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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.75 Rio de Janeiro out./dez 2023  Epub 26-Dez-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.78799 

“Vocês são importantes…”: questões de alteridade e diferença nas políticas curriculares

APESAR DA SOMBRA DA VIGILÂNCIA, UMA ESCOLA

DESPITE OF VIGILANCE SHADOW, A SCHOOL

A PESAR DE LA SOMBRA DE LA VIGILANCIA, UNA ESCUELA

Lidiane da Silva Braz1 
http://orcid.org/0009-0009-3658-0135; lattes: 1337326103947096

Eliana da Costa Pereira de Menezes2 
http://orcid.org/0000-0003-2274-2585; lattes: 5996369654576945

1Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria

2Professora da Universidade Federal de Santa Maria


Resumo

Pretendemos, com a discussão apresentada nesse artigo, analisar as recorrências discursivas produzidas nas/pelas práticas que acontecem em uma escola pública, inserida em contexto socioeducativo. Ancoradas teórico-metodologicamente nos estudos foucaultianos em educação e na filosofia da diferença, a pesquisa que dá condições para as análises construídas busca problematizar as práticas educacionais desenvolvidas nesse espaço, que se dão entre a sujeição e/ou a condução das condutas e as possibilidades de contracondutas. Para tanto, assumimos como material do estudo duas práticas produzidas pelos alunos, em oficinas que acontecem na escola: monólogo e a letra do videoclipe Sonho de liberdade. Os anúncios visualizados em tal materialidade nos possibilitam defender outras intencionalidades para as práticas que são desenvolvidas na/pela escola em questão, para além das técnicas de sujeição, práticas essas consideradas a partir da experiência e seu sentido singular e contingente, as quais possibilitam o exercício crítico do pensamento ao mesmo tempo que permitem a experiência da afecção. Tais práticas, pelo movimento vivo de afetos que curto circuitam as relações, dão lugar ao exercício ético do cuidado de si e do cuidado com o outro.

Palavras-chaves: contracondutas; experiências; ética; escola.

Abstract

The article aims to analyze the discursive recurrencies produced in/by practices that happen in a public school from a socio-educational context. Foucault's studies in education and the philosophy of difference are theoretical-methodological bases for research that provide conditions for the analysis built from the problematization of educational practices developed in this space, which happen between the subjection and/or conduct of conducts and possibilities of counter-conducts. For this purpose, we selected as material for study two practices produced for the students, in workshops that had happened in school: Monologue, and the lyric of the video clip Freedom dream. The announcements seen in this materiality allows to defend other intentionalities to practices developed in/by the school. Beyond the subjection techniques, these practices are considered as of experience and its singular and contingent means, which make possible critical thoughts exercises while allows affection. Those practices give way to the ethical exercise of the care of the self and of others through the living movement of affections that short-circuit relationships.

Keywords: counter-conducts; experience; ethic; school.

Resumen

Con la discusión presentada en este artículo, pretendemos analizar las recurrencias discursivas producidas en/por las prácticas que ocurren en una escuela pública, inserta en un contexto socioeducativo. Fundamentada teórico-metodológicamente en los estudios foucaultianos en educación y en filosofía de la diferencia, la investigación que proporciona las condiciones para los análisis construidos busca problematizar las prácticas educativas desarrolladas en este espacio, que tienen lugar entre la sujeción y/o conducción de conductas y las posibilidades de contraconductas. Para ello, utilizamos como material de estudio dos prácticas producidas por estudiantes, en talleres realizados en la escuela: el Monólogo y la letra del videoclip Sonho de liberdade. Los anuncios visualizados en esta materialidad nos permiten defender otras intencionalidades para las prácticas que se desarrollan en/por la escuela en cuestión, más allá de las técnicas de sujeción. Estas prácticas, consideradas desde la experiencia y de su significado singular y contingente, posibilitan el ejercicio crítico del pensamiento, al mismo tiempo que permiten la afección. A través del movimiento vivo de afectos que cortocircuitan las relaciones, tales prácticas dan lugar al ejercicio ético del cuidado de sí y del cuidado del otro.

Palabras clave: contraconductas; experiencias; ética; escuela.

PISTAS INTRODUTÓRIAS

As discussões que constituem este artigo empreendem uma análise sob recorrências discursivas produzidas nas/pelas práticas que acontecem em uma escola pública, inserida em contexto socioeducativo1, em uma cidade do estado do Rio Grande do Sul (RS). Diante da obrigatoriedade2 das unidades socioeducativas em dispor de uma instituição escolar para que essas unidades pudessem funcionar, passa a ocorrer uma aliança entre essas duas instituições: Centro de Atendimento Socioeducativo/ Case e escola. Em um primeiro momento, compreendemos que a presença da escola em uma unidade de socioeducação é acionada para operar propostas que intencionam corrigir, disciplinar e ensinar os sujeitos a se autogestar dentro da racionalidade neoliberal em vigência. Com isso, o objetivo parece ser fazer dos alunos que lá estudam subjetividades que tenham, ao fim do processo educacional, condições de retornar à vida em sociedade de forma a não colocar em risco a si e aos outros, o que considerando o modo de vida neoliberal, significa trabalhar, estudar, produzir e consumir, empreendendo sobre si ações de autoinvestimento.

