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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.74 Rio de Janeiro jul./sept 2023  Epub 06-Dic-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.70202 

Ensaios

FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) E PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO: notas para pensar o educar na tensão da diferença

TEACHER TRAINING AND SUBJECTIVATION PROCESSES: thinking on the education in tension of the difference

FORMACIÓN DOCENTE Y PROCESOS DE SUBJETIVACIÓN: apuntes para pensar la educación en la tensión de la diferencia

1Instituto Federal de São Paulo (IFSP) Campus Boituva


Resumo

O objetivo deste ensaio é pensar a formação de professores(as) com a filosofia da diferença, disparando alguns sentidos possíveis que este atravessamento pode fazer surgir. Há um esforço neste trabalho em pensar outras expressões de vida docente, mais atentas aos desatinos da diferença, e que precisam ser disparadas: estes modos outros de vida educadora só podem ser ousados, subversivos, clandestinos e provocadores da formação de professores(as) em seu formato hegemônico, constituído pela tríade religiãociência-lei (CORAZZA, 1999). A filosofia da diferença rasga os tecidos e modelos hegemônicos de enquadramento social, fazendo ver os fluxos inventivos e criadores da vida em diferenciação, que pede passagem. Tal provocação ecoa também na educação escolar, na formação de professores(as). A fluidez da vida, dos corpos em seus fluxos vitais, se vista para além dos modelos, pode deslocar uma vida docente ao interesse mais pelo encontro com o outro, do que pelo julgamento do outro. Assim, dar atenção à diferença por parte de uma vida docente é uma disposição exigente e inventiva, em que a produção de subjetividade do(a) professor(a) torna-se sua mais notável tarefa formativa: escavar-se a si, resistir àquilo que se é para criar outro(a) de si mesmo. Dispor-se a constante escavação de si envolve fluxos desviantes dos modelos que habitam uma vida educadora, implica a constante preocupação em escapar por linhas de fuga que criem fendas e cesuras na uniformidade e homogeneização curricular dos processos educacionais escolares. Pensar a formação de professores(as) na tensão da diferença faz fluir outros sentidos possíveis em que a formaação se desloca pela via da alteridade, e não apenas se molda pela via da identidade oferecida pelos modelos. São possíveis formações outras: inventivas e criadoras, em que se duvida do educador(a) que se é, inventase outro(a) de si mesmo(a), por meio de um cuidado com sua presença ética-estética-política no mundo e nos territórios escolares. Por fim, são expostas algumas divagações sobre possíveis técnicas existenciais que podem ser potentes, subversivas e inventivas na vida docente que se arrisca a educar em meio à vida e à diferença, e não apenas submete-se aos modelos.

Palavras-chave: diferença; formação de professores; linhas de fuga; escavação de si.

Abstract

The aim of this essay is to think about teacher life with the philosophy of difference, triggering some possible meanings that this crossing can bring about. It’s written about other possibles of expressions in teaching life, more attentive to the blunders of difference, need to be triggered: these other ways of life educate can only be daring, subversive, clandestine and provocative of teacher training in its hegemonic format, constituted by the triad religion-sciencelaw (CORAZZA, 1999). The philosophy of difference rips through the fabrics and hegemonic models of social framing, making visible the inventive and creative flows of life in differentiation, which asks for passage. This provocation also echoes in school education, in teacher formation. The fluidity of life, of bodies in their vital flows, if seen beyond the models, can lead a teaching life to be more interested in the encounter with the other, than in the judgment of the other. Thus, paying attention to difference on the part of a teaching life is a demanding and inventive disposition, in which the teacher's production of subjectivity becomes his or her most notable formative task: trouble yourself, metamorphosing himself. Excavate constantly himself involves flows deviating from the models that inhabit an educational life, implies a constant concern to escape through lines of flight that create cracks and caesuras in the uniformity and curricular homogenization of school educational processes. Thinking about teacher formation in the tension of difference makes possible other directions flow in which the form-action moves along the path of otherness and is not just shaped by the path of identity offered by the models. Other formations are possible: inventive and creative, in which the teacher life invent another of himself, in care with ethical-aesthetic-political presence in the world and in school territories. Finally, are expressed some digressions about possible existential techniques that can be powerful, subversive and inventive in teaching life, which risks educating in the midst of life and difference, and not just submitting to models.

Keywords: difference; teacher formation; lines of escape; excavation himself.

Resumen

El objetivo de este ensayo es pensar la formación del profesorado con la filosofía de la diferencia, desencadenando algunos posibles sentidos que este cruce puede suscitar. Señalo que es necesario desencadenar otras expresiones de la vida docente, más atentas a las pifias de la diferencia: estas otras formas de vida sólo pueden ser atrevidas, subversivas, clandestinas y provocadoras de la formación docente en su formato hegemónico, constituido por la tríada religión-ciencia-ley (CORAZZA, 1999). La filosofía de la diferencia desgarra los tejidos y modelos hegemónicos del encuadre social, haciendo visibles los flujos inventivos y creativos de la vida en la diferenciación, que pide paso. Esta provocación también resuena en la educación escolar, en la formación del profesorado. La fluidez de la vida, de los cuerpos en sus fluir vitales, si se ve más allá de los modelos, puede llevar a una vida docente a interesarse más por el encuentro con el otro, que por el juicio del otro. Así, la atención a la diferencia por parte de una vida docente es una disposición exigente e inventiva, en la que la producción de subjetividad del docente se convierte en su tarea formativa más notable: escarbar en sí mismo, resistir lo que es para crear otro de sí mismo. uno mismo. Estar dispuesto a excavar constantemente implica flujos que se desvían de los modelos que habitan una vida educativa, implica una constante preocupación por escapar a través de líneas de fuga que crean grietas y cesuras en la uniformidad y homogeneización curricular de los procesos educativos escolares. Pensar la formación docente en la tensión de la diferencia hace fluir otras direcciones posibles en las que la formaacción transita por el camino de la otredad, y no se configura sólo por el camino de los modelos. Son posibles otras formaciones: inventivas y creativas, en las que se duda del educador que se es, se inventa otro de sí mismo, a través del cuidado de la propia presencia ético-estética-política en el mundo y en los territorios escolares. Finalmente, expongo algunas digresiones sobre posibles técnicas existenciales que pueden ser poderosas, subversivas e inventivas en la vida que enseña, que corre el riesgo de educar en medio de la vida y la diferencia, y no sólo obedecer a modelos.

Palabras clave diferencia; formación del profesorado; líneas de fuga; auto excavación.

INTRODUÇÃO

Somos professores(as) que possuem sonhos, que possuem esperanças, que possuem desejos. Mas com facilidade estes sonhos, esperanças e desejos confundem-se com a reprodução de valores e deveres seguidos sem atenção à diferença, sem respeito às vidas em si.

Assola-nos a atual urgência de colocarmo-nos em fuga de nossas certezas individuais, escavando nossa subjetividade enrijecida e tornada enamorada pelo poder de exercer força sobre outrem. É urgente olhar para as vidas de outra maneira que não seja esta em que sobrepomos sobre a existência do outro nossa identidade, nossas crenças e todos os sonhos, esperanças e desejos advindos de uma identidade educadora que acreditamos possuir, e que nos é forjada desde nossas formações iniciais.

