INTRODUÇÃO
A formação docente tem estado no centro das preocupações educacionais brasileiras e na região ibero-americana há cerca de duas décadas, sendo relacionada à qualidade da educação dos povos (BRASIL, 2019b; DIAS, 2014). Em um conjunto de textos políticos produzidos pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI, 2010, 2013) e pelo Conselho Nacional de Educação (CNE, BRASIL, 2019a, 2019b), órgão do Ministério da Educação responsável por propor normativas e deliberações para a educação brasileira, as competências profissionais docentes para ensinar e fazer aprender em contextos complexos, marcados pelas dificuldades e vulnerabilidades sociais, têm sido significadas como possibilidade de superar as desigualdades educacionais e, assim, melhorar as condições socioeconômicas e culturais na região. Nesses contextos, identificamos a demanda por regulação da formação de professores e do exercício profissional docente para responder a desigualdades sociais e de desempenho, atribuindo centralidade ao professor, ao ensino, à aprendizagem nos discursos da qualidade da educação.
Nesse artigo, compartilhamos sentidos de professor e de formação docente que se constituem nas políticas de formação de professores brasileiras. Entendemos que tais sentidos não expressam uma objetividade que antecede ao discurso da política, mas se constituem na relação com uma articulação discursiva de demandas que possibilita que a prática docente alcance centralidade.
Orientadas por contribuições teórico-epistemológicas da teoria política do discurso (LACLAU, MOUFFE, 2015) e por perspectivas pós-fundacionais de currículo (LOPES, 2015a, 2015b, 2017a, 2017b, 2018a, 2018b; LOPES, MACEDO, 2011), operamos com a política de formação de professores como discurso que fixa sentidos de professor e de formação docente na precariedade, provisoriedade e contingência que caracteriza processos de significação constituídos na linguagem. Defendemos a incompletude e a imprecisão dos significantes articulados, visto que não há fundamento último capaz de fixar, de garantir os processos de significação do ser professor, do currículo e da formação de professores de forma plena. (LOPES, 2018b).
Afastando-nos de uma perspectiva fundacional (LOPES, 2018b) na análise da política de formação de professores, entendemos que o fechamento da significação do ser professor e do que deve ser a sua formação não pode ser pensado como expressão de uma objetividade, como determinado por uma racionalidade que fundamenta o currículo, a docência, o professor para a formação de uma identidade definida aprioristicamente (FIGUEIREDO, 2021), mas como construção discursiva contingente, decisão política tomada em terreno indecidível que só pode ser explicada sob uma ótica relacional (LOPES, 2013, 2018a, 2018b; CUNHA, COSTA, PEREIRA, 2016), sem possibilidade de qualquer garantia nesses processos de significação (LOPES, 2017a).
A decisão entre diferentes possibilidades de bases e normatividades para as políticas curriculares não tem nenhum fundamento necessário, nenhum conteúdo ético obrigatório, que possa ser a resposta, de uma vez por todas, à questão sobre qual o significado e quais as formas ônticas, objetivas, da melhor sociedade, do que é desenvolvimento, do que é currículo, conhecimento, ou de qualquer outro termo em disputa política. Com isso, a política é compreendida como os atos de poder que tentam fixar sentidos nas relações sociais (LOPES, 2017a, p. 120).
O caráter relacional de toda a identidade curricular é o que orienta a nossa análise, produzindo um movimento de pesquisa que busca identificar as relações entre os sentidos de professor e de formação docente e as demandas articuladas no discurso das políticas de formação de professores brasileiras. Entendemos a demanda como unidade mínima de análise do discurso, como uma reivindicação coletiva não atendida que possibilita a formação e mobilização de grupos em torno de uma luta política contra algo que é contextualmente significado como o que impede o seu alcance (LACLAU, 2013). Com Lopes (2018b), entendemos que a articulação discursiva de demandas para o alcance da educação de qualidade, tenta projetar sentidos de professor e de formação docente que tencionamos desestabilizar nesse trabalho, afirmando a radical contingência desses processos de significação.
