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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.75 Rio de Janeiro oct./dic 2023  Epub 26-Dic-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.79075 

Ensaios

INFÂNCIAS QUEERS IMPORTAM?! Precariedade, subjetivação e dissidências didático-curriculares

QUEERS CHILDHOODS MATTER?! Precariousness, subjectivation and didactic-curricular dissent

¿!LAS INFANCIAS QUEERS IMPORTAN?! Precariedad, subjetivación y disidencia didáctico-curricular

Robson Guedes da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-0165-1430; lattes: 6509470367386808

1Universidade Federal da Paraíba (UFPB)


Resumo

Este ensaio abraça o intuito de problematizar as infâncias queers, entrevendo em suas superfícies corporais, efeitos político-performativos e dissidências didático-curriculares. Querendo, com isso, tanto debater a noção de infância queer e as formas difusas de precariedade que vivenciam como ação normativa em suas superfícies corporais; quanto evidenciar as fissuras constitutivas engendradas pela força performativa de seus corpos em contraposição à ação governamentalizada da política da aparência. Inicialmente retoma a problematização do surgimento da infância e sua relação com a emergência da modernidade e da instituição escolar, para, em seguida, tensionar a constituição de variadas práticas de produção de vidas intensamente precarizadas e o engendramento de uma aparência normativa para as infâncias queers que circunscrevem termos inteligíveis para o reconhecimento, desumanização e vulnerabilização de seus corpos. Dessa forma, tece algumas provocações sobre o cenário contemporâneo, apontando certas práticas conservadoras atuais e suas reiterações em torno de um regime normativo das infâncias, e entrevendo, como devir, as infâncias queers articulando, através do aparecimento, a proliferação potente de formas dissidentes de estar no mundo no urdimento de afetações didático-curriculares fortemente queerizadas.

Palavras-chave: infâncias queers; precariedade; educação

Abstract

This essay embraces the aim of problematizing queers childhoods, perceiving in their bodily surfaces, political-performative effects and didactic-curricular dissidences. Wanting, therefore, to debate the notion of queer childhood and the diffuse forms of precariousness that they experience as a normative action on their bodily surfaces; as well as highlighting the constitutive fissures engendered by the performative force of their bodies in opposition to the governmentalized action of the politics of appearance. Initially, it revisits the problematization of the emergence of childhood and its relationship with the emergence of modernity and the school institution, and then tensions the constitution of varied practices that produce highly precarious lives and the engendering of a normative appearance for the queers childhoods that it circumscribes intelligible terms for the recognition, dehumanization and vulnerability of their bodies. In this way, it weaves some provocations about the contemporary scenario, pointing out current conservative practices and their reiterations around a normative regime of childhood, envisioning, as a future, queers childhoods articulating through the appearance, the powerful proliferation of dissident ways of being in the world in the fabric of strongly queerized didactic-curricular affectations.

Keywords: queers childhoods; precariousness; education

Resumen

Este ensayo abraza el objetivo de problematizar las infancias queers, percibiendo en sus superficies corporales efectos político-performativos y disidencias didáctico-curriculares. Queriendo, por tanto, debatir la noción de infancia queer y las formas difusas de precariedad que experimentan como acción normativa sobre sus superficies corporales; así como resaltar las fisuras constitutivas engendradas por la fuerza performativa de sus cuerpos en oposición a la acción gubernamentalizada de la política de la apariencia. Inicialmente, revisa la problematización del surgimiento de la infancia y su relación con el surgimiento de la modernidad y la institución escolar, y luego tensiona la constitución de prácticas variadas que producen vidas altamente precarias y el engendramiento de una apariencia normativa para las infancias queers que circunscribe términos inteligibles para el reconocimiento, la deshumanización y la vulnerabilidad de sus cuerpos. De esta manera, teje algunas provocaciones sobre el escenario contemporáneo, señalando las prácticas conservadoras actuales y sus reiteraciones en torno a un régimen normativo de la infancia, visualizando, como futuro, infancias queers articuladas a través de la aparición, una poderosa proliferación de formas disidentes de ser en el mundo en el tejido de afectaciones didáctico-curriculares fuertemente queerizadas.

Palabras clave infancias queers; precariedad; educación

NOTAS INTRODUTÓRIAS

O queer como noção/identidade/campo de pensamento, vem provocando em nosso presente um conjunto de tensionamentos constitutivos. No Brasil, as performances de certas infâncias vem sendo lócus de toda uma discursividade, exatamente por não apresentarem em suas superfícies corporais uma conformidade evidente com a matriz heteronormativa da aparência, para a qual essas infâncias são tidas como erráticas, monstruosas, queers.

Como agouro do futuro e denúncia do passado, as infâncias queers agitam o presente. Suas superfícies corporais são foco de ferrenhas disputas normativas. São objetos perenes de um exercício biopolítico e instrumentos de fissuras constitutivas, proliferando modos outros de estar no mundo. Seus corpos são estranhados, estudados, disputados, corrigidos e incitados a serem algo mais do que apenas meras superfícies corporais difusas.

As crianças queers importam?! Com essa indagação/afirmação, toda uma polissemia em evidente enfrentamento discursivo tece efeitos produtivos, de um lado, questionando o estatuto de reconhecimento de infâncias fora de uma política do aparecimento, do outro, urgindo como uma reivindicação assertiva em defesa de uma vida vivível, que importa, para além dos termos próprios da racionalidade governamentalizada que atribui valoração desigual à condição de viver dos corpos.

Das práticas de subjetivação constituídas nos atravessamentos das infâncias queers com a escolarização, tanto as variadas precariedades se concatenam como evidência do exercício performativo dos discursos de ódio, como despontam certos borramentos/desmantelamentos às racionalidades normativas.

