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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.74 Rio de Janeiro jul./set 2023  Epub 06-Dez-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.70845 

Artigos de Demanda Contínua

AS CONTRIBUIÇÕES DE E. P. THOMPSON PARA A CLASSE TRABALHADORA: luta de classes e as experiências

E. P. THOMPSON'S CONTRIBUTIONS TO THE WORKING CLASS: class struggle and experiences

APORTES DE E. P. THOMPSON A LA CLASE OBRERA: lucha de clases y experiencias

Guilherme Goretti Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0001-7607-969X; lattes: 4087213751983387

Dileno Dustan Lucas de Souza2 
http://orcid.org/0000-0001-6053-8273; lattes: 0438813085386094

Ramofly Bicalho3 
http://orcid.org/0000-0003-0571-6481; lattes: 3815218617988955

1Prefeitura Municipal de Ouro Branco - Minas Gerais

2Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

3Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)


Resumo

Eduard Palmer Thompson é um daqueles intelectuais que não perde tempo em refletir sobre a relação teoria e prática, posto que as executou em sua luta diária e permanente contra o capital e suas barbáries. Nesse sentido é que, sem a pretensão de esgotar qualquer tipo de conceito ou debate, nosso objetivo é recuperar em alguns aspectos os pressupostos de Thompson acerca da luta de classes e das experiências, bem como refleti-las para o nosso tempo presente, sobretudo, nas advertências de que não se faz teoria sem realidade social e de que o motor da história foi e sempre será homens e mulheres de carne e osso, enquanto vivem e fazem a sua própria história de luta, ou seja, a luta de classes. Para tanto, como metodologia, recorremos as formulações presentes em obras selecionadas de Thompson e de outros autores marxistas, que realizam o diálogo direto ou que permitem traçar paralelos que encontrem a teoria da práxis como referência de luta.

Palavras-chave: luta de classe; classe trabalhadora; barbárie.

Abstract

Eduard Palmer Thompson is one of those intellectuals who wastes no time in reflecting on the relationship between theory and practice, since he carried them out in his daily and permanent struggle against capital and its barbarities. In this sense, without pretending to exhaust any kind of concept or debate, our objective is to recover in some aspects Thompson's assumptions about the class struggle and experiences, as well as reflect them for our present time, above all, in the warnings that there is no theory without social reality and that the motor of history was and always will be men and women of flesh and blood, as they live and make their own history of struggle, that is, the class struggle. To do so, as a methodology, we use the formulations present in selected works by Thompson and other Marxist authors, which carry out direct dialogue or which allow us to draw parallels that find the theory of praxis as a reference for struggle.

Keywords: class struggle; working class; barbarism.

Resumen

Eduard Palmer Thompson es uno de esos intelectuales que no pierde el tiempo en reflexionar sobre la relación entre teoría y práctica, pues las llevó a cabo en su lucha diaria y permanente contra el capital y sus barbaridades. En este sentido, sin pretender agotar ningún tipo de concepto o debate, nuestro objetivo es recuperar en algunos aspectos los presupuestos de Thompson sobre la lucha de clases y sus experiencias, así como reflejarlos para nuestro presente, sobre todo, en las advertencias de que No hay teoría sin realidad social y que el motor de la historia fue y será siempre el hombre y la mujer de carne y hueso, en tanto viven y hacen su propia historia de lucha, es decir, la lucha de clases. Para ello, como metodología, utilizamos las formulaciones presentes en obras seleccionadas de Thompson y otros autores marxistas, que dialogan directamente o que nos permiten trazar paralelismos que encuentran la teoría de la praxis como referente de lucha.

Palabras clave: lucha de clases; clase obrera; barbarie.

INTRODUÇÃO

No ano de 2023, far-se-á trinta anos do falecimento de Edward Palmer Thompson. O grande historiador, intelectual, educador e militante inglês partia e nos deixara uma enorme contribuição em se considerando a dialética da práxis, como também um imenso desafio de atentarmos para o tempo histórico que se desenrolaria. Thompson viu em marcha e luta o longo século XX, marcado pelo fim das duas grandes guerras, as revoluções e o levante dos trabalhadores, a disputa entre o bloco americano e soviético, assim como as crises de acumulação que são inerentes ao capitalismo. Lutou nas trincheiras contra o fascismo e contra o caráter incontrolável, expansionista e destrutivo do capital (MESZÁROS, 2011).

Nesse sentido, recorre-se às contribuições de Thompson a fim de atualizá-las frente as especificidades e desafios tão candentes no Brasil, em um que fazer? diante da extrema direita bem recheada de elementos fascistas, articulada a uma classe burguesa voraz pela reprodução e acumulação do capital, intensificando a mais-valia absoluta1 (MARX, 2017) e levando as massas populares ao mais absoluto pauperismo, tanto nas condições objetivas de vida, quanto subjetivas, no que se refere à precarização do trabalho, informalidade, desemprego, expropriação do direito à moradia, alimentação, educação, saúde, cultura, entre outros. Trata-se, na advertência de Fernandes (1976), de um capitalismo brasileiro selvagem e truculento, de uma burguesia que eleva para o Estado os seus interesses de classe, mesmo que se valha de golpes, ditaduras e acentuação da coerção contra a classe trabalhadora.

