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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.75 Rio de Janeiro out./dez 2023  Epub 26-Dez-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.78760 

“Vocês são importantes…”: questões de alteridade e diferença nas políticas curriculares

SOBRE NÃO SEGUIR RECEITAS, CRIAR OUTRAS NARRATIVAS E INVENTAR ROTEIROS: o que ensina o currículo de dois filmes infantis sobre gênero?

ABOUT NOT FOLLOWING RECIPES, CREATING OTHER NARRATIVES AND INVENTING SCRIPTS: what does the curriculum of two children's films teach about gender?

DE NO SEGUIR RECETAS, CREAR OTRAS NARRATIVAS E INVENTAR GUIONES: ¿qué enseña el currículo de dos películas infantiles sobre género?

Tainara Cristina Monteiro Caitano1 
http://orcid.org/0009-0005-4512-8766; lattes: 0629488666641802

Danilo Araujo de Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0003-3222-3172; lattes: 0463409625851892

1Pedagoga pela Universidade Federal do Maranhão

2Professor Adjunto da Universidade Federal do Maranhão


Resumo

Este artigo analisa dois filmes infantis Moana - um mar de aventuras e Valente. A partir de aportes das teorias pós-críticas, esses filmes se constituem como um currículo. Para as análises, inspiramo-nos na análise de discurso foucaultiana e mobilizamos gênero como categoria analítica. O argumento desenvolvido aqui é de que, no currículo dos filmes infantis analisados, demanda-se uma subjetividade feminina que resiste às normas de gênero, ensinando as meninas a serem corajosas, determinadas, empoderadas, aventureiras, guerreiras, livres, posicionadas, questionadoras e a lutarem por sua dignidade, independência e visibilidade, nos mais diversos campos que permeiam a sociedade, desde o seio familiar até os espaços considerados mais improváveis. Para além disso, que elas se reconheçam como sábias e capazes de reinventar e subverter os caminhos de seus próprios destinos.

Palavras-chave: gênero; currículo; resistência.

Abstract

This article analyzes two children's films Moana - one ocean of adventures and Brave. Based on contributions from post-critical theories, these films constitute a curriculum. For the analyses, we were inspired by Foucauldian discourse analysis and mobilized gender as an analytical category. The argument developed here is that the curriculum of the analyzed children's films demands a female subjectivity that resists gender norms, teaching girls to be courageous, determined, empowered, adventurous, warriors, free, positioned, questioning, and to fight for its dignity, independence and visibility, in the most diverse fields that permeate society, from the family to the spaces considered most unlikely. And that, in addition, they recognize themselves as wise and capable of reinventing and subverting the paths of their own destinies.

Keywords gender; curriculum; resistance.

Resumen

Este artículo analiza dos películas infantiles Moana - un mar de aventuras y Valentía. A partir de aportes de teorías poscríticas, estas películas constituyen un currículum. Para los análisis, nos inspiramos en el análisis del discurso foucaultiano y movilizamos el género como categoría analítica. El argumento aquí desarrollado es que el currículum de las películas infantiles analizadas exige una subjetividad femenina que se resista a las normas de género, enseñando a las niñas a ser valientes, decididas, empoderadas, aventureras, guerreras, libres, posicionadas, cuestionadoras y a luchar por su dignidad, independencia. y visibilidad, en los más diversos ámbitos que permean la sociedad, desde la familia hasta los espacios considerados más improbables. Y que, además, se reconozcan sabios y capaces de reinventar y subvertir los rumbos de sus propios destinos.

Palabras clave género; plan de estudios; resistencia.

INTRODUÇÃO

Triste, louca ou má

Será qualificada

Ela quem recusar

Seguir receita tal.

A receita cultural

Do marido, da família

Cuida, cuida da rotina

(Francisco, El Hombre - Triste, louca ou má, 2016)

As duas estrofes acima foram retiradas da música Triste, louca ou má da banda brasileira Francisco, El Hombre. Para nós, é como um hino feminino de resistência às normas de gênero. Ela movimenta o âmago das normas generificadas logo em seus primeiros quatro versos, ao evidenciar como o sexismo pode ser um ato preconceituoso que exclui, oprime e inferioriza aqueles/as considerados/as fora do padrão. Conforme a letra, a mulher que não se curva diante da norma prescrita, logo recebe qualificações, será ela triste, louca ou má, ou seja, a sem sanidade, solitária e cruel por não seguir a receita cultural que inúmeras mulheres são constantemente demandadas a cumprir.

Ao ponderar a norma como uma receita, isso nos leva a refletir sobre o papel da receita enquanto paradigma ou fórmula fixa a ser repetida com o intuito de reafirmar quem somos e quem deveremos ser. Nesse receituário, para reafirmar que somos conforme o gênero feminino perante os olhos do julgamento social, precisaríamos performar em consonância com os ditos culturais do marido, da família cuidando da rotina doméstica que nos enclausura nos padrões. Judith Butler (2018) nos propõe questionar essas normas e seus modos de construção e inserção em nossas vidas, para que outros modos de se performar possam ser possíveis e vivíveis, não somente aqueles prescritos e aceitos nessa receita de gênero da vida.

As proposições levantadas a partir dessa música se articulam com o objeto estudado nessa pesquisa que busca problematizar o enredo dos filmes infantis no que se refere a seus modos de representação de subjetividades femininas e suas implicações, por também se localizar em um campo de disputa com os paradigmas de gênero produzidos e instaurados socialmente. Enquanto artefatos culturais, é importante salientar que tanto a música mobilizada nesta escrita quanto os filmes aqui analisados são constituídos por “[...] relações de poder-saber, que tem efeitos produtivos sobre aquilo que fala” (Paraíso, 2010, p. 42).