Neste texto, almejamos problematizar as infâncias queers, entrevendo em suas superfícies corporais efeitos político-performativos e dissidências didático-curriculares. Destarte, queremos igualmente debater a noção de infância queer e as formas difusas de precariedade que vivenciam como ação normativa em suas superfícies corporais, ao passo que desejamos evidenciar as fissuras constitutivas engendradas pela força performativa de seus corpos em contraposição à ação governamentalizada da política da aparência.

Com isso, buscaremos inicialmente retomar a problematização do surgimento da infância e sua relação com a emergência da modernidade e da instituição escolar. Por conseguinte, tensionaremos a constituição de variadas práticas de produção de vidas queers fortemente precarizadas e o engendramento de uma aparência normativa para as infâncias que circunscrevem termos inteligíveis para o reconhecimento, desumanização e vulnerabilização desses corpos. Iremos, por fim, tecer algumas provocações sobre o cenário contemporâneo, apontando certas práticas conservadoras atuais e suas reiterações em torno de um regime normativo das infâncias. Entrevemos, como devir, as infâncias queers articulando através do aparecimento a proliferação potente de formas dissidentes de estar no mundo no urdimento de afetações didático-curriculares queerizadas.

INFÂNCIAS, CORPOS E INSTITUIÇÃO ESCOLAR

O aparecimento das infâncias como materialidades do tempo presente, evidencia-se como efeito mais significativo da modernidade como regime político dos corpos. Como reverberação constitutiva de todo um conjunto de discursividades, os corpos infantis dão robustez à consolidação da escolarização como engrenagem produtiva do sujeito moderno. A naturalização das infâncias e seu processo de pedagogização ainda contingente, disputa constantemente novas possibilidades de saber-poder sobre a superfície corporal infante.

A infância é desde a modernidade, objeto de estudos de vários campos do saber intentando fabricar inteligibilidades. Jorge Larrosa (1998, p. 69) salienta:

[...] a infância é o outro: o que, sempre muito além do que qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio no qual se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhida. Pensar a infância como algo outro é, justamente, pensar essa inquietude, esse questionamento e esse vazio. É insistir mais uma vez: as crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não entendem nossa língua.

Esse outro, objeto de sujeição, selvagem e inocente, protegido e perseguido, é fruto de um bojo de ficções naturalizadas mediante relações de saber e de poder, constituindo suas visibilidades e dizibilidades. A infância, longe de ser apenas um universal homogêneo que captura subjetividades, é o efeito da produção de dispositivos pedagógicos. Pensarmos nas infâncias como provisórias e mutáveis é compreender as possibilidades dinâmicas de existência de múltiplas formas de habitar o mundo. É na inquietude das infâncias que sua contingência se torna evidente.

Na esteira das indagações acerca das infâncias, Philippe Ariès (1981, p. 10), ao traçar certa consolidação histórica de seu surgimento, vai afirmar que, antes da modernidade, a temporalidade infantil, ou seja, a duração da infância, era concebida como algo frágil: “[...] enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança, então, mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos”. Tal acepção mobilizava uma latente concretude da ideia de sua temporalidade: “[...] de criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem; mas, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades desenvolvidas de hoje” (Ariès, 1981, p. 10).

O medievo, em seu regime civilizatório, não abraçou a noção de infância como um estatuto para os corpos das crianças, despossuindo-as de suas particularidades. No cerne da temporalidade infantil, Ariès (1981, p. 156) aponta o sentimento ausente da infância. Dito de outra maneira:

[...] o sentimento da infância não existia - o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia [...].

Ariès (1981) aponta que a emergência de um sentimento de infância pode ser percebida em dois momentos distintos. Um que surge no seio familiar entre os séculos XVI e XVII denominado de paparicação, no qual a criança torna-se objeto burlesco dos adultos, e se insere nos jogos sociais como lócus para distração e entretenimento. Outro sentimento nasce em oposição ao primeiro no final do século XVII, no contexto eclesiástico chamado de moralização. Há aqui um apelo religioso ao combate da visão da criança como brinquedo encantador, abraçando a disciplina como ação produtora de moralidade, saúde e higiene.

Neil Postman (2011, p. 70), ao convergir com Ariès (1981), pondera que no século XVIII a ideia de que o Estado tinha o direito de agir como protetor das crianças era inusitada e radical. Entretanto, salienta que paulatinamente “[...] a autoridade absoluta dos pais se modificou, adotando padrões mais humanitários, de modo que todas as classes sociais se viram forçadas a assumir em parceria com o governo a responsabilidade pela educação das crianças”.

É da família burguesa, resultado da consolidação do capitalismo, que se começa então a conceber a infância e a criança vai nascendo socialmente em seu ethos moderno, sendo considerada como um ser dependente, ignorante e vazio. Segundo Ariès (1981, p. 11):

[...] Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.

Agora carecidos de boa instrução, os corpos infantis vão depender da instituição escolar, que por meio de práticas disciplinadoras, fabrica os contornos visíveis de seu estatuto, inserindo as crianças no preparo para a vida adulta com êxito na sociabilidade moderna, mediante ortopedia pedagógica. Isso denuncia que “[...] o clima intelectual do século XVIII - o Iluminismo [...] ajudou a nutrir e divulgar a ideia de infância” (Postman, 2011, p. 71) que, nutrindo do exercício da disciplina e do exame (Foucault, 2014b), engendrava na maquinaria escolar práticas de governamento (Bujes, 2002) como processo de constituição do sujeito escolarizado moderno.

Embora no tempo presente assuma um efeito natural - de maneira que se torna quase impossível pensarmos uma formação da infância para além dos muros da escola, haja vista que os conceitos de infância e aluno se entrecruzaram, produzindo uma interdependência - podemos afirmar, concordando com Paula Sibilia (2012, p. 16), que a escola é uma tecnologia de época.

