INTRODUÇÃO
A etapa da educação infantil é um campo recente que possui a sua identidade em permanente construção (CAMPOS, 2012, PEROZA, MARTINS, 2011, MOREIRA et al., 2020; NUNES; CORSINO, 2011). Por ainda não ser um campo solidificado, os docentes enfrentam muitos desafios, como, por exemplo, o de que, para atuar nesta etapa, não seria necessária a exigência de formação específica, como nas demais etapas escolares (KISHIMOTO, 1999).
Souza e Melo (2018) afirmam que uma das principais dificuldades educacionais da atualidade está relacionada a uma formação inicial e continuada condizente com as necessidades da criança. Neste sentido, conforme afirma Pinazza (2014), a ciência da educação não pode se distanciar do contexto real de atuação docente e do processo reflexivo.
Desse modo, nota-se que o estágio curricular supervisionado possui um papel imprescindível à formação de professores, uma vez que, além de se constituir como uma conexão do campo profissional com a formação profissional, pode trazer aprendizagens a todos os envolvidos neste processo, além de potencializar conhecimentos para a construção da identidade docente (ANJOS, MILLER, 2014, SCHINDHELM, BAMPI, 2019).
Os estágios são essenciais para a formação de professores, em especial na educação infantil, que possui características bastante particulares com relação ao trabalho voltado para as crianças. Desta maneira, investigar as relações entre universidade e escola no âmbito deste processo é fundamental para a formação dos futuros professores desse nível de ensino. Sendo assim, emergiu a seguinte questão de pesquisa: como ocorre a relação entre universidade e escola ao longo do estágio curricular supervisionado em docência em escolas de educação infantil na rede de ensino municipal de São Carlos, interior de São Paulo?
Logo, o objetivo deste trabalho se pautou em analisar a percepção dos profissionais envolvidos nos processos de inserção profissional de estagiários na etapa da educação infantil.
EDUCAÇÃO INFANTIL, FORMAÇÃO DOCENTE E O CONTEXTO ATUAL
A educação infantil, primeira etapa da educação básica, visa ao desenvolvimento integral da criança com até cinco anos (BRASIL, 1996)1. Esta etapa enfrenta ainda muitos desafios, sendo as dificuldades complexas e diversas. A principal delas é oriunda da indissociabilidade entre o cuidar e o educar, cabendo reconhecer que a educação infantil ainda busca por seu espaço no âmbito do sistema educacional (KUHLMANN JR., FERNANDES, 2012).
Por se tratar de um campo em construção, a questão da formação docente voltada à educação infantil é ainda mais complexa (PEROZA, MARTINS, 2016). Neste sentido, Moreira et al. (2020) destacam que formar profissionais para atuar com crianças se encontra além de uma visão única em relação a elas, o que exige considerar os aspectos sociais e históricos.
Para Aquino (2015), a educação infantil é um campo potente e de criação, tanto para as crianças, como para os/as educadores/as, pessoas que compartilham a maior parte deste tempo/espaço. Entretanto, há uma desvalorização arraigada no imaginário social: a de que ser mulher seria o suficiente para que uma pessoa pudesse ser considerada apta ao exercício da docência com crianças (ONOFRE, MARTINS, 2015).
Diversos estudos têm apontado que essa concepção das mulheres enquanto educadoras natas e/ou que realizam o trabalho por dom, sem a necessidade de formação à docência, tem perpassado a concepção social em relação à docência na educação infantil, o que tem reforçado constantemente a sua desvalorização (ONOFRE, MARTINS, 2015, 2017; ONOFRE, TOMAZZETTI, MARTINS, 2017).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), nº 9.394, de 1996, passou a prever a formação docente em nível superior até o final da década, sendo aceita, aos professores da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, a formação mínima em nível médio, na modalidade normal superior. Ao estabelecer esta exigência em relação à formação docente, a Lei passou a considerar como professores todas/todos as/os que atuavam diretamente com crianças em creches e pré-escolas, emergindo o desafio de que estes profissionais passaram a dever a formação específica na área, o que contribuiu para a precarização do trabalho e desvalorização profissional. Neste sentido, Gatti et al. (2019) afirmam que a educação infantil é a que encontra mais limitações no que se refere à titulação em nível superior, além do fato de as demandas específicas da etapa não serem contempladas pelos requisitos curriculares dos cursos.