As pretensões empreendidas na pesquisa, problematizando o enredo dos filmes infantis, no que concerne a seus modos de representação de subjetividades femininas no que tange ao gênero e em como esse enredo pode fazer emergir modos outros de ser menina/ princesa, são tratadas a partir de um currículo que convoca para resistências e subversões performadas pelas personagens principais, Moana e Merida, a primeira do filme Moana - um mar de aventuras, e a segunda do filme Valente.

REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO

Gênero é compreendido aqui como uma norma, “[...] um mecanismo através do qual se produzem e se naturalizam as noções de masculino e feminino” (Butler, 2006, p. 70). Isso significa que o modo como nos constituímos homens ou mulheres se dá de modo relacional, a partir de normas que são divulgadas e de demandas aos nossos corpos as quais precisam ser por nós reconhecidas, legitimadas, reiteradas e repetidas.

Historicamente, é possível notar que “[...] uma noção singular de gênero e sexualidade vem sustentando currículos e práticas de nossas escolas” (Louro, 2013, p. 45). Existe a predominância de um currículo e práticas únicos que privilegia um ideal de gênero, de etnia, de sexualidade, de cultura, de ser. Como Louro (2013) afirma, acabamos naturalizando as práticas escolares e o currículo vigente, na literatura, nas narrativas históricas, nos mapas, nas ciências, nas equações matemáticas, em tudo. De tanto nos depararmos todos os dias com o mesmo, com o igual, com um conhecimento científico da supremacia hegemônica, acabamos por reproduzir isso sem questionar.

O questionamento e as perguntas sobre como determinados conhecimentos são valorizados em detrimentos de outros, como nos constituímos sujeitos de determinadas formas são precípuos para produzir outros possíveis e tensionar as normas de gêneros. Por isso, neste trabalho, debruçamo-nos sobre o funcionamento do currículo de dois filmes infantis para analisar como eles ensinam sobre as resistências às normas de gênero a partir de protagonistas que se constituem como outras referências femininas.

Esses filmes são considerados aqui como um currículo. Mas que tipo de currículo? Qual a relação dos filmes com o currículo? Para abarcar esses questionamentos, apoiamo-nos, em especial, nas concepções advindas do texto da autora Marlucy Alves Paraíso (2010). As modificações ocorridas no campo curricular brasileiro resultaram na ampliação da percepção do que viria a ser currículo que fora associado à cultura. Assim, o currículo passou a ser percebido “[...] como uma prática cultural que divulga e produz significados sobre o mundo e as coisas do mundo” e, para além disso, “[...] como um espaço privilegiado de contestação, conflitos e negociações culturais”, como também para a representação desigual de culturas (Paraíso, 2010, p. 33).

Paraíso (2010, p. 48) destaca que “[...] um filme é sempre endereçado a um tipo de público (localizável nas relações de poder relativas a gênero, classe, idade, profissão etc.) que se deseja capturar, fazer rir, chorar, emocionar, subjetivar”. É nessa mesma ótica que percebemos o filme nessas análises, como um artefato que se destina a produzir sujeitos e, se quer produzir sujeitos, ele ensina. Apesar de acreditarmos que se encaixa em nossas vidas apenas como um passatempo, um momento de descontração para fugir da monotonia dos acontecimentos rotineiros, para além disso, eles são máquinas de ensinar, assim como os demais artefatos culturais com os quais nos encontramos corriqueiramente em contato (Paraíso, 2010).

Assim, na investigação em questão, adota-se a abordagem pós-crítica de como fazer pesquisa na qual, como apontam as autoras Meyer e Paraíso (2012, p. 17), “[...] aproximamo-nos daqueles pensamentos que nos movem, colocam em xeque nossas verdades e nos auxiliam a encontrar caminhos para responder nossas interrogações”. Dessa forma, uma pesquisa que trilha os caminhos de uma abordagem pós-crítica não trabalha com verdades prontas e acabadas, vez que, nesse tipo de pesquisa, a busca por resposta é constante, visto que as interrogações também o são.

Partindo dessa premissa, optamos por trilhar os caminhos metodológicos possibilitados pelas inspirações na análise do discurso foucaultiana, pois compreendemos que os filmes analisados são artefatos culturais que possuem um currículo que se constitui como um discurso “[...] envolvido em relações de poder de diferentes tipos que apresenta um conjunto de saberes para serem ensinados a alguém que se deseja transformar, modificar, subjetivar, governar” (Paraíso, 2010, p. 50). Portanto, as produções culturais são também produtoras de sujeitos, uma vez que possuem intencionalidades que demarcam os lugares de fala dos indivíduos, incluindo ou excluindo, visibilizando ou apagando, exaltando ou oprimindo, predominando ou marginalizando grupos ou categorias na sociedade internamente.

Não pretendemos “[...] desvelar supostos significados ou verdades ocultas”, como afirmam Vasconcelos, Myrrha, Sales e Caldeira (2020, p. 393), mas, sim, problematizar o discurso desse currículo. Desse modo, reafirmamos, nesta pesquisa, o que Sales (2012, p. 125), com base em Foucault, afirma:

Não se trata de buscar uma origem de determinado discurso, nem, muito menos, a intenção de quem produz certos discursos. Ao contrário, trata-se de analisar por que aquilo é dito, daquela forma, em determinado tempo e contexto, interrogando sobre as “condições de existência” do discurso.

