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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.75 Rio de Janeiro oct./dic 2023  Epub 26-Dic-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.79085 

“Vocês são importantes…”: questões de alteridade e diferença nas políticas curriculares

CURRÍCULO-QUILOMBO NA ESCOLA DO FIM DO MUNDO

QUILOMBO-CURRICULUM AT SCHOOL OF THE END OF THE WORLD

CURRICULUM QUILOMBO EN LA ESCUELA DEL FIN DEL MUNDO

Albert Henrique de J. Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-3662-9973; lattes: 8820184586775971

Iris Verena Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0001-7041-3327; lattes: 4935185086128673

1Mestrando do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação Profissional/Universidade do Estado da Bahia (UNEB, Campus XIV)

2Professora do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação e Diversidade/Universidade do Estado da Bahia (UNEB, Campus XIV)


Resumo

Este estudo trata sobre o currículo-quilombo, a partir da concepção de Beatriz Nascimento, referindo ao currículo descentralizado e em movimento, constituído pelas produções afetivas da negritude no contexto escolar. Assim sendo, espera-se mobilizar uma luta antirracista que está sendo fomentada neste espaço através de performances negras que sensibilizam múltiplas formas de existência, buscando, deste modo, tensionar o pedestal humanista/colonial produzido pela modernidade. Para isso, pretende-se acionar o pensamento negro radical, atrelado ao debate pós-estrutural da diferença, para sensibilizar potências que subvertem a noção de humanidade imposta pelo colonialismo. Em outras palavras, o que interessa para a experimentação deste currículo é justamente essa im/possibilidade de contê-lo, tocá-lo, planejá-lo, classificálo. É nesse currículo que se (des)encontra a luta antirracista, afetiva e afro-diaspórica performada pela negritude no contexto escolar. Portanto, assumindo a impossibilidade de alcançar o status moderno de humanidade, apresenta pistas para a escola após o fim do mundo, a partir do debate proposto por Denise Ferreira da Silva e Wilderson III.

Palavras-chave: currículo; quilombo; afropessimismo; educação antirracista.

Abstract

This study deals with the quilombo curriculum, based on the conception of Beatriz Nascimento, referring to the decentralized and moving curriculum, constituted by the affective productions of blackness in the school context. Therefore, it is expected to mobilize an anti-racist struggle that is being promoted in this space through black performances that raise awareness of multiple forms of existence, seeking, in this way, to tension the humanist/colonial pedestal produced by modernity. To achieve this, the aim is to activate radical black thought, linked to the post-structural debate on difference, to sensitize powers that subvert the notion of humanity imposed by colonialism. In other words, what matters for experimenting with this curriculum is precisely this impossibility of containing it, touching it, planning it, classifying it. It is in this curriculum that the anti-racist, affective and Afro-diasporic struggle performed by blackness in the school context is (dis)found. Therefore, assuming the impossibility of achieving the modern status of humanity, it presents clues for the school after the end of the world, based on the debate proposed by Denise Ferreira da Silva and Wilderson III,

Keywords curriculum; quilombo; afropessimism; anti-racist education

Resumen

Este estudio aborda el currículo quilombo, a partir de la concepción de Beatriz Nascimento, refiriéndose al currículo descentralizado y en movimiento, constituido por las producciones afectivas de la negritud en el contexto escolar. Por tanto, se espera movilizar una lucha antirracista que se está impulsando en este espacio a través de performances negras que visibilizan las múltiples formas de existencia, buscando, de esta manera, tensar el pedestal humanista/colonial producido por la modernidad. Para lograrlo, el objetivo es activar el pensamiento negro radical, vinculado al debate postestructural sobre la diferencia, para sensibilizar a las potencias que subvierten la noción de humanidad impuesta por el colonialismo. En otras palabras, lo que importa para experimentar este currículo es precisamente esta imposibilidad de contenerlo, tocarlo, planificarlo, clasificarlo. Es en este currículo donde se (des)encuentra la lucha antirracista, afectiva y afrodiaspórica que realiza la negridad en el contexto escolar. Por lo tanto, asumiendo la imposibilidad de alcanzar el estatus moderno de la humanidad, presenta pistas para la escuela después del fin del mundo, a partir del debate propuesto por Denise Ferreira da Silva y Wilderson III,