Cerisara (2002) também afirma que são necessárias reformulações nos cursos de formação docente, de modo a considerar as especificidades do trabalho das instituições de educação infantil, defendendo a profissionalização dos professores desta etapa de ensino.
Nesse sentido, Pinazza (2014) destaca que a ciência da educação não pode se distanciar de sua fonte de origem, ou seja, do contexto escolar. Deste modo, os processos de constituição dos saberes pedagógicos terão possibilidade de se efetivarem, uma vez que os professores poderão se constituir como protagonistas, sem desconsiderar a relevância do processo reflexivo, na construção de um elo entre o campo das práticas e o das teorizações.
Portanto, é necessário que as políticas de formação docente integrem as prioridades das políticas educacionais brasileiras, considerando a escola como um espaço de formação e contribuindo para o reconhecimento e profissionalização dos que atuam na etapa da educação infantil (ONOFRE, MARTINS, 2015, 2017).
Diante dos desafios que permeiam a formação docente, nota-se a importância de uma maior aproximação entre a universidade e o campo profissional. Esta parceria é fundamental para a constituição da identidade docente, como para a profissionalização. Deste modo, faz-se necessário abordar um momento privilegiado da formação de professores, no qual ocorrem as primeiras inserções no campo de atuação profissional - trata-se do estágio curricular supervisionado.
ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO
Abordar o estágio curricular supervisionado requer um breve histórico sobre a formação profissional docente, que foi marcada por distintas concepções. Tardif (2013) apresenta as idades do ensino, apontando primeiramente a idade da vocação (século XVI a XVIII), na qual a docência era considerada como profissão de fé e os atuantes eram leigos. A segunda consiste na idade do ofício (a partir do século XIX), período em que houve o surgimento dos Estados-nações e a gradual ruptura com as Igrejas e comunidades religiosas protestantes e católicas, emergindo as primeiras redes públicas e laicas. Por fim, a idade da profissão (a partir da segunda metade do século XX), quando as universidades começaram a promover a formação docente, embasadas em conhecimentos científicos. Estas idades, de acordo com o autor, não são lineares e podem ainda coexistir.
É notável que a profissão docente é complexa e historicamente marcada por dualidades e imprecisões. Diante deste contexto, destaca-se a importância de que os cursos de formação inicial para a docência estejam vinculados ao campo profissional, a fim de se atingir uma formação condizente com as demandas sociais e educacionais.
Ao longo da formação inicial, o estágio curricular supervisionado consiste, para uma grande parcela dos licenciandos, no primeiro contato com a realidade profissional docente. Este momento pode ser definido como um período em que o aluno (estagiário) passa por um processo de aprendizagem sobre os elementos que constituem uma determinada profissão. Para a realização deste processo, é imprescindível o envolvimento do professor da escola, do estagiário e do professor formador da universidade (VEDOVATTO IZA, SOUZA NETO, 2015a, 2015b).
Em âmbito legal, a Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008 (BRASIL, 2008), que dispõe sobre todos os tipos de estágios, apresenta em seu artigo 3º o termo acompanhamento efetivo, que, no caso da formação docente, deve ser realizado tanto por parte do professor universitário, como pelo supervisor da parte concedente. Do mesmo modo, em seu artigo 9º, a Lei estabelece que o profissional responsável por acompanhar o estagiário deverá orientá-lo e supervisioná-lo.
Vedovatto Iza e Souza Neto (2015a) chamam a atenção para o fato de que as orientações presentes na Lei nº 11.788/08 são genéricas e insuficientes em relação aos direitos e deveres, tanto da escola, como da universidade. Os autores destacam que a própria supervisão do estagiário no contexto brasileiro não está clara em relação aos papéis dos envolvidos neste processo, acrescentando ainda que nem sempre o professor da universidade possui formação para realizar a função de supervisão e orientação.