Para a escolha das obras que seriam postas em análise, buscou-se, em primeiro lugar, com um olhar de gênero, enfatizar aquelas atravessadas por enredos que diferem das narrativas dos filmes tradicionais que comumente são retratadas como naturais. Procurou-se destacar as narrativas que apresentassem a representação de modos outros de subjetividades femininas através do papel da princesa, inspirando coragem, espírito aventureiro, sabedoria e ousadia. Com os critérios elencados, as obras infantis selecionadas foram: Moana - um mar de aventuras e Valente, ambas contemporâneas.

CURRÍCULO NOS FILMES INFANTIS MOANA E VALENTE: POSSIBILIDADES PARA CONTESTAÇÃO E SUBVERSÃO DAS NORMAS DE GÊNERO

O primeiro filme analisado, intitulado Moana - um mar de aventuras, foi lançado em 2016 pela Disney. Ele conta a história de Moana, uma garota contagiante e curiosa que gosta de aventuras, nascida e criada em Motunui, uma ilha localizada na Polinésia. O pai de Moana é o chefe da tribo Waialiki, sendo ela criada para seguir a linhagem e comandar seu povo. No entanto, alguns acontecimentos antecedem o nascimento de Moana. O coração da deusa Te Fiti, que tem o poder de criar a vida, fora roubado pelo semideus Maui, o que culmina em uma série de acontecimentos negativos. Moana, então, é escolhida pelo próprio oceano para cumprir a difícil missão de encontrar Maui e ajudá-lo a reestabelecer o coração de Te Fiti. Para tanto, ela precisará embarcar em uma grande aventura e enfrentará seu pai e os conflitos com ela mesma para descobrir quem realmente é.

O segundo filme explora a história de mais uma princesa da Disney. A história de Merida é contada no filme Valente cuja estreia se deu em 2012. A narrativa retrata a vida da princesa Merida, uma jovem escocesa que vive em um lindo castelo com sua mãe, Elinor, e seu pai, Furges, ambos governantes do reino, e com seus irmãos trigêmeos, os príncipes Harris, Hubert e Hamish, além dos empregados do castelo. Desde seu nascimento, ela é instruída, principalmente por sua mãe, a ter as posturas de uma princesa para que possa seguir a tradição e casar-se mais tarde. No entanto, Merida comporta-se de modo totalmente diferente do esperado por sua mãe. É despreocupada com sua aparência, não gosta das regras de etiqueta e, dentre o que mais incomoda Elinor, está o fato de sua filha ter uma alma aventureira e ter como objeto preferido o arco e flecha que se tornou seu maior parceiro desde que seu pai lhe presenteou com um.

Os filmes aqui postos em análise buscam evidenciar outros modos de ser princesa, diferentemente da quantidade dos filmes infantis sobre princesas com que correntemente nos deparamos ao longo da história nos quais, geralmente, a princesa está em busca do príncipe. Esses filmes podem ser compreendidos como pedagogias culturais, responsáveis por ensinar sobre normas de gêneros. Ensinam-se neles modos específicos de ser menina/mulher, demandando certo tipo de subjetividade feminina, que precisa encontrar, no casamento romântico e heterossexual, a felicidade. Além disso, reiteram a submissão feminina como modo de vida e o homem como detentor de poderes, mais ágil, forte e inteligente para lidar com os problemas da vida. Os modos de endereçamento (Elssworth, 2001) desses filmes, portanto, não são inocentes, mas fazem parte de uma variada pedagogia normativa de gênero que historicamente nos ensinaram a assistir, admirar e desejar. A mágica, as músicas, os enredos desses filmes se constituem, pois, como tecnologias para produção de subjetividades femininas. Considerando o amplo alcance midiático dessas películas, podemos inferir os referenciais seguros e determinantes que elas tiveram na constituição de concepções sobre o que é ser menina-mulher em nossa sociedade. Nesse sentido, não há inocência, tampouco neutralidade na produção e difusão dos filmes da companhia (Giroux, 2012).

Tendo em vista os filmes apresentados que comumente relatam o ser princesa de modo muito similar, Moana e Merida representam princesas com hábitos que raramente se encontram associados a figuras femininas em filmes infantis. Logo, esses dois filmes apontam que esse cenário vem sofrendo modificações, ou seja, mesmo que paulatinas, elas já vêm acontecendo. Vasconcelos, Myrrha, Sales e Caldeira (2020, p. 398) destacam a importância “[...] de fazer circular ditos que contestam as normas” na ressignificação de feminilidades e masculinidades que não se encaixam nas normas de gênero já performadas.