No caso de nós professores(as), cada dia de aula é um encontro com educandos que nos chegam buscando auxílio, sem mesmo muitas vezes saberem disso. Vidas que vão para a escola em busca de um prato de comida, de um lugar seguro para passar parte do dia, por força do contrato social e das leis que o obrigam a estar ali, e mil outras motivações não listadas aqui. Mas, e se pensarmos que a escola não é para isso, que ela não é para nenhum propósito, se entendermos que ensinar e aprender dizem respeito em muito às problemáticas da vida singular de cada estudante, e não majoritariamente ao que a escola acredita ser importante para ele? (DELEUZE, 2003) Cada momento, cada vida, uma problemática. E a escola é território de diferenças, de vidas diferentes e singulares, não uma massa amorfa e homogeneizada. As diferenças são tornadas ou são firmadas como homogeneização na escola, mas mesmo assim a tensão da diferença nunca abandona os encontros escolares. A educação escolar, assim, possui potência e infinitas possibilidades de diferenças que já se fazem ver e que ainda estão por vir nos encontros educacionais. Os currículos mandões que se sobrepõem às vidas docentes com a intenção declarada de guiá-las não sabem de nada, ou quase nada das vidas singulares que encontramos em nossas classes, em nossas escolas.

Futuros por vir. Vidas singulares em devir. Coisas que não sabemos lidar de nosso trono de autoridade, doutor, juiz, senhor: os currículos mandões dizem que ser professor implica ser capaz de julgar por ofício. Temos então em nosso ideário de professores(as) curricularizados(as) o(a) aluno(a) fraco(a), nosso espólio de guerra, que utilizamos para aumentar o humor nas salas de professores(as): aquele lá não tem jeito; tô de cabelo em pé com aquele aluno! Ele não sabe escrever nem o próprio nome, fulano só vem mesmo é para comer e zoar. Há uma tensão no ar. Uma tensão real, dura, chacoalhante entre mestre e educandos. Mas com facilidade vivemos esta tensão enquanto educadores a partir do poder de exercer força e mando possuído por nós, que nos dá o álibi para ajuizar, julgar e decretar. Afinal, nós sabemos e eles não sabem. Somos adultos e eles crianças. Somos ajuizados e eles sem juízo. Somos a razão e eles o agir tresloucado. Brindamos nosso lado certo, lutamos pelas crenças pedagógicas e de senso comum de nosso lado. Mas a diferença não quer saber destes lados. Ela não lida com lados. Ela é mil lados e nenhum ao mesmo tempo em seu devir atemporal.

Diferença que mexe, que incomoda, que desloca. E dependendo de como se lida enquanto docente com esta tensão ou se estoura em nervos mantendo o afastamento dela, ou se estoura a si mesmo para se atentar e aproximar ao aceno desta diferença. Presença desconcertante. O outro que o educando é no encontro educacional é sempre mais do que se pode ver e esperar dele do ponto de vista do docente mandão. A temporalidade que o outro inaugura em um encontro educacional é sempre intempestiva em relação à temporalidade estabelecida pelo(a) professor(a) curricularizado(a). O devir de uma vida é sempre assustador da organização com a qual costumeiramente se promove o ensinar e aprender.

A diferença nos violenta, e nos força a pensar, a tentar viver e criar outras educações escolares possíveis em que ela possa devir. Educações outras que tentem se colocar em fuga das palavras de ordem, dos idealismos, do ter que. Outros modos de educar que tentem dar atenção à diferença, que negociem, são assombrosos, dão medo, dão insegurança. Mas, por outro lado, podem suscitar, talvez, vidas docentes criadoras de outros mundos que nos amenizem um pouco da toxidade dos ideais e dos valores das sociedades em que vivemos, e que a todo instante nos desapossam do outro, nos fazem no encontro com o outro ignorar a diferença que ele é.

Resistir aos direcionamentos das grades de valores transmitidas a nós docentes em nossas formações, e ao longo de nossa vida educacional, é sempre inquietante. Isto porque as marcas que mais se destacam em uma vida docente são as da captura da diferença, marcas estas oriundas principalmente do caráter tarefeiro e auleiro atribuído a priori a nossa profissão. Sim, nossa educação é movida pela tríade religião-ciência-lei (CORAZZA, 1999). Em uma espécie de método colonizador que tem como fundamento a universalidade, a busca de certezas e as explicações totalizadoras, somos formados pela ciência pedagógica que nos mune do poder de hierarquizar, moralizar e legislar, em que os modelos de valores desejáveis à formação humana são colocados como aquilo que deve ser desejado por quem educa e por quem é educado. A educação escolar moderna se estrutura e reverbera nas sociedades contemporâneas mantendo tais ideais, bem como os modelos enquanto fundamentos do educar. Não é por menos que nas aulas de didática, em nossas licenciaturas, nos encontramos com teorias e com pessoas que prometem nos ensinar a dar uma aula. Aula, supomos nós, se torna aquele momento em que nós professores(as) vamos entregar algo que preparamos aos sedentos educandos que julgamos estar desejantes disto que preparamos. Ledo engano. Não há sedentos, muito menos algo a dar de nossa parte de educadores. (RANCIÈRE, 2007) Este padrão de ser professor esvazia-se de vida na medida em que o encontro entre educador e educando tem a marca da hierarquia em que ocorre a doação de um saber maior, do professor, para alguém que ainda não sabe, o estudante. Nós professores(as) acreditamos ter algo a dar, a cravar, a gravar, a inserir em nossos educandos, mesmo nos nossos discursos mais progressistas, escolanovistas e tantos outros istas de nossa sagrada pedagogia.

Assumindo outra postura no mundo, o professor pode ser um auxiliar, um mestre, um ajudante, na árdua e dolorosa experiência de um ser humano ter sua potência elevada. Não se trata de um privilégio ou um dever do professor. Sugerimos apenas a fuga dos modelos que se tornam nossos dogmas, seja no plano das crenças pessoais (que podem muitas vezes ser produtos de modos dogmáticos de pensar) que interferem em nossos encontros educacionais, seja no plano das teorias científicas da pedagogia (que não menos podem se tornar nossos dogmas e clichês). Precisamos de deslocamentos movidos pelo desejo de outros modos de vidas educadoras que estabeleçam conexões, agenciamentos, cruzamentos de linhas.

Técnicas outras de existir, outras maneiras de viver o tempo do educar, mais artistas, mais inventivas. Rizomatiza-se outros processos de formação de educadores acentrados, nômades, criativos e disparadores de agenciamentos livres. Colocados em movimento pelas experiências. Nas páginas que seguem pensaremos em linhas de fuga que nos permitam contribuir para nossa escuta destas educações escolares em futuros por vir, dentre as quais nos arriscaremos a apresentar algumas.

A VIDA DOCENTE NA TENSÃO DA DIFERENÇA

Viver os encontros educacionais na tensão da diferença é um desafio. Mas, como vive-lo? Não há receita, pois, cada singularidade, cada modo de existência docente tem e terá suas problemáticas, suas experiências, suas situações, seus encontros. No entanto, algo que aprendemos com a filosofia da diferença é a importância de abandonar incessantemente algumas formas que sobrevoam nosso ser educador: o modelo de educar pautado na autoridade que se funda na relação senhor-escravo. Acreditamos ser necessário um constante cuidado com estas imagens que se instalaram nos modos de expressão dos corpos docentes na escola, matando germes de singularidade, de futuros e de modos outros de expressão por vir de uma vida docente.

