra Mim percebe-se, nos vídeos de número seis a nove que tratam da temática facilitadores da alfabetização, a abordagem de conteúdos como desenvolvimento da linguagem oral, percepção da ordem temporal dos eventos ou identificação dos elementos narrativos que carecem de uma discussão mais profunda, sistematizada e técnica do que a propiciada por vídeos curtos de dois a quatro minutos de duração para serem compreendidos e corretamente estimulados no processo de letramento e alfabetização.

Desta forma, os materiais da PNA mobilizam sentidos que desprezam o fazer docente pois evocam a equivocada significação de que o processo de ensino-aprendizagem é simples, por isso as suas técnicas poderiam supostamente ser resumidas em vídeos de pouca minutagem e suas preocupações filosóficas e estéticas podem ser reduzidas ao pragmatismo de necessidades utilitárias que reposicionam a leitura no já amplamente contestado lugar em que a linguagem serviria ao mero deciframento de código. Tal aceleração e fragmentação do processo educacional promovida por esta política curricular é outra característica de sedimentação de sentidos discursivos do neoliberalismo, pois este irrompe o tempo com sua lógica de aceleração da vida que para ser minimamente factível precisa comprimir tudo, a métricas temporais, tão curtas, quanto possíveis.

Outro ponto importante que desvela a sedimentação de sentidos neoconservadores e neoliberais na PNA como estratégias interpelativas que, ignorando a figura docente, fragilizam quaisquer esforços públicos na construção de políticas curriculares para a formação de professores, revela-se quando nos vídeos do Conta pra Mim não aparecem a escola ou a figura da professora/ do professor. As imagens oferecidas são de exaltação da ordem privada como harmônica e habilidosa em educar, estão centradas na configuração familiar tradicional e nas imagens de mulheres/mães como principais educadoras. Estes sentidos saltam às análises quando, por exemplo, é a mulher/mãe que aparece em foco em 18 das 40 capas de vídeos. Ou seja, na maioria das capas dos vídeos da playlist é a imagem da mulher/mãe praticando leitura com a criança que é oferecida ao público. Constituindo assim um endereçamento discursivo que permite aos sujeitos inferir a responsabilidade e a capacidade feminina/materna no centro do processo educativo.

Note-se então que a significação de família proposta por políticas curriculares familistas intenta rearticular a ideia de que a mulher será a principal responsável pela esfera doméstica. Deste modo, pode-se considerar que tal demanda constitui uma discursividade neoconservadora de política curricular, antagônica aos preceitos e discussões dos estudos de gênero e do campo feminista no que diz respeito as possibilidades de ser mulher e as obrigações relacionadas ao ato de cuidar. No tocante às políticas de formação docente, antagoniza-se ainda com a discussão sobre o binômio cuidar-educar que perfaz toda a educação infantil, apontando para a especificidade do trabalho pedagógico nesta etapa e para a luta para que este trabalho seja exercido por profissionais de ambos os gêneros, conquistando a credibilidade e a confiança das famílias.

La responsabilidad por el cuidado de mí misma, del otro y del mundo me compromete, también como actividad pedagógica. Cuando reconocemos este hecho, ciertos discursos formales y abstractos pasan a un segundo plano porque nos invade la urgencia de hacernos cargo de la fragilidad y la contingencia humanas (VÁZQUEZ VERDERA, 2010, p. 181).

Ante a isto, quando a Política Nacional de Alfabetização intenta atrelar nas subjetividades coletivas a imagem de que a mulher é a única cuidadora capaz, ela assume uma perspectiva não apenas sexista e binária de gênero, como também contra pedagógica. Uma vez que precisamos construir no campo educacional a compreensão sobre a tônica do cuidado como uma necessidade e uma capacidade humana. Para que tal posicionamento esteja presente nas políticas curriculares faz-se necessário que sua elaboração esteja comprometida com o alargamento dessa significação de cuidado, bem como sobre quem pode ser o cuidador ou a cuidadora capaz, inclusive no âmbito das redes públicas de ensino que ofertam a educação infantil e que tem os profissionais responsáveis por promover o letramento e a alfabetização de crianças em uma visão binarista de gênero sobre a educação das infâncias o Programa Conta pra Mim desconsidera inclusive os desafios que os professores identificados com o gênero masculino enfrentam para conseguir atuar na educação infantil (COSTA FILHO, PENHA SILVA, 2021) em condições de equidade de gênero. A PNA acena assim a outro descaso com as políticas de formação de professores, qual seja, a necessidade de se trabalhar para que a feminização do magistério (FELIPE, 2006) seja minorizada enquanto um estereótipo de gênero na profissionalização docente.