Palabras clave curriculum; quilombo; afropesimismo; educación antirracista

RACIALIDADE NA ESCOLA

A discussão racial na teoria pedagógica brasileira, a partir da perspectiva crítica, toma como premissa a noção de sujeito, com o intuito de reivindicar pelo reconhecimento e na luta por direitos. Esse posicionamento que é alinhado ao pensamento sociológico da academia no Brasil sobre raça, aliado aos embates promovidos pelos movimentos sociais, produzem promessas de equidade, justiça social e o acesso à escola, defendendo que a condição de pertencimento seria uma barreira às violências raciais e ao epistemicídio1.

Ao tempo em que são feitas projeções de educação antirracista pela academia, nas políticas curriculares nacionais e em meio as reinvindicações dos movimentos sociais, o currículo está sendo vivenciado no ambiente escolar de forma fluída e efêmera. Por isso, trataremos sobre currículosdesejantes, em meio aos seus fluxos afetivos e performados pela negritude espraiados no contexto escolar. Acionamos tais performances para experimentar um jogo de relações que desestruturam o pedestal hegemônico moderno que associa humanidade aos corpos brancos, na concepção linear de tempo e no conhecimento sustentado na razão. (Ferreira da Silva, 2022)

Em referenciais curriculares estaduais e nacional, percebemos o uso de termos caros às lutas dos movimentos negros fundado em uma linearidade que afasta processos como o da escravização do tempo presente. Por conta dessa formação que nos atravessa, seguimos reagindo com estupefação aos casos de racismo, registrados em câmeras de celular e de segurança, com reações de indignação que não raro remetem ao tempo "Em pleno século XXI...!" Os casos se repetem diuturnamente e a surpresa recorrente nos acompanha, sem que esse estranhamento alimente refutações ao sólido processo formativo lastreado na linearidade temporal. Ao questionar os fundamentos epistemológicos da ciência moderna, para enxergar práticas curriculares desenhadas nas paredes das escolas, duvidamos que seja possível “[...] derrubar a casa-grande com as ferramentas do senhor”, como nos alertou Audre Lorde (2019, p. 137). Que afetações curriculares deixamos de ver, ao mirar na promessa de inclusão racial? O que seria um currículoquilombo na escola do fim do mundo, proposta neste texto?

Assumimos aqui a acepção de quilombo de Beatriz Nascimento, para pensar corpo como zonas de fuga, portanto ao apontar para o currículo-quilombo nos referimos ao processo formativo que contempla corporeidade, subjetividade e território. Trata-se de pensar práticas curriculares como espaços de liberdade, fuga e refúgio (Ratts, Gomes, 2015). Longe de recair nas limitações propostas por referenciais curriculares oficiais, olhamos para as múltiplas performances, encenações e fabulações, que seguem produzindo adiamentos, para o significante negro.

Defendemos, portanto, que a luta antirracista na escola não se sustenta em currículos eurocêntricos, estratificados e que coloca as negritudes no não-lugar (Fanon, 2008), mesmo quando currículos propõem a inclusão de conhecimentos que remetem a experiências africanas e afrobrasileiras. Neste sentido, propomos uma concepção de currículo para a escola do fim do mundo, do mundo tal qual conhecemos e que se funda em uma concepção do humano que jamais seremos (Ferreira da Silva, 2022). No currículo-quilombo a luta antirracista é experimentada através de afetos, desejos, criações, improvisações e performances estético-políticas mobilizando, assim, um currículo im/possível.