O CONTEXTO DISCURSIVO DAS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESPAÇO IBERO-AMERICANO E BRASILEIRO
A produção de políticas curriculares para a formação docente tem sido intensa em toda região ibero-americana, através de um conjunto de textos políticos relacionados à geração dos bicentenários1. Essa produção objetivou o monitoramento e o controle da formação e do trabalho docente para a constituição de um bom professor, um perfil profissional supostamente adequado para a oferta de uma educação pública de qualidade e com equidade, que favoreça a inclusão social e possibilite o atendimento a demandas projetadas na nova agenda da sociedade da informação e do conhecimento (DIAS, 2014, 2017). Nesse contexto ibero-americano, identificado pela pobreza e vulnerabilidades sociais e econômicas que produzem desigualdades e exclusão, afetando especialmente as minorias, a educação de qualidade é significada como qualidade da aprendizagem e o ensino como a possibilidade de resposta à diversidade de necessidades dos alunos. Em contexto de demandas pela melhoria da qualidade do ensino, a formação e o desempenho dos professores são significados como fatores-chave para a garantia de aprendizagens comuns, para a construção de capacidades básicas para todos os cidadãos em contextos complexos, caracterizados pela diversidade de instituições formadoras e de condições sociais, culturais e de trabalho no exercício da função docente. As instituições de formação de professores assumem centralidade no discurso, articulando demandas pela qualidade dos processos formativos, significada como uma “[...] estrategia con indudables repercusiones positivas [...]” (OEI, 2010, p. 254), pela aquisição das competências necessárias para o trabalho docente e pelo desenvolvimento profissional dos professores (OEI, 2010, 2013).
As políticas de formação de professores brasileiras se constituem em contexto de desigualdade educacional significada como desigualdade de desempenho nos indicadores de avaliação de rendimento da educação básica, articulando demandas: por educação integral para todas as identidades brasileiras, através de uma educação básica que assegure o direito de todos a aprendizagens essenciais; e pela melhoria da qualidade do ensino para a aprendizagem na idade adequada a cada etapa escolar, expressa nos resultados de aprendizagem garantidos pela mudança da educação a ser promovida pelo currículo da educação básica. Nesse contexto discursivo constituise a demanda pela regulação da formação e do exercício profissional docente, via centralização curricular da formação de professores, para garantir o desempenho desejado dos estudantes. A aprendizagem é significada como principal incumbência do professor, sendo a qualificação docente relacionada ao desempenho dos estudantes pela qualificação do ensino ministrado (BRASIL, 2019a, 2019b). Essa relação entre o perfil profissional do professor, a qualidade do ensino e o desempenho escolar dos alunos e das escolas também é identificada por Dias (2014) nos discursos da profissionalização docente no espaço ibero-americano, possibilitando a articulação de demandas pelo controle do currículo da formação de professores para o controle das relações de ensino e aprendizagem, e a emergência do discurso de responsabilização dos professores pelos resultados de desempenho.
DEMANDAS PELO SABER-FAZER NOS DISCURSOS PARA A FORMAÇÃO DOCENTE
Nessa articulação discursiva de demandas pela qualidade da educação entendida como qualidade do ensino para o alcance da aprendizagem dos estudantes da educação básica na idade adequada a cada etapa escolar, identificamos que o saber-fazer e a prática profissional assumem centralidade nos discursos da política de formação de professores brasileira. Interpretamos que tal centralidade é possibilitada pela relação que se estabelece entre o professor e a demanda pelas aprendizagens essenciais, a serem asseguradas a todos os estudantes através do currículo, inaugurando “[...] uma nova era na educação básica [...]” (BRASIL, 2019b, p. 1). Nesse contexto discursivo, articulam-se demandas pela formação profissional para a docência; pela qualificação do professor através do desenvolvimento das competências profissionais, para colocar em prática as dez competências gerais e as aprendizagens essenciais previstas e, assim, possibilitar a mudança de paradigma, proposta pelo currículo da educação básica, de desenvolvimento integral dos estudantes e superação da “[...] velha dicotomia entre conhecimento e prática [...] (BRASIL, 2019b, p. 12).