Os modelos podem ser deixados de lado na medida em que uma vida docente se disponha a um tempo flutuante... um devir outro... um desejo intenso... Quando se vive a caótica dos encontros educacionais, desmanchando as fundamentações e representações dogmáticas do saber pedagógico, um estilo anômalo, anorgânico e fronteiriço surge. Estilhaça-se a vidraça burocrática, rasga-se o roteiro, surge um grito silencioso no meio da classe e do pátio escolar... Enquanto docentes passamos a viver os encontros não como momentos em que devemos comunicar de um lugar privilegiado a outras heterogeneidades, mas compomos e conectamos a comunicação de heterogeneidades.

Temos conectado heterogeneidades? Temos escutado os futuros por vir que nos habitam e habitam os encontros educacionais? Como temos lidado com as variações e devires? O que temos desejado? Desejamos exercer força e mando ou auxiliar outras vidas na travessia da caótica dos encontros que marca a existência? A escuta destes outros eus docentes que podemos ser, destes outros educandos por vir, destas outras escolas que habitam nossos encontros escolares, enfim, destes outros germes de futuro que habitam os encontros educacionais, depende de rachaduras na segmentação que uma subjetividade educadora for capaz de abrir na temporalidade própria do sistema. Os currículos, os projetos pedagógicos e o modo de expressão docente são norteados por um desejo como falta (DELEUZE, GUATTARI, 2010), em que as imagens do aluno e do professor são atravessadas por atravessamentos de forças (às vezes despóticas) que alimentam este único mundo e esta única escola oferecidos a nós pelo sistema social em que vivemos. Precisamos ajudar este mundo a morrer, criando outros mundos para além do possível, do permitido e do previsível, por meio do desejo liberado a habitar outros mundos e a fazer o futuro não rimar com a conservação que o sistema nos impõe. Romper com a repetição do passado e do presente nos modos de expressão futuros: isso implica jogar-se na incerteza e no desconhecido, e isso nos tira qualquer tipo de pretensão de poder sobre o futuro, sobre o por vir dos encontros educacionais.

O poder sobre o futuro talvez seja aquilo de mais tóxico e de mais ilusório que o cargo burocrático de docente nos leva a desejar. Isto porque o a autoridade pautada em fundamentos e modelos gera tristeza, tristeza em quem está submetido a tais fundamentos e modelos, eliminando os germes de futuro. Na escola, especificamente, o veneno tóxico dos modelos se instaura por meio de concepções como a da qualidade educacional, das políticas educacionais providas de boa intenção, que nos levam ao educar enquanto projeção de valores já dados, que nos levam ao educar como elemento salvífico e civilizador, cujo futuro precisa ser tutelado pelos fundamentos mais basilares de nossos valores morais. Um bom aluno, um bom professor, uma boa escola, um bom sistema educacional são aqueles que se colocam neste fluxo de modelos e valores, em que alcançar o topo da hierarquia é o ápice e apogeu de um processo educacional escolar, sempre se comparando a outros processos. Nesta lógica, desenvolver as potências e as singularidades são coisas inúteis, tolices. O importante é desenvolver habilidades e conhecimentos úteis à jornada competitiva e aos valores capitalistas. O que realmente importa é nota, rendimento, aprendizagem na velocidade e na proporção estabelecidas como satisfatórias por uma tal concepção venenosa de qualidade educacional. Venenosa e tóxica por que adoece, faz murchar, entristece, desintensifica o desejo das subjetividades, já que bloqueia toda irrupção criadora, singular, intensa e alegre. Veneno que atinge em cheio e primeiramente a vida docente.

A potência criadora de um corpo é geradora de alegria. O que a potência de um corpo pode gerar é unicamente alegria, pois não há submissão, não há hierarquia na relação ou força que atua para balizar e restringir sua potência. A alegria é o intensificador de uma ética nos encontros. Não de uma ética do dever que retira seus critérios de valores e fundamentos morais, e que gera tristeza. Uma ética da alegria que se faz na imanência da vida, nas experimentações e em cada um dos encontros em suas variações e que busca atentar-se às heterogeneidades.

Criar outra aula, outro encontro educacional, outra escola. Há uma corda bamba vital, o desejo, o local em movimento em que a vida se equilibra entre as tensões das diferenças e os valores e fundamentos impostos. Em um dos lados desta corda estirada e bamba temos um mundo que já não é, e no outro lado um mundo por vir. Do equilíbrio nesta corda bamba é que depende um mundo por vir para se atualizar em um presente. A resposta do desejo docente ao desequilíbrio, a como o desejo reage ao movimento da corda bamba, é que definirá seu agenciamento micropolítico, podendo ser ativo ou reativo, podendo germinar estes embriões de um mundo por vir, andando adiante na corda bamba, ou podendo se recusar a germinar estes mundos porvir, voltando à ponta da corda que contém o mundo que já está dado, que é atual (ROLNIK, 2020). Esse equilibrista, um docente equilibrista e brincalhão, só para na corda bamba se tiver alegria, se permitir-se bambolear para cá e para lá, se permitir-se entrar no ritmo dançante da corda bamba, pois se em cima da corda bamba ele parar e tentar se fixar, ele enrijece, cai, entristece, não bamboleia mais, apenas caminha fixado no chão. A alegria abre um corte no tempo cronológico, inaugurando um tempo flutuante... a alegria abre um corte no tempo segmentar da grade social, inaugurando modos de viver cambaleantes e ziguezagueantes... a alegria abre uma fissura no fluxo do desejo intoxicado pela tristeza servil do poder, e libera o desejo para irromper singularidade e potência e outros modos de expressão na imanência da vida.

É urgente desejarmos outros modos de vida docente que estabeleçam conexões, agenciamentos, cruzamentos de linhas, que desbloqueiem os seres humanos da tutela, que o provoquem a sair de sua própria humanidade para devir outro.

De um pensamento se faz uma doutrina, de um modo de viver se faz uma cultura, de um acontecimento se faz História. Pretende-se, assim, reconhecer e admirar, mas, de fato, se normaliza [...] Pode-se conceber o inverso: [...] liberar devires contra a história, vidas contra a cultura, pensamentos contra a doutrina, graças ou desgraças contra o dogma (DELEUZE, 2010, p. 36)

O professor é alguém muito próximo dos atravessamentos que disparam o brincar com deslocamentos de pensamentos e de modos de expressão com o outro. Mas não basta ser professor por título, certificado ou cargo. Expurgar o “professor público” e inaugurar a vida docente de um “professor-pensador privado”1. (DELEUZE, 2006) Devido ao apego a modelos que nos dizem como devemos educar temos dificuldades em conceber o surgimento de critérios de um futuro indeterminado, não controlado. Estamos presos ao pensamento do fundamento que sempre exige de nós a arrogância de possuir verdade. Há que se desprender dos fundamentos, inaugurar a criação de critérios na experiência, nos encontros: assim, o critério é de outra ordem, não mais baseado nos modelos, mas no aspecto intensivo das experiências.