Dialogamos com a produção negradesejante que ocorre no ambiente escolar, em práticas curriculares não-localizáveis e presentificadas em performances negras, cuja significação como negra está em disputa. (Deleuze, Guattari, 2011). Portanto, nos interessa tratar do currículo sem fundamentos, o que não pode ser previsto, que não atende aos ditames da linha do tempo já que produz nas relações entre humanos e menos que humanos no ambiente escolar. (Sharpe, 2023)

ESCOLA DO FIM DO MUNDO

Em ser prete ou ser nada: misticismo na carne, Fred Moten (2021) busca, no nada, a força da negritude e, com isso, aciona uma espécie de otimismo na morte do ser humano, no flerte pelo fim do mundo. A condição de ser nada é interrogada pelo autor, que questiona também “Aonde vamos e por quais meios começar com os estudos da pretitude?” Na esteira dos comentários dele, seguimos com os nossos que são instigados pelas idas e vindas na escola e na leitura de documentos curriculares nacionais, que perseguem o universalismo. “É possível existir uma sociologia estética ou uma poética social do nada? Podemos performar uma anatomia da coisa ou produzir uma teoria da máquina universal?” (Moten, 2021, p. 138). Quais são os papéis do corpo e do território, na condição de ser nada? Refiro-me às performances da negritude que se apresentam longe dos muros da universidade ou dos centros urbanos. Em outras palavras, como pensar nesta luta antirracista constituída pelo nada de uma escola do espaço rural do interior da Bahia? Ouvindo o eco das palavras de Sylvia Wynter (2021), como pensar um currículo-quilombo, frente à lógica classificatória da raça na qual se funda “[...] a premissa fundante de nossa atual ordem de conhecimento, ou episteme, e seus paradigmas disciplinares rigorosamente elaborados”? (Wynter, 2021, p. 77).

Na escola pública em que um de nós atua, as paredes são telas que comportam grandes desenhos, rabiscos, nomes e símbolos estampados. As produções estético-políticas, por vezes, não apresentam uma autoria explícita, ao menos para profissionais que lá atuam. As cenas apresentam pênis gigantes, em meio a corações e frases de efeito e pontos de interrogação, que indicam outras significações para os escritos, diferente das interpretações usuais. Para a instituição escolar, as cenas produzem incômodo; tamanho é o perigo que logo se propõe a apagar os rabiscos - subversivos, quase criminosos e, por isso, sem autoria declarada.

Quais pistas pode-se perceber nestas produções? Enquanto o humanismo hegemônico tenta se apresentar na linguagem transparente, em meio aos significados e significantes, as palavras, a razão, o intelecto, o que resta para a negritude é o evento, a ruptura, a subversão, a diferença. O não-ser fanoniano (2008) lateja, não para alcançar o lugar privilegiado da palavra, mas para constituir no nada a força necessária para rompê-la. Por isso, se os rabiscos se manifestam como uma quebra na linearidade moderna, um currículo-desejante constitui-se de acontecimentos e improvisações da negritude. A transgressão dos rabiscos também se apresenta pela opacidade, pelos códigos que não são decifráveis por todos, por indicar o que aquelas educadoras não sabem.

A figura recorrente do pênis nas carteiras, quadros e paredes escolares, nos remete ao grande falo de Exu, o senhor da comunicação e das encruzilhadas. E se vemos Exu nos desenhos, talvez esteja aí a resposta para o clamor de Elza Soares que, ao interpretar a música de Edgar Pereira da Silva e Kiko Dinnuci, nos diz: “Exu no recreio/Não é Xou da Xuxa/Exu brasileiro/Exu nas escolas/Exu nigeriano/Exu nas escolas/E a prova do ano/É tomar de volta/A alcunha roubada/De um deus iorubano”. Se Exu está sendo levado por meio dos rascunhos de jovens estudantes para espaço escolar, temos há um só tempo o questionamento da transparência, promovendo a confusão entre quem enxerga o gorro preto e o vermelho; pela subversão do espaço público de um Estado laico, que por vezes ostenta diversos símbolos cristãos e pela encruza, que prova o movimento de diversos saberes (Martins, 2021).