Não é novidade que o Estado, através da educação, age sobre os corpos e busca a regulação de suas vidas. Desse modo, as práticas educacionais, de acordo com a legislação atual, devem servir aos propósitos neoliberais.

A regulação e o governo dos sujeitos e das populações são mecanismos necessários para canalizar suas capacidades para objetivos produtivos, no sentido de utilidade para o poder [...] O que caracteriza a sociedade contemporânea é precisamente o caráter difuso desses mecanismos de regulação e controle, dispersos que estão em uma ampla série de instituições e dispositivos da vida cotidiana. A educação é certamente um desses dispositivos, central na tarefa de normalização, disciplinarização, regulação e governo das pessoas e das populações. (Silva, 1994, p. 252).

Nesse contexto, o Case, a escola inserida nesse centro, e os adolescentes que participam desses espaços são também delineados pelas amarras discursivas das políticas de inclusão que emergiram na sociedade nas últimas décadas, as quais corroboram com tais propósitos neoliberais, incidindo sobre os sujeitos técnicas disciplinares e modeladoras, a fim de que todos tenham condições de produzir e consumir o modo de vida atual.

Entretanto, concordamos com Foucault quando ele diz que onde há poder, há resistência (2009). E se há resistência, é porque as contracondutas3 são sempre possíveis, e elas acontecem, mesmo que através de pequenas fissuras abertas pelo desejo de se fazer uma coisa outra, na contramão de uma educação pautada no modelo econômico e neoliberal. E isso é possível quando nos colocamos coletivamente em outra travessia, buscando nas/pelas experiências singulares outras formas de estar no mundo. Experiências singulares essas que resistem à experiência capturada, universalizada; experiências singulares que muitas vezes não podem ser repetidas. A experiência singular é provisória, imprevisível, sensível, contingente (Larrosa, 2022). E problematizar a escola e as práticas escolares deste ponto requer, conforme Larrosa, um gesto de interrupção:

[...] parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (Larrosa, 2022, p. 25)

Quando pensamos na educação contemporânea, metódica, enquadrada, funcional e objetificada para fins específicos - mercadológico e acadêmico, ao nos demorarmos nesses detalhes, remamos contra a corrente? Seria isso um gesto de dissidência, ou como diria Foucault, uma contraconduta, contra a ordem do discurso? Para nós, trata-se de uma forma ética de olhar para a educação e para os sujeitos implicados nela. Compreendendo ética aqui, com e a partir de Foucault, como a prática refletida da liberdade (Foucault, 2004). E é desse lugar que vamos refletir e olhar para as práticas escolares que seguem.

LOCALIZAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA PESQUISA

No contrafluxo do modelo educacional da tradição moderna, buscamos em nossas pesquisas outras formas de olhar para a educação, pistas que borrem a lógica de formar e formatar sujeitos disciplinados e obedientes. Para isso, alinhamo-nos aos estudos pós-estruturalistas e à filosofia da diferença na tentativa de decolonizar olhares acerca dos discursos que vem se instituindo na contemporaneidade sobre o que é e para que serve uma escola, mas também sobre quem é o sujeito da experiência. Mais especificamente, procuramos, nas dobras daquilo que acontece na escola em questão, experiências permeadas por afetos que potencializam os encontros e as relações que ali acontecem em sua forma mais pulsante e/ou insurgente possível.

Em busca de tais evidências, utilizamos como material analítico duas práticas oportunizadas em oficinas que acontecem na escola inserida nesse contexto socioeducativo. São elas:

  1. Monólogo organizado para uma mostra de talentos; ocorrido na escola em meados de 2018; quando um aluno (Petrick, 18 anos), cursando o primeiro ano do ensino médio, encenou com uma música e com o clipe da artista Pabllo Vittar - Indestrutível.

  2. Videoclipe: Letra de um rap Sonho de liberdade - produzido em parceria com um projeto de extensão da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS). Ao todo, envolveramse no projeto em torno de 20 adolescentes, com idades entre 15 e 18 anos, que à época cumpriam medida socioeducativa em meio fechado, e frequentavam a escola inserida na unidade.

Para problematizar e pensar o que pode uma escola, nos aliançamos às análises empreendidas por Foucault em seus últimos cursos sobre as tecnologias do eu e os modos de subjetivação que governam os sujeitos. Durante a proposição de análises sobre o eixo ser-consigo, localizada a partir do Curso do Governo dos Vivos do Collège de France (1979-1980), Foucault faz um deslocamento do eixo saber-poder para o governo do homem pela verdade, quando o autor desvia sua atenção e suas problematizações para o sujeito, e não mais para o poder, como até então fizera. O autor destaca que para distinguir a posição teórico-prática da não necessidade de poder como princípio de inteligibilidade do próprio saber, fará um jogo de palavras, propondo então uma espécie de anarqueologia (Foucault, 2014a, p. 73).