Os trechos subsequentes destacados foram retirados do filme Moana - um mar de aventuras. Neles, pretende-se problematizar as normas de gênero impostas à personagem, normas estas que são reiteradas nas diversas instâncias sociais. Muito tempo após o roubo do coração de Te Fiti, surge uma problemática na tribo de Moana: a falta de peixe. Seu povo, preocupado, vai em busca de sua ajuda. Para tentar solucionar o problema da falta de peixe, Moana propõe uma solução. Dirigindo-se ao seu pai, ela diz: “[...] e se... a gente passar os recifes?”. Ele, bravo e convicto, responde: “[...] ninguém vai passar dos recifes”. Nos trechos, é perceptível que Moana ocupa um papel importante em sua tribo, ela será a próxima líder, é a filha do chefe e, talvez, o status que mais possa pesar: ela é uma garota. Como poderá, então, questionar os limites impostos por seu pai se ela tem papéis a desempenhar? Para Louro (1997, p. 24), “[...] através do aprendizado de papéis, cada um/a deveria conhecer o que é considerado adequado (e inadequado) para um homem ou para uma mulher numa determinada sociedade, e responder a essas expectativas”. Moana, no entanto, parece não querer aceitar os papéis que lhe são atribuídos. Assim, contrariando as expectativas concebidas a ela, não desiste fácil: “[...] tá legal, mas já que não tem peixes na laguna”. Seu pai, ainda mais bravo, diz: “Moana, existe uma lei”. Ela rebate: “[...] uma antiga [lei] de quando tinha peixe”. Ele continua: “[...] lei que nos mantém a salvo”. Ela tenta argumentar: “[...] mas, pai...”. Ele finaliza a conversa: “[...] e não colocando em risco o nosso povo para que você saia correndo pra água. Toda vez que eu acho que superou isso... ninguém passa dos recifes!”. Ele sai muito bravo.

Apesar de insistir e questionar o posicionamento de seu pai, nesse diálogo, a garota não sai vitoriosa, assim como em muitos embates travados por meninas no dia a dia que tomam para si o questionamento, a dúvida, a crítica. Isso porque esses posicionamentos são ponderados predominantemente como de meninos, fazendo com que se tornem uma verdadeira afronta quando performados em corpos femininos, pois caminham em lados opostos das normas reiteradas já estabelecidas. A menina estaria, assim, transgredindo “[...] fronteiras de gênero, quando ocupa a posição do sujeito que pensa e questiona tudo e todos à sua volta” (Freitas, 2018, p. 130). Moana, evidentemente, é uma figura que inspira o anseio pelo poder da voz, do posicionamento, gerando contrapontos.

Ao analisar a personagem Ariel do filme A pequena sereia, Cechin (2014) aponta para uma representação inversa de uma outra produção da Disney, quando a princesa Ariel perde a voz em troca de um par de pernas e da conquista de um príncipe, problematizando o fato de o príncipe não julgar importante a presença dessa característica na princesa, como se esta não fizesse a menor diferença. Desse modo, segundo o autor Cechin (2014, p. 142), “[...] o mutismo de Ariel representa o silêncio feminino desejado pela cultura dominante, mais um dos aspectos que fazem parte de outros ideais impostos às mulheres pelas redes de poder”, segundo as quais se presume que as meninas, em sua constituição, sejam passivas. Ao direcionar o silenciamento às meninas, não se retira delas apenas a voz enquanto som produzido, retiram-se também posicionamentos privilegiados das relações de poder, garantia de direitos, de visibilidade. Como já discutido neste texto, não obstante a esse ideário, há muito as mulheres foram cerceadas de seu poder de fala. E, por mais que esse contexto tenha sido remodelado, é indiscutível que ainda há muito o que provocar.

Assim como nos pequenos trechos discutidos, a despeito dos conflitos, especialmente com seu pai, Moana continua transgredindo barreiras quando é escolhida pelo oceano para encontrar o semideus Maui e ajudá-lo a restaurar o coração de Te Fiti. Seu pai obviamente não aprova essa ideia, mas, com o encorajamento de sua avó, que se encontra à beira da morte, ela começa acreditar que é capaz e se desafia a viver essa aventura. Temos aqui uma figura fundamental para a constituição de Moana enquanto menina de uma outra forma, sua avó, que, apesar de se fazer mulher em um outro tempo que não condiz com o mesmo tempo de sua neta, demonstra sabedoria em suas palavras e conduz a garota para outros ensinamentos: o de seguir seu coração, o de poder escolher o que mais almeja, o de ser livre, de se aventurar... Em muitos momentos de suas vidas, meninas e mulheres buscam algo mais que as complete, que as faça brilhar os olhos só de imaginar, como uma carreira, um esporte, uma viagem ou algo do tipo. Entretanto, as barreiras do gênero as fazem desistir daquilo em que acreditam. No caso de Moana, são postas muitas limitações, em especial, a de não atravessar os recifes. Ela poderia simplesmente acatar as ordens de seu pai e fazer o papel da boa filhinha, obediente, reiterando o discurso normativo prescrito para seu gênero. Podemos ver, assim, que, nas performances de gênero, nem tudo está garantido, visto que, em algum momento, “[...] outro desejo começa a governar, e formas de resistência se desenvolvem, alguma coisa nova acontece, não precisamente o que foi planejado” (Butler, 2018, p. 26).

Assim, no decorrer do filme, a menina Moana embarca no seu barco e enfrenta uma grande tempestade apenas na companhia de seu galo de estimação “Hei Hei”. E, mesmo sem demostrar muitas habilidades com navegação, ela consegue encontrar Maui. Logo ela percebe que ele se acha superior a ela por ser um semideus, mas ela deixa bem claro que não é sua fã: "[...] você não é meu herói. Eu não tô aqui pra ganhar um autógrafo, eu vim porque roubou o coração de Te Fiti. Vai já embarcar no meu barco, cruzar o oceano e restau...”. Ela tenta se impor ao comportamento autoritário de Maui, mas ele continua exalando ar de superior. Fazendo uma análise desse trecho, pode-se dizer que é comum, nos filmes, a figura masculina representar o papel de sujeito aventureiro, liberto, mandão, pois o discurso reiterado hegemonicamente conduz o ser homem ao mesmo que ser determinante, protagonista, um indivíduo de grandes feitos na vida da mulher.