Refletir criticamente com Thompson também é pensar sobre os rumos da classe trabalhadora, suas táticas e estratégias de luta. Sendo assim, está vinculada à educação em seu sentido ampliado, isto é, enquanto processo educativo (GRAMSCI, 2001), ligado à formação e consciência de classe por meio das mediações e das contradições que se apresentam na realidade concreta. Por isso, duas categorias fundamentais aparecem em suas formulações: luta de classes e as experiências. Cremos que necessitamos recuperá-las não só no sentido de sua defesa e potência teórica, em tempos de refuta ao pensamento crítico e totalizante, mas como ela deve estar incondicionalmente ligada aos anseios, desejos e práticas concretas de homens e mulheres, tanto enquanto elemento organizativo da classe trabalhadora no sentido da práxis revolucionária, quanto na unidade e valorização das múltiplas experiências em curso, no campo e na cidade no processo revolucionário.

Sendo assim, o objetivo deste artigo centra-se em recuperar os pressupostos de Thompson acerca da luta de classes e das experiências, bem como refleti-las para o nosso tempo presente, sobretudo, nas advertências de que não se faz teoria sem realidade social e de que o motor da história foi e sempre será homens e mulheres de carne e osso, enquanto vivem e fazem a sua própria história. Para tanto, como metodologia, recorremos as formulações presentes em obras selecionadas de Thompson e de Marx, bem como de outros autores marxistas, a saber: Meszáros, Wood, Vendramini, Gramsci e Fernandes, que realizam o diálogo direto ou que permitem traçar paralelos com as contribuições de Thompson.

LUTA DE CLASSES E AS EXPERIÊNCIAS

O fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da econômica. Ela não foi gerada espontaneamente pelo sistema fabril. Nem devemos imaginar alguma força exterior - a “revolução industrial” - atuando sobre algum material bruto, indiferenciado e indefinível de humanidade, transformando-o em seu outro extremo, uma “vigorosa raça de seres”. As mutáveis relações de produção e as condições de trabalho mutável da Revolução Industrial não foram impostas sobre um material bruto, mas sobre ingleses livres - livres como Paine os legou ou como os metodistas os moldaram (THOMPSON, 1987b, p. 18).

O trecho acima se refere à obra A formação da classe operária inglesa, em que Thompson traz como núcleo central a atividade real e concreta de homens e mulheres na história inglesa durante os séculos XVII e XVIII. O conjunto das transformações técnicas, científicas e industriais que marcaram a Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo se coadunam aos processos de violenta expropriação dos camponeses (tais como os enclosures ou a política dos cercamentos) e as profundas implicações nas relações sociais e de produção e na organização do trabalho, isto é, uma força de trabalho assalariada e livre para a exploração capitalista. Nos dizeres de Marx (2017, p. 785) é o pecado original2 que se abateu sobre o gênero humano, entre aqueles poucos que acumularam riquezas e outros que nada possuem a não ser sua própria pele.

Contudo, salienta-se na formulação de Thompson (1987) que tais transformações não atuaram sobre uma massa popular indiferente ou bruta, mas sobre homens e mulheres livres, que carregavam suas experiências e relações sociais precedentes. O que Thompson (1987b, p. 18) quer afirmar é que “[...] a classe operária formou a si própria tanto quanto foi formada”, isto é, estava presente em seu próprio fazer-se. Por isso, ao invés de supor que a Revolução Industrial gerou espontaneamente a classe operária, Thompson (1987a, p. 12) nos convida a entendê-la tanto como processo histórico, quanto relação humana (na totalidade dos elementos sociais, políticos, econômicos e culturais), afinal, “[...] a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição”.

Por costumes e experiências distintas, geradas na vida material humana, os/as trabalhadores/as construíram suas próprias resistências e confrontaram a exploração, tais como as agitações, os motins, as panfletagens, as associações clandestinas e práticas tais como: o ludismo (quebra das máquinas) e o cartismo (pela ampliação dos direitos dos trabalhadores). Com ressonâncias ou não no processo histórico, as mesmas experiências que marcaram as revoltas de 1848, a Comuna de Paris em 1871 e, já no século XX, a Revolução Russa de 1917, as ocupações de Fábrica de Turim (1919-1920) e em tantos outros levantes organizados pela classe trabalhadora.

Em outra importante obra, Tradición, revuelta y consciência de clase, Thompson (1984) começa com um importante questionamento: “[...] luta de classes sem classe?”. A potência do fazer-se da classe tem por centralidade a afirmação de que a luta de classes precede a classe. Para Thompson (1984), homens e mulheres nascem em uma sociedade estruturada em determinados modos de produção, não só em termos econômicos, mas de todos os aspectos objetivos e subjetivos que organizam a vida humana - e Marx (2008, p. 47) já sinalizava no prefácio da crítica a economia política que “[...] na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade”. Vivendo as relações de exploração e expropriação, assim como partilhando de experiências comuns (herdadas de um grupo ou classe), realizam suas mediações (sempre conflitivas, com fluxos e refluxos) que podem atuar para alteração ou conservação da realidade concreta. É no processo de luta que se descobrem como classe, afirmando que “[...] la clase y la conciencia de clase son siempre las últimas, no las primeras, fases del proceso real histórico” (THOMPSON, 1984, p. 37). Ou seja, os sujeitos agem de forma classista mesmo na ausência de uma consciência de classe, vivem e experienciam suas respectivas condições e situações de classe. Indagamos: se não for por meio da luta e da atividade humana que se forma a classe e a consciência de classe, qual seria outra forma? Idealista e mecanicista?