Assim, a partir desse curso Foucault analisa com maior ênfase não mais a relação saberpoder, e sim os modos de subjetivação operados por regimes de verdade aos quais os sujeitos são submetidos e pelos quais devem buscar a sua verdade para, a partir dela, exercer sobre si o autogoverno. Nesse último eixo foucaultiano, que alguns chamam de Foucault da ética (Foucault, 2014a) procura entender como, na civilização ocidental, estabelecem-se relações entre o governo dos homens pela manifestação da verdade na forma de subjetividade. Relações essas, que segundo o autor, são uma série de prescrições morais, as quais vão dar o tom da história moral do ocidente, produzindo como efeito uma subjetividade ocidental conduzida por uma série de normas.

Contudo, na contramão desse modo de vida normatizado e moralmente organizado, o autor argumenta que sempre é possível viver de forma mais ética, de encontro aos padrões sociais, contrapondo-se aos dispositivos biopolíticos da atualidade. E olhar para as práticas oportunizadas e potencializadas na escola foco deste estudo, inserida no sistema socioeducativo, a partir do que Foucault chamou de anarqueologia, é compreender que sempre há possibilidades de ruptura, mesmo que por pequenas frestas, que vem de encontro aos discursos que ditam quem tem o direito de existir e como devem viver em sociedade. Diante disso, buscamos, pelos anúncios dos modos de subjetivação empreendidos nas relações escolares vivenciadas e manifestas por meio das oficinas, evidenciar recorrências das possibilidades de contracondutas por parte de um coletivo que se constitui através de afetos, que se encontram e que assim evidenciam os desejos por outras formas de se pensar e fazer escola.

ENTRE A SUJEIÇÃO E AS CONTRACONDUTAS, O QUE PODE UMA ESCOLA?

Trata-se ao contrário de pôr o não-poder ou a não-aceitabilidade do poder, não no fim do empreendimento, mas no início do trabalho, na forma de um questionamento de todos os modos segundo os quais se aceita efetivamente o poder. Em segundo lugar, não se trata de dizer que todo poder é ruim, mas de partir do ponto de que nenhum poder, qualquer que seja, é de pleno direto e não é absoluta e definitivamente inevitável. (Foucault, 2014a, p. 72)

De acordo com Foucault (2016) o eu é um longo processo de subjetivação que nos conduz a um modelo universal de homem moderno, através de procedimentos que o autor nomeia como tecnologias do eu ou técnicas de si (Foucault, 2010, 2014a, 2016). Assim, a relação do sujeito consigo mesmo se torna alvo de técnicas que nos conduzem e fazem com que nos compreendamos como sujeitos universais e, como tais, devemos seguir os padrões sociais (e, em geral, cristãos) considerados adequados. Para o autor, essas técnicas incitam uma espécie de conversão, subjugando, assim, existências tidas como marginalizadas. Tais técnicas levam a crer que há apenas uma forma adequada de viver em sociedade, que defende como princípios a obrigação do casar, ter filhos, constituir família, consumir, produzir, e não menos importante, manter-se fiel a tais princípios. Nesses processos, compreendemos que a escola tem um papel fundamental, pois é através dela que muitas técnicas de subjetivação voltadas a esses fins são colocadas em operação.

Desse modo, parece óbvio dizer que a educação escolarizada dentro da instituição socioeducativa entra como forte aliada das estratégias de condução das condutas dos indivíduos, pois se entende que é a partir de práticas aplicadas pela escola que será possível conduzir os sujeitos dentro de um padrão de comportamento, com a pretensão de que eles desejem uma vida normativa e moralmente adequada. Práticas essas que sistematicamente produzem os objetos de que fala e, assim, determinam os lugares que cada sujeito deve ocupar na sociedade.

Contudo, ao analisar as experiências que vem se constituindo, especialmente nas práticas analisadas nessa pesquisa, percebemos um movimento de ruptura com esse modelo normativo e modelador das condutas. São anúncios que dizem da possibilidade de borrar esse padrão, quando os alunos são instigados a se experenciarem de forma ética, tendo espaço para escuta, compartilhamento de suas vivências, manifestação de seus interesses e de seus anseios, o que vai muito além de demarcar as dificuldades e as fragilidades dessas vontades. E isso é possível, segundo Larrosa (2022), quando suspendemos o automatismo da ação e cultivamos a arte do encontro.

Uma escola estadual que segue determinações de sua mantenedora4, atendendo em média 35 alunos5, com aulas regulares de segunda a quinta-feira em turmas na sua maioria de Educação de Jovens e Adultos (EJA), além do Ensino médio. Essa instituição, inserida no CASE, em meados de 2015, abre espaço para práticas oficineiras às sextas-feiras, com propostas diversificadas, tendo sido ofertada desde oficinas de jogos pedagógicos, psicossociais, artísticas, entre outras tantaS. Tais práticas vêm ocupando lugar de destaque, mais especificamente desde 2018, quando se muda para o anexo e se retira da vigilância do panóptico6. Desde então, é possível visualizar que a escola subverte a lógica do que supostamente é um espaço (socio)educativo, sem que nela se perceba esses movimentos de subversão. E, talvez por isso mesmo continue, cada vez mais, a subverter o padrão normativo de um espaço, a priori, vigilante, punitivo e disciplinador.