Os rabiscos transgressores indicam uma produção curricular protagonizada pelo corpo estudantil, o que contraria, a um só tempo, a teoria pedagógica e os documentos curriculares oficiais para os quais a luta antirracista na escola se daria a partir de ações mobilizadas por profissionais da educação, principalmente professoras. Enquanto isso, o slam que ocorre nos intervalos, os desenhos produzidos como recusa às atividades propostas, o som que toca nos fones de ouvido e a estética de jovens negros no espaço escolar seguem sendo ignorados como produção curricular, ainda que gritem como desobediências ou produzam desenhos que choquem a moralidade dos que regulam estes espaços, já lidos por estudantes como escolas do fim do mundo.

O fim do mundo, por esse modo, torna-se a possibilidade mais viável para a negritude, dado que “[...] se, como afirma o afropessimismo, negros não são sujeitos humanos [...] e não funcionam como sujeitos políticos; em vez disso, [...] são instrumentalizados em favor de agendas do pensamento [...]” (Wilderson III, 2021, p. 24), então, as teorias e narrativas pró-humanidade se somam às inúmeras formas de violência contra a negritude. Logo, é através da angústia e da aproximação deste fim que possibilidades de outras existências se tornam mais evidente. Trata-se da necessidade de matar os seres humanos, para que os mortos possam se levantar (Freitas, Messias, 2018).

Neste sentido, em diálogo com um jovem negro e gay do ensino fundamental II, após um desmaio no meio da tarde, foi exposta uma situação desesperadora da impossibilidade de uso do banheiro masculino por medo do linchamento, ou, a negritude aqui manifestando-se como uma ameaça à humanidade do branco-hétero, ao mesmo tempo em que, “[...] sem o negro, ninguém seria capaz de saber como é um mundo sem redenção” (Wilderson III, 2021, p. 257). Despindo-se do corpo de garoto, mas não da ginga performada da negritude, projetam-se meios para criar outros mundos em que as classificações não serão mais necessárias. As difrações produzidas na luta antirracista se desdobram no impulsionamento de práticas curriculares possíveis nestes mundos pós-apocalípticos. O corpo cansado de assujeitar-se só quer deixar de ser sujeito e fluir em potência e criação, pois “[...] o que a sociedade civil quer/precisa das pessoas negras é muito mais essencial, muito mais fundamental do que terra e lucro. O que a sociedade civil precisa das pessoas negras é a confirmação da existência humana” (Wilderson III, 2021, p. 249).

Por isso, o currículo-norma, a escola, o jurídico, a ciência, ambos precisam prover a manutenção deste outro racializado para existir. A escravização não é mais garantida legalmente pelo Estado, enquanto produz outras formas de desumanizar a negritude para prover a existência da espécie (moderna) humana. A condição de ser nada parece, per si, uma indistinção entre o alívio e a morte. Em outros termos, enquanto políticas públicas são criadas para alimentar o destino branco desejado pelo inconsciente negro (Fanon, 2008), a mutilação corporal da negritude continua sendo necessária. E a escola tal qual conhecemos, ocupa um importante papel nesse cenário, bem como as transgressões que produzem brechas nesse mesmo espaço. Em meio às tentativas de aniquilamento corporal e do epistemicídio, irrompe improvisações e performances que produzem rupturas, rachas, quebras através de aquilombamentos (Moten, 2023), ou seja, quando a palavra escapa, o que resta é o evento. Deste modo, a luta antirracista encontra-se na encruzilhada, descentralizada, como fluxo afetivo que tensiona o mundo como conhecemos (Martins, 2021).