Ainda que hoje pareça tão natural, algo cuja inexistência seria inimaginável, o certo é que essa instituição nem sempre existiu na ordem de uma eternidade improvável, como a água e o ar, tampouco como as ideias de criança, infância, filho ou aluno, igualmente naturalizadas, mas também passíveis de historicidade.

Como possíveis efeitos dos debates dessa tensão teórica, entrevemos junto a Julia Varela e Fernando Uria (1999, p. 2) que, assim como da mesma forma que concebemos a escola, “[...] a criança, tal como a percebemos atualmente, não é eterna nem natural; é uma instituição social de aparição recente ligada a práticas familiares, modos de educação e, consequentemente, a classes sociais”. A instituição escolar, no exercício pedagógico, fabrica toda uma matriz normativa para as infâncias, estabelecendo, com isso, os termos inteligíveis para sua aparência e reconhecimento.

A escola abraça então um duplo sentido, ensinar uma língua para os sujeitos infantes que não entendem essa língua, como da mesma maneira prepará-los para viver na disciplina, salvaguardando seus corpos de movimentos selvagens próprios da compreensão da infância. Ela durante muito tempo se apresentou em sua relação estritamente técnica e instrumental com as formas de construção de conhecimento, desprovendo outros saberes tanto das crianças como dos próprios professores (Souza, 2005).

Todo esse apanágio discursivo técnico-pedagógico, engendra no exercício disciplinar da escola certa inteligibilidade normativa em torno das infâncias, constituindo uma política da aparência sobre o que deve ser compreendido como corpo infantil, suas condutas e visibilidades possíveis. Assim, essa produção normativa da instituição escolar - em meio a multitude ficcional das infâncias - através de sua reiterabilidade, naturalizou um corpo infantil moderno, capturando suas fugas, sofisticando suas práticas de sujeição e atribuindo-lhe uma valoração desigual.

PRECARIEDADE E SUBJETIVAÇÃO DAS INFÂNCIAS QUEERS

As práticas discursivas de fabricação das infâncias, consolidaram o corpo infantil moderno em seu estatuto pedagogizado, concretizando, com isso, os termos inteligíveis para a proliferação de uma matriz normativa da infância. Sob a égide do iluminismo, os contornos do corpo infantil adquiriram formas difusas desde a modernidade, todo um conjunto de sujeições se inscreveram sobre a recente superfície corporal infante, constituindo o mimetismo da norma como evidência das infâncias naturalizadas.

É nesse processo produtivo de normalização que vidas serão precarizadas, despossuídas da possibilidade de viver, nos termos próprios de uma biopolítica. Corpos que não importam, vidas danificadas/desqualificadas. Judith Butler (2015, p. 13) ao tensionar a noção de precariedade, aponta que “[...] se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são concebidas como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras”.

Todo um conjunto de operações de poder vão funcionar como engrenagem constitutiva de uma inteligibilidade em torno de uma superfície corporal passível de enlutamento, fabricando sua estima e valorizando sua vida. Há igualmente nessa produção constitutiva a proliferação de um bojo de naturalizações sobre o corpo que não será passível de luto, desqualificando sua vida, despossuindo seu estatuto de humano, instando-o a abjeção.

Butler (2019, p. 52), ao provocar o estatuto universal do humanismo, tensiona a instauração de certo regime naturalizado do reconhecimento, estabelecendo uma matriz normativa que atribui valoração desigual à possibilidade de uma vida vivível:

[...] vidas são apoiadas e mantidas diferentemente, e existem formas radicalmente diferentes nas quais a vulnerabilidade física humana é distribuída ao redor do mundo. Certas vidas serão altamente protegidas, e a anulação de suas reivindicações à inviolabilidade será suficiente para mobilizar as forças de guerra. Outras vidas não encontrarão um suporte tão rápido e feroz e nem sequer se qualificarão como “[...] passíveis de ser enlutadas”.

Práticas de vulnerabilização e violência acabam por funcionar como exercício desse imperativo normativo de desqualificação da vida, e reiterando Butler (2019, p. 54) “[...] se certas vidas não são consideradas vidas, não podem ser humanizadas [...]”. É justamente certa desumanização dos corpos que “[...] dá origem a uma violência física que, em certo sentido, transmite a mensagem de desumanização que já está em ação na cultura” (Butler, 2019, p. 54).

Esse conjunto de práticas de desumanização reflete o regime naturalizante da modernidade, que instituiu a violência como um dos efeitos mais recorrentes do exercício do poder sobre as superfícies corporais que não importam como vidas, nem gozam de uma política do reconhecimento. Butler (2022, p. 45) salienta:

A violência é certamente o pior tipo de toque, uma maneira pela qual a vulnerabilidade humana aos outros seres humanos é exposta em sua forma mais aterrorizante, uma forma pela qual somos entregues, sem controle, à vontade de outrem, um modo pelo qual a vida pode ser eliminada pela ação voluntária de um outro.

A vulnerabilidade, isto é, a maneira como os corpos se tornam suscetíveis à ação dos outros, é uma parte intrínseca tanto da condição humana quanto do exercício político do poder sobre alguns corpos de forma exacerbada. Nesse contexto, a violência se torna a prática pela qual o poder legitima sua produção de precariedade e estabelece os meios para criar vidas precárias. São práticas políticas que distribuem de forma desigual a vulnerabilidade nos corpos (Silva, 2020).

Essa possibilidade de aniquilamento do outro, articula consigo a ameaça como ação ilocutória violenta, e “[...] como a ameaça é um ato de fala que é ao mesmo tempo, um ato corporal, ela já se encontra, em parte, fora de seu próprio controle” (Butler, 2021, p. 29). Tais atos de fala apresentam-se de formas difusas e complexas, e seus efeitos mais palatáveis podem atingir a superfície corporal, ou seja:

[...] a ideia de que o discurso machuca parece se basear nessa relação inseparável entre corpo e fala, mas também, consequentemente, entre a fala e seus efeitos. Se o falante dirige seu próprio corpo ao destinatário, então não é apenas o corpo do falante que entra em jogo: é também o corpo do destinatário (Butler, 2021, p. 29).