Compreendemos que esse movimento é possível quando a escola se abre ao saber da experiência (Larrosa, 2022), um saber que se opõe ao que entendemos por conhecimento científico, pois é um saber que não se refere com dar a ver ou ensinar ao sujeito a verdade do que são as coisas, mas do sentido (ou do sem-sentido) do que nos acontece. Trata-se de pensar a experiência como “[...] uma forma singular de estar no mundo, que é por sua vez ética (um modo de conduzirse) e estética (um estilo)”. (Larrosa, 2022, p. 32).

Nessa esteira observamos que algumas práticas possibilitam ações reflexivas, que formam e transformam o sujeito da experiência, permitindo movimentos de contracondutas por parte dos sujeitos/alunos que fazem parte desse contexto. Insurgência de si que acionam micro revoluções que, acreditamos, proporcionam aos envolvidos o desejo de lutar por uma existência mais digna, menos invisível e precarizada, que os levem a refletir sobre algumas razões, como sobre a razão pela qual ocupam determinado lugar na sociedade - lugar esse marcado por questões de gênero, de classe e de raça. As contracondutas, conforme Foucault (2009), questionam o estatuto do indivíduo e, por um lado, tendem a afirmar o direito de ser diferente, sublinhando tudo aquilo que torna os sujeitos verdadeiramente distintos e, por outro, contrapõem-se a tudo que separa um indivíduo de outro, fragmenta a vida comunitária e acaba forçando-o a se voltar para si mesmo, ligando-o à sua própria identidade de forma coercitiva.

Masschelein e Simons (2019) defendem que é necessário pensar a escola dentro de si mesma, num movimento coletivo e suspenso. E, embora isso pareça utópico, entendemos que isso é possível quando mudamos o foco do nosso olhar, abrindo-nos à escuta, atentando para as existências múltiplas que a constituem e para as experiências que se dão no dia a dia, como um acontecimento vivo, que se movimenta no entre desse coletivo de vidas inquietantes. E é esse movimento que pode potencializar e fortalecer as relações tão fragmentadas pelo individualismo contemporâneo.

Entendemos que na escola e seu movimento de suspensão podemos possibilitar experiências que provoquem um exercício ético sobre si, levando os indivíduos a uma transformação no sentido singular da palavra. Nessa direção, passamos a seguir as análises de duas práticas produzidas no formato de oficinas, que ocorreram a partir da aliança CASE e escola, e através das quais é possível afirmar que, ao considerarmos o ato educativo como um processo aberto - e que os sujeitos envolvidos nesses processos não são estáticos, mesmo que a pretensão estatal seja o assujeitamento universal e absoluto desses - sempre é possível que, a partir desses processos, os sujeitos se arrisquem a se relacionar de uma forma mais ética consigo e com o mundo.

PARA ALÉM DA SOMBRA DA VIGILÂNCIA, A ESCOLA...

[...] a história dos alunos difíceis que perseveraram e tem êxito contra todas as probabilidades e conselhos; a história do professor cujo simples comentário toca profundamente um aluno e o mantém frequentando a escola; o aluno que, de repente se torna interessado e se eleva acima de si mesmo. Do ponto de vista estatístico, esses são os forasteiros não significativos. Mas razão pela qual eles continuam a nos atrair é porque essas histórias expressam a singularidade da própria escola. Somos sacudidos nos nossos sentimentos e, de repente, vemos que o que uma vez pensamos ser um fato inabalável ou um dado natural era, na verdade um preconceito (Masschelein, Simons, 2019, p. 72, grifo nosso).

Essa é a história de uma escola e de seu coletivo, que em conjunto com seus forasteiros, foi criando pequenas fissuras em um espaço que, à primeira vista, nos parece vigilante e engessado. Abrindo-se às imprevisibilidades das experiências singulares para além do currículo predeterminado pelas diretrizes regulamentares de cada etapa de ensino, movendo-se assim ao desconhecido. Demorando-se nos detalhes do que não pode ser calculado e nem quantificado, conduz seu coletivo na direção de um exercício reflexivo, ético e quiçá estético.

Em meados de 2019 foi produzido um videoclipe - Sonho de liberdade, a partir de uma oficina, que ocorreu durante o recesso escolar, havendo a criação e a gravação deste produto por um grupo de alunos da escola, juntamente com o projeto de extensão da UFSM - Estúdio de Criação. Na ocasião, os oficineiros não trouxeram previamente o que esperavam dos alunos envolvidos, e os convidaram a participar de uma produção audiovisual, que seria feita a partir do que eles próprios (os alunos) desejariam encenar e verbalizar. Os mediadores apenas mostraram técnicas específicas para chegar ao produto final como: voz, entonação, canto, rima, efeitos visuais etc. Assim, a história deveria ter início, meio e fim, mas o recheio desse produto quem deveria fazer eram os alunos participantes.

