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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.75 Rio de Janeiro oct./dic 2023  Epub 26-Dic-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.79081 

“Vocês são importantes…”: questões de alteridade e diferença nas políticas curriculares

A INFÂNCIA COMO PROJETO PEDAGÓGICO EM MEMÓRIAS DA DITADURA MILITAR

CHILDHOOD AS A PEDAGOGICAL PROJECT IN MEMORIES OF THE MILITARY DICTATORSHIP

LA INFANCIA COMO PROYECTO PEDAGÓGICO EN MEMORIAS DE LA DICTADURA MILITAR

Raquel Gonçalves Salgado1 
http://orcid.org/0000-0002-8730-3025; lattes: 1165554868380123

Raquel Dias Amaro2 
http://orcid.org/0000-0002-9673-5946; lattes: 2590782733284729

Dantiely Martins Ferreira3 
http://orcid.org/0000-0001-5032-1505; lattes: 4963213230821903

1Universidade Federal de Rondonópolis

2Universidade Federal de Rondonópolis

3Mestrado em Educação em andamento na Universidade Federal de Rondonópolis


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar a infância como projeto educativo na ditadura militar por meio das memórias atravessadas por marcadores sociais de diferença de pessoas que viveram a infância ou parte dela nesse momento político do país. Nessas memórias, ressaltam-se os sentidos sobre as infâncias nos contextos educativos de instituições sociais, como a família e a escola, em consonância com o projeto de desenvolvimento e progresso da nação em funcionamento durante toda a ditadura militar. Convém, portanto, questionar: quais são os processos educativos para a infância durante a ditadura militar brasileira? Que infâncias, nas suas diferenças, foram sufocadas pelo projeto educativo da infância normativa? O contexto destas indagações é uma pesquisa com foco nas memórias de infância da ditadura militar de pessoas, com idades entre 50 e 70 anos, que, no presente, estão vinculadas a sindicatos ou movimentos sociais voltados às questões de gênero, raça e sexualidade. Discute-se que essas memórias convergem em pedagogias de moralização e das normativas de gênero como projetos da nação brasileira para uma geração de crianças. Por outro lado, nota-se que, mesmo diante de um projeto pedagógico de silenciamento da infância pela via da produção do desaparecimento social da repressão política, há os deslocamentos e as brechas para a existência de sentidos e subjetividades que seguem o contrafluxo da educação normativa vigente à época.

Palavras-chave memórias de infância; ditadura militar; pedagogias da infância; marcadores sociais de diferença.

Abstract

This article aims to analyze childhood as an educational project during the military dictatorship through the memories crossed by social markers of difference of people who lived their childhood or part of it during this political moment in Brazil. In these memories, the meanings about childhood in the educational contexts of social institutions, such as family and school, are highlighted, in line with the nation's development and progress project in function throughout the military dictatorship. It is therefore worth asking: what are the educational processes for childhood during the Brazilian military dictatorship? Which childhoods, in their differences, were suffocated by the educational project of normative childhood? The context of these inquiries is a research which focus is the childhood memories of the military dictatorship of people, aged between 50 and 70, who, at present, are linked to unions or social movements focused on issues of gender, race and sexuality. It is argued that these memories converge in pedagogies of moralization and gender norms as projects of the Brazilian nation for a generation of children. On the other hand, it is noted that, even in the face of a pedagogical project of silencing childhood through the production of the social disappearance of political repression, there are displacements and gaps for the existence of meanings and subjectivities that follow the counterflow of normative education in force at the time.

Keywords: childhood memories; military dictatorship; childhood pedagogies; social markers of difference.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar la infancia como proyecto educativo en la dictadura militar por medio de las memorias atravesadas por marcadores sociales de diferencia de personas que vivieron la infancia o parte de ella en ese momento político del país. En esas memorias se resaltan los sentidos sobre las infancias en los contextos educativos de instituciones sociales, como la familia y la escuela, en consonancia con el proyecto de desarrollo y progreso de la nación en funcionamiento durante toda la dictadura militar. Conviene, por lo tanto, cuestionar: ¿cuáles son los procesos educativos para la infancia durante la dictadura militar brasileña? ¿Qué infancias, en sus diferencias, fueron sofocadas por el proyecto educativo de la infancia normativa? El contexto de estas indagaciones es una investigación con foco en las memorias de infancia de la dictadura militar de personas, con edades entre 50 y 70 años, que, en el presente, están vinculadas a sindicatos o movimientos sociales volcados a las cuestiones de género, raza y sexualidad. Se discute que esas memorias convergen en pedagogías de moralización y de las normativas de género como proyectos de la nación brasileña para una generación de niños. Por otra parte, se observa que, incluso frente a un proyecto pedagógico de silenciamiento de la infancia por la vía de la producción de la desaparición social de la represión política, hay los desplazamientos y las brechas para la existencia de sentidos y subjetividades que siguen el contraflujo de la educación normativa vigente a la época.

Palabras clave: memorias de infancia; dictadura militar; pedagogías de la infancia; marcadores sociales de diferencia.