Em nossa interpretação, a centralidade da aprendizagem na política de formação de professores potencializa a demanda pelo desenvolvimento profissional para a melhoria da prática docente, formando um professor apto para lidar com as dificuldades na sala de aula, pronto para lidar com as demandas das novas abordagens metodológicas, orientado pelo desempenho educacional dos estudantes. Identificamos aqui a constituição de um discurso que estabelece relações transparentes entre o ensino, a ser realizado pelo professor, e o desempenho educacional dos estudantes, significado como resultado da aprendizagem. Tal discurso corrobora com os vínculos que se estabelecem entre a docência e o desempenho discente, identificados por Dias (2017) nos textos políticos produzidos no contexto ibero-americano. Identificamos essa articulação discursiva também nas políticas brasileiras, possibilitando a emergência do discurso das competências profissionais, a serem desenvolvidas pela formação de professores, para a realização do efetivo trabalho pedagógico e a garantia da aprendizagem dos estudantes prevista no currículo da educação básica. A formação dos professores nas competências profissionais é relacionada à demanda pela educação de qualidade significada como “[...] educação plena do estudante [...]. O desenvolvimento de competências [que permitam] aos estudantes lidar com as características e desafios do século XXI” (BRASIL, 2019b, p. 12).
A dimensão do saber-fazer é destacada na política de formação de professores no contexto brasileiro, constituindo uma das três competências profissionais docentes - a prática profissional -, que junto com o conhecimento profissional e o engajamento profissional, deve ser desenvolvida na formação docente. Nessa competência, o conhecimento pedagógico do conteúdo2 é valorizado, relacionando a aprendizagem dos conteúdos a serem ensinados - objetos de conhecimento - à aprendizagem dos procedimentos e objetivos para planejar, criar, avaliar e conduzir os objetos de ensino, sustentando-se que o exercício da prática faz parte do conjunto de domínios do professor. No discurso da competência específica da prática profissional como a dimensão do saber-fazer, as demandas relacionadas ao ensino para a efetiva aprendizagem dos estudantes da educação básica assumem centralidade na BNC-Formação.
2º As competências específicas da dimensão da prática profissional compõem-se pelas seguintes ações:
I- Planejar as ações de ensino que resultem em efetivas aprendizagens;
II- Criar e saber gerir os ambientes de aprendizagem;
III- Avaliar o desenvolvimento do educando, a aprendizagem e o ensino; IV- Conduzir as práticas pedagógicas dos objetos do conhecimento, as competências e as habilidades (BRASIL, 2019b, p. 18).
Na busca pelo controle e padronização da prática docente, várias demandas são articuladas nos textos políticos educacionais. Para esse artigo, destacamos em particular a demanda pela prática como homologia de processos (BRASIL, 2019a, 2019b), estabelecendo relações de semelhança entre os processos de aprendizagem nas instituições de formação inicial e continuada de professores e a aprendizagem a ser vivenciada pelos alunos na educação básica (BRASIL, 2018, 2019a, 2019b). A demanda pela homologia de processos (SCHÖN, 2000), tal como o conhecimento pedagógico do conteúdo (SHULMAN, 2014), é relacionada à significação da formação de professores como lugar de aprendizagem do saber-fazer docente.
O arcabouço de conhecimento relativo ao conhecimento pedagógico do conteúdo contempla os saberes específicos igualmente imprescindíveis. Tal como se objetiva que os futuros docentes exponham seus estudantes a experiências de aprendizagem significativas e ativas, o mesmo precisa acontecer com os docentes durante sua formação. É, portanto, por meio da prática, como homologia de processos, que o licenciado vive, no curso de sua formação, os mesmos processos de aprendizagem que se quer que ele desenvolva com seus estudantes da educação básica. (BRASIL, 2019b, p. 16).
Identificamos a homologia de processos, também conhecida como simetria invertida (SCHÖN, 2000), nas propostas curriculares para formação de professores produzidas desde os anos 1990, nos documentos disponíveis no site do Ministério da Educação (MEC): “Bases conceituais para a formação inicial de professores da Educação Básica” (BRASIL, 1999a) e “Formação inicial de professores para a educação básica: uma (re)visão radical do documento principal” (BRASIL, 1999b).