Na caótica dos encontros entre heterogeneidades não há tutela, e toda tutela oferecida busca ofuscar a intensidade da vida para dominá-la em sua diferença por meio dos modelos. Daí surge um devir-mestre... Um devir em que a maestria se trata de inspirar, sugerir, compor, e não de modelar, impor, julgar. “A relação que podemos ter com os estudantes é ensinar que eles fiquem felizes com sua solidão. [...] Temos de ensinar-lhes os benefícios da sua solidão, reconciliá-los com sua solidão. Esse era o meu papel de professor.” (DELEUZE, PARNET, 1994, s. p.) É em sua solidão que o educando pode aumentar sua potência e deixar cada vez mais de ser tutelado.

Enquanto houver muitas vozes que o dizem o que fazer, como fazer e quando fazer a tutela prevalecerá. Para o(a) professor(a), isso implica um equilibrar-se na corda bamba justamente porque é muito tênue a fronteira entre auxiliar e comandar. Por isso, é preciso muito cuidado, é preciso sempre estratégia, pois estamos em uma guerra constante com valores morais, com os valores que eu tenho e que julgo serem verdadeiros, os quais a todo momento se oferecem como fundamentos.

ESTRATÉGIAS DE SUBJETIVAÇÃO NA EDUCAÇÃO ESCOLAR: OUTROS MODOS POSSÍVEIS DE VIDA DOCENTE

Ligar, afirmar, sustentar a potência dos corpos é a única via para que os bloqueios segmentares dos valores morais percam sua legitimidade convencionada, e para que os corpos fluam sua potência de criar novidade e futuros por vir sejam germinados em nossos encontros escolares. Por isso, pensamos com a filosofia da diferença em estratégias de subjetivação outras nos territórios escolares. Nas páginas que seguem discorremos sobre linhas de fuga que nos permitam, talvez, contribuir para nossa escuta destas escolas em futuro por vir, destes outros educadores(as) que sou.

DESERTAR O EU

A identidade é algo tão arraigado em nossa lógica de pensamento que sua imagem parece ser indissociável do pensamento que uma subjetividade tem de si mesmo. A identidade vinculada a caracteres inatos, a priori e demarcadores do eu que se é, leva a subjetividade à busca de firmar-se como constância, como invariante. Cerca-se da convicção - “Eu sou assim, pronto, acabou!” - , e a partir daí leva-se uma vida inteira esculpindo uma série de hábitos e caracteres pessoais, a partir de fundamentos e valores que se absorve da grade social em que se está inserido, não atinando para a exigência ética de cada instante, de cada experiência, de cada encontro, de cada eu virtual e em germe de futuro que habita uma subjetividade em seus encontros. A escuta destes virtuais e destes germes de futuro só pode se dar na solidão de uma busca de critérios éticos. Na busca das ilhas desertas que fervilham uma existência e que a permitem fugir da identidade, fugir das imagensmodelos: fugir da imagem-modelo aluno fraco, fugir da imagem-modelo professor senhor-juiz. Esta linha de fuga exige solidão, exige deserção de si, abandono constante do eu que sou, pronto e acabado, para assumir-se um devir, uns devires... uma vida ética...

O desertar é descer ao inferno que é a vida, cuja insuportabilidade nos leva a buscar o cotidiano organizável, as certezas tranquilizadoras, a civilidade e a suposta humanidade. É o comer a barata em A paixão segundo GH de Clarice Lispector... o deserto da personagem GH inaugura o desmoronamento de tudo aquilo que sempre estivera habituada. Descoberta da vida pela loucura de comer a meleca da barata destroçada, todo o teatro da representação desmorona gradiente e violentamente no gesto ritualístico de devoração da barata morta. Um desertar que pode fazer uma subjetividade voltar a ser uma pessoa que nunca foi, pois sempre a habitou.

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar. (LISPECTOR, 2009, p. 6)

É o mesmo desertar do ritual antropofágico de deglutição do Bispo Sardinha citado por Oswald de Andrade para encerrar o Manifesto Antropófago, que libera, liberta, cura... Por que não devorar a si mesmo, devorar o eu que sou? É a deserção que entroniza a pajelança da devoração de um modo de vida organizativo, neurótico e dilacerador da vida, devindo outro, outros... Desertar os mundos e as lógicas tóxicos dados a nós, e ganhar outros, afirmar outros modos de expressão que se cuidem para não se contaminar com a toxidade do dado, do acabado, do fundamentado, do definitivo e do axiomaticamente fluido.

SILENCIAR

O silêncio é politicamente potente (VILELA, 2010), pois atua desertando-nos da principal lógica deste único mundo e pode nos deslocar desta única escola tóxica oferecida a nós pelo modo de vida capitalista. Cabe notar que não se trata de um silêncio que nos leve à indiferença, mas o silencio enquanto rompimento com o excesso comunicacional. A comunicação tóxica e cínica da democracia ocidental não suporta o silêncio, pois o silenciar deixa outras vozes falarem, aquelas que habitam o inconsciente. O silêncio rompe com as pretensões conscientes da comunicação exacerbada que pretende arquitetar ilusoriamente um bem comum homogeneizante, um consenso que representaria a síntese conjuntiva de heterogeneidades. O falatório mata o heterogêneo em prol do acordo em que se faz de conta que as diversas vozes chegaram a um consenso, fazendo sobressair despoticamente um único discurso legitimado pelo ato comunicacional em detrimento de todos os outros. Na educação legitima-se modos de ser aos quais todas as vidas singulares devem se adequar, por meio do comunicar e do ditar os rituais burocráticos de ensinar e de aprender. Na escola, o silêncio afirma uma resposta fugidia das ordens discursivas da comunicação, da comunidade racional (BIESTA, 2013) e faz ecoar vida desde dentro de sua tensão que paira, permitindo que desta fissura escapem fluxos de criação de novidade. O silêncio possui uma tensão que paira justamente porque quebra a representação, em prol da presença. Não há mais um discurso que faz a mediação entre duas heterogeneidades. “Talvez seja importante criar vacúolos de nãocomunicação, interruptores, para escapar ao controle” (DELEUZE, 1992). Uma subjetividade, em um encontro, quando paira o silêncio, é forçada a abandonar as ilusões e o falatório da representação e da comunicação, para se entregar ao outro, entregar-se à presença do outro que o violenta em um silencio vibrátil.

HABITAR PARADOXOS

A fuga da identidade, da representação, da fixidez, da organização da subjetividade se torna notável quanto mais formos capazes de habitar paradoxos. Na escola, isto afeta definitivamente o modo de expressão do docente, na medida em que uma subjetividade se dispõe a dissolver incessantemente qualquer forma que pretenda projetar, prever e determinar o futuro, inaugurando modos de expressão docente que estão dentro, estando fora; que têm plano, mas a todo momento desfazem tal plano; que seguem um currículo, mas dispõem-se a todo momento a não seguir a segmentaridade de um currículo.

Somente assumindo-se paradoxal em uma lógica que rompa com a identidade podemos tornar esquivarmo-nos dos clichês do eu que fui e que sou, e que insistem em projetar no futuro o eu que serei. Isto para inaugurar modos de expressão ziguezagueantes, que vão e vem... Uma subjetividade não identificada que se entrega ao movimento da vida, que mesmo estando na segmentaridade foge dela a todo instante... É preciso estar lá na escola, é preciso estar lá na escola instituição homogeneizante, mas sempre à espreita e em movimento paradoxal... em composições de heterogeneidades. Habitar paradoxos é estar liberado da organização e da grade sociais que segmentam. O território que habitamos na escola, a vida real da escola, implica esta estratégia de subjetivação de ter que conquistar todos os dias as situações por nós habitadas. Portanto, habitar estes processos de captura e torná-los problemáticos geradores de novidade e criação de outros mundos implica incessantemente rituais de conquista, em que habitamos a escola para conquistar, compondo alianças, e não para colonizar, relegando o outro, principalmente o educando, à servidão.