INTRODUÇÃO

Não sem espanto as relações entre infâncias e ditadura militar no Brasil são marcadas pelo silêncio. Relatos sobre as violências contra as mulheres dissidentes do regime de exceção e seus filhos e filhas, em sessões de torturas imputadas a seus corpos diante das crianças, em torturas nos corpos das próprias crianças perante suas mães e pais, e até mesmo de mulheres grávidas que, devido a essas violências bárbaras, sofreram abortos, estão devidamente documentados no relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014). Para além desses registros, a documentação histórica cala-se diante de crimes diretamente praticados contra crianças e adolescentes no Brasil, embora haja vasta historiografia sobre crianças sequestradas nas ditaduras latino-americanas (Reina, 2019). O estranhamento desta constatação, mobilizado pela inquietude do problema e por uma inevitável incredulidade de que no Brasil não tenham ocorrido episódios dessa natureza, dado o registro de que os efeitos dos 21 anos de ditadura foram dos mais sangrentos do continente latino-americano, resultou no trabalho de pesquisa de Eduardo Reina (2019) sobre os 19 casos de bebês e crianças sequestradas durante esse regime, que deixam abertos os porões mais sombrios desse período do estado de exceção no país.

Regimes políticos notadamente totalitários não resguardam a vida das pessoas que escapam das inteligibilidades sob as quais se sustentam e se estruturam, nem mesmo a de crianças que, por serem qualificadas como sujeitos dependentes, inocentes e mais maleáveis a processos educativos disciplinares e moralizantes, poderiam ter certo álibi para viver. Entretanto, resta saber quem são essas crianças e o que representam no jogo de poder. Se a presença infantil se mostra como ameaça à continuidade do status quo, são acionados dispositivos de poder de eliminação desse outro-criança que não mais se enquadra no projeto de desenvolvimento e de planificação do futuro da nação. Procede-se, assim, o extermínio que Jorge Larrosa (1999) associou ao infanticídio de Herodes1 em contextos totalitários como um sintoma social do medo em relação ao nascimento e, portanto, à emergência do novo.

Este artigo propõe-se a analisar a infância como projeto educativo na ditadura militar por meio das memórias atravessadas por marcadores sociais de diferença, como gênero, raça, classe e território, de pessoas que viveram a infância ou parte dela nesse momento político do país. Nessas memórias, ressaltam-se os sentidos sobre as infâncias nos contextos educativos de instituições sociais, como a família e a escola, sobretudo aqueles relacionados aos ideários de uma infância modelar, em consonância com o projeto de desenvolvimento e progresso da nação em funcionamento durante toda a ditadura militar. Diante desta tarefa, convém questionar: quais são os processos educativos para a infância durante a ditadura militar brasileira? Que sentidos de infância se fazem vigentes naquela época? Que experiências de infância reiteram ou contestam o ideário da criança ideal-típica? Que signos dessa época se alinham aos processos educativos normativos ou assumem sentidos de transgressão? Que infâncias, nas suas diferenças, foram sufocadas pelo projeto educativo da infância normativa?

Não restam dúvidas de que o trabalho com as memórias da ditadura militar mobiliza dores e sofrimentos que ecoam das tragédias de um dos mais sangrentos períodos da história social e política do Brasil. O esforço de trazer à tona as memórias da ditadura militar no Brasil é assumido como um exercício do tempo presente que nos convoca a olhar para esse passado, na escuta atenta das vozes pretéritas que ainda ressoam na atualidade, mesmo tendo sido sufocadas. A memória, nessa perspectiva, não é o reservatório ou o inventário de acontecimentos e bens culturais, mas um exercício crítico e político de interpelação mútua do passado e do presente (Gagnebin, 2014). Como Walter Benjamin argumenta, a memória é tocada e movida pelos apelos e inquietações do presente: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como de fato foi. Significa apropriarse de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (Benjamin, 1985, p. 224).

O presente da vida política no Brasil mais recente, muito marcado pelo ressurgimento de políticas de exceção postas em curso pelo governo anterior de base militar, nos posiciona diante dessa necessidade de reminiscência, no sentido benjaminiano, dado o perigo de repetição do passado trágico. Presenciamos, recentemente, cenas no Brasil de apelos ao retorno da ditadura militar e de golpes diretos às instituições do Estado Democrático de Direito, como o Congresso Nacional, Senado Federal e o Supremo Tribunal Federal.

Ainda que o contexto sociopolítico da ditadura militar seja uma referência importante de análise, este não será o principal ponto de inflexão das memórias de infância, neste artigo, já que o tempo presente e a sua relação com esse passado são os eixos privilegiados de análise dessas narrativas. Nesse sentido, o argumento de Gagnebin sobre os interrogantes que o presente nos faz diante do passado mostra-se adequado: “Interroguemos menos sobre ‘aquilo que o passado teria ainda a nos dizer’ (será que realmente sempre tem algo a nos dizer?), mas sobretudo sobre o porquê do interesse do presente por este ou aquele evento do passado” (Gagnebin, 2014, p. 202, grifo da autora).

A abordagem metodológica e analítica assumida neste trabalho fundamenta-se na perspectiva das memórias de infância, ancorada em Benjamin (1985), que se afasta da presentificação, ou seja, da repetição de um passado perene no presente (Gagnebin, 2014). A dialogia entre esses tempos é atravessada pela intensidade da atualidade da memória que, mais do que lembrança de um acontecimento passado, aparece como uma imagem mnêmica disruptiva porque põe em xeque a narrativa dominante da cronologia da história.