Ocorre que essa defesa de Thompson da luta de classes que precede a classe foi julgada como voluntarista e subjetivista. Wood (2011) é quem sustenta o equívoco mecanicista e ahistórico dos críticos de Thompson, pois partem de uma definição meramente economicista e estrutural de classe social, como se estas já nascessem prontas e distribuídas em um determinado modo de produção. Conforme Vendramini (2006, p. 126):

O estruturalismo marxista caracteriza-se por compreender a reprodução e a produção no sentido restrito e exclusivo de “práticas econômicas de produção”. Há, portanto, um fosso entre a esfera econômica e a subjetividade humana e uma transferência, sem mediações, das determinações do real para a consciência. Nessa concepção, que perde a unidade da obra marxiana, há uma dicotomia absoluta entre realidade e pensamento.

O equívoco está na inversão da equação: não é o modo de produção que constitui as classes sociais - apesar de ser evidente que traz implicações e modificações nas experiências de classe -, pelo contrário, são as classes sociais em luta, encarnadas em homens e mulheres reais e concretos que constituem e qualificam determinado modo de produção (quer seja capitalista, feudal ou escravista). Lembremos com Marx e Engels (2001, p. 19) a afirmação de que “[...] o ser dos homens é o seu processo de vida real” e o grande erro está em construir uma teoria imposta sobre a evidência ou fatos empíricos (THOMPSON, 1987a). Nesse sentido, torna-se a-histórica justamente por desvalorizar (ou até mesmo rejeitar) a atividade material humana, ou seja, é como se a história fosse construída sem sujeitos - o que é um contrassenso. Marx e Engels (2001, p. 19) já advertiam contra as formas especulativas e idealistas da filosofia alemã, pois ao contrário de uma filosofia que desce do céu para a terra, cabe partimos da terra para o céu:

Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital. E mesmo as fantasmagorias existentes no cérebro humano são sublimações resultantes necessariamente do processo de sua vida material, que podemos constatar empiricamente e que repousa em bases materiais (MARX, ENGELS, 2001, p. 19).

Essa formidável formulação por si só rebateria as acusações de um Thompson que demasiadamente se entranha na cultura popular, nos elementos subjetivos ou valores transmitidos por geração (a vida real). A constatação empírica possuí grande elasticidade, é recheada de elementos conflitivos, fugindo de qualquer modelo pré-concebido, portanto é o núcleo central de compreensão da vida e atividade material humana. Contudo, apesar de mostrar a plena aderência com Marx e o materialismo histórico, Thompson não se reduz ao caráter empírico. Para Wood (2011, p. 77), longe de uma dualidade e de colocar a classe em “[...] um mapa de localizações estáticas”, Thompson imbrica dialeticamente estrutura e processo, pois “[...] sua concepção de processos históricos materialmente estruturados, trata o processo de formação de classe como um processo histórico formado pela lógica das determinações materiais”.

E aqui entra o ponto visceral acerca dessa dialética entre estrutura e processo, entre objetividade e subjetividade, sobretudo, em obras como A formação da classe operária inglesa e Costumes em comum. Aos que acusam Thompson de não abordar as determinações objetivas, devemos lembrar que a política dos cercamentos, a expulsão dos camponeses de suas terras (e a consequente defesa da propriedade privada da terra), as ações do parlamento inglês e as relações de poder e paternalismo da gentry (nobreza e aristocracia) para controlar a turba (multidão) e as agitações ou protestos populares, o aumento no preço do trigo, a escassez de alimentos (impactando nas condições gerais de vida) ou o controle do preço por parte dos fazendeiros giram em torno das “[...] determinações objetivas reais que se escondem atrás dos fatos” (WOOD, 2011, p. 83). Ou seja, Thompson não nega as determinações objetivas, mas também não a desvincula dos processos históricos e das relações sociais.

Por isso, Thompson (1987a) não vê a classe como coisa (posto ao prazer da teoria sobre a evidência), nem estrutura (enquanto categoria estática), mas algo que ocorre efetivamente nas relações humanas. Como tal, relações que se modificam com implicações decisivas nas experiências de homens e mulheres, em termos econômicas, políticos ou culturais. Quando trata das transformações engendradas pela Revolução Industrial, não busca dualizar o dramático processo de exploração e expropriação com os costumes e cultura herdada e transmitida por trabalhadores/as (como se fosse o terreno das canduras, salvo das críticas), mas, como bem aponta Wood (2011, p. 81), “[...] revelar e explicar as mudanças no interior das continuidades”.