O currículo-quilombo que está sendo mobilizado é, deste modo, experimentado, re-criado, performado e potencializado pela negritude no esforço diário de se despir deste ideal humano e branco denunciado por Fanon (2008). Não há mais espaço para a resistência neste currículo. O garoto negro e gay que não se arrisca entrar no banheiro masculino cansou de resistir. O seu desmaio é lido a partir de sua condição de menos que humano, cujas aulas de história e cultura afro-brasileira, não apresentam condições de reduzir as opressões. Nota-se um esforço quase contraditório de perceber que a única saída é se desumanizar - de uma vestimenta modernacolonial - para se tornar algo além de um objeto entre outros objetos. E que para tornar-se um mundo possível, faz-se necessário sua destruição. Deste modo, o desejo da negritude encontra-se atrelado à produção de um estado caótico-apocalíptico do mundo, isto é, trata-se de uma luta antirracista que experimenta no espaço escolar uma pós-vida: a escola do fim do mundo.

Tratar do currículo-quilombo é assumir que a negritude se manifesta como aquilo que não pôde ser contido pelas tentativas de representação do currículo-norma. A estética da negritude torna-se inerente ao desejo (Deleuze, Guattari, 2010) por meio de performances afetivas que já estão em curso nos espaços escolares. “Devemos, agora, desfazer a narrativa que os aprisiona em condenação” (Wynter, 2021, p. 100). Logo, se toda performance negrafetiva é possibilidade de existir para além da vida, a luta antirracista se manifesta como condição não-localizável de uma estratégia para o fim do mundo. Isto significa uma luta vivida, experimentada, em constante processo de subjetivação - a instabilidade do currículo condiz, justamente, com esta im/possibilidade de conter e prever as performances afetivas da negritude. A diferença é produzida por adiamentos em processos performáticos de subjetivação, que elaboram o espaço escolar a partir do corpo, território e da subjetividade, por meio de fluxos de forças que elaboram cenas criativas capazes de produzir existências. É por meio das improvisações inerentes à negritude que o quilombo cartografa e produz currículo. Num processo de improvisação, em meio ao redemoinho produzido na encruzilhada, morada de Exu - aquele que possui a boca que tudo come - corpo, sons e rabiscos são improvisados (Moten, 2023; Martins, 2021; Nascimento, 2022). Recorremos à cartografia, como quem desenha movimentos de currículo modulados por improvisações. A luta antirracista neste contexto não recorre a ligações fixas, reconhece conexões por vezes nãolocalizáveis, experimentando fluxos afetivos na encruzilhada dos instrumentos normativos do ambiente escolar e da atenção aos movimentos transgressores também produzem modulações curriculares.

Ao pensar currículo, a partir da noção de quilombo de Beatriz Nascimento (2022) mobilizamos os questionamentos da autora sobre identidade cultural negra, lida como negação das singularidades, processos de singularização ou não. A historiadora (Nascimento, 2022, p. 99-100) se contrapõe à imposição de “[...] uma ditadura dos comportamentos e condutas [que] cobraria modelizações, às vezes impossíveis de atingir em se tratando de indivíduos diferenciados e dessemelhantes”. Segunda ela, essa concepção de identidade cultural negra, impediria o devir negro. Para Nascimento (2022, p. 104), “[...] a negritude, portanto, não é hegemônica nem no espaço, nem no tempo.” Sendo assim, o compromisso com a luta antirracista no currículo não implica no estabelecimento prévio do que cabe na ideia de negritude, o que por sua vez implica na impossibilidade da organização preliminar dos conhecimentos necessários para crianças e jovens negros nas escolas, o que promoveria um estacamento do devir negro e, portanto, da diferença.