Na esteira do pensamento benjaminiano, a infância é o tempo-espaço das memórias longínquas e que estão muito vinculadas à educação (Gagnebin, 2014). Narrar as memórias de infância implica em embrenhar-se nos escombros do passado, na tessitura de um texto-do-eucriança que, por mais que haja o esforço por manter a coerência e a linearidade entre o adultonarrador e a criança-narrada, este se torna inócuo porque a alteridade é o que marca a relação entre ambos. A criança, nas memórias narradas, é efetivamente um outro, distante, não apenas no tempo e no espaço do adulto que narra, mas também da narrativa, que não é a recuperação de um passado conservado, mas a criação de sentidos que se desenrolam com as indagações e os incômodos do presente e puxam os fios alheios que também participam da tessitura dessas memórias. O eu da narrativa é, portanto, despossuído ao ter a sua autossuficiência diluída no instante em que se desdobra em eu-autor-de-sua-própria-vida, posto em ação pelo outro (Butler, 2015).

O conjunto de memórias de infância em análise neste texto advém de uma pesquisa que contou com a participação de 7 mulheres e homens, sendo: 4 mulheres cisgêneras, brancas; 1 mulher cisgênera, negra; 1 homem cisgênero, branco; e 1 homem cisgênero, negro, todos/as com idades entre 50 e 70 anos. Quanto à sexualidade, todas/os se autodeclararam heterossexuais. Dentre essas memórias, há narrativas na versão escrita e oral, enviadas por e-mail ou mensagem de WhatsApp para as pesquisadoras. Convém esclarecer que, considerando as medidas adotadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a respeito da pandemia de Covid-19 que, na ocasião da pesquisa de campo, estava em franco avanço, optou-se por estabelecer contatos com os/as participantes da pesquisa por meios digitais (e-mail ou WhatsApp).

As memórias de infância no contexto da ditadura militar, entendidas como narrativas de um tempo passado que se fazem no presente, convergem nas pedagogias da disciplina, da moralização e das normativas de gênero como projetos da nação brasileira para uma geração de crianças.

INFÂNCIA COMO TEMPO E EXPERIÊNCIA DOS SCRIPTS NORMATIVOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE

A institucionalização do governo de exceção foi acompanhada por muita repressão, censura e silenciamento no âmbito educacional, tanto no ensino básico quanto nas universidades. O autoritarismo adentrou nos espaços educativos como forma de assegurar e perpetuar seus projetos políticos para o país, incentivando uma narrativa desenvolvimentista como motivo de orgulho patriótico e provocando uma ilusão social do crescimento econômico da nação.

Ao fazer o recorte dos atravessamentos de gênero, nota-se, a partir das narrativas reunidas na pesquisa, como há pessoas que escapam dessa obediência compulsória e da captura das normas e, por assim existirem, são identificadas como abjetas. Pois, apenas, em uma temporalidade distante da infância, passam a significar o que aconteceu no país durante a ditadura militar, com a quebra da imagem fictícia de uma nação em desenvolvimento, cultivada na infância, por meio da consciência do autoritarismo, do conservadorismo, dos danos e sequelas deixadas pelo estado de exceção.

[...] Então, quando entrei na adolescência, que comecei a ter contato com professores de História, que eram mais de esquerda e com um namorado 5 anos mais velho que eu e que também tinha mais informações, foi um grande choque pra mim. Eu tive uma grande crise familiar em relação aos meus pais, fiquei muito revoltada até, né? Por ter me sentindo enganada, por ter me sentido sendo educada para venerar e idolatrar um governo militar com características de ufanismo, quando, na verdade, havia toda uma história de autoritarismo e de violências de ditadura acontecendo. (Luciene, 57 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

[...] Sempre achei que não tinha sofrido a ditadura, que ela tinha passado a largo da minha vida, mas refletir sobre aqueles anos, hoje, é reconhecer que a vida não era fácil, não. Hoje sei que a falta de liberdade também me fez ser quem eu sou. Não fui torturada, mas não canto Hino com orgulho, não tenho amor pelo Brasil, não sei falar de pátria, não ensino nada disso para meus filhos. (Sheila, 53 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

No que se refere especificamente aos contextos escolares, a produção de corpos e subjetividades circunscritas por gêneros normativos aparece nas memórias de infância, demarcando a feminilidade para a maternidade e os afazeres domésticos, e a masculinidade para a sociabilidade, esportes, artes e leitura. Como exemplo, nas salas de aula, havia a separação entre meninos e meninas, e disciplinas, como práticas do lar, destinadas às meninas e práticas comerciais, aos meninos, como narra Paula:

Na questão de gênero, era tudo separado e binário, no banheiro, na sala de aula. Poderia sentar em qualquer lugar, mas a tendência era meninos de um lado e meninas de outro e era incentivado, mas, por exemplo, a gente tinha uma disciplina chamada “Práticas do Lar”, e a outra opção para quem não quisesse fazer essa, era “Práticas Comerciais”. Da minha sala de 45 alunos, só uma amiga minha foi para “Práticas Comerciais” que foi estudar contabilidade; eu e todas as outras meninas, que era mais de 20, fomos para a “Prática do Lar”, que era estudar sobre nutrição. (Paula, 51 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

Na memória de infância de Luiz Henrique, que morou com a avó na cidade para poder estudar, há elementos que enfatizam as atribuições de papéis de gênero.

