INTRODUÇÃO
Branco não é uma cor. Branco é uma definição política que representa históricos privilégios sociais e políticos de certo grupo. [...] Assim como negro corresponde a uma identidade política que se refere à historicidade das relações políticas e sociais, não à biologia.
(Grada Kilomba)
Imaginemos uma sociedade capaz de criar um país democrático, orientado pelos princípios de igualdade e justiça social, no qual todas as formas de vida tivessem seus direitos garantidos para experimentar uma existência e convivência dignas. Uma sociedade em que a diversidade e as diferenças fossem desejadas e celebradas como um patrimônio coletivo.
Essa sociedade imaginada jamais poderia ser estruturada pela experiência do racismo. Ela não seria produto de um sistema difusor da cultura colonial moderna, caracterizada, historicamente, pela classificação e hierarquização dos seres humanos. Da mesma forma, a cor da pele e outros marcadores fenotípicos não indicariam a superioridade epistemológica - e, consequentemente, cultural, social, econômica e política - de um grupo sobre outro.
Essa sociedade não seria, portanto, regida por um sistema de relações de poder fundamentado em múltiplas formas de dominação, exploração e conflito típicas do modelo capitalista; mas por relações entre branco(a)s e não branco(a)s sustentadas na valorização e reconhecimento da importância de todo(as) e de cada um para a (re)invenção de um modo de vida democrático, multicultural e pluriétnico. Nessa sociedade, a valorização, a afirmação e o reconhecimento da multiplicidade das formas de pensar, perceber e sentir estariam enraizadas em todas as dinâmicas sociais. Somente assim teríamos chances de não haver uma única narrativa pautando a existência dos desejados e dos indesejados, das vidas que importam e das que não importam.
Imaginar e lutar por uma sociedade democrática estruturada na igualdade social e racial tem sido a pauta fundamental do Movimento Negro, formado por grupos mobilizados de intelectuais, artistas, mestres e mestras de diferentes vertentes culturais e políticas. No campo da educação, os efeitos dessa luta culminaram com a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96) pela Lei n. 10.639/03 e, posteriormente, pela Lei n. 11.645/08, que tornaram obrigatórias a inclusão da história e das culturas africanas, afro-brasileiras e dos povos indígenas no currículo das escolas públicas e particulares de todo o território nacional. Em linhas gerais, podemos considerar essas leis como marcadores importantes no sentido de, finalmente, induzir uma educação consistente para as relações étnico-raciais, com vistas a combater o racismo e outras formas de violência.
No entanto, persistem numerosos desafios a serem transpostos nessa direção. Os quase quatro séculos de violências físicas, culturais e psicológicas produzidas contra negros e negras africanas e brasileiras não podem ser apagados ou esquecidos. Em um país em que 55,8% da população se autodeclara preta ou parda1, manter os privilégios e a crença na superioridade dos brancos de origem europeia demandou toda uma engenharia de exclusão de viés racista que se mantém em todas as camadas institucionais de nossa sociedade até os dias atuais.
O tema deste artigo foi suscitado por inquietações pessoais e profissionais de uma das autoras - mulher negra e educadora - no contexto de desenvolvimento de uma pesquisa que tem como objeto a construção de um currículo antirracista em uma escola particular de elite da cidade de São Paulo. A proposição de políticas educacionais que assegurem o direito de que todas as culturas e formas de organização da vida estejam representadas no currículo escolar tem como premissa o questionamento da suposta neutralidade e universalidade do conhecimento produzido no mundo ocidental que, em muitos casos, legitima práticas violentas de exercício do poder em sociedades dominadas pelos brancos. São políticas que, por meio da introdução de outros saberes e conhecimentos no currículo, pretendem desconstruir a percepção hegemônica que impediu por séculos que negros(as) - mas também brancos(as) - acessassem a riqueza histórica, científica, econômica e cultural que compõem as múltiplas identidades do povo brasileiro.
Diante do desafio de transformar a realidade imaginada em um campo de possibilidades, este ensaio problematiza o conceito de educação antirracista, bem como a (re)educação para as relações étnico-raciais no âmbito da escola, com base nos princípios e proposições pedagógicas da Lei n. 10.639/03, e em diálogo com autores que nos ajudam a aprofundar essa discussão desde uma perspectiva decolonial. Nessa direção, o texto examina as possibilidades de empretecer o currículo e construir uma comunidade escolar [e não escolar] antirracista e amorosa, tal qual imaginou Martin Luther King. “Ao cultivar a consciência e a descolonização do pensamento, conseguimos as ferramentas para romper com o modelo dominador da sociabilidade humana e do desejo de imaginar novas e diferentes formas de as pessoas se unirem” (hooks, 2021, p. 80)2.