O videoclipe intitulado Sonho de liberdade, construído e escrito pelos alunos envolvidos, objetivou mostrar o dia a dia dos adolescentes ao som de um rap escrito por eles, cujos excertos da letra podem ser lidos abaixo. Tal rap, além de relatar o cotidiano na unidade, traz algumas reflexões sobre o que eles pensam dos atos cometidos, seus sentimentos nesse período de internação e o que esperam de si quando forem liberados.

Tabela 1 Transcrições do Rap: Sonho de liberdade 

[...] Polícia chega
Não dá pra fugir nem correr
Ou é me entregar ou vai ser morrer
Algemado e a mina chorando
Dou um beijo nela e na VT eu vou chegando [...]
[...] Olha a portiola
Mesma cena todo dia
Faço um crochê
Minha mente é magia
Penso na minha vó
Que me fazer sorrir
Vou secar o choro e me reconstruir
Meu futuro, doutor/veterinário
Pra mim nem pro meu filho um bom cenário
Dá motivo pra coroa se alegrar
Quando tiver lá fora penso em trabalhar
Terminar os estudos
Pra um futuro melhor
Pra família se orgulhar [...]
[...] Logo que acordo tem café e pão com bah
Não vejo a hora do fim de semana começá
Pra visita chegá e eu poder me alegrá
Pra fazer a pena amenizá [...]
Pra mim e meus irmãos
Peço o nosso alvará
Aqui o filho chora e mãe não tá pra vê
Minha coroa tá no céu, meu pai onde tá você? Meu filho tão pequeno E eu aqui preso...
Quanto mais penso mais fico com medo
Já não sei o que fazer
Nessa Fase, nesse Case
17 de idade
Quero sair daqui e me reconstruir [...]
A Fase é uma fase na vida da gente
Não é pra pior, o melhor tá pela frente [...]
Eu penso no futuro
Sair e não ficar atrás do muro
Antecipar, virar, tente
O meu futuro a Deus pertence [...]
Sempre fui vaso ruim de quebra
Mas rachei e tô tentando consertar
Penso em liberdade todo dia
Penso na coroa, penso na família [...]
No dormitório só mais uma dose
Seguir em frente, lidar com as neurose
Liberdade bate na janela [...]
Tô aqui na FASE, só penso em liberdade
Sempre sigo em frente com muita humildade
Sei que a pena já passou pela metade
Sigo firme, não sou nenhum covarde
Um dia a liberdade vai chegar
Orgulho pra minha coroa eu vou ter que dar
E tô cansado de vê-la chorar [...]
Do portão pra fora tem que estar esperto
Senão pelos mão branca o chumbo corre reto
Minha liberdade dinheiro nenhum paga
Eu quero vida honesta
Eu queria estar em casa
Mas nem tudo é um conto de fadas... de fadas.
É irredutível andar todo dia pensando no futuro
Mas o futuro é crítico com a corrupção desses políticos
Que falam que bandido mata
Mas quem mata são de terno e gravata.
Na banqueta da minha cela vejo vários indo embora
Eu aqui privado pensando na minha hora [...]

Fonte: Arquivo da escola

Ao analisar os anúncios presentes na letra do rap é possível pensá-los a partir da experiência singular, contingente, que nos passa e a partir da qual algo nos acontece (Larrosa, 2022). Olhar para as práticas desse lugar de ensaio, muitas vezes improvisado (mesmo que haja um roteiro prédeterminado) é o que a torna única e extraordinária, pois elas não poderão ser repetidas ou ensaiadas da mesma forma outra vez. São experiências que não miram em expectativas ou potencialidades, elas simplesmente acontecem, e porque não poderão ser repetidas é que se tornam singulares, afetivas e capazes de afetar cada um dos sujeitos de uma forma única.

O lugar no qual a subjetividade ensaia a si mesma, experimenta a si mesma, em relação à sua própria exterioridade, àquilo que lhe é estranho. O ensaio como modo de escrita, de pensamento e de vida, no qual o sujeito faz a experiência de sua própria contingência e de sua própria transformação. (Larrosa, 2004, p. 37-38).

E é desse ponto de vista do ensaio, da experiência que oportuniza um exercício ético, possibilitando movimentos de contracondutas, que leva os sujeitos a olharem para si, que destacamos as práticas analisadas aqui. Acreditamos que dessa forma seja possível para esses alunos refletirem sobre a condição de estar privado de liberdade, sobre os atravessamentos que os afetam e, enfim, olhar para si e para sua própria experiência, transformando-a.