A formação de professores é a contribuição da educação para o desenvolvimento e manutenção dela mesma e de sua capacidade de continuar contribuindo para a construção da cidadania e para a medicina, a engenharia, as artes e todas as atividades que exigem preparação escolar formal. Por essa razão, tão simples e óbvia quanto difícil de levar às últimas consequências, a formação do professor caracteriza-se pela simetria invertida entre a situação de preparação profissional e o exercício futuro da profissão (BRASIL, 1999b, p. 10).
A simetria invertida das situações de formação e exercício profissional implica ainda em mais um componente nesse isomorfismo entre a profissão e a formação docente: a consciência que o futuro professor deve possuir das suas representações e dos seus processos de aprendizagem. Além de ser formado através dos mesmos princípios educativos em que ensinará os alunos, precisa compreender o seu processo de aprendizagem, desenvolver a metacognição - interiorização de estratégias de autorregulação, possibilitando-lhe conscientizarse e controlar seus próprios processos de raciocínio - para poder compreender e intervir na aprendizagem do aluno (BRASIL, 1999a, p. 11).
Segundo Alarcão (1996), o conceito homologia de processos ou simetria invertida foi proposto por Donald Schön (apudALARCÃO, 1996) em seus estudos sobre a epistemologia da prática, referenciada nas competências subjacentes às práticas dos bons profissionais, e em perspectivas da formação profissional fundamentada na experiência e análise de situações homológicas. Esse conceito é metaforicamente relacionado a uma sala de espelhos, em que as situações vividas pelo futuro professor na formação estão relacionadas ao ensino dessas mesmas situações na educação básica (ALARCÃO, 1996), um isomorfismo para possibilitar a compreensão das estruturas comuns pelo licenciando e para desenvolver a sua capacidade de relacionar a teoria e a prática (SCHÖN, 2000).
É um conceito formulado por Schön (2000) para responder a uma crise da formação universitária dos recém-formados, relacionada a um projeto de formação ineficiente, inadequado, que não prepara o futuro profissional para lidar com tomadas de decisões apropriadas em situações caracterizadas por certa indefinição. Alarcão (1996) sinaliza que, pela homologia de processos, a formação deve organizar situações de ensino-aprendizagem que possibilitem a análise de situações homológicas, sendo estabelecido um paralelismo entre a experiência formativa e a situação profissional a que o futuro profissional irá se confrontar. Nesse processo, o formador utiliza a vivência da situação para possibilitar a reflexão do formando sobre o vivido e o observado, levandoo à compreensão do que se passa com quem ele se relaciona na experiência profissional; e para refletir sobre como agiu e como deveria agir em relação ao outro.
Schön (2000) aponta a homologia de processos como princípio objetivo de uma iniciação à profissão que possibilita a imitação do mestre. É identificada pelo autor como um processo construtivo, no qual o formando internaliza a atuação do formador, imitando as capacidades de reflexão sobre tal atuação. Nesse processo, o formador utiliza-se de estratégias de formação, que relacionam a situação formativa vivenciada com as contribuições que os diferentes saberes da formação - da ciência e das técnicas - podem dar, refletindo na ação e dialogando com a situação de formação, dando instruções e sugestões, possibilitando “[...] a iniciação do formando na linguagem própria da profissão e nas formas de pensamento e de atuação características dos profissionais” (SCHÖN, 2000, p. 24). A produção de Schön tem sido apropriada para propor um paradigma para a formação de professores, operando em “[...] um registro da prática e da aprendizagem como preparação para a atuação profissional [...]”, para a constituição de um saberfazer sólido, teórico e prático que possibilite a ação profissional em contextos complexos e indeterminados (ALARCÃO, 1996, p. 23).
Para Schön (2000), a formação pela homologia de processos possibilita a constituição de um conhecimento situado numa competência profissional, com ações holísticas, criativas e pessoais, ressaltando a prática docente como fonte do conhecimento através da experimentação e da reflexão, caracterizada pela integração com as competências para representar a aprendizagem através do saber-fazer (SCHÖN, 2000).