A (DES)CONSTRUÇÃO SOCIAL DO RACISMO
No momento da escrita deste texto, o assassinato de uma professora por um adolescente de 13 anos, dentro da sala de aula de uma escola da rede estadual paulista, permanecia estampado entre as principais notícias3 da semana. O gatilho desse ato de violência extrema teria sido, aparentemente, a reprimenda da professora a ofensas racistas proferidas pelo agressor a um colega de classe dias antes. Um detalhe da cena reforça essa hipótese: no momento da agressão, o menino usava símbolos de grupos norte-americanos defensores da supremacia branca.
Esse episódio, que como tantos outros se tornaram corriqueiros no dia a dia dos brasileiros, é ilustrativo dos efeitos de um longo processo de colonização das subjetividades capaz de penetrar, em todo o tecido social, o sentimento de uma suposta superioridade dos brancos em detrimento do reconhecimento da humanidade e dos direitos dos não-brancos. As raízes desse fenômeno se entrelaçam com a história de expansão econômica e mercantil europeia, concretizada com a descoberta do novo mundo e com a escravização de povos africanos e indígenas. (ALMEIDA, 2018). Ao mesmo tempo, o processo de racialização incidiu sobre os corpos negros uma série de discursos científicos e religiosos com vista à sua desumanização, e que estão na base de práticas discriminatórias e genocidas. Para Sílvio Almeida (2018, p. 20):
Falar de como a ideia de raça ganha relevância social demanda a compreensão de como o homem foi construído pela filosofia moderna. A noção de homem que, para nós soa quase intuitiva, não é tão óbvia quanto parece. É um dos produtos mais bem acabados da história moderna e que exigiu uma sofisticada e complexa construção filosófica.
A existência de um sujeito universal, capaz de alcançar a verdade sobre tudo e todos, foi erigida ainda no Renascimento a partir das teses apresentadas por René Descartes (1596-1650) no seu discurso do método para bem conduzir a razão na busca da verdade dentro da ciência. Desde então, a filosofia moderna - em suas versões iluminista, no século XVIII, e positivista, no XIX - alçou a razão humana à autoridade do conhecimento objetivo e seguro sobre o mundo sensível, inclusive, sobre o próprio homem. A noção de raça emerge nesse contexto, pois as ferramentas constituídas pelo iluminismo possibilitaram “[...] a comparação e, posteriormente, a classificação dos mais diferentes grupos humanos a partir de características físicas e culturais. Surge então a distinção filosóficoantropológica entre civilizado e selvagem, que no século seguinte daria lugar para o dístico civilizado e primitivo”. (ALMEIDA, 2018, p. 20, grifos do original).
No discurso do filósofo alemão, Emanuel Kant - considerado um dos principais expoentes do pensamento iluminista - encontramos muitas evidências desses elementos:
Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas. (KANT, 1993, p. 75-76).
O excerto, extraído da obra Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, data de 1764. Nesse ensaio, o filósofo recorre a duas categorias estéticas para classificar e hierarquizar as formas de sociabilidade e o comportamento de diferentes grupos humanos. De maneira arbitrária, portanto, Kant sintetiza, com a noção de refinamento do gosto4, o ideal antropológico e epistêmico da Modernidade de uma razão universal, prefigurada no homem branco europeu.
O discurso moderno da racialização e da racionalização foram estabelecidos com o propósito de subjugar os povos conquistados, mas depois evoluíram para uma estrutura de poder que se expandiu para todo o mundo ocidental: a colonialidade. Com este conceito, Aníbal Quijano se refere à lógica subjacente ao projeto da modernidade, que não se limitou à dominação territorial, mas impôs hierarquias sociais, econômicas, culturais e políticas com o fim de perpetuar a cultura ocidental sobre a de outras regiões e povos ao redor do mundo.