Para Pagni (2020) é essa experiência de uma impossibilidade sentida no corpo o que faz vibrar e instaura uma vontade, que uma vez consciente os encoraja a uma ruptura com o que incomoda. Poderíamos dizer que a escola, ao abrir as portas para tais práticas, movimenta micro revoluções, possibilitando aos envolvidos uma desconstrução, para pensar e querer para si uma existência outra. A escola contemporânea, embora seja conteudista e normativa, quando se move nessa direção e se desloca às margens do programado, torna-se um terreno fecundo para que coisas outras habitem nela. Algo ainda sem nome, sem corpo, mas múltiplo, em que as fissuras que surgem nos dão pistas sobre outras formas de se fazer escola e de ser professor/a nesse espaço. Desse modo, revelam-se linhas de fuga ainda não experimentadas, que considerando a multiplicidade a partir de sua função criadora, mostra-nos novas rotas, ainda não pensadas, ainda não criadas (Deleuze, Guattari, 2011).

E novas rotas são possíveis quando a escola fomenta um espaço para o tempo presente, quando os alunos “[...] podem deixar para lá todos os tipos de regras e expectativas sociológicas, econômicas e relacionadas à cultura” (Masschelein, Simons, 2019, p. 35). Assim, assegurar a possibilidade de demorar-se nos meandros desse tempo presente, suspendendo o peso dos conteúdos escolares e das regras sociais, é o que torna as experiências vibrantes e potentes. Do ponto de vista pedagógico a partir do qual socialmente significamos a escola, é comum ouvirmos dizer que, apesar de interessantes, essas não são experiências potencialmente relevantes, pois não têm utilidade para as intencionalidades mercadológicas e acadêmicas da escola moderna. Entretanto, corroboramos o pensamento de Nuccio Ordine (2016, p. 19) quando ele manifesta:

[ é ] nas dobras daquelas atividades consideradas supérfluas que, de fato, podemos encontrar o estímulo para pensar um mundo melhor, para cultivar a utopia de poder atenuar, se não eliminar, as injustiças que se propagam e as desigualdades que pesam (ou deveriam pesar) como uma pedra em nossa consciência. Especialmente nos momentos de crise econômica, quando as tentações do utilitarismo e do egoísmo mais sinistro parecem ser a única tábua de salvação, é preciso compreender que exatamente aquelas atividades que não servem para nada podem nos ajudar a escapar da prisão, a salvar-nos da asfixia, a transformar uma vida [...].

Nessa direção, é possível acreditar que essa escola, compreendida para além de seus fins utilitaristas, enquanto um espaço e um tempo de suspensão, como defendem Masschelein e Simons (2019), abre pequenas fendas para que experiências abertas e contingentes aconteçam e, segundo os autores, é aí que a magia do escolar acontece, e que pode despertar o interesse e a atenção até mesmo daqueles forasteiros.

Petrick7, aluno que encenou o monólogo descrito abaixo (cena 1) foi um desses forasteiros. Considerado estranho e, por vezes, agressivo, incidia sobre ele suspeitas de ser público-alvo da educação especial.

Cena 1: Petrick, 18 anos. Sobe no palco com o rosto coberto por tinta - metade do rosto branco, metade do rosto preto. Usa bermuda até os joelhos da cor preta e camiseta branca. Carrega consigo uma caixa preta grande com uma folha branca escrito Lixo. Dirige-se ao centro do palco. Abre a caixa e retira algumas folhas de ofício, organiza-as em círculo ao seu redor, com as palavras voltadas para cima. Risadas na plateia.

Senta-se no meio do círculo. Uma música instrumental toca ao fundo, enquanto no projetor inicia-se um clip (Indestrutível de Pabllo Vittar). Mais risadas. Pega uma folha e começa a ler os escritos pausadamente. A letra da música Indestrutível. Fala sobre lágrimas e feridas. No projetor o clip vai passando. Silêncio na plateia. Ao final, dados estatísticos sobre mortes por homofobia. E, por fim, convida a plateia a juntar-se a ele e jogar no lixo os preconceitos. São as palavras escritas nas folhas ao seu redor: homofobia - racismo - sexismo - etc. Alguns colegas e outras pessoas que assistem, levantam-se e se dirigem até ele, pegando as folhas e aceitando o seu convite para jogar fora tais preconceitos.

A cena descrita acima foi apresentada em um evento nomeado I Mostra de Talentos no final do ano de 2018. Encaminhados pelas oficineiras, os alunos da escola interessados em apresentar algum número (poderia ser uma dança, uma música, uma encenação), deveriam procurar um(a) professor(a) para que esse lhe orientasse para a apresentação. Petrick solicitou auxílio, desejava falar sobre homofobia, preconceito esse que ele conhecia bem devido à sua orientação sexual. A ideia da música e da lixeira para jogar fora os preconceitos foi toda pensada por ele. Para causar o impacto desejado, decidiu-se que seria mais interessante recitar a música Indestrutível8, de Pabllo Vittar, fazendo dela uma poesia.