O discurso da homologia de processos, ao propor um projeto de formação de professores capaz de representar de forma transparente a prática docente futura, assume a pretensão de controlar na totalidade os processos de significação da docência, não considerando as contingências que caracterizam as relações constituídas nos espaços de formação docente e nos espaços escolares. Com Lopes (2018b, p. 138), afirmamos que “[...] não há uma verdade nessas propostas e nessas práticas a ser extraída por um acesso direto [...]”, uma vez que não há qualquer possibilidade de acessar a realidade que não seja discursivamente, pois nenhum espaço é dado, delimitado, concebido e apreendido de forma direta.
Identificamos que a significação da formação de professores como homologia de processos é possibilitada por uma articulação discursiva de demandas pelo controle e padronização da prática profissional e por uma formação de professores que desenvolva as competências docentes para o alcance de uma educação básica de qualidade que garanta a aprendizagem de todos os estudantes. Nesse contexto discursivo, é estabelecido um paralelismo entre a aprendizagem profissional e a prática profissional na formação de professores, através da vivência de atitudes, modelos didáticos, capacidades e formas de organização da prática docente que se deseja que o futuro professor desenvolva na sua atuação profissional na educação básica.
ALGUMAS ÚLTIMAS PALAVRAS...
Nesse contexto de demandas pela aprendizagem e pela qualidade do ensino, relacionando o currículo da educação básica e o da formação docente, a homologia de processos, que estabelece relações de transparência entre a formação do professor para saber-fazer e a prática profissional, assume centralidade no discurso da formação de professores. Problematizamos a ideia de que é possível definir a priori o que deve ser a docência, que potencializa a lógica de controle da prática docente pela política de formação de professores.
Ao operarmos com a perspectiva pós-fundacional de currículo, chamamos a atenção para a incerteza e indeterminação que envolve as políticas de formação de professores, pela impossibilidade de controlar na totalidade os processos de significação dos professores, da formação de professores que se constitui na relação com tantos outros contextos, o que expõe a precariedade e contingência de toda política curricular, seja no seu fechamento final ou na sua produção contextual. Mas, como defende Lopes (2017a), entendemos que, ainda que a política de formação de professores, como toda política curricular, não possa “[...] compreender a experiência do outro, estamos sempre tentando[...]; [...] produzir políticas sempre é necessário, ainda que seja impossível [...]” (LOPES, 2017a, p. 122).
Dessa forma, defendemos operar com a formação de professores como espaço-tempo aberto à “[...] possibilidade de invenção, [...] porque imprevista e imprevisível [...]; [de dizermos] sim ao outro como forma de dizer sim ao acontecimento” (LOPES, 2017a, p. 122), para fazer emergir outras possibilidades de significação de formação de professores, além daquelas que parecem cristalizadas em um sentido final. Assumimos, assim, a impossibilidade de controlar a significação da política, que é sempre produzida na interseção de diferentes discursos sociais e culturais, nos diferimentos constantes, na recriação atravessada por relações de poder (LOPES, MACEDO, 2011). Essa perspectiva desestabiliza a ideia de uma política curricular, de uma racionalidade com pretensões universais em definir, de uma vez por todas, o ser professor. Propomos, então, uma outra significação possível da política de formação de professores, reafirmando, com Lopes (2015a), os processos contextuais de tradução a que está submetida toda normatividade, pela negociação com a diferença que impossibilita o controle total da significação (LOPES, 2015a). Uma significação da política de formação de professores que possibilite a ruptura com a verticalidade e o modelo linear que se entende por definitivo, desestabilizando “[...] a ideia de estancamento do fluxo da significação, [...] o cerceamento e univocidade dos sentidos, a ficção de controle” (OLIVEIRA, FRANGELLA, 2017, p. 92).
Dessa maneira, ao longo desse artigo, tentamos problematizar essas lógicas de controle voltadas para a prática docente, mesmo sabendo que esses discursos sedimentados (provisoriamente):
[têm] efeito de uma decisão política, de uma articulação que não tem determinação nem direção racional obrigatória. Tampouco há controle ou consciência que oriente plenamente um processo de articulação. Por mais que sejam organizadas estratégias calculadas de articulação, não há como ter controle pleno do que se articula, da amplitude de sentidos de um discurso produzido como efeito de uma articulação. É por meio do discurso que se constitui o processo hegemônico capaz de bloquear o livre fluxo de sentidos e significados nos significantes. (LOPES, BORGES, 2017, p. 561).