O êxito da Europa Ocidental em transformar-se no centro do moderno sistemamundo (...) desenvolveu nos europeus um traço comum a todos os dominadores coloniais e imperiais da história, o etnocentrismo. Mas no caso europeu esse traço tinha um fundamento e uma justificação peculiar: a classificação racial da população do mundo depois da América. A associação entre ambos os fenômenos, o etnocentrismo colonial e a classificação racial universal, ajudam a explicar por que os europeus foram levados a sentir-se não só superiores a todos os demais povos do mundo, mas, além disso, naturalmente superiores. (QUIJANO, 2005, p. 111, grifos do original).
No Brasil, essa lógica ganhou força com o projeto de embranquecimento da população negra pós-abolição e, posteriormente, com o mito da democracia racial. Cabe ressaltar que os discursos racistas produzidos dentro das universidades por intelectuais brancos contribuíram para a consolidação dos mecanismos de exclusão e discriminação da população negra ao indicarem o que significa ser branco ou negro em nossa sociedade. Sílvio Almeida afirma o que ocorre a partir da obra de Gilberto Freyre5:
[...] a ideologia da democracia racial se instalou de maneira muito forte no imaginário social brasileiro, de tal modo a ser incorporada como um dos aspectos centrais da interpretação do Brasil, das mais diversas formas, e pelas mais distintas correntes políticas, tanto à “direita” como à “esquerda”. (ALMEIDA, 2018, p. 140).
O autor esclarece que a construção desse imaginário fez parte de um complexo jogo de reordenamento das estratégias políticas, acionadas pelo Estado brasileiro, para inserir o país no capitalismo industrial a partir dos anos 1930. Nesse contexto:
A institucionalização das diferenças raciais e de gênero garante que o trabalho seja realmente submetido ao capital, uma vez que o racismo retirará do trabalhador qualquer relevância enquanto indivíduo [...]. Assim é que o racismo se conecta à subsunção real do trabalho ao capital, vez que a identidade será definida segundo os padrões de funcionamento da produção capitalista. (ALMEIDA, 2018, p. 142, grifo do original)
Ainda de acordo com Almeida (2018), em uma sociedade em que o racismo é estrutural, ou seja, é um dos elementos constitutivos da ordem econômica, social e jurídica do Estado - como é o caso do Brasil - comportamentos individuais e condutas institucionais racistas são a regra, não a exceção. Por isso, aceita-se, com naturalidade, que empregadas domésticas pretas ou pardas (e brancas, mas pobres!) entrem nas casas de seus patrões somente pela porta dos fundos ou pelo elevador de serviço; que nas empresas, funcionário(as) preto(as) recebam salários menores e não sejam tratados com a mesma cortesia dirigida a seus/suas colegas branco(as). De outro lado, chama a atenção que negro(as) exerçam cargos de chefia, normalmente reservados às pessoas brancas; que aluno(as) negro(as) e pardo(as) frequentem os bancos universitários de elite; ou que pessoas pretas assumam o lugar de mestre(as) e/ou gestor(as) de instituições escolares de alto padrão.
A naturalização de comportamentos individuais e institucionais racistas é um dos efeitos do racismo estrutural, que se reflete nos processos de socialização no interior das instituições. Com efeito, as instituições não criam o racismo, elas reproduzem as condições necessárias para a manutenção da ordem social em que o racismo é um de seus elementos. Almeida sintetiza esse raciocínio de forma direta e objetiva: “[...] as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (2018, p. 36). Mas, se são as condições objetivas - históricas, econômicas, políticas e jurídicas - que dão origem ao racismo estrutural, a sua persistência como prática social depende de processos sofisticados de subjetivação. É que “Os indivíduos precisam ser formados, subjetivamente constituídos, para reproduzir em seus atos concretos as relações sociais de poder e dominação”, explica o autor (ALMEIDA, 2018, p. 134, grifos do original).
A escola é um dos espaços onde as primeiras experiências de sociabilidade ocorrem fora do ambiente familiar. Experimenta-se coexistir dentro de uma outra hierarquia de poder, quando o lugar de aluno(a) é diferente daquele ocupado em casa como filho(a), irmão ou irmã. Aprende-se também a ajustar o corpo e o espírito aos rituais e tempos da escola, a adiar desejos e necessidades. Na escola, faz-se amigos e/ou inimigos; é onde muitas vezes acontecem as primeiras paixões, correspondidas ou inibidas, frustradas. As aprendizagens vividas na escola deixam marcas significativas no corpo e na alma, como diz Arroyo (2009, p. 122): “Um aprendizado, por vezes, carregado de traumas por tantos olhares preconceituosos que regem os convívios entre gêneros, raças e condições sociais”.