O vínculo que se estabelece entre os corpos falantes e destinatários é constituído intensamente por relações de saber e de poder, composto por um imperativo que pode extrapolar o campo meramente discursivo e se materializar como ação instada a imprevisibilidade, dito de outra maneira, “[...] certas palavras ou certas formas de chamar não apenas ameaçam o bem-estar físico; o corpo é alternadamente preservado e ameaçado pelos diferentes tipos de endereçamento” (Butler, 2021, p. 17).

Ao abraçar o corpo como problemática, Michel Foucault denuncia como se conforma toda uma política das coerções em torno da superfície corporal, calculando seus acidentes, suas condutas e movimentos. Uma mecânica do poder se articula fortemente para desarticular, recompor e reorganizar o corpo, estabelecendo regimes específicos pelos quais se pode ter “[...] domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e eficácia que se determina” (Foucault, 2014b, p. 136).

As práticas de sujeição se exercem como uma economia política do detalhe sobre o corpo, e, em concretude disciplinar, produzem a submissão e a docilidade. Corroboram, de um lado, no aumento de suas forças - o que é útil em termos econômicos - e limitam, por outro lado, essas mesmas forças - sendo útil em termos políticos de obediência. Vale salientar a importância de compreender esse poder não como uma matriz normativa que se exerce sobre os corpos como uma imposição, obrigação, coação. O poder, segundo Foucault (2014b, p. 30), “[...] os investe, passa por eles e por meio deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança”.

Há igualmente na acepção foucaultiana a percepção de uma sofisticação do exercício do poder sobre os corpos: de um regime elevadamente disciplinar a um regime governamentalizado. As maneiras pelas quais a governamentalidade opera são múltiplas: leis, burocracias, regulamentos, tecnologias, pedagogias, instituições etc. Todo um bojo complexo de estratégias normativas que abraçam como objetivo de poder a produção e manutenção do corpo, agora sob a ótica biopolítica (população), estimando sua vida, controlando e produzindo suas subjetividades (Foucault, 2008).

Foucault (2003), ao tecer sua teorização sobre as práticas de sujeição, vai nos elucidar que a ontologia do sujeito não é mais do que a experiência de si, denominada por ele também como subjetivação. Partindo desse pressuposto, se faz pertinente evidenciar, junto a Jorge Larrosa (2000, p. 57), a experiência de si como o resultado de uma “[...] correlação, em um corte espaço-temporal concreto, entre domínios de saber, tipos de normatividade e formas de subjetivação”. Na concepção de Larrosa (2000, p. 43), essa experiência é:

[...] complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade. É a própria experiência de si que se constitui historicamente como aquilo que pode e deve ser pensado. A experiência de si, historicamente constituída, é aquilo a respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo mesmo, etc. E esse ser próprio sempre se produz com relação a certas problematizações e no interior de certas práticas.

Na construção das subjetividades modernas, a vulnerabilidade e a perda desempenham um papel significativo. Nossa vulnerabilidade física é um traço distintivo, pois somos sujeitos sociais e nossa exposição ao convívio social nos torna suscetíveis à influência e à violência de outros. Butler argumenta que “[...] a perda e a vulnerabilidade parecem se originar do fato de sermos corpos socialmente constituídos, apegados a outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros, correndo o risco de violência por causa de tal exposição” (Butler, 2019, p. 40).

Quando problematizamos as infâncias queers, entrevemos como práticas de subjetivação tornam seus corpos locus de toda uma inscrição normativa, fadando suas existências a uma perene vulnerabilização. Tal como mencionado por Butler (2019, p. 46), a “[...] nossa pele e carne nos expõem ao olhar dos outros, mas também ao toque e à violência” e, mais do que isso, os “[...] corpos também podem ameaçar nos transformar em agentes e instrumentos” da violência, engendrando ações que buscam regular normas específicas para a aparência e reconhecimento da superfície corporal infantil.

ENTRE PRÁTICAS DE NORMALIZAÇÃO E DISSIDÊNCIAS DIDÁTICOCURRICULARES: CRIANDO INFÂNCIAS QUEERS QUE IMPORTAM

Ao lançarmos algumas indagações sobre as infâncias queers e seus atravessamentos no presente, somos atingidos por variadas discursividades que objetivam seus apagamentos, instandoas à condição monstruosa. Ao afirmarmos suas importâncias e possibilidades de vida, reivindicamos a proteção, a alegria, os direitos e as dissidências que suas existências proliferam.

Em nosso país, a disputa pelo estatuto da infância ganhou múltiplos contornos em sua descontinuidade histórica. De um mimetismo assimétrico colonial/imperial que atribuiu a condição infante a corpos específicos, a uma modernização das infâncias embebida de uma tentativa de consolidação de certa identidade nacional. O desafio no presente versa, como sintoma, um conservadorismo - que já assolando partes do mundo - advoga uma pretensa proteção das infâncias contra dois inimigos ferrenhos: os estudos queer/movimento LGBTQIAP+ e a instituição escolar. Apresentando-se em seus fluxos violentos e em suas políticas genocidas, o conservadorismo, como uma racionalidade, utiliza-se da violência como expressão constitutiva de sua ação normativa, atribuindo-se de uma legitimidade heroica.