DESACELERAR FLUXOS

Como vimos até aqui, a filosofia da diferença desmascara as pretensões hirarquizantes da grade social. Não há como negar que no capitalismo neoliberal a fluidez da axiomática capitalista não se descola da demarcação dos espaços que cada vida deve ocupar: é o controle esquizofrênico com o qual o capitalismo precisa jogar, na medida em que libera e esquizofreniza os fluxos e depois os contém para manter as coisas sempre no lugar que precisam ficar. Nesta dinâmica do capitalismo o mercado captura as dinâmicas singulares e diferenciais de movimento, para estabelecer uma regra mundialmente válida do movimento: aceleração. Segundo o sistema, acelerar é preciso! Desde o plano informacional, passando pela comunicação até as atividades cotidianas tudo precisa ser acelerado. Na escola não é diferente: a partir da roteirização do ensino por meio de apostilas, sistemas de ensino sejam públicos e privados replica-se a lógica de mercado que demarca as subjetividades.

Quanto maior a aceleração, maior será o rendimento e melhor será o resultado esperado pela educação do capitalismo neoliberal, aniquilador da diferença e da criação de novidade. Processos educacionais de esgotamento das singularidades se cristalizam em relações entre professores(as) e alunos(as) velozes e acelerados(as), os(as) quais não conseguem se encontrar, não conseguem ter pausas de pensamento, de autoconhecimentos, de composição. A aceleração agrava a neurose na temporalidade escolar, na qual não se pode parar, nem que seja um instante, pois o fluxo incessantemente acelerado de comunicação e informação bloqueia justamente aquilo que o capitalismo neoliberal mais teme: a criação de outros modos de expressão e outros mundos em uma vida-pensamento que faz escapar uma outra temporalidade, totalmente singular e que não se deixa capturar pelos fluxos de aceleração e velocidade, que aniquilam a lentidão dos corpos e das singularidades, e as possibilidades de composição criativa. Quão prenhe de criação pode ser uma aula em que professor e educando se disponham a fazer nada! Rancière em O mestre ignorante nos presenteia com uma afirmação: “Quem ensina sem emancipar, embrutece. E quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Ele aprenderá o que quiser, nada, talvez.” (RANCIÈRE, 2007, p. 37). Afirmação do tempo do educando, de sua singularidade no aprender e no ensinar. Desacelerar enquanto um ato não colonizador.

SUSPENDER O JULGAR: A CARTOGRAFIA-PRESENTE NO LUGAR DA AVALIAÇÃO-REPRESENTATIVA

Como vimos acima, um dos personagens que habitam nossa imagem de educação escolar é o docente juiz-senhor, possuidor do poder e da autoridade de julgar a ele atribuídos.

As avaliações, referidas a seu elemento, não são valores, mas maneiras de ser, modos de existência daqueles que julgam e avaliam, servindo precisamente de princípios para os valores em relação aos quais eles julgam. Por isso temos sempre as crenças, os sentimentos, os pensamentos que merecemos em função de nossa maneira de ser ou de nosso estilo de vida. Há coisas que só se pode dizer, sentir ou conceber, valores nos quais só se pode crer com a condição de avaliar baixamente, de viver e pensar baixamente. Eis o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas representam o elemento diferencial do qual deriva o valor dos próprios valores. (DELEUZE, 1976, p. 4).

No atual cenário da educação escolar atravessada pela subjetivação de mercado, acima de tudo consumista e competitiva, o resultado se torna o sumo objetivo dos processos educativos. Boa parte da angústia e do esgotamento escolar advém justamente desta sanha por rendimento, por resultados. De onde derivamos nossos valores? De fundamentos e teorias (na maioria das vezes generalizantes) alheias a nossas experiências escolares ou dos encontros com diferenças singulares que temos na escola? Boa parte de nossos valores educacionais provavelmente deriva do mercado. No capitalismo mundial integrado avaliar o rendimento se torna uma ordem, à qual todas as nações se adaptam, por meio de avaliações em larga escola de nível nacional e internacional, além, é claro, das tradicionais avaliações locais dos próprios sistemas, escolas e professores(as). Queremos falar um pouco sobre como se faz necessário suspender o julgamento avaliativo para criar outras escolas por vir. Suspender na escola o ato de julgar motivado pela sanha por rendimentos e resultados de mercado.

Em relação ao pensamento a referida suspensão é urgente porque no modo de julgamento e avaliação típicos de mercado, em que se prioriza apenas medições quantitativas de rendimento e resultados, o pensamento é tomado pela via da repetição mimética, ou seja, o aluno necessita mostrar o quanto ele é capaz de reproduzir o conhecimento dado. Aquele que mais conseguir reproduzir é mais bem classificado nos rankings, seja o ranqueamento local do professor, da escola, seja os ranqueamentos em larga escala. Com a filosofia da diferença pensar exige subtrair-se do predomínio dos resultados e por meio da suspensão criar fissuras que liberem o pensamento à criação de novidade, à não reprodução do dado, a futuros outros que desrimem do passado e metamorfoseados em relação ao presente.

A subjetividade nutrida pelo mercado, pela axiomática capitalista, é cultivada justamente para alimentar-se dos clichês e do senso comum que consistem em reproduzir meramente o dado. Por isso, suspender o julgamento pode nos levar a romper com a lógica de rendimentos e resultados exigida pelo mercado, nos desbloqueando à criação de outros modos, de outras estratégias de composição.

O educar se dá em meio a caótica dos encontros, e é nesse caos que se dá o cartografar de um professor. Precisamos inserir notas em boletins, mas isso é terrível para um cartógrafo. Como fazer este processo burocrático buscando ao máximo fugir do lugar de poder do qual muitas vezes se faz valer o professor? Cada encontro uma nova vida, cada atividade, cada situação em sala de aula afetam os corpos de maneiras infinitamente variáveis. Rompe-se com a tendência à homogeneização/generalização se a heterogeneidade se torna princípio. Este rompimento exige sempre um movimento de assumir-se em situação de uma máquina de guerra, sempre à espreita com tudo, com todos e consigo mesmo, pois o senhor-juiz, o coronel, reside ainda em cada um de nós, em nossas práticas. Precisamos habitar os boletins e diários, nossos locais sagrados de lançamentos de notas e de ajuizamentos, mas habitá-los criando outros mundos escolares... Que nossa paixão seja pela vida, não pela força que podemos exercer sobre as vidas. Diferença que pede passagem, mas sempre capturada pela grade social de valores. Suspender os ajuizamentos advindos de valores sedentários. Estar dentro do mundo dos rendimentos e das avaliações julgadoras e eliminadoras da diferença, mas com muito cuidado para que não se tornem nosso motivo primordial de educar, sempre à espreita para afirmar outros modos de expressão que fujam sempre que possível destes valores ajuizadores do mundo mercantil dados a nós na escola.

Alegria!