Por outro lado, Souza Neto, Sarti e Benites (2016) afirmam, em relação aos professores da educação básica no Brasil, que os mesmos não se assumem como formadores dos futuros docentes, limitando-se em geral à abertura de suas salas de aula para o cumprimento das atividades requisitadas pelas instituições formadoras. Do mesmo modo, os autores revelam que também os estagiários geralmente não reconhecem os professores da educação básica como formadores.
Para que o estágio curricular supervisionado possa de fato contribuir para a construção da identidade docente, é preciso considerar que a profissionalização deve ser compreendida como elemento norteador dos estágios curriculares supervisionados (ARAÚJO, 2019), o que requer atribuir aos professores que recebem os estagiários um papel ativo na formação das próximas gerações docentes (SARTI, 2019).
É importante o que destacam Vedovatto Iza e Souza Neto (2015b) sobre o fato de que o mero contato com a realidade educacional, ou seja, a prática por si mesma, não é formadora, sendo necessário um avanço quanto à reflexão, que pode ser realizado pelos professores colaboradores, contando ainda com o acolhimento e efetivo acompanhamento por todos da equipe escolar. Estes elementos são fundamentais no momento de inserção profissional e de construção da identidade docente (VEDOVATTO IZA, SOUZA NETO, 2015b).
Lima et al. (2007) afirmam que a inserção profissional dos estudantes dos cursos de licenciatura possui o seu início durante a formação inicial, por meio do estágio curricular supervisionado e de outras práticas de ensino. Nesta ocasião, o contato com o campo profissional ainda acaba sendo externo, por não serem efetivamente profissionais (LIMA et al., 2007). Entretanto, é possível que o estagiário já vivencie o choque com o real, como ocorre com o professor em início de carreira (LIMA et al., 2006). A expressão choque de realidade também é usada por Huberman (2000), para se referir à distância entre a expectativa por parte do docente iniciante e a realidade do campo profissional.
Por essas razões, ao longo do estágio curricular supervisionado, é imprescindível que ocorra a reflexão do estudante quanto à organização da instituição escolar, bem como sobre o papel docente. Deste modo, esta iniciação à docência poderá contribuir à redução dos impactos durante a inserção profissional, quando já ocupar o papel de professor iniciante.
PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA
Este trabalho resulta de parte de uma pesquisa de mestrado (MARCASSO ROSSI, 2022), de abordagem qualitativa (BOGDAN, BIKLEN, 1994) e de caráter exploratório-descritivo (MARCONI, LAKATOS, 2003).
A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética2 e todos os procedimentos éticos foram adotados - Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde - CNS (BRASIL, 2016).
Como instrumentos de coleta de dados, o primeiro a ser utilizado foi a análise documental, de modo que os documentos selecionados para a análise foram: a Lei nº 11.788/2008 (que dispõe sobre o estágio de estudantes); a Lei nº 13.889/2006 - Estatuto da Educação do município; o edital nº 001/2019 do concurso público para direção escolar e coordenação pedagógica; e a Lei nº 18.960/2018, que altera o Estatuto da Educação do município (BRASIL, 2008, SÃO CARLOS, 2006, 2018, 2019).
A segunda técnica empregada para a coleta de dados foi a entrevista semiestruturada, que foi realizada de modo online com dez participantes, sendo: duas coordenadoras pedagógicas, quatro diretores e quatro professoras, todos atuantes na educação infantil. O critério de inclusão dos participantes considerou que o processo de inserção dos estagiários envolve principalmente estes profissionais, sendo convidados a participar do estudo os que estavam recebendo estagiários naquele momento, como também aqueles que já tivessem a experiência de ter recebido estagiários em outros anos. As entrevistas foram registradas por meio de áudio e transcritas integralmente, de maneira que, na etapa de tratamento dos resultados, foi realizada a triangulação, confrontando os dados da análise documental com os das entrevistas realizadas, em diálogo com os referenciais teóricos, bem como os objetivos da pesquisa.
Na análise dos dados, foi utilizada a análise de conteúdo de Bardin (2016), por meio da qual os dados foram organizados e categorizados de acordo com três fases: a) a pré-análise, com a sistematização de ideias iniciais; b) a exploração do material, em que os resultados brutos são tratados de modo a serem significativos; e, por fim, c) o tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação, visando à reflexão sobre o campo pesquisado e possíveis novos encaminhamentos e questionamentos para pesquisas futuras (BARDIN, 2016).