Os movimentos conservadores que despontaram no Brasil, seja com o integralismo de 1932 em sua defesa de Deus, pátria e família mediante políticas eugenistas; o regime civil-militar de 1964 em seu autoritarismo e censura em prol do combate ao fantasma da ameaça comunista; ou até os movimentos contemporâneos de extrema-direita, ao defender Deus, pátria, família e liberdade, tendo seus primeiros gestos em 2010 e adquirindo força a partir de 2014 - assim como aqueles que os precederam - devotam à defesa da heterossexualidade compulsória como regime político dos corpos. Suas pautas abraçam, em unívoca convergência, a violência em suas múltiplas formas como reivindicação urgente para uma nova ordem em prol de uma moral hétero e de bons costumes pautados nos preceitos morais judaico-cristãos.

Identidades e sexualidades fora dos termos prescritos pela racionalidade conservadora são rechaçadas e descredibilizadas, e assim o são, justamente pelo fato da sexualidade ser um “[...] lugar central do desmoronamento [de] toda moral, a única forma do trágico a que o homem moderno é suscetível, o templo destruído em que se enfrentam indefinidamente deuses que morreram há muito tempo e os profanadores que já não creem neles” (Foucault 2021, p. 33).

Os discursos em torno da sexualidade sempre foram povoados de uma reiterada polissemia: de seu lugar negativo na fisiologia sexual, seu olhar intenso na psicanálise, ou na positividade de seu exercício, na provocação foucaultiana. Longe de ser algo natural, Michel Foucault (2014a, p. 100) sacode os cânones dos discursos naturalizados da sexualidade, conceituando-a como um dispositivo histórico, uma grande “[...] rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação do discurso, a formação do conhecimento, o reforço dos controles e das resistências” se encadeiam entre si, mediante algumas significativas “[...] estratégias do saber e dos poderes” (Foucault, 2014a, p. 100).

Levantando-se contra uma hipótese repressiva em torno da sexualidade, Foucault vai instaurar toda uma discursividade ao denunciar uma verdade do sexo e evidenciar um exercício de sujeição da superfície corporal através da produção de uma inteligibilidade normativa sobre a sexualidade, constituída na vontade de saber, na ação produtiva do poder. Dito de outra maneira, “[...] constituiu-se uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, susceptíveis de funcionar e de serem efeito de sua própria economia” (Foucault, 2014a, p. 26).

Todo esse debate deu um pertinente subsídio a outros estudos que pensando nas práticas de subjetivação, na produção das formas de ser e estar no mundo, abraçaram os corpos LGBTQIAP+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queers, intersexuais, assexuais, pansexuais, não-bináries, entre outras identidades sexuais e de gênero) como problemática investigativa, não para patologizar suas existências, mas para potencializar a produção de conhecimento engendrada por esses grupos marginalizados.

A consolidação do debate LGBTQIAP+ no Brasil, articulou como condição de possibilidade de seu surgimento, a importante contribuição da imprensa alternativa, que, em pleno período do regime militar, através do Jornal Lampião da Esquina (1978-1981) e do Jornal ChanaComChana (1981-1987), engendrou provocações criativas para a emergência e contornos do movimento político organizado, visto à época como detrito político-ideológico por setores progressistas.

É no final da década de 1970 que o Jornal Lampião da Esquina se destacou como um importante veículo de comunicação da comunidade LGBTQIAP+ no país, funcionando como instrumento de viabilização para o surgimento dos primeiros grupos organizados de homens gays, de lésbicas, das travestis e transexuais, a exemplo do Grupo Gay da Bahia, Somos, Triângulo Rosa, Dignidade, da Astral (Associação de Travestis e Liberados) etc. (Facchini, França, 2009).

Por forte influência de instituições internacionais nas pautas dos direitos humanos, no que concerne ao campo da educação, os primeiros documentos oficiais que pautaram as temáticas de gênero e sexualidades, foram os Parâmetros Curriculares Nacionais-PCN, publicados pelo Ministério da Educação em 1997, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Localizando o debate como algo transversal durante todo o percurso escolar, o documento aglutinava diversas discussões em três blocos de conteúdo, como, por exemplo: corpo e sexualidade, relações de gênero e prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).

Já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2004, foi criado em nível federal o programa Brasil sem Homofobia, visando combater o preconceito e as práticas violentas para com a população LGBTQIAP+, mediante implementação de núcleos de cidadania e direitos humanos nas universidades federais, fortalecendo as práticas educacionais em prol das diferenças. Como fruto do programa, foi lançado no governo de Dilma Vana Rousseff, em 2011, o caderno Escola sem Homofobia, tendo sido o tal material pedagógico perseguido e apelidado pejorativamente como kitgay por deputados vinculados ao fundamentalismo religioso, tendo sido proibida sua distribuição nas escolas (Silva, Santos, 2021). O perigo denunciado pelos conservadores era de que o material pedagógico tornaria as crianças homossexuais e daria fim a família, e com isso, ao mundo.

Essas tensões vão se acentuar em 2014 no debate sobre o Plano Nacional de EducaçãoPNE (BRASIL, 2015), através das bancadas fundamentalistas e conservadoras do legislativo federal, quando termos como sexualidade, gênero e educação sexual foram censurados no decorrer do documento. Tal como Sérgio Carrara (2015, p. 323) nos afirma, “[...] a maioria dos deputados e senadores que se opõem a qualquer menção a questões relativas a gênero ou à sexualidade nesses documentos”, se alinham a variados grupos conservadores das “[...] diferentes igrejas evangélicas brasileiras e do próprio Vaticano quanto aos supostos perigos da disseminação, especialmente entre crianças e adolescentes, do que designam como ideologia de gênero” (Carrara, 2015, p. 323).