A educação escolarizada, fundada na dialética modernidade/colonialidade (MIGNOLO, 2011), operou o apagamento dos saberes, conhecimentos e tecnologias produzidos pelos não brancos, pois “[...] o território cultural-epistêmico do currículo também passa pelas lentes seletivas e classificatórias do colonizador, ou seja, pelas lentes da ciência colonizadora travestida de neutralidade.” (FERREIRA, SILVA, 2018, p. 81). Reverter essa lógica implica engajar-se em um movimento de resistência e lutas não só para fazer valer os direitos e afirmar a identidade dos povos ‘conquistados’, mas para reconstruir o currículo sobre as bases de uma pedagogia decolonial.
Nessa direção, a aprovação das leis 10.639/03 e 11.645/08 significou uma conquista importante dos movimentos dos afrodescendentes e dos povos indígenas. A educação escolar é considerada pelo Movimento Negro como espaço institucional capaz de fomentar outras formas de pertencimento e relações étnico-raciais.
Todos estes dispositivos legais, bem como reivindicações e propostas do Movimento Negro ao longo do século XX, apontam para a necessidade de diretrizes que orientem a formulação de projetos empenhados na valorização da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos, assim como comprometidos com a de educação de relações étnico-raciais positivas, a que tais conteúdos devem conduzir (BRASIL, 2004, p. 2).
Mas, para a efetivação desses dispositivos legais, torna-se fundamental uma pedagogia que promova possibilidades de ensinar, aprender e compartilhar um sentido de humanidade que traga para o campo educacional perspectivas de formação de consciências descolonizadas, ou seja, perspectivas que transcendam os modelos pedagógicos eurocêntricos. Trata-se de povoar a escola com diferentes epistemologias e cosmogonias de forma a enriquecer e ampliar as possibilidades de pertencimento a uma humanidade compartilhada. Trata-se, enfim, de promover uma educação escolar capaz de desconstruir a ideologia da supremacia branca, emancipar as subjetividades subalternizadas da população negra, enfim, que seja capaz de descolonizar a vida. empretecer o currículo significa retirar a centralidade do pensamento hegemônico europeu dos processos de aprendizagem e reaprender novas formas de sociabilidade num mundo pluriversal.
EMPRETECER O CURRÍCULO
Canta, Beija-Flor, meu lugar de fala
Chega de aceitar o argumento
Sem senhor e nem senzala vive um povo soberano
De sangue azul, nilopolitano6
O trecho do samba-enredo da Beija-Flor nos mobiliza a aderir a movimentos de resistência às narrativas coloniais que, ainda hoje, forjam uma história única do povo brasileiro, na qual o lugar do negro está nas senzalas, submetido à violência da escravização, do tráfico, da tortura, do silêncio e da invisibilidade. Nesse contexto, as subjetividades são produzidas para hierarquizar a relação de dois grupos humanos: a dos sujeitos brancos e a dos sujeitos negros. O primeiro, constitui um grupo que toma para si o poder de definir as estruturas sociais, econômicas e políticas e manter os privilégios que sustentam o imaginário da superioridade branca.
(...) a colonização, repito, desumaniza até o homem mais civilizado; que a ação colonial, o empreendimento colonial fundado no desprezo pelo homem nativo e justificada por esse desprezo, inevitavelmente, tende a modificar a pessoa que o empreende; que o colonizador, ao acostumar-se a ver o outro como animal, ao treinar-se para tratá-lo como animal, tende objetivamente, para tirar o peso da consciência, a se transformar, ele próprio, em animal (CÉSAIRE, 2008, p. 23).
Quanto ao segundo grupo, pretos e pardos são definidos, em relação aos brancos, como aqueles e aquelas incapazes de uma vida livre, humana e civilizada, e são expostos, passivamente, às violências.
Falo de milhões de homens arrancados aos seus deuses, suas terras, seus costumes, sua vida, a vida, a dança, a sabedoria. [...] milhões de homens em que foram inteligentemente inculcados o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, o ajoelhar-se, o desespero e o servilismo (CÉSAIRE, 2008, p. 25).