Contestando esses modos de divulgação da subjetividade masculina, é importante destacar uma das concepções de Meyer (2013) quando a autora diz que devemos produzir questionamentos sobre aquilo que nos aparece como realidade, pois as verdades não são fixas e permanentes, são derivadas de disputas que permeiam diversos âmbitos no que tange ao social e ao cultural. Nesse cenário, por mais que o semideus Maui, de certo modo, protagonize esse ser viril, dotado de grandes habilidades e força física, isso não é o suficiente para convencer Moana de que ele é superior como diz ser apenas por ser um semideus. Ela põe em dúvida sua verdade, por mais que ela pareça convincente. Além desses aspectos, no filme, a garota Moana é quem se arrisca para encontrar o rapaz (Maui) e ajudá-lo a cumprir a missão, quebrando a regra fixa dos filmes aqui já citados, nos quais a moça está à espera do rapaz ou ele é o caminho para solucionar uma espécie de problemática que aflige sua vida.

Nesse contexto, situa-se a menina enquanto representação da feminilidade de outro modo, pouco antes percebido, e em outras posições. Assim, a partir da personagem Moana, o filme ensina que as garotas podem enfrentar, podem ser aventureiras, guerreiras e livres, por mais que “[...] o que somos obrigados a fazer a princípio é representar o gênero que nos foi atribuído” (Butler, 2018, p. 26).

Na cena a seguir, podemos observar como Maui enquadra Moana na mesma figura de princesa performada nos filmes tradicionais e como ela reage a esse tipo de enquadramento quando não se reconhece como tal:

Cena 1: Menina, não princesa

"Tem que ser aventureira, princesa! Não se trata só de navegar, você tem que ver pra onde vai com a sua mente, saber onde está mais também por onde passou".

"Olha, eu não sou princesa, eu sou a filha do chefe"

"Mesma coisa"

"Não"

"Se tá de vestido e tem um bichinho de estimação, é uma princesa. Não é uma aventureira e nunca vai conseguir achar aii..."

[Nesse momento o oceano cutuca Maui para que ele pare de falar]

[...]

"Chamei ela de frango porque os frangos são medrosos"

"Então, filhinha do chefe, você não devia tá na aldeia cuidando dos bebês e tal" [Maui continua desdenhando do fato de ela ter sido escolhida e pergunta os motivos, já que ela não sabe navegar e é uma criança]

"Uma criança assim... pra uma garota, você não precisava ir lá embaixo daquele jeito"

É perceptível que Maui recupera a imagem de princesa atribuída às meninas e aponta duas características de Moana que naturalmente se encontram associadas às princesas: “[...] ter um bichinho de estimação e usar vestido”. Na verdade, sua vestimenta é um conjunto de blusa e saia. Esse mesmo tipo de enquadramento pode ser visível nos discursos propagados por outros artefatos culturais que repetidamente ensinam modelos de princesa, de corpos, de mulher e homem, de menino e menina, de belo e feio. Nesse sentido, Moana, como princesa e como aventureira. acaba gerando uma polaridade. Isso porque, segundo o esperado, Moana, enquanto princesa, não pudesse ser aventureira e a Moana aventureira não pudesse ser princesa, ou seja, há aí uma oposição de dois polos que aparentemente se repelem. Ou Moana é uma, ou é outra, ela não poderia se constituir as duas em uma só. Louro (1997, p. 32) propõe que trabalhemos em um outro panorama, o de desconstruir a oposição, pois “[...] a desconstrução trabalha contra essa lógica, faz perceber que a oposição é construída e não inerente e fixa. A desconstrução sugere que se busquem os processos e as condições que estabeleceram os termos da polaridade”. Portanto, é necessário perceber as polaridades como construções que podem ser flexibilizadas, que, antes de tudo, são atravessadas de relações de poder interessadas de um grupo hegemônico, no qual “[...] evidenciam a prioridade do primeiro elemento” (Louro, 1997, p. 32). Nesse caso, o primeiro elemento seria o homem e o segundo, a mulher. Logo, ser aventureira não estaria para uma menina, muitos menos para uma que, além de menina, é princesa. E se Moana fosse um menino, ela poderia ser um príncipe aventureiro sem restrições?

Para tanto, Moana se recusa a ser princesa e quer ocupar a posição de sujeito aventureira. Por isso, enfrenta as normas de gênero que lhes são atribuídas. E, mesmo sendo a filha do chefe, como ela mesma se denomina, o que, para ela, é diferente de ser princesa, rejeita a se encaixar no padrão de menina que Maui lhe incumbe, cuidadosa, medrosa, sem habilidades. Esses são conceitos que remetem ao exercício da emoção e simbolizam fraqueza por parte de quem os demonstra, o que os naturaliza quando dirigidos às meninas e mulheres. Todavia, os mesmos conceitos, se dirigidos aos meninos ou homens, não soam como popular, pois, geralmente, os interligados ao gênero masculino apresentam-se “[...] atravessados por um mesmo aspecto, qual seja, o da valorização da razão, em detrimento da emoção” (Freitas, 2018, p. 119).

À Moana, enquanto menina/princesa que se constitui, caberia reiterar as normas de gênero de “[...] um discurso reacionário que produz modos autorizados de se performar o gênero em conformidade com os contos de fadas tradicionais” (Vasconcelos, Myrrha, Sales, Caldeira, 2020, p. 392). Entretanto, sua conduta e hábitos contestam esses modos de ser princesa, quebrando paradigmas como toda menina é princesa ou princesas são assim criando tensões nas caixinhas de enquadramento no que se refere aos modos de se performar o gênero.