Outro exemplo emblemático ocorreu em 2017 - um ano após o impeachment de Dilma Rousseff - no contexto do ataque a Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, mostra artística assumidamente LGBTQIAP+ que contava com a estruturação estética de 270 obras, produzidas por 85 artistas expostas no Santander Cultural em Porto Alegre. Grupos conservadores como Movimento Brasil Livre (MBL) e organizações fundamentalistas religiosas acusaram a mostra de promover apologia a zoofilia, pornografia, pedofilia, além de ferir princípios cristãos. Para eles, a Queermuseu incentivava as crianças a serem LGBTQIAP+, além de atentar contra os valores religiosos e da família tradicional. Na concretude violenta de suas ações, além dos discursos de ódio veiculados nas redes sociais, esses grupos protestavam na frente do Santander Cultural e intimidavam os frequentadores da exposição. Como efeito dessa ação violenta, a mostra Queermuseu acabou sendo encerrada a contrapelo da curadoria.

A acusação dos movimentos conservadores é de que uma ideologia de gênero, busca destruir as infâncias e as famílias (Junqueira, 2018). Pela ótica conservadora, ela seria uma ideologia sorrateira e perigosa que almeja transformar as bases da sociedade (infância, família e fé) e segundo a qual “[...] não existiria mais homem e mulher distintos segundo a natureza, mas, ao contrário, só haveria um ser humano neutro ou indefinido que a sociedade - e não o próprio sujeito - faria ser homem ou mulher, segundo as funções que lhe oferece” (Carrara, 2015, p. 323).

Tal ideologia anticristã, para esses grupos conservadores, é a grande inimiga dos valores tradicionais, trazendo consigo a ruína do mundo e da fé. Judith Butler, se torna, para esses movimentos, a grande vilã que se deve combater e extinguir. Sua punição foi anunciada também no ano de 2017, quando “[...] manifestantes em frente ao SESC-Pompeia, onde a filósofa participava do evento Os fins da democracia, queimaram uma figura de bruxa com seu rosto” (Miskolci, 2018, p. 185), aos gritos de queimem a bruxa, deixem as nossas crianças, homem é homem, mulher é mulher etc. advindos de movimentos conservadores como Direita São Paulo e tradição, família e propriedade (Pereira, 2018).

Em 2018, essa pretensa defesa da proteção das infâncias deu o tom à proliferação de inúmeras notícias falsas e discursos de ódio, principalmente quando do acirramento político da campanha eleitoral para a presidência da república. Dois exemplos ficaram marcados no bojo dessa disputa discursiva: as fake news da dita mamadeira de piroca e o retorno do kit gay nas escolas. O primeiro se trata de um vídeo que foi amplamente compartilhado nas redes sociais, em que um homem apresenta uma mamadeira com um órgão genital em substituição ao seu bico comum. Enquanto apresenta o objeto que denuncia, ele enfaticamente afirma:

Olha aqui ó, vocês que votam no PT. Essa aqui é a mamadeira distribuída na creche [...]. Distribuída na creche para seu filho, com a desculpa de combater a homofobia. Olha o bico como é, ó. Tá vendo? O PT e o Haddad pregam isso para o seu filho [...] Isso faz parte do kit gay (É #Fake que PT distribuiu mamadeiras eróticas para crianças em creches pelo país, 2021).

Mesmo no enunciado da notícia falsa já estando presente a associação da mamadeira a um certo kit gay, há também uma articulação na discursividade injuriosa que intenta especificar os contornos perigosos desse material, nunca produzido ou distribuído, a certo estímulo infantil à homossexualidade, tal como enfatizado no referido vídeo.

Jair Messias Bolsonaro, então candidato a presidente da república, ao participar de um debate no Jornal Nacional da Rede Globo, retoma a proliferação mentirosa do kit gay de 2011, atribuindo-lhe outro elemento. Durante a entrevista, ao ser indagado sobre ser conhecido pelos posicionamentos contra a população LGBTQIAP+, Bolsonaro utiliza como justificativa, seu engajamento em 2011 contra o caderno Escola sem Homofobia, entretanto, acrescenta a sua fala outro elemento inverídico, de que um outro livro chamado Aparelho Sexual e Cia de Hélène Bruller, teria sido distribuído em larga escala nas redes de ensino do país sob intuito de homossexualizar as crianças, influenciando-as a se tornarem LGBTQIAP+ (Jair Bolsonaro - PSL é entrevistado no Jornal Nacional, 2018). O livro por ele ferrenhamente utilizado e erguido na entrevista, nunca foi distribuído pelo Ministério da Educação, nem compôs o caderno Escola Sem Homofobia de 2011. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) multou Bolsonaro por propagação de informações falsas, mas os seus efeitos já haviam sido massivamente disseminados: ele ganha a eleição e se torna presidente da república na gestão 2019-2022.

Em 2023, retorna à presidência da república Luiz Inácio Lula da Silva para um terceiro mandato, retomando em sua ação governamental, o debate com variados movimentos sociais, até então abandonados pela gestão anterior. Entretanto, não há com isso, o esvaziamento e desarticulação de grupos conservadores, que reiteram suas práticas violentas por meio de uma discursividade heteronormativa. Afirma Monique Wittig (2022, p. 62):

[...] por seu caráter irrefutável, como conhecimento, como princípio óbvio, como um dado anterior a qualquer ciência, o pensamento hétero desenvolve uma interpretação totalizante da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e de todos os fenômenos subjetivos ao mesmo tempo.

Esses grupos conservadores, ao abraçar o discurso de uma pretensa proteção das crianças, cristalizam e naturalizam as infâncias como se elas fossem algo fixo e universal, apresentando-se sempre na feitura da criança cristã infante. Outros corpos infantis que não mimetizam essa política do reconhecimento, tais como as crianças tidas como afeminadas ou masculinizadas, e as crianças trans - bem como as pobres, negras, indígenas, quilombolas, ciganas etc., ou seja, todas as que destoam da visibilidade moderna da infância - são instadas ou à patologização ou ao apagamento como ação de desumanização. Todo esse ensejo conservador almeja naturalizar formas binárias de sexo e de gênero, fabricando certa normalização da superfície corporal. Anna Luiza Oliveira e Gustavo Oliveira (2018, p. 18) apontam:

[...] a tentativa de normatização da sexualidade sempre esteve presente nas políticas de educação desde os primórdios da modernidade. Com vistas à construção de um padrão de identidade nacional, marcadores sociais de diferença como raça, sexualidade e gênero estavam entre os principais focos das estratégias educacionais no Brasil.