Dessa ambiguidade houve dois traços derivados que podem interessar aqui. O primeiro deles foi o desenvolvimento de percepções, abordagens e práticas tidas como do universo feminino, uma vez que minha vó era costureira, com ateliê em casa, e também me envolvia nas tarefas que envolviam a casa, culinária, canteiros, chás, aviário, doces de safra, conservas... etc. Isso tudo me envolvia por interesse, mas especialmente para afogar a saudade. O segundo aspecto é que tornou precoce a sociabilidade, o estabelecimento de relações de qualidade com pessoas de idades e estratos sociais variáveis. Encontros da turma para dançar nas “[...] brincadeiras” aos sábados desde os 9 anos, vários esportes, jogos de rua na praça ou no “[...] campinho”, coral, banda do colégio, grupo de escoteiros, por aí vai... e leitura. (Luiz Henrique, 69 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

Nessa mesma lógica binarizante e patriarcal, o relato de Irene reporta-se a uma criança que foi impedida de frequentar a escola por ser menina, tendo como justificativa o reforçado discurso de que o lugar social da mulher é a casa e a sua função são os afazeres domésticos.

Quando vim para cá, é mais difícil ainda porque a gente foi diretamente para a roça quando chegou aqui no Mato Grosso. Aí, meu pai falava que aqui mulher não precisava estudar, que tinha que arrumar escola com meu irmão, porque mulher, serviço de mulher é lá dentro de casa, na cozinha. Mulher não estuda, não é isso? Meu pai falava e aí eu não ia para escola por causa que era longe a escola, né? Passar por dentro da mata para ir para escola e só ia os meninos. E as meninas, mulher não ia, porque meu pai não deixa, tá? (Irene, 68 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

Ademais, aparece, comumente, nas narrativas das/os participantes que frequentaram as instituições escolares, a presença da religiosidade atrelada ao ensino, convergente com uma conduta de caráter rígido, disciplinador, conservador, focado na moralização, nos bons costumes e no civismo. Paula, que estudou em uma escola católica, traz essas memórias:

Era uma escola rígida, disciplinadora, voltada para o cumprimento de regras e de normas. Todos os dias, antes de entrar para sala de aula, tinha que cantar o Hino Nacional, ficava em posição de sentido no pátio da escola, todas as crianças. Era obrigatório o uso de uniforme, uma vez ao mês tinha missa. [...] Toda uma doutrina escolar voltada no bom comportamento, na moral, nos bons costumes. [...] As questões morais eram muito presentes, o tamanho da saia da menina, o jeito do menino, se passou a mão na menina ou não, essas questões todas, assim, da sexualidade, das expressões corporais pelo viés da moralidade. Aí, ia para diretoria, ficava de castigo. Depois que acabou a palmatória, ainda colocava de joelho atrás da sala. (Paula, 51 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

Outrossim, a escola era o ambiente propício para se implantar mecanismos de enaltecimento ao militarismo como uma pedagogia masculinista posta em prática, desde a mais tenra infância, por meio de um conjunto de signos e rituais pautado na relação hierárquica, em que militares ocupam posições rígidas de poder e autoridade reiteradas por comportamentos de obediência e subalternidade da maioria da população. Essa pedagogia faz-se notar no uso das fardas e demais acessórios da indumentária militar como signos de poder; no canto obrigatório, nas escolas, dos hinos pátrios, sobretudo do Hino Nacional; na bandeira nacional como identidade patriótica; nos eventos de celebração à pátria etc. As participantes Maria Luiza, Luciene e Sheila reportam-se a memórias distintas sobre esse acontecimento social:

Aí, nós tínhamos sempre que participar dos eventos cívicos. Depois no ensino médio, eu estudava à noite, também tínhamos que fazer ensaio de marcha à noite no asfalto, nas ruas. (Maria Luiza, 65 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

[...] Meu álbum de primeiro ano de vida é repleto de fotografias cercadas de pessoas fardadas, de homens fardados, porque, naquela época, as mulheres sequer podiam participar das Forças Armadas. (Luciene, 56 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

[...] Na escola Tiradentes, no centro do Rio, no primário, fiz parte do pelotão da bandeira e participava de marchas cívicas em datas comemoradas pelos militares. A infância da gente foi toda de marchas e de moral e cívica. O retrato do presidente Figueiredo (1979-1985) sorria, da parede. Antes, o de Geisel. [...] No ensino fundamental II (quinta à oitava), minha caderneta da escola era repleta de advertências e de suspensões. Uma vez fui advertida porque assobiei o hino durante a cerimônia diária do hasteamento da bandeira. Na sétima série, o diretor recusou minha matrícula para o ano seguinte, por conta de ser insubordinada. (Sheila, 53 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

Por consequência, é notável o íntimo atrelamento das normativas de gênero e sexualidade com a moralidade e o civismo, de modo a compor uma teia de dispositivos que põem em funcionamento o projeto pedagógico de nação necessário para a educação da infância nas famílias e nas escolas. Nessa teia, a sexualidade feminina destaca-se como terreno fértil para uma pedagogia de gênero que escrutina os prazeres de meninas e mulheres, de modo a cumprirem os scripts de esposas e mães zelosas e dedicadas na instituição familiar cisheteropatriarcal.