Ficou evidente nesse monólogo que o aluno buscou a todo momento assumir as suas verdades, o que se sabe é doloroso em qualquer lugar, haja vista a sociedade normalizadora, preconceituosa e moralista em que vivemos. Mas, nesse ambiente em que ele estava internado no momento, a homossexualidade é um assunto interditado, pois é um lugar em que a masculinidade precisa ser reafirmada a todo instante, e onde não é permitido demonstrar fraquezas. Mesmo assim, Petrick não se intimidou e assumiu os riscos das suas verdades, o que evidencia o exercício de uma ética de si que aciona a necessidade de movimentar e provocar o pensamento desse coletivo do qual ele fazia parte e, ao contrário de ter demonstrado uma fraqueza, Petrick manifestou a coragem da verdade9.

De acordo com Foucault (2004), é a partir do cuidado de si que será possível uma existência mais atenta ao outro também. E a escola, quando oportuniza aos seus alunos que se expressem diante das suas inquietações, abre espaço para a escuta cuidadosa, possibilitando a sua comunidade escolar um viver mais ético. E é esse cuidado, essa atenção e respeito ao outro que faz com que os sujeitos envolvidos nesses processos se permitam recusar o que são, para que, assim, seja possível questionar o modo como historicamente foram/fomos conduzidos e constituídos.

É nesse encontro de corpos, nessa dimensão, que o outro agencia em si sua transformação mais profunda e o trabalho que suscita adensa a subjetividade, promovendo uma expressividade ética que é, em si mesma, na sua performatividade pública, política. E, na escola, esse encontro se dá para além do tempo regulamentado, do saber e do espaço disciplinar, do currículo que capacita, para se fazer presente em sua margem, por vezes, como acontecimento. São corpos deficientes, afrodescendentes, transgêneros, femininos que produzem essa invocação de deslocamento, de descentramento, de dessubjetivação que agencia um trabalho de si dos sujeitos indelegáveis, dos atores das escolas, daqueles que não suportam mais o insuportável e se insurgem contra a ordem (im)posta, denunciando seu anacronismo, mas também anunciando outros processos de subjetivação, de formas de vida singulares e de existência comuns. (Pagni, 2020, p. 56).

Dessa forma, asseguramo-nos de que a cena 1 tem a força de provocar seu coletivo a um movimento outro, crítico, reflexivo e, por isso, disruptivo, pois traz consigo uma recusa ao modelo universal de sujeito. E é possível entender esse movimento do aluno como uma contraconduta, pois ela acontece num local onde as relações de poder são fortes e evidentes, mas também porque foi uma prática exercida na coletividade. De acordo com Foucault, as práticas de resistência são movimentos coletivos, e por isso a escola é um espaço potente. Como nos explica Marinho:

Como a subjetividade é um fio central de constituição e exercício de poder na governamentalidade na condução das condutas, a educação, sendo uma das atividades que se exerce sobre esse fio, se torna um elemento central na formação de contracondutas. E nesse âmbito, o cuidado de si se mostra um ethos importante nessa batalha. A educação como formação de contracondutas, como recusa da educação normativa e da pastoral da obediência que ronda a educação. (Marinho, 2017, p. 256).

Quando o aluno tensiona e nos provoca a refletir sobre os preconceitos sociais, os quais ele próprio já sofreu, compreende-se que há um movimento de mostrar o seu eu indelegável, que conforme Gros (2018), é o sujeito ético-político. Ao relacionar o cuidado de si ao exercício socrático do exame da consciência, Gros (2018) diz que é o pensamento contemplativo e questionador, enquanto um trabalho crítico, que nos faz desobedecer, impedindo-nos de recitar receitas prontas, reproduzir fórmulas aprendidas e de aceitar as evidências passivamente.

É esse exercício crítico do pensamento que nos faz confiar nas hesitações da consciência e desconfiar das verdades que nos foram vendidas historicamente como absolutas: o casamento hetero e monogâmico, a hegemonia branca, as relações afetivas heterossexuais normativas. Enfim, uma série de normas sociais que localizam alguns em detrimento de outros, separando-os socialmente entre normais/anormais, trazendo como efeito os anormais situados como minorias e, por isso, alvos de violência e exclusão. Para Gros (2018), obedecer é uma renúncia que sacrifica o si ético, e nesse sentido, desobedecer seria resistir a esse modelo social instituído. O que é possível, conforme o autor, a partir do momento em que há a responsabilização indelegável de todos e de cada um, traçando linhas de fuga que efetivamente nos levem a uma forma de vida comum e afirmativa, em que todas as vidas sejam respeitadas em suas singularidades.

Nesse sentido, pensar a escola num entre-lugar, entre a sujeição e as contracondutas, ou enquanto um momento de suspensão sem um fim utilitário, que permita aos seus alunos exercícios éticos sobre si mesmos e sobre suas histórias de vida, a partir dessas experiências que se dão no cotidiano escolar e que podemos relacionar ao que Foucault chama de viver de forma ética é potencializar nos sujeitos implicados esse eu indelegável. E esse movimento tem uma potência transformadora tanto de forma individual, em cada sujeito afetado por essas provocações, quanto no coletivo social, que tem a possibilidade de se movimentar em outra direção, furando a bolha neoliberal que achata cada vez mais os grupos minorizados.