A despeito de tudo isso, a instituição colonial do capitalismo não conseguiu sequestrar da vida dos negros e negras seu imaginário ancestral, construído por reinos, impérios, sabedorias, tecnologias, economias e espiritualidade que, por séculos, produzem africanidades e negritudes. Não ceifou o germe do desejo de lutar pela emancipação das consciências e constituir identidades livres e amorosas. No samba, sem senhor e sem senzala, o povo preto produz seu ‘lugar de fala’ como narrador e sujeito da sua história.
Em O que é lugar de fala?, Djamila Ribeiro (2017) - mulher negra, filha de estivador e de empregada doméstica, feminista e ativista do Movimento Negro brasileiro - explora em profundidade esse conceito, resumido por Santos (2019) como “O lugar no qual, do ponto de vista discursivo, os corpos subalternizados reivindicam sua existência”. Na exposição de motivos do Parecer CNE/CP 003/2004, que estabelece diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, fica claro que tais diretrizes têm por finalidade:
[...] oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura, identidade [salientando que] tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. (BRASIL, 2004, p. 2, grifos nossos).
Embora essa política tenha sido um avanço, a fixação de direitos na esfera jurídica não é suficiente para reparar as feridas coloniais que se atualizam nos corpos de afrodescendentes a cada nova geração. O projeto de repará-las só pode ser concretizado por meio de uma educação antirracista, que pressupõe o compromisso da escola de formar novas subjetividades, capazes de conviver na diferença e de estabelecer relações étnico-raciais horizontais.
Para que isso ocorra, é preciso começar por não negar o racismo, não silenciar sobre sua existência e não camuflar ou tolerar atitudes racistas. É preciso ter a ousadia de desconstruir mitos, falar sobre e marcar as diferenças, pois como observa a artista negra, Grada Kilomba “[...] as pessoas brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas [...] e esse ser pessoa é a norma que mantém a estrutura colonial e o racismo”. (CARTA CAPITAL, 2016). Nesse não reconhecimento reside o conceito de branquitude, que tanto diz respeito à posição de privilégio gozada pelos brancos como à existência de uma suposta neutralidade racial. (LEÃO, 2020).
Uma educação antirracista precisa, portanto, problematizar os conceitos e os contextos históricos e ideológicos que engendraram a noção de raça. É preciso incorporar essas questões aos atos do currículo7 (MACEDO, 2012) para romper com as narrativas hegemônicas e criar espaços para narrativas múltiplas, pluriétnicas e multiculturais. Com efeito, empretecer o currículo implica operar um giro epistemológico e pedagógico radical que abrigue as múltiplas identidades que habitam o território escolar, e abra o pensamento de brancos e não brancos para outras formas de produção de conhecimento, de expressão cultural e de sociabilidade.
Nos processos de lutas por direitos de diversos grupos sociais, a escola, instituição fundamental para a socialização dos sujeitos, se torna palco das tensões e os conflitos entre as formas de ensinar, aprender e conviver geram novas teorias e ações que, por sua vez, marcam os sujeitos que por ali circulam. Construir um currículo antirracista não é tarefa fácil, demanda tempo e pressupõe compreendê-lo como um território em constante disputa.
O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento, o currículo é documento de identidade (SILVA, 2002, p. 150).
Partindo dessa premissa, é necessário enfrentar o fato de que a sala de aula é um espaço onde não só é possível - mas também necessário - refletir sobre as diferenças, admitir conflitos e acolher angústias. Nas palavras de Nilma Lino Gomes (2012, p. 105), “O ato de falar sobre algum assunto ou tema na escola não é uma via de mão única. Ele implica respostas do ‘outro’, interpretações diferentes e confrontos de ideias”.
Na mesma linha de raciocínio, Arroyo (2013) lança o alerta de que, enquanto profissionais que trabalham com grupos multiétnicos e multiculturais, somos confrontados com a necessidade de decidir se negamos ou reconhecemos conhecimentos, histórias e modos de pensar distintos dos nossos, o que nos leva a participar - querendo ou não - de uma batalha histórica. A questão com a qual o autor nos desafia a pensar é se existe espaço para a inclusão dessa multiplicidade humana em nossos currículos.