Por meio desse processo, destacamos o eixo temático denominado “Ser professor na educação infantil: contribuições do estágio curricular supervisionado”, apresentado a seguir.
SER PROFESSOR NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CONTRIBUIÇÕES DO ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO
O estágio curricular supervisionado consiste em um momento privilegiado da formação inicial do futuro docente, no qual há a oportunidade de contato com o campo profissional, surgindo diversas possibilidades de reflexão (VEDOVATTO IZA, SOUZA NETO, 2015b). No depoimento dos participantes, evidenciou-se o fato de que o trabalho docente na educação infantil é diferenciado em relação às demais etapas, o que pode causar um estranhamento àqueles que não tiveram a oportunidade de realizar o estágio nesta etapa da educação básica, conforme afirma uma das diretoras entrevistadas: “Então, eu não sabia usar, imagina! Trocar uma fralda, outras coisas assim” (D2B)3. Uma das coordenadoras também reforça:
Na educação infantil você compreende muitas coisas a partir do estágio, coisas que você não entenderia se você não tivesse pisado numa escola, como que ocorre essa dinâmica do cuidar e do educar, que são indissociáveis, e então é uma linha muito tênue e não se separa o tempo todo que vocês, até nos cuidados [...] (C2).
As falas também indicam para o que afirmam Vedovatto Iza e Souza Neto (2015a), de que os estágios curriculares supervisionados podem ser considerados momentos privilegiados, por proporcionar espaços de articulação entre teoria e prática, conforme a seguinte fala: “[...] eu acho que é assim, é a hora que a gente pisa na escola, você tá lá ouvindo as ideias, os pensadores, estuda, estuda, estuda, e aí a hora que você pisa eu acho que é fundamental [...]” (P1A).
Foi interessante notar em algumas falas a questão do choque de realidade (HUBERMAN, 2000), sendo evidenciada a importância deste momento, que pode ser decisivo em relação à profissão, como se pode observar na fala de uma das coordenadoras: “[...] o estágio também ajuda você a entender se você vai ter vocação pra aquilo ou não [...] é esse choque de realidade do estágio que vai ser determinante pra você saber se é aquilo que você quer ou não [...]” (C2).
O termo vocação, trazido pela coordenadora C2, revela uma das fragilidades quanto à profissionalização docente, remetendo à ideia das idades do ensino (TARDIF, 2013), na qual a idade da vocação é ligada à docência como profissão de fé. Em entrevista concedida a Souza Neto e Ayoub (2021), Tardif destaca que o contexto brasileiro se encontra aquém da profissionalização, sendo predominante a ideia do ensino como vocação.
Em relação ao estágio curricular supervisionado, evidenciou-se ainda, nas falas dos participantes, o reconhecimento de seu grande potencial para a formação inicial. Este reconhecimento está atrelado ao que explicita Tardif (2013) ao destacar que nos próprios processos de trabalho podem surgir, progressivamente, os saberes da prática profissional docente, o que atribui aos participantes do processo um papel relevante, conforme será abordado a seguir.
OS DIFERENTES PAPÉIS NO ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO NA EDUCAÇÃO INFANTIL
O estágio curricular supervisionado se constitui como uma via de aprendizagem para todos os envolvidos no processo (ANJOS, MILLER, 2014). Diante deste fato, é imprescindível a interação entre o estagiário, o professor colaborador4 e o professor formador da universidade (VEDOVATTO IZA, SOUZA NETO, 2015a, 2015b).
A questão da troca de experiências ao longo dos estágios foi algo recorrente nos depoimentos dos participantes, o que remete à ideia do estágio como iniciação profissional, capaz de proporcionar benefícios a todos os envolvidos: para os futuros professores, serve de aprendizagem e investimento; e, para os professores colaboradores, proporciona uma atualização, sendo a escola e a universidade os locais de formação (SOUZA NETO; SARTI, BENITES, 2016).