A produção desses consensos sobre a prática docente enunciados nos discursos da política traz uma compreensão de prática docente sustentada por uma racionalidade centralizadora, por discursos de professor relacionados às demandas da sociedade do conhecimento, tencionando a necessidade de um novo modelo de professor. Tais consensos são justificados pelo pouco preparo dos docentes que atuam na formação de professores, pela importância de se ter professores qualificados para promover a aprendizagem escolar dos estudantes da educação básica e pela demanda por uma formação de professores que assegure o efetivo desenvolvimento das competências previstas na política. (BRASIL, 2019b). Com Figueiredo (2020), identificamos a lógica fundacional na política de formação de professores brasileira, ao definir a priori uma racionalidade - a homologia de processos - como possibilidade de controle da prática docente pela formação de professores para o alcance de uma identidade de professor, de estudante e de currículo da educação básica. A política de formação de professores BNC-Formação opera como toda normatividade, tentando controlar a priori a significação do professor e da prática docente para o alcance dos fins educacionais propostos em qualquer contexto da educação básica (FIGUEIREDO, 2020).
Em nossa interpretação, a centralidade da prática docente e da homologia de processos no discurso se constitui na relação com uma falta de aprendizagem na educação básica relacionada à falta da prática na formação de professores que demanda a associação de objeto de conhecimento e objeto de ensino como possibilidade de preenchimento. Assim, esses discursos vão articulando diferentes demandas na tentativa de preencher um suposto vazio, tais como: o zelo do professor pela aprendizagem do estudante da educação básica para a melhoria do desempenho dos resultados; e a prática profissional docente sustentada no saber-fazer do professor. As articulações discursivas que se constituem nesse discurso possibilitam a sedimentação de sentidos de professor e de formação docente na busca pelo controle da prática docente.
A defesa por um perfil profissional docente é evocada nos discursos por uma docência consensual, exigindo um profissional predisposto a novos aprendizados ancorados em leituras objetivistas de educação e que assegurem uma educação de qualidade para todas as identidades. Relacionada a esse discurso, se constitui a demanda por uma formação docente pela homologia de processos, fundamentada na experiência e análise de situações homólogas, de experiências isomórficas, permitindo ao futuro professor identificar e compreender as estruturas comuns à aprendizagem nos contextos da formação profissional e da prática profissional, para poder desenvolver em seus alunos a capacidade de relacionar a teoria e a prática.
Identificamos nesses discursos, uma pretensão de construir um sujeito que ressignifique paradigmas relacionados à formação de professores, ancorados no pensamento da modernidade e na utopia centrada no sujeito iluminista (LOPES, 2017b), pensando a sociedade como uma totalidade, numa tentativa de controlar aquilo que não pode ser controlado. E a BNC-Formação como a mais nova política, que apresenta os caminhos para superação daquilo que está bloqueando a efetiva superação da formação de professores.
Os discursos da política significam os professores como supostos garantidores de um futuro a que se pretende chegar, mas Macedo (2018, p. 169) ressalta que a “[...] educação não é um horizonte, uma ideia reguladora que, por meio do ato, se atinge. Ela nunca chegará, permanecerá como promessa infinita […]”. Assim, o debate em torno do campo da política de currículo é prática de significação e de atribuição de sentidos (LOPES, MACEDO, 2011). Ela projeta nossa identidade, sendo uma prática discursiva. Ainda de acordo com as autoras, o currículo, entendido como discurso, nos governa, constrange nosso comportamento, tenta controlar os sentidos produzidos. E como texto, se abre a interpretações contextuais, apontando a política curricular como fixação de sentidos em um terreno indecidível (LOPES, 2018a).
Investigar políticas de formação de professores apoiadas em perspectivas pós-estruturais de currículo nos parece um convite à esperança. Esperança em dias melhores pela compreensão da impossibilidade de significarmos esse mundo de uma vez por todas. Ainda assim, é necessário investirmos nessa significação, sem perdermos de vista a provisoriedade e a radical contextualidade do discurso. (LOPES, 2013).