A concepção de quilombo é defendida, aqui, em meio a uma perspectiva individual de ação, do empreendedorismo de si presente nas propostas curriculares oficiais, conectadas com (neo)liberalismo contemporâneo. Sabe-se, por exemplo, a partir das críticas realizadas por Fanon (2020) ao sistema psiquiátrico e psicológico, que descaracterizar a dimensão social, cultural e histórica das afetações, colocando-as no nível do indivíduo, resulta na manutenção das bases colonialistas, estigmatizantes e racistas da dimensão psicossocial da negritude. Deslocada da categoria de humanidade, construída num viés ocidental/eurocêntrico, não haveria espaço para as produções afetivas e desejantes das populações negras. Nesta perspectiva, sendo as performances afetivas da negritude medidas por um parâmetro branco-normativo, ocorre o processo de deslegitimação/desumanização dos afetos outros. Deste modo, atualizam-se os processos de objetificação, reajustados pelo sistema colonial-capitalista. Diante do vestígio (Sharpe, 2023) - que segue colocando as vidas negras em perigo - “[...] os racistas não pensariam jamais que oculto no interior do ‘negro’ há afeto, embora o mundo externo seja adverso, sofredor...” (Nascimento, 2022, p. 102)

Ao aproximar as leituras fanonianas de perspectiva pós-colonial aos questionamentos ontológicos que tratam da urgência do descentramento do ser, do sujeito, da política, dos afetos e das performatividades do desejo (Faustino, 2022), nos perguntamos se nessa concepção de ser, caberiam as pessoas negras. Neste movimento, as propostas de Franz Fanon acenam para uma descentralização dos afetos da negritude e, com a abolição do humano, o que resta, possivelmente, são as relações de força, os fluxos desejantes e as improvisações da estética radical preta (Moten, 2023).

Nesta perspectiva, mobilizamos os rabiscos nas paredes mencionados anteriormente, atentando para as improvisações performadas no contexto escolar. Os símbolos produzidos nas paredes, carteiras e banheiros não estão ali para serem representados e investigados. Antes de mais nada, os rabiscos são experimentados, passando a fazer parte destas relações de força em assincronia na escola, ainda que sejam constantemente apagadas e censuradas. Os desenhos/rabiscos impregnados nas paredes acenam para movimentos de ruptura às violências da norma, do Estado através de suas instituições. Neste cenário, uma luta antirracista se apresenta através de afetos que não são constituídos apenas por palavras, representações e significados.

Nem sempre as palavras comunicam, às vezes elas são “[...] restringidas por sua redução implícita aos significados que carregam - significados inadequados aos ou separados dos objetos ou estados das coisas que envolveriam. [...] onde as palavras chegam?” (Moten, 2023, p. 79). Enquanto seguimos, buscamos a atuação antirracista nos arquivos oficiais da escola: suas cadernetas, livros didáticos e avaliações; ao olhar para os registros nas paredes, nos lembramos dos esforços da pesquisadora Saidiya Hartman (2020, p. 15), que ajuda a olhar as brechas que irrompem tão escondidas à nossa frente: “[...] escutar o não dito, traduzir palavras mal interpretadas e remodelar vidas desfiguradas” Com isso, presencia-se na improvisação as performances afrodiaspóricas que não só existem, mas racham e reviram a norma.

A luta antirracista se faz na diferença em si mesma, uma diferença preta (Pacheco, 2020). São esses traços que apontam para escola do fim do mundo e para o currículo-quilombo: inconstante e imprevisível do devir negro, no qual não cabem a linearidade e a transparência do projeto moderno/colonial de escola. As performances da negritude no contexto escolar seguem tensionando o fim do mundo moderno, questionam as formas de existência atreladas à objetificação e escravização contemporâneas. É desta zona cinzenta do não-lugar, ou da nadificação - neste espaço vago deixado entre o ser humano e a terra - que as possibilidades da escola do fim do mundo se materializam.

O currículo que se apresenta neste cenário, entrelaçado com este lançar-se para o fim em busca da vida, se encontra nos vestígios com seus borrões; cinzento, rabiscado. Currículo-desejante, currículo-quilombo; sem os rostos, sem identidade, sem conteúdos/significados que impulsionam as tentativas de aniquilamento do corpo negro - currículos em que os mortos se perguntam como tirar os vivos de cena (Freitas, Messias, 2018).