Cabe também problematizar a sedimentação de sentidos neoconservadores sobre família naquilo que a PNA e o Conta pra Mim significam sobre a fantasia da família modelo reforçada por estes materiais. Não há nos vídeos, por exemplo, imagens de famílias homoparentais ou monoparentais, bem como todas as famílias estão posicionadas em ambientes confortáveis e bem servidos em termos de recursos para assistir as crianças, o que revela o distanciamento desta política curricular dos recortes que permeiam as famílias brasileiras. Neste contexto de universalização da ideia de família, a reiteração pública da necessidade de o núcleo familiar controlar os discursos curriculares emerge como forma de dirimir as possibilidades de se fazer uma política curricular agonística (MOUFFE, 2015) na educação. Ao recusar-se aos encontros com a diferença e a possibilidade de negociar com o outro, sendo o outro neste caso os docentes responsáveis pelo processo de letramento e alfabetização das crianças, a PNA investe numa significação que se vale dos sentidos neoliberais de personalização curricular (SILVA, 2017) para estimular uma fantasia neoconservadora de personalização moral dos currículos. Tal personalização só poderia ser feita no âmbito privado e no seio de cada família, pois prescindiria da cadeia de valores que cada grupo familiar considerasse justa e adequada para a educação de seus filhos e filhas.

Esta fantasia implode o espaço-tempo curricular em que os professores são sujeitos necessários aos processos de ensino-aprendizagem e com isso sucateiam-se as tentativas de consolidar um campo perene (ainda que contestado) de políticas de formação de professores. O esvaziamento de sentidos docentes promovido pela Política Nacional de Alfabetização, construída na gestão do ex-presidente Bolsonaro, está portanto atrelado a um projeto político neoliberal e neoconservador que visa reorganizar a ordem social em direção a esfera privada, capturando mulheres e crianças, retirando ambos da vida pública e conferindo aos professores, sobretudo da educação infantil, ora o silenciamento da ausência de propostas, ora a ruidosa significação que precariza as condições de trabalho e de existência destes profissionais.

APONTAMENTOS FINAIS

Este artigo discutiu os impactos para a docência ante a emergência do familismo contemporâneo, uma articulação neoliberal e neoconservadora que intenta governar a vida pública a partir de uma cadeia de valores e de aspectos culturais ancorados na tradição moral. Fortalecendose enquanto um discurso capaz de disputar a hegemonia na construção das políticas curriculares brasileiras, especialmente desde a última década, o familismo contemporâneo impregna-se nas, aqui denominadas políticas curriculares familistas, que designam um conjunto de discursos curriculares cujos sentidos privilegiam a família como instância educadora autônoma e reguladora dos currículos. Os achados demonstraram que a disputa familista do currículo perpassou propostas educacionais, projetos de lei e consolidou-se discursivamente em textos curriculares oficiais como a atual Política Nacional de Alfabetização (PNA), através de seu Programa Conta pra Mim. Analisase aqui que esta política curricular familista tem impactos na docência brasileira, pois ao endereçarse unicamente aos familiares, esvazia os espaços-tempos da docência e da formação docente, invisibilizando os profissionais do magistério e desprezando quaisquer esforços na consolidação de uma política nacional de formação docente continuada e na melhoria das condições de trabalho docente.

Embebidas em fantasias de personalização moral dos currículos e estimulando a ideia de que cada família teria condições de escolher o currículo de seus filhos e filhas, as políticas curriculares familistas operam com a racionalidade neoconservadora, ao requisitarem principalmente a mulher/mãe como principal responsável pela educação das crianças. Outrossim, operam com a racionalidade neoliberal de supervalorização da vida privada e de expansão da chamada esfera pessoal protegida, em detrimento do interesse público. Tais políticas além de cerrarem os estudantes nos mundos reconhecidos e autorizados por suas famílias e de esvaziarem os sentidos de formação docente, escamoteiam ainda a compreensão sobre a importância da irrupção da diferença nas políticas públicas curriculares, as quais devem ser construídas de forma democrática a partir dos consensos conflituosos necessários a negociação dos vários interesses e demandas sociais que perpassam o campo educacional.

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Recebido: Maio de 2023; Aceito: Junho de 2023

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