Tais práticas crescentemente autoritárias vêm conformando um cenário político inóspito como experiência cotidiana neoliberal. Constituindo formas sofisticadas de naturalização da violência, tal como em outro prisma, proliferando todo um conjunto de discursos persecutórios a termos como gênero e sexualidade, ou qualquer outra coisa que remeta a corpos queers. Em um enquadramento sempre instado a sujeições, Paul Preciado (2013, p. 5), denuncia:

[...] a criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia do gênero vigia o berço dos seres vivos que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterossexuais. A norma faz sua ronda em torno dos corpos frágeis. Se você não for heterossexual, a morte o espera. A polícia do gênero exige qualidades diferentes do garotinho e da garotinha. Ela molda os corpos a fim de desenhar órgãos sexuais complementares. Ela prepara a reprodução, da escola até o Parlamento, industrializa-a.

Ao circunscrever uma política do visível, ou seja, o que deve aparecer, como deve aparecer e os próprios termos do visto, se produz uma naturalização - mediante variadas técnicas - de um regime de verdade que adquire um efeito de universal. Dessa maneira, “[...] a consequência dessa tendência à universalidade é que o pensamento hétero não consegue conceber uma cultura, uma sociedade em que a heterossexualidade não ordene não só todas as relações humanas, mas também sua própria produção de conceitos e todos os processos que fogem do consciente” (Wittig, 2022, p. 62).

No bojo das denúncias conservadoras, acusada de se tornar facilmente um lugar de doutrinação ideológica, a instituição escolar se tornou lócus de ferrenhos ataques, não obstante, todo o campo da educação acabou se tornando alvo de variadas acusações, ameaças, discursos de ódio e atentados violentos. Projetos legislativos em âmbitos municipais, estaduais e federal como Escola sem Partido, os contra o que chamam de ideologia de gênero e linguagem neutra, são exímios atestados dessa animosidade contra a escola.

A escola, ao funcionar como instituição normalizadora, tendo suas reverberações didáticocurriculares funcionando como aparato de subjetivação, constrói uma aparência específica para as infâncias. Afirmar que didática e currículo são reverberações produtivas da escola, implica, como pondera Sandra Mara Corazza (2001, p. 57), “[...] analisar seus conhecimentos, linguagens, formas de raciocínio, ciências, tipos de experiência, técnicas normativas, enquanto vinculados às relações de saber e de poder que atravessam os corpos para gravar-se nas consciências”. Na verdade, o infantil é, para Corazza (2001, p. 65):

[...] uma das várias subjetividades diagramatizadas por nossos currículos, de maneira que sua subjetivação se transforma em sujeição, nos dois modos de assujeitamento foucaultiano: 1) sujeito aos outros, pelo controle e pela dependência, com todos os procedimentos de individuação que o poder disciplinar instaura, atingindo a interioridade daqueles que ele chama "[...] seus sujeitos"; 2) sujeito a si mesmo e apegado à própria identidade, mediante a consciência e o conhecimento de si, com todas as técnicas das ciências humanas e morais que formam "[...] um saber do sujeito".

É nos atravessamentos entre os procedimentos de individuação do sujeito escolarizado, que a escola tece um regime da aparência que vai reiteradamente atingir certos corpos que fustigam esse enquadramento normativo. Aqui, corpos de crianças tidas como afeminadas/masculinizadas, trans, pobres, negras, indígenas, quilombolas, ciganas etc., serão excessivamente endereçadas a constituírem em torno de suas superfícies corporais uma acepção aberrante de si, desconstruindo o apego a suas identidades como processo de uma infantilização normativa: se menino, que seja branco, viril e indisciplinado; se menina, que seja branca, dócil e hábil aos ares da feminilidade. Qualquer desvio dessa similitude, é posto à abjeção, ao aberrante, ao queer; advoga-se seu urgente conserto:

[...] consertar o infantil errado, fazê-lo entrar em retidão, corrigir sua direção, repará-lo, restituir a infantilidade que lhe pertence, vingá-lo, desforrá-lo. Castigar o mundo, o tempo e o social que dele roubam a infância que é, que deve ser a sua. Tornar a juntar, recolocar na ordem, pôr no lugar, corrigir a tortuosidade da infância. Todas as tarefas das tecnologias de Estado, das técnicas de governo de si e dos/as outros/as, da atividade educacional, pedagógica, curricular, e de todas as relações disciplinares que supõem formas de controle ou direcionamento (Corazza, 2001, p. 65).

É, em contraconduta a essas tentativas de conserto das múltiplas identidades infantis vulnerabilizadas, que o aparecimento tem sido um gesto de dissidência didático-curricular. O aparecimento como política fissura as normas de visibilidade, reivindicando em torno/ por meio do aparecimento uma importância outra a suas existências e relações com o mundo. Alguns corpos,

[...] sempre algo mais do que apenas corpos, tecem, mesmo na precariedade, possibilidades performativas, ecoam textos que reivindicam outras formas de viver que não estejam instadas a um estatuto do reconhecimento. Resultados não previstos, formas de vida que desafiam os esquemas e as táticas normativas (Silva, 2020, p. 9).