A Lei n. 10.639/2003 abriu possibilidades para colocar o currículo e as subjetividades em movimento, seja na perspectiva da resistência, seja na perspectiva de construção de novas ações educacionais e pedagógicas. A promulgação dessa Lei garantiu o direito de que todos os alunos e alunas de escolas públicas ou particulares tenham acesso às vivências, ancestralidades, corporeidades, identidades, tecnologias, artes, enfim, às diferentes formas de ser e estar no mundo. Ademais, essa normativa nos desafia a descolonizar os saberes escolares e as relações étnico-raciais por meio da introdução de pedagogias alternativas que, além de combater o racismo, apontem para outras possibilidades de conhecer o mundo.
O paradigma epistemológico subsumido na proposta de empretecer o currículo toma como referência o conceito de de-colonialidade que se distingue da ideia de des-colonização8. O ponto de partida desta outra perspectiva crítica dos estudos culturais latino-americanos repousa sobre a tese, defendida por Mignolo (2005, 2011, 2017), de que modernidade/colonialidade constituem um coletivo conceitual indissociável e pluriversal. Isto porque a matriz de poder estabelecida nessa relação concerne à história e às especificidades de cada região, o que inclui considerar as lutas sociais, culturais e políticas de todos os que a “[...] existencia y producción intelectual han sido negadas o limitadas al frente de los patrones del poder establecidos por este mismo orden modernocolonial”. (WALSH, 2005, p. 16).
El proyecto de la modernidad/colonialidad se considera como paradigma-otro por el hecho de que intenta construir un pensamiento crítico que parte de las historias y experiencias marcadas por la colonialidad y no por la modernidad, y también por el hecho de que busca conectar formas críticas de pensamiento no solo en América Latina sino con otros lugares del mundo donde la expansión imperial/colonial y la colonialidad misma niegan la universalidad abstracta del proyecto moderno y apuntan modos de pensar, ser y actuar distintos. (WALSH, 2005, p. 21)
De acordo com Mignolo (2017, p. 10, grifo nosso), “A analítica da colonialidade (o pensamento descolonial) consiste no trabalho inexorável de desvendar como a matriz funciona, e a opção descolonial é o projeto inexorável de tirar todos da miragem da modernidade e da armadilha da colonialidade”. A proposta de empretecer o currículo a partir de uma abordagem decolonial não conflita com o que preconiza a Lei n. 10.639/2003, visto que “[...] não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.” (BRASIL, 2004, p. 8). Com efeito, a formação e o fortalecimento de subjetividades antirracistas só se darão pelo diálogo e pela (re)invenção de formas de convivência que promovam novas relações étnico-raciais.
A ESCOLA COMO COMUNIDADE (AMOROSA) ANTIRRACISTA
Não sou esperançoso por pura teimosia
mas por imperativo existencial e histórico
Paulo Freire
A intelectual negra estadunidense, bell hooks, em sua obra Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança (2021) nos mobiliza a imaginar viver em comunidade, no qual somos pessoas conectadas umas às outras. Como intelectual que atuou como professora, hooks mobiliza o legado de Paulo Freire para apontar possibilidades de esperançar uma comunidade amorosa, isto é, uma comunidade antirracista e democrática, construída por meio de uma educação libertadora. Para a autora, o amor envolve ação, comprometimento, confiança e responsabilidade. Por isso, uma comunidade amorosa envolve o cuidado mútuo e o combate a toda forma de violência.
Mais do que afinidades intelectuais, há muitas semelhanças nas diferentes trajetórias de hooks/Watkins e Freire: ambos cruzaram a fronteira entre teoria e prática, aliaram ativismo político a uma pedagogia engajada, e ambos nos deixaram exemplos concretos da possibilidade de transformar a sala de aula numa comunidade amorosa de sujeitos que ensinam e aprendem, juntos, na diferença. Em Ensinando a transgredir (2021), hooks expõe para Gloria Watkins9 porque a obra de Freire lhe tocou tão profundamente:
Quando encontrei a obra de Freire, bem num momento da minha vida em que estava começando a questionar profundamente a política da dominação, o impacto do racismo, do sexismo, da exploração de classe e da colonização [...] me senti fortemente identificada com os camponeses marginalizados de que ele fala e com meus irmãos e irmãs negros, meus camaradas da Guiné-Bissau [...]. Ele me fez pensar profundamente sobre a construção de uma identidade na resistência. Uma frase isolada de freire se tornou um mantra revolucionário para mim: Não podemos entrar na luta como objetos para nos tornarmos sujeitos mais tarde (hooks, 2021, p. 52).