A indústria não inaugura a classe e o grande mérito de Thompson (1987a, p. 12), ao buscar sua formação desde o século XVII, foi não aceitar a ideia de uma “[...] multidão de indivíduos com um amontoado de experiências” e não renunciar a ideia de que não se pode “[...] entender a classe a menos que a vejamos como uma formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico”. No primeiro caso, a Revolução industrial não foi pioneira em dispor a multidão de indivíduos em classes - tampouco estes esperaram para tal (WOOD, 2011); no segundo, a própria formação da classe e consciência de classe não surgiram em resposta imediata a indústria, mas tinha origem antecedente e pré-capitalista.

Vendramini (2006, p. 127) destaca como as “[...] tradições populares vigentes no século 18” foram importantes fatores subjetivos para o “[...] florescimento da futura classe operária” e “[...] determinantes para os estágios de autoeducação política de uma classe”. Thompson (1987) articula a subjetividade com objetividade, analisando tanto as experiências e lutas de trabalhadores/as frente a Revolução Industrial, como aos novos elementos que ela trazia em termos de disciplina industrial do trabalho, isto é, “[...] tanto o contexto político quanto a máquina a vapor influenciaram a formação da classe operária” (VENDRAMINI, 2006, p. 127). Daí a formulação de que a classe se formou tanto quanto foi formada, “[...] ela não existe, nem para ter um interesse ou uma consciência ideal, nem para se estender como um paciente na mesa de operações de ajuste” (THOMPSON, 1987a, p. 11).

No fazer-se da classe, a luta de classes dentro desse considerável período histórico, carrega-se a indissociável articulação com outra categoria fundamental: a experiência, que tem por centralidade o conjunto de atividades construídas por homens e mulheres no processo histórico, tanto das formas de produção e reprodução material da vida humana, quanto das representações e ideias que lhe são correspondentes (costumes, valores éticos e morais etc.). Atividades estas sempre conflitivas e dialéticas. A fonte da experiência é a práxis, a ação e reflexão na realidade concreta. Vejamos como Thompson (1981, p. 15) formula a categoria experiência, sobretudo, na obra A miséria da teoria:

Experiência - uma categoria que, por mais imperfeita que seja, é indispensável ao historiador, já que compreende a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento.

Em outro trecho:

A experiência surge espontaneamente no ser social, mas não surge sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo. Se tivermos de empregar a (difícil) noção de que o ser social determina a consciência social, como iremos supor que isto se dá? Certamente não iremos supor que o “ser” está aqui, como uma materialidade grosseira da qual toda idealidade foi abstraída, e que a “consciência” (como idealidade abstrata) está ali (THOMPSON, 1981, p. 16).

Preservamos aqui (dada a extensão do debate) a sensibilidade de Thompson (1981) em demarcar que homens e mulheres - e não apenas filósofos - refletem sobre o que acontecem a eles e ao seu mundo. Parte da crítica quanto a concepção de que a filosofia, enquanto concepção de mundo, é reservada para uma camada restrita de intelectuais. Tal crítica também se verifica em Gramsci (2001) - com quem Thompson dialoga e toma como referência -, que defende irrestritamente a posição de que todos nós somos intelectuais e filósofos, partilhamos e fomentamos concepções de mundo, com potência decisiva para a organização e emancipação dos subalternos.

Para nosso intento, cumpre assinalar que Marx (2008, p. 47) já ressaltava que “[...] não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”. Porém, essa formulação não deve ser tratada com brevidade. O ser social é o ser em ação, aquele que por meio do trabalho e da relação com a natureza produz e reproduz suas condições de existência. É algo concreto e não idealista (como se a ideia formasse a realidade material). Mas, esse ser social não é essa materialidade grosseira, isto é, pensamento e ação estão imbricados dialeticamente - o que diferencia nós, seres humanos, de outros seres orgânicos3. Marx (2017) sinalizava o quanto o ser social, ao agir sobre a natureza externa, modifica a sua própria natureza. Conforme Thompson (1981, p. 16), não há um ser social aqui e uma consciência ali, não há dualidade, mas relação e processo intrínseco:

Pois não podemos conceber nenhuma forma de ser social independentemente de seus conceitos e expectativas organizadores, nem poderia o ser social reproduzir-se por um único dia sem pensamento. O que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que dão origem a experiência modificada; e essa experiência é determinante, no sentido de que exerce pressões sobre a consciência social existente, propõe novas questões e proporciona grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados.

A experiência surge em homens e mulheres que refletem e vivem as contradições e condições materiais existentes, ou seja, entram em determinadas relações independentes da sua vontade. Contudo, não se colocam passivos perante os acontecimentos, maneira em que a partir de suas experiências (de expropriação, exploração, fome, guerra, pauperismo etc.) dão origem a uma experiência modificada, que “[...] exerce pressões sobre a consciência social existente, propõe novas questões e proporciona grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados” (THOMPSON, 1981, p. 16). Ou seja, no debate sobre a luta de classes, como os/as trabalhadores/as (operários, camponeses, artesãos, tecelões, dentre outros) foram se articulando e criando a unidade ou identidade de interesses entre si contra seus antagonistas (capitalistas industriais ou a aristocracia agrária). Podia ser em defesa de seus costumes ou de uma economia moral (THOMPSON, 1998), assim como de resistência a exploração. Não era certamente revolucionária, porém “[...] tampouco se deve descrevê-la como uma cultura diferente. Fomentava motins, mas não rebeliões; ações diretas, mas não organizações democráticas” (THOMPSON, 1998, p. 62).