Foi interessante notar algumas divergências quanto ao papel das coordenadoras, dos diretores e das professoras em relação ao estágio curricular supervisionado. Por terem ingressado por meio de concurso público, em um momento pandêmico, no qual houve a suspensão dos estágios curriculares supervisionados presenciais, as coordenadoras pedagógicas entrevistadas afirmaram que ainda não tiveram a oportunidade de estabelecer contato com a questão dos estágios, conforme o depoimento a seguir: “Eu não tive ainda esse contato [...]” (C1). Também a coordenadora C2 afirmou: “Nenhuma [oportunidade]. Porque eu não fico em apenas uma escola, então a minha orientação em relação aos estagiários... não tem, porque o meu trabalho é direto com os professores [...]” (C2).
Soma-se ainda o fato de que, dentre os documentos do município analisados, não há informações sobre o papel das coordenadoras frente ao estágio. Também a própria estrutura organizacional, que prevê uma coordenação pedagógica para cada duas regiões geográficas do município, tende a dificultar uma atenção específica à questão dos estágios.
Em relação ao papel dos diretores, a maioria indicou que cabe a eles receber e acolher os estagiários, colocando-se à disposição para oferecer o suporte necessário. Estas ideias estão demonstradas no excerto a seguir: “[...] então eu vejo que o meu primeiro papel é dessa acolhida, de fazer esse intermédio entre esses estagiários e esses docentes [...]” (D1B). Entretanto, o apoio explicitado pelos diretores se apresentou mais voltado à questão burocrática, pois afirmaram que a colaboração em âmbito pedagógico é papel do professor colaborador: “É... como diretor ou mesmo como professor, quem deveria acompanhar mais seria o professor; o professor, se ele fosse realmente tutor do processo, seria interessante [...]” (D2A).
Sobre as ideias apresentadas pelos diretores, percebe-se o que afirmam Vedovatto Iza e Souza Neto (2015a) sobre o fato de que, sem maiores orientações, os diretores das escolas estabelecem as próprias regras para que o estágio possa se desenvolver.
Quanto ao papel das professoras em relação ao estágio curricular supervisionado, foram evidenciadas várias divergências. A professora P1A esclarece que não se considera uma formadora, demonstrando uma fragilidade presente nas relações estabelecidas ao longo dos estágios: “[...] eu não encaro que eu teria um papel, assim, de orientadora. [...] Eu acho que a orientadora é a professora lá da universidade [...]” (P1A).
A fala da professora P1A também parece indicar o não reconhecimento dos saberes experienciais, definidos por Tardif (2014). De acordo com o autor, estes saberes adquirem certa objetividade por meio das relações entre os pares, durante o confronto entre os saberes gerados na experiência coletiva dos professores e que devem, portanto, ser sistematizados. Uma das situações capazes de objetivar essas experiências pode ser constituída no relacionamento entre os professores mais jovens e os mais experientes (TARDIF, 2014).
Os depoimentos das professoras P1B e P2B revelam uma percepção divergente da anterior, uma vez que explicitam algumas orientações que consideram indispensáveis de serem realizadas pelo professor colaborador em relação ao acolhimento do estagiário, conforme os trechos a seguir: “[...] então eu acho que primeiro é realmente acolher, estar de braços abertos pra recebê-los e também de orientar, de mostrar como é nosso trabalho [...]” (P1B); “É o professor da sala que vai orientar, no geral tudo o que vai acontecer na sala de aula, então a responsabilidade é do professor [...]” (P2B).
Esse acolhimento ao estagiário é considerado, de acordo com Araújo (2014), uma ação mais específica realizada pelo professor colaborador, transgredindo a mera recepção, caracterizada pela autorização de entrada e cumprimento de horas. Entretanto, a autora destaca que as práticas de acolhimento se diferenciam das práticas de acompanhamento, uma vez que este consiste em um modelo formativo, requerendo ações sistemáticas e intencionais.
Nesse sentido, o acompanhamento formativo exige de quem acompanha estar à disposição para proporcionar as condições necessárias ao descobrimento de possibilidades, sendo necessária uma intervenção bastante ativa tanto da escola como da universidade (SARTI, 2013). Deste modo, o estágio curricular supervisionado teria o potencial de amenizar o choque de realidade (HUBERMAN, 2000) aos futuros professores, bem como de proporcionar satisfação e reconhecimento profissional aos professores colaboradores.