O caráter revolucionário da frase de Freire que tanto impactou bell hooks encerra a radicalidade do giro epistemológico e pedagógico de que falávamos anteriormente. Pois, na contramão do projeto educativo moderno/colonial, a constituição de sujeitos críticos e autônomos é ponto de partida e não de chegada em uma comunidade (amorosa) de aprendizagem. Trata-se, assim, de um giro ético igualmente radical.
Mas a amorosidade de que falam os dois autores nada tem a ver com romantismo ou doçura; pelo contrário, é resultado de penosas experiências subjetivas de confrontação com as diferenças, inerentes ao lento processo de humanização. Em outras palavras, fazer essa travessia implica correr riscos. O educador ou educadora que se dispõem a fazer uma educação libertadora - diz Freire (2002, p. 38) - instauram um clima “[...] de quem busca seriamente segurança na argumentação [...] de quem, discordando do seu oponente não tem por que contra ele ou ela nutrir uma raiva desmedida”. Nesse ambiente não há lugar para qualquer forma de discriminação.
A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nós achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam negros, dos que inferiorizam as mulheres (FREIRE, 2002, p. 39-40).
Uma educação libertadora e antirracista está comprometida com a construção de uma comunidade de sujeitos críticos e abertos ao diálogo. Esse compromisso requer que se estabeleçam vínculos afetivos, por meio de trocas de experiências que, por sua vez, se convertem em saberes e conhecimentos ensinados e aprendidos que desafiam modelos de dominação sustentados pelo racismo. A aposta de bell hooks - que é também a nossa - é que a força dessa comunidade é capaz de produzir outras formas de existir e conviver que transbordam as fronteiras da escola.
Romper com padrões de dominação requer fomentar experiências de aprendizagem em que o outro, isto é, aquele que não corresponde a uma humanidade hegemônica, seja reconhecido e valorizado por compartilhar e multiplicar o amor pelo direito de existir das diferentes formas de ser e estar no mundo, pela igualdade, liberdade e dignidade. A experiência da comunidade aumenta nossa capacidade de companheirismo (hooks, 2021, p. 173).
Uma comunidade escolar antirracista e decolonial inventa uma ética do cuidado, da responsabilidade, da confiança, da liberdade, do conhecimento e da consciência democrática. É nessa perspectiva que empretecer o currículo pode contribuir para a expansão da capacidade de negro(as) e não negro(as) afirmarem suas diferenças e, ao mesmo tempo, valorizarem e irradiarem todas as humanidades. Sueli Carneiro, discorrendo certa vez sobre a luta das mulheres (negras e não negras) fez a seguinte reflexão:
A valorização da diferença torna-se então um pré-requisito para a reconciliação de todos os seres humanos. O princípio capaz de fazer com que cada um de nós com a sua diferença possa se sentir confortável e em casa neste mundo, pertencentes que somos todos à mesma espécie humana. Essa missão civilizatória é talvez o ponto mais importante da agenda das próximas gerações. (CARNEIRO InGELEDÉS, 2000, s. p.)
As reflexões de Carneiro (2000) remetem à dimensão histórica da condição humana e ao caráter transcendente da tarefa educativa. A esse respeito, Hanna Arendt (2007, p. 247) contribui para ampliar o sentido de amorosidade do ato educativo, ao vinculá-la à responsabilidade de todos e de cada um pela (re)criação permanente do mundo como espaço da vida em comum:
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para a assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.
Construir uma comunidade educativa com essa qualidade implica mudar as formas de pensar, conviver e conduzir as práticas pedagógicas no espaço comum da escola, a fim de que o combate a toda e qualquer forma de preconceito ou discriminação seja um valor compartilhado e desejado por todos. Mas o verdadeiro alvo dessa pedagogia - amorosa e decolonial - ultrapassa os espaços/tempos da escola: ela visa formar subjetividades sensíveis e consciências críticas suficientemente potentes para fazer avançar o projeto de construção de uma sociedade inspirada, por exemplo, na filosofia Ubuntu10, na qual cada sujeito reconhece sua humanidade no reconhecimento da humanidade do outro. Sem esses pilares fundamentais, uma sociedade democrática, de homens e mulheres branco(as) e não branco(as) tende a permanecer no horizonte como produto de um sonho ou de nossa imaginação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste ensaio nos propusemos a discutir os pressupostos e fundamentos de um currículo antirracista a partir das possibilidades abertas pela Lei n. 10.639/2003 e pela Lei n. 11.645/2008 que tornaram obrigatórias a inclusão da história e das culturas africanas, afro-brasileiras e dos povos indígenas nos currículos escolares. Frisamos que as conquistas materializadas em lei são resultado das lutas e da persistência do Movimento Negro e dos povos originários para que seus conhecimentos, saberes e modos de existir sejam reconhecidos como parte do patrimônio cultural brasileiro e, como tal, estejam representados nos processos de formação e escolarização de todas as pessoas.