O que Thompson (1981) adverte é para atentarmos, neste grande material empírico, como e por que a história foi processada de determinada maneira e não de outra. O elemento popular é vivo e dinâmico, as relações de classe também são negociadas, não nascem prontas e acabadas ou com o espírito (sob estatuto ontológico) revolucionário, sequer reacionário; e nenhuma teoria será capaz de se sustentar se tratar com menosprezo e brevidade a marcha de homens e mulheres de carne e osso na história, a construção de suas próprias experiências de classe - quer seja política, econômica, educativa ou cultural.

Portanto, após abordarmos a importância da luta de classes e das experiências, como momento único e dialético do processo histórico real, refletimos acerca dos desafios do nosso tempo presente. Mais do que apontamentos teóricos aderentes ao referencial marxiano, Thompson (1981) nos oferece uma metodologia prática para os que se arriscam nas pesquisas e estudos que tem por referência as experiências de trabalhadores/as, quer seja no campo ou na cidade. Experiências de luta, conflitos, avanços e retrocessos dentro de um modo de produção capitalista que produz e reproduz a exploração, a expropriação e o pauperismo das massas populares. São advertências viscerais que se desdobram, inclusive, nas estratégias e táticas da classe trabalhadora para o processo revolucionário, criticando e expurgando concepções ahistóricas, mecanicistas ou mesmo burocráticas e sectárias.

A ATUALIDADE DE E. P. THOMPSON FRENTE AOS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE

Recuperamos um importante trecho presente na obra A miséria da teoria, em que Thompson (1981) critica Althusser por reivindicar um (suposto) marxismo que desconsidera os sujeitos, os dados empíricos e a construção da teoria sem realidade social. Afirma que, para Althusser, a “[...] matéria-prima (objeto do conhecimento) é uma substância inerte, complacente, sem inércia ou energia próprias, esperando passivamente sua manufatura em conhecimento” (THOMPSON, 1981, p. 15). Poderíamos questionar se essas formas mecanicistas e a-históricas são realmente cabíveis dentro do pensamento marxiano. De todo modo, cumpre recuperar um dos posfácios de Marx para O capital, em 1873, para quem a sua interpretação (e isso vale aos que se dizem marxistas) tem de se “[...] apropriar da matéria em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno”, isto é, captar e expor o “[...] movimento do real” (MARX, 2017, p. 90). E onde está a realidade que não nas relações sociais e de produção da existência humana? Não captar ou tratar com brevidade o movimento (ou dialética) do real, repleta de contradições (aparência e essência) constitui para Thompson (1981) o tratamento do objeto do conhecimento de forma limitada, estéril e especulativa.

No debate sobre a lógica histórica, presente em A miséria da teoria, Thompson (1981, p. 57) adverte que a história não pode ser “[...] uma fábrica para a manufatura da grande teoria”, tampouco “[...] uma gigantesca estação experimental na qual as teorias de manufatura estrangeira possam ser ‘aplicadas’, [...] ‘testadas’ e confirmadas” - atentando-se aqui para aquelas teorias que se impõem sem mediações com as especificidades ou particularidades. Afirma que a lógica histórica é um método de investigação que elimina “[...] procedimentos auto confirmadores (instâncias, ilustrações)”, isto é, trata-se de um método que busca um profundo diálogo entre conceito e evidência4, “[...] conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica, do outro” (THOMPSON, 1981, p. 49). Ou seja, Thompson (1981) sinaliza para a dialética do conhecimento histórico que, se por um lado não pode descartar a realidade concreta construída por homens e mulheres de carne e osso no processo histórico, por outro uma teoria que seja viva, ancorada e mesmo refutada a partir do movimento do real - ou como o próprio o Thompson (1981, p. 54) recupera, a relação ininterrupta entre uma tese (conceito ou hipótese) posta em sua antítese (determinação objetiva) para a síntese (conhecimento histórico).

Essas formulações nos oferecem algo muito além do que o debate teórico e metodológico, em plena ligação com o materialismo histórico. Não se dissocia em Marx a teoria do seu caráter revolucionário, que no modo de produção capitalista se ancora na luta dos/as trabalhadores/as contra o capital e para a emancipação humana. Nos anais franco-alemães de 1844, Marx (2010, p. 44) afirma que “[...] a teoria é capaz de apoderar-se das massas assim que se evidencia ad hominem [no ser humano], e de fato ela se evidencia ad hominem tão logo se torna radical”. Essa formulação é crucial, ainda mais em tempos de refuta ao pensamento crítico e a um negacionismo científico no Brasil em que, se por um lado perde-se cada vez mais a realidade como totalidade (presa aos fragmentos da realidade, sem estrutura, sem processo histórico e causação), por outro observa-se a miséria com que certos discursos - contra a lógica histórica de Thompson (1981) - se ancoram e aderem facilmente às massas, tais como, por exemplo, as aberrações proferidas por aqueles que absolvem e negam os crimes, torturas e genocídios cometidos pela ditadura empresarial-militar (1964-1985) e vogam a sua defesa e volta em um governo cujo presidente é ex-militar reformado, mas que jamais abandonou suas opiniões em prol da ditadura5. Ademais, ressaltamos a indissociabilidade com o conjunto da classe burguesa brasileira, voraz, autocrática, sem medo de golpes, violência ou ataques contra trabalhadores/as, quer seja reprimindo suas formas de organização e luta ou expropriando seus direitos sociais.