PARA CONTINUAR A MOVIMENTAR O PENSAMENTO

Diante dos possíveis anunciados nessa pesquisa, e considerando a disponibilidade de abertura da instituição em questão, é possível afirmar que mesmo que nossas escolhas, nosso comportamento social e a maneira como nos relacionamos sejam conduzidas por toda uma trama discursiva que indica o que podemos ou não assumir como verdade, sempre há a possibilidade de escapes. Ainda que vivamos em um sistema normativo que determina o que podemos ou não ser, como devemos ou não guiar as nossas existências, e quais desejos podemos ou não assumir, algumas técnicas de si operadas na escola mostraram possibilidades outras para as existências e seus encontros. Possíveis esses extremamente potentes para que os sujeitos envolvidos nessas práticas se experienciem para além - ou às margens - desses domínios morais que regem a vida coletiva e que ditam quais formas de vida são passíveis de investimentos, quais merecem ser vividas em sua plenitude ou não.

Visualizamos as muitas possibilidades que a escola dispõe quando se autoriza a suspender seus fins utilitários, permitindo experiências outras que levem os sujeitos implicados a tensionar todo um conjunto de regras morais, que os colocam à margem, classificando-os como anormais sociais. Ao terem a possibilidade de recusar o que são, podem escolher novos caminhos e buscar outras existências para si e para a sua comunidade. Consideramos que uma escola que oportuniza/convida o aluno ao exercício do pensamento por si mesmo, produz um convite ao pensamento crítico, levando-o a questionar as estruturas sociais que o trouxeram até aqui. Poderá ser nesse percurso que eles terão condições de suspeitar do papel social que ocupam - anormais sociais - tendo, assim, a possibilidade e a vontade de recusá-lo.

Pensar a escola outra no interior da escola mesma é uma forma de pensar a transformação da escola, no fazer do dia a dia do trabalho pedagógico (Gallo, 2015, p. 442). E é essa experiência, observada nas práticas em questão, que movimentam um exercício ético em cada um e têm a potência de formar vários eu’s indelegáveis, que fazem da escola e dos sujeitos que dela participam efetivamente um lugar que de fato pode ser transformador.

Dessa forma, finalizamos com a defesa da escola como um espaço de possibilidade de exercitar o pensamento e, assim, querer para si uma forma de vida ética, pautada no comum, pois acreditamos de fato que essas experiências abertas e contingentes são potenciais agentes de transformação, não somente para os alunos, mas para todos os envolvidos. Com efeito, há nesses processos movimento vivo de afetos curto circuitando as relações e dando lugar ao exercício do cuidado de si e do cuidado com os outros.

1De acordo com a Lei n. 12.594 de 2012 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), o estado é responsável pela administração, organização e manutenção das instituições de privação de liberdade para adolescentes envolvidos em atos infracionais; sendo responsável por definir, também, a forma como esses são nomeados. No RS, as unidades regionais são chamadas de Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE), os quais são administrados por uma Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE/RS).

2A presença de instituições escolares se torna obrigatória em unidades socioeducativas a partir de 2012 com a Lei n. 12.594 que institui o SINASE.

3As contracondutas são tema das discussões produzidas por Michel Foucault na última fase de seu pensamento, mas em Segurança, Território, População (2008, p. 266) é possível encontrar elaborações ainda provisórias, ou mal construídas como argumenta o filósofo, para definir contraconduta como a “[...] luta contra os procedimentos postos em prática para conduzir os outros”.

4No Rio Grande do Sul, a mantenedora das escolas situadas em Centros de Atendimentos Socioeducativos é o estado, portanto, a Secretaria de Estado de Educação (SEDUC/RS).

5A escola atende todos os adolescentes internados no CASE, o qual tem capacidade para 40 adolescentes entre 12 e 18 anos, todos do sexo masculino.

6Para Foucault, o panóptico proposto por Bentham no século XIX é uma composição arquitetural do modelo instaurado na peste, planejado para ser uma estrutura prisional, onde os indivíduos ficam em espaços individuais, então individualização para evitar contato com os outros e, assim, evitar amotinamentos, doenças e transgressões. Tem como objetivo principal uma vigilância constante a partir de uma torre central, de onde é possível visualizar e vigiar sem ser visto todos os espaços e todos que circulam nesse ambiente, tornando possível um poder pela disciplina e não pela força. De acordo com Foucault, as escolas, hospitais e fábricas seguem o mesmo modelo panóptico, com um sistema vigilante, individualizante e corretivo. Dessa forma: “Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado” (Foucault, 2014, p. 199).

7Nome fictício.

8Disponível em https://youtu.be/O8B72HzTuww.

9Em A coragem da verdade (2011) Foucault traz o conceito de parresía como uma prática de dizer verdadeiro. Um valor positivo que consiste em dizer a verdade, sem dissimulação, sem mascarar essa verdade em detrimento aos padrões sociais. Trata-se de um ato de coragem, que se constitui também como uma contraconduta ética do sujeito sobre si.

REFERÊNCIAS

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Recebido: Setembro de 2023; Aceito: Outubro de 2023

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