Mas o ponto central de nosso argumento é que essa luta não se reduz e não se esgota na incorporação dos conteúdos estabelecidos na legislação às grades curriculares ou às efemérides previstas nos calendários acadêmicos. Muito pelo contrário, o cumprimento artificial do dispositivo legal reforça a representação negra do currículo tradicional, marcada pela vitimização, submissão, subalternização ou pela sua exotização. De outro lado, temos registros de que, a partir da Lei n. 10.639/2003, diferentes representações e experiências curriculares emancipatórias têm sido forjadas (GOMES, 2012; MACHADO, PÉTIT, 2020; FRANÇA, 2022) com vistas a quebrar estereótipos e produzir outros imaginários sobre a população negra, seja brasileira ou afrodiaspórica.
O escopo epistêmico da Lei n. 10.639/2003, regulamentada pelo Parecer CNE/CP n. 03/2004, possibilita desencadear, por meio do currículo, um projeto de educação antirracista que eleve a qualidade da educação a um novo patamar. Nessa direção, postulamos a importância de empretecer o currículo, a partir de uma perspectiva decolonial, para que a escola abrigue os conhecimentos, as identidades, ciências e tecnologias produzidas pelos negros e negras que atuaram e atuam na construção da sociedade brasileira. E, com isso, levar a termo um projeto epistêmicoeducativo que ouse romper a lógica e a ética instauradas pelo binômio modernidade/colonialidade que mantém negro(as) e não negro(as) escravizados a uma suposta episteme e sociabilidade universais.
A proposta de empretecer o currículo, diz respeito a uma pedagogia comprometida com um projeto social pluriversal. Mas para caminhar nessa direção - diz Mignolo (2017, p. 14) - é necessário “[...] que nos coloquemos, enquanto pessoas, Estados, instituições, no lugar onde nenhum ser humano tem o direito de dominar e se impor a outro ser humano. É simples assim, e tão difícil”.
No entanto, é preciso esperançar. Com bell hooks e Paulo Freire, entendemos que, no âmbito da escola, esse caminho passa pelo currículo e pela constituição de comunidades de aprendizagem em que todas as formas de existir sejam reconhecidas, valorizadas e bem-vindas; em que se valorize as existências negras e se opere a descolonização das consciências. A construção de novas relações étnico-raciais exige que todos os atos de currículo produzam a valorização das diferenças, nos materiais, nos conteúdos, nas metodologias e, sobretudo, nas formas de convivência.
Contudo, uma educação antirracista e amorosa não exclui que brancos e não brancos sejam confrontados com as tensões, contradições, medos e angústias decorrentes dos efeitos de uma sociedade erigida sobre a experiência da escravidão.
Se não é fácil ser descendente de seres humanos escravizados e forçados à condição de objetos utilitários ou a semoventes, também é difícil descobrir-se descendente dos escravizadores, temer, embora veladamente, revanche dos que, por cinco séculos, têm sido desprezados e massacrados [...]. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos. (BRASIL, 2004, p. 5).
A Lei n. 10.639/2003 abre possibilidades para que os sujeitos da educação - docentes, gestores, estudantes e famílias - pensem e ajam sobre o currículo com vista à formação de subjetividades democráticas e antirracistas. Para tanto, “[...] a escola e seus professores não podem improvisar” (BRASIL, 2004, p. 6), o que significa que os conhecimentos, saberes e experiências de educadores e educadoras negras, engajado(as) com um projeto decolonial de currículo, são fundamentais para pavimentar o caminho que levará à concretização da sociedade imaginada com que iniciamos estas reflexões.