Até aqui já pudemos perceber as relações tristes entre educação escolar e modelos. Os modelos promovem relações educacionais entristecedoras. Tristeza advinda dos bloqueios à criação que a educação pautada em modelos traz. Diminui e míngua o desejo e o reduz ao dado, ao único mundo possível oferecido a nós pelo sistema, tornando-o impotente e triste. Traremos o Espinosa de Deleuze para este momento da conversa:

A tristeza ocorre justamente quando as grades sociais atuam com uma força tal sobre a subjetividade que a impede de fazer algo de sua potência, de sua atividade singular, de maneira que as circunstâncias, os valores morais minguam, conformam e reduzem esta vida aos valores vigentes. No atual momento do capitalismo neoliberal este processo de entristecimento da vida é de tamanha toxidade, que de acordo com os valores vigentes de mercado há vidas que valem e importam, e outros milhões de vidas que pouco ou quase nada valem e importam. Os valores que valem acima de tudo e de todos são os do mercado. A neurose se instala na vida, a tristeza e a depressão se alastram aniquilando vidas e diferenças, a morte programada e seletiva se torna natural.

Aqui entramos no terreno da diferença entre moral e ética como modos totalmente distintos de uma subjetividade habitar o mundo, as relações e os encontros. A moral é o processo de engendramento de valores em uma subjetividade que apela para o uso do poder. Ou seja, quando uma subjetividade, em sua vida, é afetada principalmente por valores morais ela está submetida ao poder externo advindo desta tábua de fundamentos aos quais tem o dever de obedecer. Por isso, dirá Deleuze, com Espinosa somos levados a outros mundos não mais entristecidos pela afecção das forças modelares da moral sobre a subjetividade. Espinosa nunca quis saber nem dos modelos, nem da moral. Para Espinosa o que pode nos levar a uma vida livre e potente é a ética, enquanto modo de vida em que o melhor critério não seja obtido por dever, como que ditado por uma força externa, minimizando a potência de agir. Tal vida Ética pensada por Espinosa é melhor, porque, diferentemente da moral, uma subjetividade potente eticamente se autoafeta, assume sua potência de agir e passa a ser ela mesma a origem de seus critérios. Não há bem ou mal, dirá DeleuzeEspinosa, mas apenas maus encontros. O que isso quer dizer? A arte de uma vida legitimamente ética e potente nos arranca das formas de julgamento a priori, de fundamentos externos que valoram uma determinada experiência, um encontro. Tal vida ética nos desautoriza a viver sentenciando por meio de valores inadequados, oriundos de outras fontes que não sejam a própria subjetividade que se autoafeta a partir dos encontros, para buscar cada vez mais ideias e conceitos adequados na experiência. Enquanto o pensamento da representação (Platão-Descartes) nos bloqueava o mundo, o pensamento da imanência (Espinosa-Deleuze) nos restitui o mundo.

A perda do mundo e a desvalorização da experiência nos encontros é uma tática do pensamento da representação muito útil para manutenção da escola como reprodutora de processos homogeneizantes, já que a gestão das subjetividades por meio de modelos exige do desejo seu rompimento com aquilo de mais imediato que se tem nos encontros, na vida. A alegria da nota 10 no boletim. A alegria da aprovação em um vestibular. Alegria sem aspas é a conquista do pensamento que levou a tirar a nota 10 e à aprovação no vestibular. A que lógica de pensamento está reduzida a educação escolar? Mesmo na presença de singularidades fervilhantes de diferenças, a escola promove a captura das potências de cada uma delas em prol do desejo único do mercado que traduz a lógica da mais-valia para o território escolar, na forma de uma lógica neurótica do rendimento, do cálculo, do sucesso etc.

E como fazer fluir a ética e a escuta de futuros por vir na educação escolar? Aí temos um fluxo certeiro que pode nos levar longe nessa empreitada: a alegria! Mas, àquela sem aspas. Como vimos, o ofício do professor continua definido pelo poder de exercer força, de maneira que quase tudo o que se passa em uma vida docente dentro das instituições escolares flerta com o exercício do de força e mando sobre as subjetividades: desde o que vai ser ensinado, a avaliação até a autoridade em sala. Tudo atravessado por força e mando. Relação professor-aluno sempre marcada pela imposição (intencional ou aleatória, consciente ou inconsciente) do primeiro sobre o segundo. Como fazer surgir outros modos de vida docente destas subjetividades marcadas pela imposição hierárquica? A alegria talvez seja um antídoto inicial muito interessante, que pode disparar outros modos expressão de uma vida educadora.

Mas o que é alegria, afinal?

O poder é sempre um obstáculo diante da efetuação das potências. Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se aqueles que o detêm se alegram em tê-lo. Mas é uma alegria triste. Sim, existem alegrias tristes. Mas a alegria é uma efetuação das potências. Eu repito: não conheço nenhuma potência má. O tufão é uma potência. Alegra-se na alma, mas não por derrubar casas, mas simplesmente por ser. Regozijar-se é estar alegre pelo que somos, por ter chegado onde estamos. Não se trata da alegria de si mesmo, isto não é alegria, não é estar satisfeito consigo mesmo. É o prazer da conquista, como dizia Nietzsche. Mas a conquista não consiste em servir pessoas. A conquista é, para o pintor, conquistar a cor. Isso sim é uma conquista. Neste caso, é a alegria. Mesmo que isso não termine bem, pois nestas histórias de potência, quando se conquista uma potência, ela pode ser potente demais para a própria pessoa e ela acaba não suportando. Van Gogh! (DELEUZE, PARNET, 1994, s. p.)

Alegria é uma experiência intensiva... completa... não mais calculada e projetada racional e conscientemente. Uma experiência que nos leva à essência de um encontro, como diria o pensamento Deleuze-espinosano, da qual ninguém sai o mesmo, ninguém sai ileso, que nos violenta a ponto de nos entregarmos a futuros outros por vir, totalmente indeterminados. Não se trata de um dever, mas de uma necessidade da própria vida ser alegre e se perder sem garantias de se encontrar, pois toda a organização tende a diminuir a vida, capturar o devir da diferença...

Deleuze nos diz, juntamente com Espinosa e Claire Parnet em Abecedário Deleuze: “Evitemos as paixões tristes e vivamos com alegria para ter o máximo de nossa potência; fugir da resignação, da má-consciência, da culpa e de todos os afetos tristes que padres, juízes e psicanalistas exploram”. (DELEUZE, PARNET, 1994, s. p.). Talvez, nós professores(as) nos incluamos nesta lista de exploradores dos afetos tristes. A tristeza anda de mãos dadas com a neurose, com a organização, com a burocracia. A moral e a ilusória alegria da organização instalam uma forma de vida docente cujo intuito é justamente eliminar a potência de agir, a força ativa de uma vida, a alegria de um educando, em prol de valores como intensificação da aceleração dos processos, resultados e metas a cumprir, conceitos satisfatórios a alcançar, avaliações em que se precisa ter bom rendimento. Somos neuróticos! O antídoto para a neurose é a alegria. A alegria pode nos ajudar enquanto docentes: podemos ir aos poucos abandonando nossa educação fundamentalmente moral, geradora de tristeza, para habitar outras escolas por vir, nas quais a educação seja um devir ético gerador de alegria, que coloque em movimento as potências dos corpos.