[...] Eu me lembro, quando na adolescência, que já começavam a sair, a namorar, a mesma cobrança para que eu não caísse na vida e não engravidasse e não transasse com qualquer um, de qualquer jeito, lembro que eram exatamente essas palavras. (Paula, 51 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

Constata-se, assim, a moralização voltada para a sexualidade feminina, e considerada, à época, como uma forma positiva de educação que opera sob a vigilância e o controle das experiências sexuais interditadas pela ameaça da gravidez associada a um problema social por evidenciar uma sexualidade livre que, na vida das meninas, assumia o sentido de promiscuidade.

Os impactos dessa interdição nas vidas das participantes, entretanto, requerem análises amparadas na perspectiva interseccional, visto que, enquanto para Paula - assistente social -, que pôde estudar fora do Estado ainda em sua juventude, o discurso da gravidez tem um sentido ameaçador para a sua sexualidade, para Irene - mulher analfabeta cuja infância foi marcada por condições sociais precarizadas -, esta foi a sua única alternativa de mudança social de vida, pela via do casamento e da maternagem.

MEMÓRIAS DE INFÂNCIA NAS INTERSEÇÕES DE GÊNERO E RAÇA

Pensar como as normativas de gênero atreladas ao feminino aparecem nas memórias das mulheres como parte da educação vivida na escola e na família é, também, expor, segundo Judith Butler (2015, p. 32) como a “[...] operação da norma constitui as condições que o próprio surgimento do eu como um ser reflexivo, um ser dotado de memória, um ser de quem se poderia dizer que tem uma história para contar”. Pontuar os marcadores sociais de gênero, raça/etnia, classe social e território que configuram as memórias de infância de mulheres é dar visibilidade àquelas narrativas que sequer alguma vez apareceram, por estarem em uma posição em que as normas, assim como as suas dissidências, estão relacionadas às possibilidades de aparecimento social que demarcam as distinções entre o espaço público e o privado e como estas operam conforme uma política sexual, de regulação dos sujeitos que são ou não são reconhecíveis nesses espaços (Butler, 2018).

O sentido de abjeção ao feminino que escapa dessa normativa de gênero é forte no contexto da ditadura militar, haja vista o fato de mulheres que dedicavam suas vidas à militância política serem consideradas como aberrações por agentes do Estado, bem como aquelas cujas sexualidades não se conformavam à heterossexualidade e aos pilares da família tradicional, considerada como alicerce da nação (BRASIL, 2014). Flávia Biroli (2021) afirma que a divisão sexual do trabalho não apenas foi consolidada de um modo que responsabiliza as mulheres, como também, ao mesmo tempo, opera com um código que sugere uma reformulação do papel do Estado, pois há um deslocamento para a esfera privada daquilo que pode ser e foi de sua responsabilidade. Além disso, convém considerar a promoção de normas, de formas de regulação e desregulamentação, de retração de direitos, de limitação e redefinição de políticas públicas que, por si só, se tornam antidemocráticas ou representam a erosão da democracia, no sentido de subverterem valores democráticos (Biroli, 2021).

Nessas condições, estudos realizados depois de 2018, quando é assumido o governo de Jair Messias Bolsonaro (2018-2022), o familismo é convocado a legitimar formas de censura, de perseguição política que se ancoram na ideia de que existe uma ameaça à família e à infância, tal qual existia na época da ditadura militar. A partir disso, existe uma relação importante entre a institucionalização dessa agenda neoconservadora, a retração de direitos, a redefinição e o reenquadramento dos sentidos de políticas públicas, com o foco na família e na infância. Não é à toa que a infância ressurge, nesses tempos de retrocesso e recorrência a pautas familistas na agenda política, como um dos dispositivos basilares para o funcionamento de políticas neoliberais e neoconservadoras (Burman, 2022).

Ainda segundo Biroli (2021), essas reações conservadoras à agenda de gênero e sua expressão nos valores familiares como matriz política mobilizada não são exclusivamente da direita, extrema direita ou de alguns grupos ultraconservadores e ultraliberais, embora sejam estes que, de modo efusivo, agenciam essa pauta. Quando se tratava das relações de gênero, mesmo nos movimentos de esquerda de resistência à ditadura, muitas vezes, não era considerada a liberdade individual da mulher. Ainda que as mulheres se dedicassem ao ambiente doméstico e estivessem sujeitas às vulnerabilidades da submissão, também, existia uma forma de as tratarem como inferiores, seguindo a lógica do patriarcado.

As mulheres que destoavam da feminilidade normativa, por serem militantes políticas ou lésbicas, ou viverem ambas as experiências, eram destituídas da identidade de mulher, ao serem tratadas como masculinas. Nesse sentido, por parte de agentes do Estado brasileiro na ditadura militar, foi recorrente o uso de violência extrema ao torturá-las e, até mesmo, estuprá-las por não serem consideradas como mulheres dignas de existir.

As experiências de feminilidade não são únicas, mesmo em um contexto de exceção. Matizes, delineados por marcadores sociais, dão o tom das diferenças nos modos de viver o feminino, ser educada por normas de gênero e transgredi-las. Dessa forma, a partir das experiências e das memórias de infância que as participantes narraram, é possível observar como os marcadores sociais de raça/etnia, classe e escolaridade influenciaram na educação/formação dessas mulheres durante a infância na ditadura militar.