Outra protagonista dos filmes infantis que não aceita se enquadrar nos demarcadores de gênero que lhe são impostos é Merida, do filme Valente, causando tensionamento na sua própria denominação, ao evidenciar uma personagem feminina com essa característica de ser valente, que, além de menina, é princesa. Logo, já presume coragem, força, luta, enfrentamentos e inquietudes, opondo-se à figura de princesa dos clássicos que circulam ensinando normas regulatórias hegemônicas.

Muito questionadora de sua vida e nada contente por a todo momento ser cerceada em suas escolhas, Merida se pergunta o porquê de seus irmãos trigêmeos (meninos) terem liberdade para tudo e ela não ter liberdade para nada: “[...] eu sou a princesa, eu sou o exemplo. Eu tenho deveres, expectativas...”. O questionamento de Merida poderia ser respondido em uma enfatização de Meyer (2013, p. 24) quando a autora fala que as pessoas aprendem desde muito “[...] cedo - eu diria que hoje desde o útero - a ocupar e/ou a reconhecer seus lugares sociais e aprendem isso em diferentes instâncias do social através de estratégias sutis, refinadas e naturalizadas”. Desse modo, pode-se perceber como Elinor (a mãe) tenta encaixar Merida (a filha) no lugar de princesa que ela naturalmente deveria ocupar na sociedade quando se preocupa em querer planejar cuidadosamente a vida da filha. Assim, através dos ensinamentos, vai tentando moldar as posturas de Merida, prescrevendo condutas, comportamentos, hábitos que uma princesa precisa ter ou fazer como: ter conhecimentos sobre seu reino, não fazer desenhinhos, aprender a tocar instrumentos musicais, não rir de qualquer modo, não encher muito a boca, levantar cedo, ter compaixão, ser paciente e cautelosa “[...] e, acima de tudo, uma princesa deve buscar a perfeição”. Esses, segundo Elinor, seriam os aspectos mais desejados para compor a filha enquanto sujeita princesa.

Ao passo que Elinor conduz Merida para uma vida cheia de limitações e normas que buscam regular seus gostos, opiniões, condutas e comportamentos de acordo com as normas reiteradas comumente para meninas, ensinamentos inversos são direcionados para os trigêmeos, Harris, Hubert e Hamish (irmãos de Merida), que são criados de modo libertário, deixados livres para fazerem o que quiser, sem limitações ou imposições. Nessa mesma perspectiva, podemos perceber como, nas diversas instâncias sociais, são fabricadas normas reguladoras de sujeitos de acordo com o gênero, o que Louro (1997, p. 42), inspirada nas formulações de Michel Foucault, pondera como “[...] a normalização da conduta dos meninos e meninas”.

A princesa Merida, no entanto, produz rupturas com as condutas de normalização que lhe são endereçadas. Ela não se conforma com as prescrições generificadas de sua mãe quando, ao longo do roteiro do filme, mostra-se despreocupada com as normas de etiqueta, recusa os bons modos de moça recatada, é desajeitada, descuidada com a aparência, fala em tom elevado, é respondona, usa um arco e flecha... como pode se perceber na próxima cena quando Merida discute com sua mãe ao descobrir que ela está arranjando o seu noivado com um dos filhos dos lordes do reino, sem levar em consideração o seu consentimento:

Cena 2: Condutas de princesa

“Eu achei que uma princesa só cumprisse ordens”

“Uma princesa nunca levanta a voz. Merida, foi para isso que se preparou toda a sua vida”

“Não, foi para isso que você me preparou toda a minha vida. Eu não vou aceitar isso, não pode me obrigar”.

Merida se revolta com sua mãe não aceitando o destino que ela lhe tenta impor, rejeitandose a cumprir uma sina que não é almejada por ela, a mesma sina que é imposta a muitas meninas com a finalidade de fabricar mulheres do lar ou princesas do lar, mulheres recatadas, meigas, preocupadas com os afazeres domésticos, obedientes ao marido, aos pais, apaziguadoras dos conflitos, responsáveis pelo cuidado com os filhos. Esses modos de agir, entretanto, não são naturais. Como alertam Vasconcelos, Myrrha, Sales e Caldeira (2020, p. 401), tudo isso “[...] é também produto de ‘atos performáticos’ no modo de se viver o roteiro de produção do gênero”. Merida decide, então, inovar o gênero ao seu modo e vai se constituindo princesa e menina de um outro modo “[...] desviando do caminho designado” (Butler, 2018, p. 25). Após a conversa com a mãe, ela deixa o castelo ainda brava e se refaz nas suas aventuras pela floresta, escalando as montanhas, afiando sua pontaria com o arco e flecha, apreciando os riscos, os deslizes, a liberdade de andar a cavalo com o cabelo solto envolto a seus cachos ruivos, ensinando, em especial para as meninas, que as performances de gênero podem ser múltiplas.