O QUE RESTA À ESCOLA DEPOIS DO FIM?

O currículo que já está sendo mobilizado desde o início deste estudo condiz com uma experimentação que denota as múltiplas facetas que as performances afro-diaspóricas podem alcançar. Numa dança entre a imprevisibilidade dos passos e os caminhos tortuosos por onde o fluxo afetivo pode levar, encontra-se um currículo-desejante sem forma e sem rosto. Desdobra-se, primeiro, um currículo mobilizado pelo estar-no-mundo (Oliveira, 2020), ou melhor, ele se torna (im)possível devido às relações de força presentes no mundo, sua força coextensiva - não fazendo parte dele, mas sendo e produzindo o mundo.

Por isso, é um currículo im/possível, um currículo-quilombo. Tendo em vista que à negritude foi atribuída a falta de razão, assume-se aqui a noção de menos que humanos, de afetados, atentando para o campo de forças e intensidades, que mobilizam e invadem um corpo-currículosem-órgãos. Práticas curriculares que produzem e são produzidas pelo devir negro. Enfim, um currículo performado pela negritude que existe e se manifesta na medida em que a norma tenta abafá-lo. Um currículo sendo na/da diferença.

Primeiro, a improvisação aqui situada como performance afro-diaspórica é mobilizada numa perspectiva de ruptura, quebra, acontecimento: “Talvez a transcrição de um borrrrrão (sic) improvisatório da palavra; talvez uma improvisação pela diferença singular do idioma e do seu acontecimento” (Moten, 2023, p. 83), talvez... O que resta, após o fim do mundo, é o nada do qual Fanon (2008) tenta extrair toda a sua potência. O currículo-quilombo flerta com esse nada, e é constituído por ele - e se é um nada, esquecem-se as disciplinas, o conteúdo, as palavras, as significações, a representação, enfim, os órgãos. No campo dos afetos, não há o normativo, concreto, formal.

A produção de afetos é o que garante um currículo borrado e aberto ao mundo. É esta potência que a luta antirracista descentralizada pretende alcançar e, para isso, o currículo normativo precisa ser encarado de frente. Se o mundo ainda não acabou e os corpos com seus órgãos estão presentes, o que resta é improvisar para tencionar os deslocamentos necessários que fazem fluir outras possibilidades de pesquisa em educação (Oliveira, Moreira, 2021). O apelo de Sylvia Wynter (2021) ao questionar a lógica classificatória da raça e seus paradigmas disciplinares só pode ser ouvido, na medida em que o mundo se desmorona e o currículo fica assim, sem chão, flutuando no ar. Agora se apresenta a ausência do centro, ou a multiplicidade dele.

Entende-se, deste modo, que o currículo improvisado, afetivo-diaspórico, é composto pelo movimento da negritude e, com isso, a luta antirracista encontra o seu maior feito - talvez não o último. Os rabiscos turvos, emaranhados e que mancham as paredes da escola compõem as linhas que des-formam o currículo construído e experimentado pela própria negritude. A reivindicação aqui não é para que o sofrimento do garoto negro e gay se torne conteúdo ou tema, tratado no mês de novembro; identificamos a situação como articuladora dessas linhas que se descompassam no território-corpo aberto que é o currículo.

O currículo-desejante, negroafetivo, encontra-se em ebulição na escola, ganhando vida na medida em que o peso e a frieza da norma tentam abafá-lo. Deste modo, uma política curricular fica sem um território físico para se apoiar, tendo em vista que o desejo produz uma noção disforme, não-linear e instável do espaço-tempo da escola, lançando, desde então, possibilidades múltiplas de existência. No currículo (im)possível o desejo flui e a negritude se apresenta como subjetividade, corpo e território. Na perspectiva afropessimista de Frank Wilderson III (2021), a impossibilidade não significa o inalcançável ou uma utopia idealista, mas a luta concreta por liberdade. Estar no não-lugar propõe uma mobilização de forças, ou criação de multiplicidades que vão além do esperado pelos referenciais curriculares - a norma, as políticas curriculares, os quefazeres, todos ocupam um espaço localizado, representado, contido.