[...] Sou a filha mais nova de quatro irmãos, filhos de uma dona de casa que virou estudante de Direito nos anos 70 e de um profissional liberal, economista, com duas graduações e uma pós-graduação. Cresci no Rio de Janeiro, numa casa cheia de livros. (Sheila, 53 anos, professora universitária, branca - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

[...] Eu não ia para escola por causa que era longe a escola, né? Passava por dentro da mata para ir para escola e só ia os meninos. Meu pai trabalhava na casa dos outros na fazenda e a gente morava de agregado. (Irene, 68 anos, ensino fundamental incompleto, negra - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

[...] Meu pai era militar do Exército Brasileiro quando eu nasci, minha mãe fez faculdade de Estudos Sociais e foi trabalhar como professora assistente. (Luciene, 57 anos, procuradora de justiça no Ministério Público, branca - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

[...] Eu vivi ele (período da ditadura) naquele momento que eu ainda era criança e estava frequentando a escola, na escola pública, que era uma escola primária do primeiro ao quinto ano e depois no ginásio, da primeira à quarta série do ginásio. (Maria Luiza, 65 anos, professora, branca).

[...] Eu estudei a vida inteira na Escola Estadual Sagrado Coração de Jesus (e tem até hoje na cidade), que é uma escola católica e regida pelas freiras, mas mantida pelo sistema público de educação. Minha mãe era professora, servidora pública do Estado e meu pai pecuarista fazendeiro. (Paula, 51 anos, assistente social, branca - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

É possível notar, a partir dessas narrativas, quais eram os lugares que essas mulheres ocupavam na infância, demarcados por sua escolaridade, classe social e raça/etnia. Diante disso, pode-se problematizar que, não coincidentemente, a única pessoa que não teve acesso à escola foi Irene, mulher negra, que aprendeu a ler - pouco - e não sabe escrever. E o que a branquitude tem a ver com essa diferença entre as memórias de infância das mulheres participantes da pesquisa? Cida Bento (2002) analisa que a ausência de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais é uma forma de reiterar, persistentemente, que, no Brasil, estas dizem respeito a um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado e problematizado. Segundo Lia Schucman (2012), o fato de o preconceito racial recair sobre a população não branca está diretamente relacionado ao fato de os privilégios raciais estarem associados aos brancos, de modo que estes não são apenas favorecidos nessa estrutura racializada, mas também os seus produtores ativos, por meio dos mecanismos mais diretos de discriminação e da produção e reiteração de discursos que propagam a democracia racial e o branqueamento.

Bento (2002, p. 28, grifo da autora) discorre que “[...] a branquitude é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivo, isto é, materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução do preconceito racial, discriminação racial ‘injusta’ e racismo”. Entende-se, portanto, que a necessidade de pensar os sentidos de infância que se fizeram vigentes no contexto da ditadura militar é também um processo pertinente de nomear a branquitude como um movimento de reflexão a partir e para além da própria experiência de ser branco. “É o questionamento consciente do preconceito e da discriminação que pode levar a uma ação política antirracista”. (Piza, 2005, p. 7).

Assim, também, é salutar a noção de enquadramento, na perspectiva de Butler (2016), ao problematizar as conjunturas de possibilidade para que vidas sejam tidas como legítimas, concomitante ao que se reflete sobre as marcas que excluem determinadas pessoas da posição de sujeitos dignos de amparo e proteção. Em articulação com as análises que cotejam os marcadores sociais de raça/etnia e classe social, importa-nos ressaltar as relações entre gênero e educação, bem como a performatividade do feminino associada ao militarismo, que evoca afetos relacionados ao autoritarismo paterno, à disciplina, à hierarquia, à falta de liberdade e à educação machista. Um exemplo importante disso é a narrativa de Luciene ao relatar o relacionamento recente com um exnamorado:

[...] Foi um grande desafio para mim ter que assumir um relacionamento com um militar da Força Aérea, por toda a mágoa mesmo e o sentimento negativo pelo próprio perfil autoritário do meu pai em alguns momentos, essa disciplina e hierarquia que limitaram tanto a minha liberdade, quanto a educação machista que eu recebi. (Luciene, 57 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

Butler (2015) analisa que a força normativa da performatividade - entende-se aqui performatividade, em seu caráter normativo, como um processo de iteração, de repetição regulada e obrigatória de normas - se exerce não apenas mediante a reiteração, mas também opera por meio da exclusão que intimida a significação constituindo as suas margens abjetas ou aquilo que assume o sentido de não vivível, inenarrável, traumático. Desse modo, argumenta Butler (2016), um dos principais aspectos de caracterização de um estado de exceção e soberano é o poder que exerce sobre as pessoas, e o uso desse poder para obrigar os cidadãos/ãs a obedecerem as imposições que não são exclusivamente de ordem política, dado que são muitas as afetações das estruturas de poder na vida subjetiva, seja na produção de vulnerabilidades, seja nos processos pedagógicos de performatividades normativas, como é possível notar nas memórias de Luciene. Segundo Burman (2022), as geopolíticas afetam as subjetividades.

Isto se dá conjuntamente ao reconhecimento de vulnerabilidades ou limites necessários ou inevitáveis estruturados em nossas vidas por termos sido crianças; isto é, por termos tido um passado. São estas respostas às experiências históricas, sociopoliticamente situadas, encarnadas, que estabelecem a base para um compromisso de mudança, ou - alternativamente - de resistência à mudança; em termos psicanalíticos, a compulsão a repetir os erros do passado, amarrando assim o psíquico ao político. (Burman, 2022, p. 1304).