A Ética [obra de Espinosa] é necessariamente uma ética da alegria: somente a alegria é válida, só a alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação. A paixão triste é sempre impotência. Este será o tríplice problema prático da Ética: como alcançar um máximo de paixões, e, a partir daí, como passar aos sentimentos livres ativos? [...] Como conseguir formar ideias adequadas? [...] Como chegar a ser consciente de si mesmo? [...] (DELEUZE, 2002, p. 34).

A alegria, fruto de uma vida ética, torna uma subjetividade ativa, enquanto a tristeza, fruto de uma vida fundamentada na moral, torna uma subjetividade passiva. Qual dessas paixões tem prevalecido nos encontros educacionais, na vida docente? O cansaço é um agravante que, com o tempo, também bloqueia nossa alegria e nos encaminha para expressões tristes... Porque o cansaço tende a gerar em uma subjetividade um inconformismo conformativo, em que esta torna-se uma máquina de guerra egoística e reativa, que atira para todos os lados, menos para si mesma... para a qual tudo precisa ser mudado, desde que não mude o que pensa, o que acredita, o que faz: não mexa com minhas neuras e com minha fé! Para uma máquina de guerra potente e ativa, a diferença é o que importa, e a alegria intensiva, sem aspas, subjaz às escapadas, às linhas de fuga deste mundo e desta educação escolar dados. Trata-se de driblar clandestinamente os efeitos de uma vida neurótica, dogmática, devorando a si mesmo para que nasça um corpo novo por vir, sem neuroses, com alegria. Uma vida docente ética nos leva a encontros com corpos de carne e sangue, e não mais com corpos de linguagem, com números e cifras. Alianças diretas de composição com outros corpos, e não mais contratos mediados pela racionalidade, comunicação, papel, caneta etc.

Estamos aqui a pensar na alegria como linha de fuga que escapa a propostas pedagógicas conteudistas, à educação escolar moderna que visa a formação de uma cultura geral, à perspectiva geralmente salvacionista da escola pública adotada por vertentes ideológico-políticas, como a formação para o mercado ou a formação para a vida, ou ainda a formação cidadã. Tais propostas são sempre limitadas pela dinâmica de seus fundamentos que criam oposições de termos, inculcando uma concepção de educação escolar comumente tida por todos, desde pais até professores(as), gestores(as) e supervisores(as), como uma espécie de salvadora da pátria. Em outros termos, a educação escolar é facilmente utilizada em discursos meramente retóricos de ideologias que a reduzem ao cálculo, a projetos guiados teleologicamente por valores, que vão da direita à esquerda, no sentido macropolítico. Nos arrisquemos a colocar cores, tons, sensibilidades, vivências, atravessamentos de vidas, experiências intensas e alegres nesta retórica ideológica das macropolíticas mediadas pelos acordos cínicos, e nos abramos uma micropolítica ativa, abandonando a micropolítica reativa (aquela do inconformismo conformativo) aos poucos, e abrindo-se à composição de alianças na vida, no viver. Recuperemos o mundo que nos foi desapossado! (DELEUZE, 1992). Arrisquemos a ter desejos outros, desejos intensos na educação escolar, desintoxicados deste único desejo neurótico que nos leva uma vida escolar doente:

Eu bem que gostaria de todas as manhãs sentir que o que vivo é grande demais para mim porque seria a alegria em seu estado mais puro. Mas deve-se ter a prudência de não exibi-la, pois há quem não goste de ver pessoas alegres. Devese escondê-la em um tipo de lamento. Mas este lamento não é só a alegria, também é uma inquietude louca. Efetuar uma potência, sim, mas a que preço? Será que posso morrer? Assim que se efetua uma potência, coisas simples como um pintor que aborda uma cor, surge esse temor. (DELEUZE, PARNET, 1994, s. p.)

Uma vida ética tem seus riscos. O risco de que nada é pré-determinado por nenhum fundamento. Na escola isto pode se tornar um inferno para a vida docente. Por isso, a suportabilidade das situações por uma subjetividade também deve ser sempre levada em conta no cuidado ético. Colocar-se à escuta de educações escolares em futuros por vir implica pensarmos o encontro dos afetos alegres em sua efervescência de devires, em que cada indivíduo singular é atravessado de maneira diferente, podendo gerar paisagens não esperadas. Isto nos leva a flertar com a morte, não se sabe do que, nem de que, mas com certeza atuais morrem para que virtuais nasçam na busca ética em que o movimento de devir outro é auxiliado pelo desejo intenso.

Pela via da intensidade, a escola é um lugar de aumento de existência, de passagem de um grau menor de perfeição a um grau maior de perfeição, mas sempre em relação à singularidade mesma, apenas em relação velocidades e lentidões, e não mais somente em relação a acelerações de rendimento, cálculos, projeções e comparações. Uma vida docente ética intensa é aquela que vive o cuidado para com seus valores, sempre atento para que não se tornem fundamentos, que os esculpe a partir de seus encontros, de suas experiências.

Para Deleuze, aprender não se reduz às verdades apreendidas pela inteligência por meio do uso comum das faculdades. Muito mais do que isso, aprender diz respeito a chegar ao limite dessas mesmas faculdades: percepção, memória, imaginação, inteligência e pensamento podem simplesmente estar atuando de forma voluntária, dentro de uma zona de normalidade e conforto. Ou seja, somente quando essas faculdades se veem diante do encontro com o diferente e com o inusitado gerados a partir de signos (afectos) é que elas podem ir além de seu uso comum. (LAFELICE, 2016, p. 27)

Estes encontros, este atravessamento de afetos alegres no devir-louco da diferença é o que aumenta existência de uma subjetividade, que se torna mais perfeita do que era porque seu modo de pensar está mais adequado com o devir das coisas e das pessoas. A subjetividade que rompe com o ciclo de determinação do futuro pelo passado, e inaugura futuros inéditos, por meio da criação da novidade, é uma subjetividade eticamente melhor, não tutelada, mas autoafetante.

A autoafetação da subjetividade docente só pode se dar se este se colocar à escuta dos alarmes vitais. A vida dá seus alarmes e estes são escutados na medida em que suportarmos dar outros modos de resposta a estes avisos vitais da vida, que denunciam a nós a todo instante a captura da diferença, a eliminação das potencias singulares. Na escola, por exemplo, se um aluno surdo é matriculado não é muito difícil ocorrer um alvoroço entre gestores e professores(as), quase que desesperados com as dificuldades que terão para fazer este aluno diferente aprender o mesmo que está pré-programado, previsto para todos os alunos aprenderem. Percebamos o quão doente está nossa educação. Este aluno é uma existência como qualquer outra, e se é gerado um mal-estar com sua presença nesta escola, este mal-estar não é provocado por este aluno, com seu modo singular de viver e existir. O mal-estar é gerado pela escola mesma, doente, e os problemas que a presença do diferente gera na escola é um alarme vital, é a vida dizendo a nós que tudo que temos feito precisa ser revisto, este currículo, esta concepção educacional calculista e cumpridora de metas... É aí que o desejo precisa ser acionado! Precisamos a partir destes alarmes vitais desejar outros mundos e outras escolas a priori não possíveis. Precisamos responder a situações e aos encontros de modos diferentes do que temos respondido até agora. Inaugurar outros modos de vida docente, com outras respostas, sem clichês. Não serve mais ser professor cristão, professor reflexivo, professor pesquisador, professor crítico, professor inclusivo, professor isso e aquilo. Citamos um exemplo do aluno surdo, mas cada aluno poderia ser um exemplo aqui. Pois cada um é uma diferença em devir. Por isso, cada experiência exigirá de nós um novo modo de vida docente ainda por vir, que não inauguramos ainda... Esse é o desafio da vida: atravessar a caótica dos encontros da melhor maneira possível. E nesta caótica nunca houve e nunca haverá porto seguro, palavra final, receita... Toda zona de conforto é ilusória... Por isso, os clichês e os rótulos não servem mais à vida docente se nos dispomos a esculpir nossa subjetividade com critérios micropolíticos ativos-éticos-alegres na educação escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito antes da aprendizagem, da transmissão e aquisição de conteúdos e informações, o educar que se dispõe a dar atenção à diferença é encontro afetuoso de singularidades diferentes, cuja criação é um resultado inevitável da violência do encontro. Nada a repetir pela imitação, apenas repetir pela criação de novidade. Viver a educação-encontro-afeto-singularidade exige um cuidado do educador na medida em que só pode se dar subterraneamente, rizomaticamente, efetuando contraefetuações, cuidando para que tais efetuações não sejam capturadas. Isto exige um movimento de vida flutuante e nômade:

Não estamos aqui tratando do professor nômade como alguma pessoa criativa, que dinamiza suas aulas e as torna agradáveis aos alunos e torna ele um exemplo a ser seguido. Não estamos apontando para o modelo docente que faz de suas aulas um showman. Estes apenas sustentam a política sedentária. Sua conduta nada e a ninguém incomoda. Aqui não se quer apresentar modelo de nada, apenas postular a possibilidade de se inconformar com o modus operandi sedentário como a atividade docente é muitas vezes encarado. O professor nômade não busca ser atração, pelo contrário, seu modo de ser entregue a devires minoritários atraem muitas vezes a repulsa e a marginalização de sua postura. Aceitar se relacionar com o mundo como relações de devir, é relacionar com as coisas com espírito aventureiro. Não se submete às exigências do Estado e da moral sedentária. Mesmo junto com outros, ele não se mistura. (GONTIJO, 2006, p. 109-110)

Pensar educação e diferença pode nos levar a confundir a criação de outros modos de expressão de vida docente com a mera adaptação da vida docente às exigências da contemporânea liquidez dos valores. Calma lá! Pensar-viver o complexo educação-diferença não se trata de substituir o professor antigo, pelo professor de metodologias ativas, o professor do mimeógrafo pelo professor youtuber, o professor excludente pelo professor inclusivo. As armadilhas dos clichês continuam a perseguir e a capturar. Todo ímpeto de transformação do outro sempre flerta com a colonização do outro. Tratase de outros modos de vida docente, para além das novidades nada novas que a ciência pedagógica, as inovações do mercado educativo as vezes oferece, e inclusive os modelos mais progressistas/humanistas. “Discursos homogeneizantes” que, às vezes, levam a vida docente a copiar um modelo e a matar a potência de criação e das diferenças nos encontros educacionais.

Trata-se de escavar a si para erigir o cuidado cotidiano com estes tipos de discurso, e abrir a uma vida em que o que importa é a ética nos encontros, em cada experiência em sua singularidade. De um lado abandonar os clichês e rótulos que nos autoatribuímos, e de outro manter uma constantemente escavação de si mesmo como processo imanente e inacabado de uma vida docente.

Embora não tratem especificamente da escola e dos processos educativos, Deleuze e Guattari, especialmente em Mil Platôs, dão pistas sobre a possibilidade da singularização no interior do próprio sistema escolar, no processo institucional mesmo. É o que eles chamam estar fora estando dentro. Produzir buracos no espaço estriado do sistema educativo, aproveitar-se de suas brechas e de suas falhas para produzir escapes [...]. (GALLO, 2010, p. 241)

Descobrindo os clichês que nos forjam talvez o único padrão que fique para nós é o de ser um professor equilibrista, artista que cria o impossível, que torna o currículo um rizoma e a formação nômade. Pois, a filosofia da diferença nos escancara a vida real em devir, na qual nos encontramos em uma corda bamba, em que não há mais fundamento que salve nossa vida docente na educação escolar.

Não estamos aqui falando de um educar que se dê ao acaso, deixado à deriva, que pode muitas vezes ser resultado de preguiça do educador, e resultar no criminoso desperdício do tempo de vida do educando. A vida é preciosa e cada instante de vida do educando é muito precioso. Assumir o partido da vida na educação escolar nos coloca justamente neste entremeio da tensão entre educando e educador, em que há que se negociar e buscar o máximo de disparações que favoreçam a vida em um contexto marcado pela organização excessiva e neurótica que minimiza tais disparações. Precisamos de outras formações de educadoras e educadores ainda por vir. Dias (2011) e Ribetto, Dias (2020) utilizam o paradigma ético-estético-político para pensar a formação de professores(as) para além da aquisição de conhecimentos e habilidades: um processo que envolve técnicas existenciais de subjetivação educadora disparadoras de inventividade criadora. Entende-se que a formação de professores(as) tem potências rizomáticas bloqueadas pela formação de professores(as) normalizada e capturada.

Formação de professores(as) voltada ao cuidado-de-si, o cuidado estratégico que pode abrir o ensinar e aprender aos encontros vibráteis e éticos, em que o que mais importa é a diferença e a singularidade: o restante consiste em equilibrar-se na corda bamba, vivendo, artistando e inventando enquanto docentes currículos outros clandestinos, ocultos, disruptivos. Outros odos de expressão de uma vida docente que elevem nosso desejo educador a outros mundos, a escolas em futuro por vir, que ainda não sabemos quais são, mas que habitam nossa existência nos encontros educacionais. O cuidado com o coronel que nos habita e que só pode ser desenterrado de nossa vida docente pela escavação de si mesmo, algo que não nos pode ser dado pelas escolas de formação, tampouco pelos cursos de certificação profissional. É vida, é ética: é uma vida docente que se compromete com o mundo, com os educandos na singularidade diferencial que são, não com o modelo de educando que se julga o outro (o educando) dever ser.

1No texto “Ele foi meu mestre”, redigido por ocasião da recusa sartreana do Prêmio Nobel de literatura, Deleuze irá discorrer sobre a diferença entre ser professor representante de conceitos de outrem e mestre criador de seus próprios conceitos. Reconhecendo a decisiva presença de Sartre como mestre de sua geração, Deleuze dirá que Sartre foi muito mais do que um professor público, foi um pensador privado, um mestre. Não que Deleuze despreze a importância dos professores públicos das instituições educacionais, mas, para ele, o institucional engessa, modela, torna o professor representante de pressupostos que demarcam os limites axiológicos do encontro professor-aluno. Consequência do nível molar das estruturas sociais, a demarcação axiológica das relações humanas impõe à vida ordens, comandos e regras com vistas a aniquilar a diferença, o encontro e o acontecimento. De acordo com Deleuze, Sartre rompeu com esta espécie de ciclo redundante de replicação de ordens à qual a institucionalização submete os professores, recusandose a aderir a qualquer tipo de pensamento vigente, inaugurando um modo de ser singular que consistiu em ser um pensador privado.

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Recebido: Setembro de 2022; Aceito: Junho de 2023

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