Uma teoria que se evidencie no ser humano e que se torne radical é aquela capaz de estar contextualizada e referenciada com as lutas e experiências cotidianas de trabalhadores/as (operários, camponeses, precarizados, desempregados, os sem-terra, os sem-teto e tantos outros que nada possuem a não ser sua própria força de trabalho), no campo e na cidade, organizados (ou não) nos movimentos sociais populares, entidades, associações ou mesmo sindicatos. Uma teoria que aponte para as contradições do capitalismo, que seja a própria teoria das contradições, capaz de possibilitar a crítica para a ação concreta, portanto, a ligação entre teoria-prática - a práxis revolucionária. Vejamos como Thompson apresenta essa questão articulando com a questão da experiência:

A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes, crises de subsistência, guerra de trincheira, desemprego, inflação, genocídio. Pessoas estão famintas: seus sobreviventes têm novos modos de pensar em relação ao mercado. Pessoas são presas: na prisão, pensam de modo diverso sobre as leis. Frente a essas experiências gerais, velhos sistemas conceptuais podem desmoronar e novas problemáticas podem insistir em impor sua presença (THOMPSON, 1981, p. 17)

Frente ao pauperismo dos/as trabalhadores/as, acentuada nos últimos anos pelo avanço da extrema direita e a radicalidade da ofensiva neoliberal, homens e mulheres têm vivido e experienciado situações agonizantes de desemprego, fome, precarização do trabalho, sem direito à moradia, saúde, educação, cultura ou de se alimentar minimamente (relacionado a inflação da cesta básica e a insegurança alimentar). Tudo isso tem implicações concretas nas condições objetivas de vida, tanto nos aspectos mais elementares (a manutenção de um organismo vivo), quanto na dignidade humana. Porém, o ser social não só sente, mas reflete o que acontece a eles. Por distintos graus de consciência, trabalhadores/as carregam suas experiências, fazem suas próprias apropriações e mediações com a realidade concreta, se inquietam, revoltam ou amoldam à ordem vigente. Sabem o que é o desemprego, a fome ou a não ter acesso a saúde porque sentem na própria carne o caráter destrutivo do capital.

A luta de classes também se faz presente quando as massas populares, por atos espontâneos ou organizados, desafiam todo o aparato do direito burguês, pelo saque ou ocupação da propriedade privada dos meios de produção ou da própria mercadoria - como são com os casos dos sem-teto e sem-terra ocupando prédios e terras que não cumprem a sua função social, assim como de atos (mesmo isolados, mas significativos) de saque aos supermercados.

Nesse sentido, retomando a formulação acima, Thompson nos adverte para algo fundamental: frente a essas experiências, velhos conceitos desmoronam e novas problemáticas podem surgir. Certo que as experiências, de acordo com Thompson (1981, p. 16), são válidas e efetivas, mas com determinados limites: o “[...] agricultor conhece suas estações, o marinheiro conhece seus mares, mas ambos permanecem mistificados em relação à monarquia e à cosmologia”. Porém, desmoronam conceitos que se impõe sobre a evidência, como se estas estivessem esperando o julgamento do espírito teórico frente a sujeitos amorfos e passivos, ao passo que surgem problemáticas que tomam como referência essas experiências para algo cada vez mais significativo, válido e coerente para trabalhadores/as. Para Thompson (1981, p. 17), esse aspecto é negligenciado por Althusser e pela concepção mecanicista e a-histórica, pois estes efeitos de conhecimento (a vida real e dialética, as mudanças por que passam o ser social e a consciência) se colocam, na verdade, como “[...] um fabricante que não se preocupa com a gênese de sua matéria-prima”, isto é, não se preocupa em captar os processos históricos e as relações sociais.

Podemos dizer que a contribuição de Thompson (1981) tem um duplo aspecto indissociável: da mesma forma que ressalta para que as pesquisas (acadêmicas e científicas) e a prática profissional de pesquisadores (historiadores, sociólogos, antropólogos, cientistas sociais, etc.) não tratem com brevidade ou neguem os fatos empíricos e a experiência - afinal, a própria pesquisa e prática profissional possuem intencionalidades -, sinaliza para a importância de mobilizar a própria experiência em uma direção cada vez mais crítica e complexa, ou daquilo que Gramsci (1999) aponta como a longa transição do senso comum para o bom senso. Ou seja, a construção de uma teoria recheada de realidade social.