Por fim, cabe refletir sobre a potência das memórias desses corpos de mulheres, nessa época de repressão política e subjetiva, por permitirem - com afinco - perceber, atualmente, os problemas psicossociais causados e que, muitas vezes, acabam sendo banalizados. A partir do poder de alguns corpos sobre os outros e, também, dos modos como esses corpos resistem às molduras do gênero, as narrativas de infâncias, ao serem rememoradas, reclamam a insurgência do passado contra o presente, o tempo que forja o esquecimento, mas também a lembrança como possibilidade de transformá-lo e reinventá-lo (Salgado, Ferreira, 2019).

A INFÂNCIA COMO APAGÃO

Observa-se que grande parte das memórias de infância, reunidas nesta pesquisa, se passa nos contextos da família e da escola - a família engajada em seu papel de proteção e a escola engendrada, naquele contexto, em um modelo de educação civil-militar. Ambas as instituições atuam na composição do que Burman (2022, p. 1304, grifos da autora) denomina de criança idiota, “[...] tomando o termo ‘idiota’ em seu significado grego original como ‘separada’ ou afastada do vínculo social”. Isso sugere que a infância na ditadura militar foi posta como apagão para as crianças que não deviam saber e participar desse momento histórico-político. Entende-se que eram mantidas ignorantes e inocentes devido ao medo do que poderia acontecer ao compartilhar com elas as violências praticadas durante o regime militar, mas também pela ideia de que as crianças supostamente não podem participar da vida política ou não possuem competências para tal, como se pode notar nos excertos das memórias a seguir:

O que eu lembro da ditadura militar? Nada. Por quê? Porque não se falava nada na minha família sobre a ditadura militar. Era um silêncio danado, mas eu percebia um medo, né? (Antutérpio, 51 anos - comunicação pessoal, 8 de dezembro de 2022).

Então, quando ingressei na escola primária, com 6 anos, nós não tínhamos contato nenhum, nem meus pais conversaram sobre esses assuntos com a gente, com a nossa família, com meus cinco irmãos. A gente não tinha esse tipo de conversa a respeito do governo.

[...] Aí também na escola, não se falava sobre esses assuntos, não sei se por causa da idade nossa, né? Pela aquela faixa etária, né? Aí, tinha-se uma imagem de que tudo estava bem, estava funcionando bem, estava tudo como se diz em ordem. (Maria Luiza, 65 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

No que tange à infância como sentido de deslegitimação das experiências, Luciene (56 anos) traz em suas memórias de infância um desgosto ao refletir como se sentiu enganada quando criança.

Fato de eu ter me sentido muito tempo iludida como uma fantasia, uma visão fantasiosa do que era efetivamente o papel dos militares do país. Daí, ter descoberto isso ao longo da adolescência, depois na Faculdade de Direito, onde convivi com tantas pessoas que defendiam abertura, defendiam o fim da ditadura e ter consciência hoje do quanto uma efetiva reparação deixou marcas ainda indeléveis, né? Dos danos, das sequelas causadas por tantos anos de autoritarismo [...] (Luciene, 56 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

Nessa narrativa, deparamo-nos com a negação dos saberes, dos modos de ser e agir das crianças, as experiências infantis do passado, hoje, na vida adulta, significadas como período que limitou as capacidades de receptividade e compreensão do mundo. Dessa forma, pode-se perceber um certo sentido de desvalorização da infância, como momento da vida marcado pela menoridade, condição de ser inferior, associada à inocência como dispositivo de poder intensamente acionado nos processos educativos de toda uma geração de crianças durante a ditadura militar.

Desse modo, é importante considerar como os contextos da família e da escola interatuam com os sentidos associados à infância e produzem práticas desiguais que, sustentadas por relações de poder adultocêntricas, implicam em experiências silenciadas e marginalizadas. Burman (2022) discute que as memórias de infância permitem compreender, a partir do que é posto nas entrelinhas dos discursos, questões que correspondem à violência simbólica sobre como a infância desponta como um vir-a-ser. Essa posição integra o ideário de criança ideal-típica, com base no qual é criada a imagem em que toda criança deve se projetar. Em se tratando da infância-ideal, essa noção estende-se a um projeto de sociedade de interdição das diferenças, de seus aspectos disruptivos em relação ao que é estabelecido como normas de vida, posto que a criança ideal-típica é uma abstração ou ficção por estar alheia às condições sociais de existência das crianças, atravessadas por marcadores sociais, como gênero, classe social, raça/etnia, sexualidade, territórios etc. (Burman, 2008).

Outrossim, faz-se indispensável refletir sobre como subjetividades, atravessadas por uma infância marcada por normatividades de gênero, civismo, silenciamento, doutrinação e subordinação como políticas de Estado, subvertem essa lógica na vida adulta, adentrando nos espaços de resistência como reconhecimento social das diferenças e da vida. Algumas participantes narram essa experiência:

[...] O meu filho caçula e minha enteada caçula se revelaram pessoas homossexuais. Em função disso, acabei me tornando uma ativista dos direitos LGBTQIA+. Hoje eu faço parte da Associação “Mães pela Diversidade”. Sou bastante atuante na parte de consultoria jurídica do “Mães”, tenho estudado mais direitos humanos, tenho me aprofundado no estudo justamente dos direitos de gênero e de diversidade. (Luciene, 57 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

[...] A nossa luta é muito mais ampla para além de ser profissional da educação, de ser sindicalista, é na verdade de garantir que a gente tenha a possibilidade de fazer a disputa e a possibilidade de minimizar a desigualdade social, e com escolas militares que começaram a ser criadas aqui, ampliados em Mato Grosso. (Maria Luiza, 65 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

[...] Hoje, no sindicato, no Fora Temer, em manifestações contra o desmantelamento das universidades públicas, contra a política assassina de Bolsonaro, nas minhas aulas, sou quem eu fui desde a Ditadura. Aquela que conviveu com fantasmas. A que agora os vê retornarem com o voto do povo. (Sheila, 53 anos - comunicação pessoal, 20 de setembro de 2022).