Nessa mesma cena, Elinor ensina que “[...] uma princesa nunca levanta a voz”. O ato de fala elevado de Merida seria encarado como um comportamento grosseiro que não condiz com o tom de fala de uma princesa/menina. Assim como Elinor direciona Merida para uma fala dócil, mais recatada e gentil, o pai de Moana esperava o mesmo de sua filha, o consentimento para não transgredir suas regras. Essas nuances encaminham para uma designação similar do lugar de fala de meninas e mulheres, o do silenciamento ou de um discurso inaudível. De acordo com Louro (1997), o discurso não está apenas para a reprodução do poder, mas também pode impedir a difusão desse poder, assim como o silêncio não permite apenas sua disseminação, como também elucida suas fragilidades. Portanto, o discurso e o silêncio podem reverberar em ferramentas tanto da classe dominante quanto de grupos marginalizados, a depender dos interesses e dos embates travados culturalmente.

AS MARCAS DE RESISTÊNCIA DE MOANA E VALENTE: TENSIONAMENTO E RE-EXISTÊNCIA

Em outros trechos de cenas transcritos no delinear da história de Moana e de Merida ao longo dos filmes, podem ser perceptíveis muitas marcas que resistem às normas de gênero reiteradas que decorrem das cenas já problematizadas nas quais as duas personagens demonstram condutas e hábitos ditos como não naturais para meninas e esperados para os meninos. Na cena a seguir, por exemplo, quando Moana, após lidar com a falas preconceituosas de Maui, ajuda-o a reestabelecer seus poderes do anzol para conseguirem cumprir a missão. Com isso, ele, finalmente, reconhece que ela é uma garota corajosa:

Cena 3: Atos de menina corajosa

[Quando chegam a Te Ka, ela deixa que ele faça o que tem que ser feito. Porém, ele não consegue, ela o encoraja e pensa em outra possibilidade de entrar em Te Ka. No entanto, não acaba bem, o anzol de Maui quase foi destruído]

"Você é teimosa demais"

"Eu achei que nós podíamos"

"Nós?"

"Eu achei... que eu podia”

[Maui a deixa só, não acredita que ela possa realmente continuar ajudando-o. Ela mesma desiste de continuar e devolve o coração para o oceano. Após conversar com o espírito de sua vó, Moana repensa no que fez e chega à conclusão de que não é para ela desistir, afinal... ela é Moana, já enfrentou tantos perigos. Então, ela pega o coração novamente. Em um ato muito corajoso, ela decide cumprir essa missão sozinha. Sem a ajuda do semideus Maui, ela enfrenta o amedrontador Te Ka. Contando apenas com suas habilidades marítimas e coragem, ela consegue enganar Te Ka e chegar até Te Fiti. Maui logo chega para ajudá-la a chegar até o espiral enquanto ele despista o monstro. Moana se dá conta de que o monstro é de fato Te Fiti e o encaixe para o coração está nele. Muito sábia e corajosa, ela chama a atenção do monstro por meio da luz do próprio coração e ele vem até ela. Moana encaixa o coração e o monstro se transforma em Te Fiti]

Os termos em destaque denotam qualidades/marcas que constituem Moana e diferem daquilo esperado e ensinado para as meninas: ela é corajosa quando enfrenta os seus medos; é persistente quando, apesar das limitações que lhe impõem, ela acredita ser capaz e vai atrás do que realmente deseja; é sábia quando sabe discernir com destreza as decisões que precisa tomar; é ousada ao lidar com situações inusitadas; constitui-se guerreira ao passo que luta em prol de uma causa em que acredita e se faz teimosa ao não acreditar naturalmente nos discursos que lhe são narrados.

Ao confrontar as normas de gênero que lhe são impostas Moana se constitui menina de uma outra forma, ensinando, para outras meninas, que é possível resistir. Sobre a resistência, Foucault (1988, p. 91 apudLouro, 1997, p. 40) diz que esta não anda sem o poder, ou seja, a resistência e o poder caminham juntos. Nessa perspectiva, Moana simboliza os enfrentamentos, as lutas travadas com os dispositivos regulatórios de poder, incitando meninas a ocuparem outros espaços que não os que lhes são atribuídos em uma performance de gênero, a serem mais ousadas e capazes de provocar tensionamentos nas formas hegemônicas de representação das feminilidades e “[...] se a instabilidade é perturbadora, mais ainda nos parecerá a existência daqueles sujeitos que ousam assumi-la abertamente, ao escolherem a mobilidade e a posição de trânsito como o seu ‘lugar’” (Louro, 2013, p. 51).

Em Valente, as marcas de Merida se aproximam das qualidades de Moana. Quando a garota tenta dizer a todo momento para sua mãe que não aceita casar-se e diz para o seu cavalo: “[...] eu juro, Angus, isso não vai acontecer comigo, não se eu puder impedir”, ela encontra-se decidida a não se unir em matrimônio com um rapaz que ela mal conhece e sente que, ao contrário do destino que Elinor lhe impõe, ela talvez nunca esteja pronta para performar a figura de princesa que sua mãe deseja.

Com a chegada dos lordes e seus filhos príncipes, cria-se uma bagunça. Após a baderna resolvida, Elinor explica a todos como tudo deve funcionar: será feito um torneio com jogos para que o príncipe que se sobressair ganhe a mão de Merida. Elinor, então, propõe que a filha indique um jogo para a disputa e, gritando, Merida diz: “[...] arco e flecha, arco e flecha”. Na hora do torneio, entretanto, os acontecimentos não decorrem como o planejado:

Cena 4: Menina em confronto

[Na última prova do torneio, Merida se impõe] “Está na hora” (diz o rei Fergus).

“Arqueiros em suas posições” (diz a rainha Elinor e seu marido repete).

“E que a flecha sortuda encontre o seu alvo” (fala Elinor em tom vibrante).