Ao ter como centralidade a marcha de homens e mulheres de carne e osso, enquanto sujeitos que vivem e fazem a história, Thompson (1977, s. p.) faz uma importante crítica para aqueles intelectuais que “[...] sonham amiúde com uma classe que seja como uma motocicleta cujo assento esteja vazio. Saltando sobre ele, assume a direção, pois têm a verdadeira teoria”. Intelectuais estes que esperam uma classe pronta e acabada (renunciando de organizá-la), abstendo de compreendê-la no seu processo e fazer histórico ou mesmo de analisar as múltiplas respostas da classe frente aos desafios concretos:

Nenhuma categoria histórica foi mais incompreendida, atormentada, transfixada e des-historizada do que a categoria de classe social; uma formação histórica autodefinidora, que homens e mulheres elaboram a partir de sua própria experiência de luta, foi reduzida a uma categoria estática, ou a um efeito de uma estrutura ulterior, das quais os homens não são os autores mas os vetores (THOMPSON, 1981, p. 57).

Essa formulação é categórica no sentido de reafirmar que a classe social está cravada em homens e mulheres a partir de suas experiências de luta e no terreno da produção da vida material humana. Des-historicizar a classe é forçá-la em determinados padrões e modelos préconcebidos, entregue a uma mesa de ajustes e operações, mutilando o próprio movimento do real e perdendo sua potência enquanto categoria central para o processo revolucionário. Como diz Thompson (1977, s. p.), “[...] na história, nenhuma formação de classe específica é mais autêntica ou mais real que outra. As classes se definem de acordo com o modo como tal formação acontece efetivamente”. Essa deveria ser uma indicação valorosa não somente para os procedimentos acadêmicos, mas na prática militante. Trata-se de uma incessante ligação com as experiências humanas e no que elas têm a nos dizer e ensinar, sem renunciar, por outro lado, a crítica e a articulação dialética entre particularidade-totalidade.

Aqui, entra o principal desafio para o nosso tempo presente: construir a história com e dos de baixo, dos subalternos ou oprimidos. Ao trazer como centralidade a experiência humana, Thompson (1987a, 1987b) mostra que o verdadeiro motor da história são homens e mulheres enquanto vivem e fazem a sua própria história. Não cai facilmente nas retóricas generalizantes, mas esmiuça como no conjunto das relações sociais e de produção se interpenetram relações de poder, de classe, econômicas, políticas, culturais ou de costumes - algo que, com grande envergadura, Thompson nos mostrou em A formação da classe operária inglesa. Por outro lado, apreende a dialética do processo histórico, isto é, frente as mudanças e implicações trazidas pela Revolução Industrial e o movimento do capital, as próprias experiências de trabalhadores/as se qualificaram, da turba e seus motins para reflexões e ações cada vez mais complexas enquanto classe para si, de luta contra o capital e de experiências revolucionárias.

Concordamos com Vendramini (2006) quando relaciona a contribuição de Thompson atrelada à apreensão dos saberes produzidos do/no trabalho. Trabalho como produção da existência humana, que permite que o homem se humanize em seu sociometabolismo com a natureza (MARX, 2017). Neste sentido, cabe apreendermos as inúmeras e diversas experiências construídas na prática cotidiana de trabalhadores/as - e de suas lutas - no campo ou na cidade:

Ao buscarmos, por exemplo, analisar as experiências coletivas e cooperativas de trabalhadores e os saberes nelas desenvolvidos, observamos que há uma diversidade de formas de organização, de associação, de gestão, de articulação externa, de vínculos com o mercado, entre outros aspectos. Esse contexto só pode ser apreendido na sua singularidade, nos elementos particulares que o constituem, na experiência desenvolvida pelos sujeitos. Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista o contexto histórico e mais amplo em que as experiências cooperativas são desenvolvidas para podermos compreender suas potencialidades e seus limites que são históricos (VENDRAMINI, 2006, p. 127).

Compreender as potencialidades e limites (históricos), mas sempre elevando-os para a relação particularidade-totalidade ou a unidade do diverso. Uma tarefa, inclusive dos próprios partidos e sindicatos que organizam a classe trabalhadora, mobilizando tais experiências (ou saberes) produzidos para uma práxis revolucionária. Diante do pauperismo das massas populares e das suas lutas travadas historicamente e cotidianamente, descartá-las, minorá-las ou mesmo moldá-las para a ordem só nos leva a novas derrotas, burocratismos e fragmentação da própria classe que vive do trabalho. Recuperando as formidáveis formulações de Florestan Fernandes, em um texto de 1978 (no prenúncio da redemocratização brasileira), “[...] o diagnóstico correto, embora terrível para todos nós, é que nunca fizemos o que deveríamos ter feito” (FERNANDES, 2015, p. 276). É fato que trabalhadores/as foram responsáveis por travarem lutas viscerais ao longo da história brasileira (greves gerais, ocupações de fábrica e de terras, contra a ditadura empresarial-militar, dentre tantos outros exemplos), mas por vezes caímos no pacto com a classe burguesa, nos desarmamos e desarmamos trabalhadores/as por não termos a capacidade analítica, a apreensão do movimento do real, para o que deveríamos ter feito de fato, isto é, a construção de uma efetiva situação (objetiva e subjetiva) revolucionária.