Em suma, mesmo diante de um persistente projeto pedagógico de silenciamento da infância pela via da produção do desaparecimento social da repressão, há os deslocamentos e as brechas para a existência de sentidos e subjetividades que seguem o contrafluxo das normas que fazem calar. É o que se mostra nas memórias de mulheres que percorrem outros trilhos em suas trajetórias de engajamento social e crítica a uma sociedade que ainda está em pleno processo de ressignificação política das barbáries da ditadura militar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perspectiva que nos conduz a refletir sobre as memórias de infância de um tempo tão árduo e violento de nossa história e vida política é a de restauração coletiva da própria narrativa. Para além da libertação que a narrativa do passado possa incrementar para quem narra, o que se salienta é a possibilidade de atualização dessa temporalidade a partir da produção de diferenças e deslocamentos em relação aos acontecimentos vividos. É nesse sentido que Sarlo (2007) convidanos a pensar na dimensão libertadora da linguagem quando, por meio do testemunho, arranca a experiência de seu mutismo e a redime das impressões imediatas e do esquecimento que, em um contexto de repressão política, é a expressão mais nítida de ataque à memória. Desse modo, é salutar afirmar que o tempo da experiência narrada não é mais o de seu acontecimento, mas sim o de sua lembrança.

Nessa toada da dimensão coletiva da rememoração, destaca-se a infância, para além do tempo de vida das crianças, como projeto político-pedagógico de uma sociedade que, assentada no autoritarismo, educa toda uma geração em seus mais diversos matizes: dos valores de uma cidadania pautada na disciplina e obediência civil ao controle dos corpos e dos prazeres por meio de pedagogias de gênero e sexualidade que incidem cotidianamente na manutenção de hierarquias de gênero e na proteção da estrutura social cisheteropatriarcal. Soma-se a este projeto o acirramento de desigualdades sociais que, no caso da sociedade brasileira, avançam pari passu com as violências do racismo estrutural.

A infância, assim, desponta como uma estratégia analítica para a compreensão de um conjunto de práticas, relações sociais e institucionais de dimensões tanto geopolíticas quanto subjetivas (Burman, Millei, 2022). Enfatiza-se a infância como um modo de leitura e análise de práticas culturais e políticas de um tempo em que o esquecimento do horror consistiu em uma pedagogia para a moralização e o disciplinamento de uma geração de crianças, consideradas como o futuro da nação.

Deparamo-nos, na pesquisa, com memórias de infância do tempo da ditadura militar marcadas pela ausência de lembrança, o apagão, por não ter o que lembrar sobre as violências de um regime de autoritarismo vigente à época no país. Nota-se que, em grande parte das narrativas, o que fica nesse lugar são as lembranças da disciplina e dos discursos de uma nação em desenvolvimento cuja didática se dedica a ensinar a se integrar à funcionalidade das instituições que constituem a base estrutural dessa sociedade. O apagão ensina a não lembrar e, ao fazê-lo, interdita o luto público em relação ao trágico, sufocando o pensamento crítico que nos convoca a agir contra o retorno da barbárie. Butler (2019) entende que um dos objetivos da proibição do luto público é a desrealização da violência, na medida em que há o impedimento de circulação social de narrativas sobre as perdas a fim de que estas não sejam percebidas como tais. Com isto, tem-se como um efeito de poder o silenciamento das diferenças.

A desrealização das violências da ditadura militar, durante os seus 21 anos de vigência e para além deles, impacta-nos no tempo presente com o retorno de um governo autoritário, de base militar, que publicamente manifestou apreço ao estado de exceção e incitou movimentos em seu favor. Não menos importante, nesse contexto mais recente, deparamo-nos também com todo um investimento político de sufocamento das memórias desse período ditatorial, em que a interdição do luto público também se fez notória. Não poder dizer e lembrar as violências da ditadura militar estava na ordem do dia.

Diante do apagão das memórias de infância, há antídotos importantes que precisam compor a pauta da educação de crianças e jovens em nossa sociedade, visto que não se faz uma formação crítica, ético-política, nas escolas, universidades e em todos os contextos educativos, sem o trabalho cotidiano com as memórias como forma de enfrentamento à produção social do esquecimento das resistências e das tragédias de um povo. Pior do que esquecer é não ter o que lembrar.

1Herodes foi rei da Judéia e representante do Império Romano entre 37 a.C. e 4 a.C. Durante o seu reinado, foi responsável pelo infanticídio que visava exterminar todos os meninos recém-nascidos da região para impedir a vinda de Jesus ao mundo, anunciado como o Messias.

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Recebido: Setembro de 2023; Aceito: Outubro de 2023

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