[Enquanto isso, Merida observa tudo de sua poltrona e já esconde seu arco e flecha com ar de quem pretende aprontar]

“Ôhh anda logo com isso” (fala Fergus sem paciência).

[Os príncipes, entretanto, demonstram pouca habilidade com arco e flecha]

“Eu aposto que iria preferir jogar toras”

[Diz Merida para seu pai, após o primeiro príncipe atirar e passar muito distante do alvo. O segundo atira, mas não acerta no alvo, apesar de se aproximar. E Merida e seu pai continuam zombando da falta de habilidade dos príncipes. Porém, o último acerta o alvo]

“É... acho que agora é tarde, não é? Adivinha quem veio jantar...” (diz Fergus).

[Elinor reprova o comportamento de seu marido]

“Ah e a propósito, se incomoda de ser chamada de lady Ding?...”

[Quando olha para a poltrona ao seu lado, Fergus não vê Merida. E, então, ela aparece já sem a touca e a tiara que sua mãe lhe tinha obrigado a usar e, sim, com uma capa. Retirando o capuz, ela se apresenta]

“Eu sou Merida, primogênita descendente do clã DunBroch. E pela minha própria mão eu vou lutar”

[Todos ficam admirados com a rebeldia de Merida, principalmente sua mãe]

“O que você tá fazendo?!”

[Ela tenta atirar a flecha, mas o seu vestido apertado não a deixa]

“Ai que vestido inútil”

[Então, ela se movimenta e a costura do vestido se desfaz em alguns pontos. E, em um ato de confronto e valentia, ela atira a primeira flecha acertando em cheio o alvo]

“Merida, pare com isso!”

[Ainda mais brava, ela atira a segunda flecha]

“Não se atreva a disparar outra flecha, Merida, eu proíbo você!”

[Ainda mais confiante, ela confronta sua mãe e atira a terceira flecha com plena determinação de uma ótima arqueira]

Após performar essa cena inusitada de embate entre normas e tensões, no desenrolar do filme, Merida continua se negando a trilhar um caminho alheio às suas vontades e protagoniza outras cenas de tensionamentos e conflitos capazes de subverter o seu destino que, ao final, difere do que é reiterado. No final feliz da princesa Merida, o príncipe não ocupa espaço e nem mesmo as reiterações de gênero, deixando um ensinamento para todos/as aqueles/as que acreditam na predestinação do destino: “[...] alguns dizem que o destino está além do nosso controle, que não escolhemos nossa sina, mas eu sei a verdade. Nosso destino vive dentro de nós, você só precisa ser valente o bastante para vê-lo”.

As marcas de resistência das personagens do filme Moana e Valente apresentam narrativas que dialogam com pretensões que se conversam ao acionarem formas outras de ser menina, de ser princesa, de ser mulher não só resistindo, como também re-existindo. Assim, “[...] o conceito de re-existência, por sua vez, será utilizado para se referir à criação de outros possíveis, de outros modos de se performar o gênero, a partir dessa contestação” (Vasconcellos, Myrrha, Sales, Caldeira, 2020, p. 392). É por meio do não silenciamento, da imposição às normas que lhe são atribuídas, do encorajamento, rebeldia, força, determinação, sabedoria, do embate direto com as regulações, que elas se refazem a partir do que já são, constituindo modos outros de identidade, a qual, , nas palavras de Paraíso (2010, p. 47), “[...] é entendida como construída socialmente na relação com a diferença, como não unificada, incoerente, multifacetada, inacabada e em permanente processo de construção” de sujeitas femininas e de princesas, revolucionando e possibilitando cenários múltiplos na performatividade de gênero nas instâncias sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através dos discursos presentes nos filmes analisados, enquanto currículos culturais não escolares, pode ser possível perceber como eles incidem na construção de subjetividades femininas, como também em outras subjetividades. Esse tipo de construção permite que crianças, jovens e adultos atentem para a performance de resistência, em especial, a de sujeitas femininas, incitandoas e inspirando-as para performances outras que se contrapõem as naturalizadas, seja contestando normas regulatórias, levantando indagações sobre verdades tidas como fixas, acabadas e naturais ou visibilizando modos de subversão de destinos considerados imutáveis.

Ao mesmo tempo, esses currículos possuem pretensões interessadas, inerentes ao exercício do poder. Portanto, tais currículos necessitam de problematização, a fim de que possam ser percebidos “[...] como produções e criação, e não como produtos acabados” (Paraíso, 2010, p. 40), objetivando “[...] desconstruí-los, desmontá-los, mostrar sua feitura, seu processo de fabricação” (Paraíso, 2010, p. 40). Isso porque são resultados também de relações de poder, ou seja, de disputas e negociações do seu tempo. Por isso, esses filmes mais recentes visibilizam outras narrativas que são efeitos das lutas dos movimentos feministas intelectuais, acadêmicas e/ou militantes que tensionam constantemente as verdades fixas sobre o que é ser menina/mulher na sociedade.

As mudanças no roteiro, na narrativa e enredo desses filmes dizem - e muito - do modo como a compreensão de gênero é um conceito em disputa, sujeito às questões históricas, efeito de movimento e dos corpos que insistem em resistir e reinventar a vida de outras formas, para que, assim, de algum modo, não se sigam os ditames, prescrições daquelas receitas comumente visibilizadas e ensinadas às mulheres para que conduzam suas vidas a forno e fogão, mas, sim, inventando outros sabores para si mesmas.

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Recebido: Agosto de 2023; Aceito: Outubro de 2023

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