Portanto, o marxismo que Thompson nos propõe e defende, e com o qual nos desafia, é vivo, potente e sensível, ligando-se organicamente com os trabalhadores/as; e é nesse aspecto - e somente por esse aspecto - que a teoria e a prática se revelam com radicalidade e decisivas para a superação do capitalismo e a todas as formas de opressão humana (classe, raça e gênero). Esse é o nosso desafio e o convite que Thompson nos propõe em suas obras. Nunca será uma tarefa fácil para quem entra, voluntária ou involuntariamente, nas trincheiras da classe explorada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomar as contribuições de Thompson e atualizá-las para o nosso tempo histórico nos ajuda a enfrentar, com maior clareza e esperança, o caráter destrutivo do capital, que tem agudizado permanentemente o conjunto da classe trabalhadora. Não há em Thompson o descolamento da teoria e da própria pesquisa acadêmica da possibilidade histórico-concreta de luta e emancipação dos/as trabalhadores/as. Thompson foi um revolucionário, no sentido mais radical da palavra e com todas as suas consequências: criticou os oportunistas (incrustrados pelo pensamento burguês), travou debates teóricos, interpelou as leituras mecanicistas e a-históricas e os que tomaram Marx como referência, mas que ao final solaparam a dialética ao retirarem homens e mulheres de carne e osso do processo histórico (o movimento do real e as suas determinações), sobretudo da construção do projeto revolucionário.

Ao mostrar que a luta de classes precede a classe, Thompson (1987) combate um certo estruturalismo que, ao focar nas práticas econômicas, rejeita ou trata com brevidade as experiências e subjetividades humanas, que vai muito além do terreno da produção em sentido estrito. Classe não é uma estratificação enrijecida, não é estrutura e nem coisa (a teoria imposta sobre a evidência), mas algo que ocorre efetivamente nas relações humanas, portanto, processo e relação; ou poderíamos dizer, ocorre efetivamente na produção e reprodução da vida material humana, com grande elasticidade histórica. Nesse sentido, recuperar a dimensão de classe em Thompson nos auxilia a esmiuçar e elucidar, com maior envergadura crítica, as próprias experiências das lutas populares, isto é, compreendê-las em seu processo e movimento histórico real, com fluxos e refluxos, articulando-as e inserindo-as na realidade enquanto totalidade. É uma advertência de ordem teórica, mas também prática, metodológica e militante, daqueles que fazem a história dos de baixo ou subalternos; daqueles que, como bem lembra Gramsci (1978), ajudam a construir o próprio inventário da classe trabalhadora.

Por fim, concluímos com uma formidável formulação de Thompson (1981, p. 53), enquanto homem de carne e osso: “[...] no fim nós também estaremos mortos [...]. Podemos apenas esperar que os homens e mulheres no futuro se voltem para nós, afirmem e renovem nossos significados, e tornem nossa história inteligível dentro de seu próprio presente”. Cabe a nós, com esforços e circunstâncias de nosso tempo, como também de escolhas que têm implicações históricas, renovarmos e tornarmos inteligível um marxismo sensível, aberto, comprometido e orgânico com a luta de trabalhadores/as. Marxismo este reivindicado por Thompson e o qual defendemos, frente a desafios tão candentes.

1Para Marx (2017, p. 578), “[...] a extensão da jornada de trabalho além do ponto em que o trabalhador teria produzido apenas um equivalente do valor de sua força de trabalho, acompanhada da apropriação desse mais-trabalho pelo capital - nisso consiste a produção do mais-valor absoluto. Ela forma a base geral do sistema capitalista e o ponto de partida da produção do mais-valor relativo”. Por exemplo, a contrarreforma trabalhista (Lei n. 13.467/2017) trouxe a corrosão dos direitos e amparos ao trabalhador, a sua submissão a jornadas de trabalho cada vez mais excessivas (agudizada ainda mais pelos informais ou não-assalariados, tais como os trabalhadores por aplicativos - Uber, iFood, rappi, dentre outros) levando, além da exaustão e agravamento da saúde física e mental, a piora das condições gerais de vida.

2Na tradição cristã, Adão e Eva morderam o fruto proibido, dando início ao pecado que afastaria os homens de Deus.

3Na corriqueira e didática afirmação de Marx (2017, p. 255): “Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, ou seja, um resultado que já existia idealmente”.

4Em relação direta aos pesquisadores (quer sejam historiadores ou não), diz Thompson (1981, p. 49) que o “[..] interrogador é a lógica histórica; o conteúdo da interrogação é uma hipótese”, ou seja, as formulações prévias do pesquisador. E continua: “[...] o interrogado é a evidência [conjunto de fatos empíricos], com suas propriedades determinadas” (THOMPSON, 1981, p. 49, grifo nosso). Porém, ela (a evidência) não se revela o tempo todo, por isso a pesquisa exige um preparo árduo, exige tempo e não se facilita, assim como não se trata da evidência por si mesma, mas sempre de forma interpelada.

5Em 17 de abril de 2016, no plenário da câmara dos deputados, em meio a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro dedicou seu voto em memória ao Coronel Carlos Brilhante Ustra, torturador, sequestrador e que violentou nos porões da ditadura a própria Dilma Rousseff. Sugerimos o bom estudo de Nascimento et al. (2018) e de Manso (2020), compartilhados nas referências bibliográficas deste artigo.

REFERÊNCIAS

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Recebido: Outubro de 2022; Aceito: Janeiro de 2023

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