Com isso, é neste movimento de conceber essa (im)possibilidade de ser-no-mundo negro que parece se encontrar a esperança e o afago da negritude. A (im)possibilidade de conter os rabiscos nas paredes das escolas, a insubmissão do ato da escrita (Anzaldúa, 2000), os improvisos rítmico-sonoros sem palavras da tradição preta na música, a instabilidade dos afetos negros, o escorrer da diferença, as (im)possibilidades de vida enquanto se morre.

Nessas (im)possibilidades é que o currículo-desejante, currículo-quilombo se de-forma e se movimenta, contrapondo-se à violência racial enquanto pedra angular da modernidade (Ferreira da Silva, 2022). O não-lugar da constante objetificação e o alívio de se perceber caminhando rumo ao im/possível. Essas artimanhas do (im)possível tornam-se, com isso, as linhas de fuga que a racionalidade se vê despreparada de analisar, apagar, abafar. Na esteira do questionamento de Denise Ferreira da Silva (2019) sobre o que acontece depois do fim, isto é, depois de uma virada ontoepistemológica que desmembra os ideais da modernidade, noto um currículo que se movimenta em conjunto com o fluxo afetivo da negritude, um afeto preto. Com isso, as múltiplas e imaginadas configurações de vida são colocadas em jogo, vidas essas, ainda imaginadas, reencenadas e performadas pelos corpos negros. Sem a separabilidade, previsibilidade e racionalidade do modernismo, a violência racial fica sem espaço neste currículo-desejante.

Esperamos com este estudo acionar a (im)possibilidade do currículo imaginado, que se reconfigura nas improvisações e performances da luta antirracista, porém, na medida em que o abismo se aproxima e o ser humano moderno/colonial vai encontrando o seu fim, evidencia-se a necessidade de re-compor e produzir cenas im/possíveis. Através do currículo-quilombo, que permite o improviso e performa o impossível que trouxemos pistas para a escola do fim do mundo. Foi a partir do reconhecimento das artimanhas de Exu, que já está na escola, que aciono a força produtivo-afetiva da luta antirracista e, por consequência, o currículo descentralizado, afetivo e desejante. Sem sujeitos e objetos, espaço e tempo, sem dualismos classificatórios; para uma escola imprevisível que reconheça o devir negro que pulsa em rascunhos, desenhos e outras narrativas.

Portanto, depois do fim resta inventar e reconhecer as invenções em curso. Neste contexto, o que está em jogo quando se pretende um currículo performado e uma luta antirracista descentralizada é justamente se desvencilhar deste lugar chamado escola que coloca o corpo negro como um objeto de estudo - e posteriormente, uma emancipação. Como afirmou Beatriz Nascimento (2015, p. 50), “[....] querem nos dar uma consciência, uma consciência que talvez seja a deles (brancos)”. Ou seja, a escola que busca conscientizar segue no espaço-tempo moderno, ancorado no mesmo racionalismo que aniquila as populações negras.

Na escola depois do fim, está na encruzilhada, nela cabe Exu movimentando o mundo em seu redemoinho, (Ferreira da Silva, 2019; Martins, 2021) com o desenvolvimento do currículoquilombo, constituído por um jogo afetivo de força e intensidades. Portanto, a escola depois do fim é a escola de (im)possibilidades.

1Agradecemos aos(às) colegas dos grupos de pesquisa: Currículo, escrevivências e diferença e Giros curriculares, cujos diálogos estimularam a escrita deste texto.

REFERÊNCIAS

ANZAÚDUA, Glória. Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, 2000. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880. Acesso em 4 ago. 2023. [ Links ]

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 1. São Paulo: Editora 34, 2011. [ Links ]

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Recebido: Setembro de 2023; Aceito: Novembro de 2023

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