A necessidade de maior parceria entre a universidade e a escola se encontra presente na fala da professora P2A, quando ressalta a ausência de orientação ao professor colaborador e de um plano para o estágio, o qual deve ser acessível ao professor. Conforme afirma no trecho a seguir: “[...] a gente não recebe nenhuma orientação de como tá trabalhando [...] eu acho que deve ter, um plano do... é de ação do estagiário que chega para a instituição, mas na minha mão nunca chegou [...]” (P2A).
Ainda que a Lei nº 11.788/2008 (BRASIL, 2008) traga determinações, de modo geral, sobre os estágios, descrevendo e prescrevendo como devem ocorrer as relações entre as instituições formadoras e os espaços receptores, os estágios curriculares supervisionados ainda seguem fragilizados, tanto pela falta de planejamento, como pelas lacunas em relação aos vínculos a serem estabelecidos (BENITES, SARTI, SOUZA NETO, 2015).
Apesar dos discretos avanços no âmbito legal, Cyrino e Souza Neto (2017) afirmam que a parceria entre universidade e escola requer avançar muito, a fim de se constituir como uma perspectiva de trabalho em equipe, com papéis bem definidos e decisões tomadas coletivamente.
O depoimento da professora P2A também está atrelado à posição passiva em que o professor tem sido colocado em relação à formação e à profissionalização docente. Este fato é reflexo do próprio processo de universitarização no Brasil, que acabou por contribuir com a perda de autonomia no trabalho e com e distanciamento entre a teoria e o campo de atuação, manifestando-se os modelos fragmentados de formação docente (SARTI, 2012, 2013, 2019).
Mesmo com a indispensável base científica, pedagógica e técnica, é preciso uma formação docente construída de fato no interior da profissão, ou seja, que possa ser incitada pelos próprios professores, de especial os mais experientes e reconhecidos (NÓVOA, 2009). Além dos docentes, outros profissionais também integram as condições para a profissionalização do magistério, sendo também necessário o desenvolvimento de um papel ativo de profissionais como os administradores e outros que acolhem os estagiários, assim como os ligados de modo mais direto à prática docente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a análise, verificou-se, em relação à percepção dos profissionais envolvidos nos processos de inserção profissional de estagiários na etapa da educação infantil, que a experiência do estágio curricular supervisionado possui um grande potencial formativo. Entretanto, foi revelada uma demanda por maiores esclarecimentos quanto aos papéis destes profissionais junto aos estagiários e pelo fortalecimento da relação entre a escola e a universidade, considerando a formação profissional docente no que concerne ao próprio campo profissional.
Verificaram-se algumas fragilidades referentes ao desenvolvimento do estágio curricular supervisionado de docência na educação infantil, uma vez que a coordenação pedagógica não chegou a estabelecer contato com os estagiários, por ser um cargo recente no contexto de uma rede municipal de ensino marcada por transformações organizacionais e estruturais, inserida em uma situação de pandemia, que alterou o funcionamento de toda a rede de ensino.
Também na configuração relacionada à gestão escolar foram evidenciadas algumas imprecisões sobre os procedimentos, bem como sobre a parceria entre universidade e escola, estabelecida para que o estágio ocorra.
Na análise do trabalho das professoras colaboradoras na educação infantil, foram identificadas algumas ações durante o desenvolvimento do estágio, porém há pouca clareza sobre o papel que possuem e ações efetivas a serem desenvolvidas junto aos futuros professores. Nesta direção, é importante considerar uma revisão no que se refere à recepção e acompanhamento dos estagiários, visando a um conjunto de ações que possam favorecer os estágios curriculares supervisionados na educação infantil como uma via de mão dupla, entre universidade e escolas desta etapa do ensino.
O estágio, quando planejado conjuntamente, pode ser capaz de possibilitar que os licenciandos se sintam parte da rede de ensino na qual futuramente poderão se inserir como profissionais, estimulando ainda o reconhecimento do papel daqueles que já atuam na educação infantil, o que contribui tanto para o desenvolvimento da identidade profissional docente, como para a profissionalização.