Dessa forma, tanto na instituição escolar quanto em outros espaços para além dela, certos corpos não precisam falar para expor a sua reivindicação (Butler, 2018), tecendo através do aparecimento como política, a proliferação de práticas de resistência. O que concebemos como resistência, parte do entendimento de Butler sobre esse conjunto que encontramos algumas vezes “[...] no ato do discurso verbal ou na luta heroica, mas também nos gestos corporais de recusa, silêncio, movimento e recusa em se mover” (Butler, 2018, p. 238), gestos potentes, radicalmente criativos e interdependentes. E a cada avanço conservador, como ação constitutiva das infâncias queers, em burlamento aos enquadramentos da norma, mais piratarias se proliferarão como articulação dissidente, como atitude crítica de criar fissuras, de desmantelar universais e evidenciar um devir corpo.

É nesse sentido que a instituição escolar tem se apresentado igualmente como espaço importante de contestação, haja vista que o direito de aparecer das infâncias queers sempre foi interditado. Butler nos salienta que ninguém deveria ser “[...] criminalizado pela sua apresentação de gênero, e ninguém deveria ser ameaçado com uma vida precária em virtude do caráter performativo da sua apresentação de gênero” (Butler, 2018, p. 63). Esse duplo da escola, assemelhase com o que as ruas reservam aos corpos vulnerabilizados: a escola e a rua como - às vezes - as únicas possibilidades de aparecimento/sobrevivência e elas também como espaços propensos ao perigo (Butler, 2021).

Apresenta-se a urgência de movimentações políticas e teóricas que possam constituir provocações importantes que gritam sobre a necessidade de aparecimento das infâncias queers, lutando por mais do que pelas suas sobrevivências nos termos do neoliberalismo, mas sim pela reivindicação de suas importâncias, e importância como vidas vivíveis. Práticas de resistência que contaminam a didática e o currículo, queerizando-os e constituindo, nesse ato performativo, outras experimentações educativas possíveis.

O campo da didática precisa ser interrogado pelas problemáticas das infâncias queers, de modo que possa tensionar seu exercício cotidiano na conformação da vulnerabilização no cotidiano das práticas pedagógicas. É sob esta ótica que Vera Candau (2020, p. 13) salienta a importância da construção de práticas educativas que “[...] partam do reconhecimento das diferenças presentes na escola e na sala de aula, o que exige romper com os processos de homogeneização, que invisibilizam e ocultam as diferenças, e reforçam o caráter monocultural das culturas escolares”.

As práticas dissidentes possibilitam, às infâncias queers, o urdimento de uma série de táticas performativas que torcem certos termos didáticos pelas quais a interpelação ao corpo é tecida no processo ensino-aprendizagem. Surgem como efeito produtivo, ações inesperadas que provocam os limites da didática e sua responsabilidade como campo de pensamento, na conformação da vulnerabilização das infâncias, ao passo que dinamitam e ampliam seu repertório, articulando maneiras fortemente queerizadas de ensinar e aprender.

O campo curricular é igualmente instado a provocação das infâncias queers, uma vez que já experimenta, desde a emergência das teorias pós-críticas, todo um debate profícuo em torno de seu papel na totalização dos processos educativos. O que urge das infâncias queers como grito ao currículo, como reverberação dissidente, talvez seja certa reivindicação para que a teorização curricular “[...] possa ser um modo de criar uma intensificação dessa interdependência relacional e, consequentemente, nos livrar de nossos princípios de reflexão, abandonando sonhos de emancipação e de liberdade ilimitada nutridos pelas utopias modernistas” (Ranniery, 2022, p. 39).

Tornar o currículo queerizado, tomando de assalto os termos da governamentalização dos corpos infantis e proliferando modos anárquicos de aparecimento em borramento aos fundamentos que regem o campo curricular. As infâncias queers mobilizam potencialmente afetações curriculares que resistem aos discursos de ódio em torno de suas existências, na medida em que excedem os propósitos prévios que animavam as discursividades injuriosas.

A necessária tarefa que se apresenta como ação criativa, é a tessitura de um modo outro de experimentação das práticas educativas e/com as infâncias queers, viabilizando “[...] pensar um currículo como espaço de possibilidades e como território onde as forças podem deformar as formas de um currículo, instaurando o movimento que é fundamental para o aprender” (Paraíso, 2015, p. 50).

Atestar que infâncias queers importam, pouco tem a ver com uma tentativa de totalizar as crianças, ou de ferir suas máculas. Trata-se de evidenciar a constituição de modos de vida infantis que não apresentam, em sua aparência, a política do reconhecimento naturalizada a um corpo infantil moderno, e por isso tornam-se locus de variados endereçamentos constitutivos de uma matriz heteronormativa: ameaças, discursos de ódio e violências. São também essas infâncias queers que borram os próprios termos de um regime corporal da aparência e dinamitam os espaços que circulam - inclusive o escolar -, na proliferação performativa de efeitos inesperados, altamente embebidos de afetações didático-curriculares queerizadas.

A existência de infâncias queers são, portanto, tanto o motivo dos ataques conservadores, quanto também a evidência concreta de como difusos endereçamentos violentos se investem contra os corpos infantis queerizados. Em reação ao exercício do poder, essas existências articulam certos borramentos criativos, constituindo modos outros de ser e estar no mundo, aparecendo como política e reivindicando na visibilidade de suas superfícies corporais o direito a uma vida vivível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este ensaio buscou estabelecer um conjunto de problematizações sobre as infâncias queers, entrevendo nelas efeitos político-performativos e dissidências didático-curriculares. Neste sentido, almejamos debater a noção de infância queer e as formas difusas de precariedade que vivenciam como efeito da ação normativa em suas superfícies corporais. Ao passo que intentamos evidenciar as fissuras constitutivas engendradas pela força performativa de seus corpos em contraposição à ação governamentalizada da política da aparência.

Por meio do tensionamento teórico, ao provocarmos o surgimento da infância na modernidade, percebemos como a produção de uma aparência normativa para as infâncias circunscreveu termos inteligíveis para o reconhecimento, desumanizando e produzindo a vulnerabilização desses corpos. Construímos uma provocação crítica sobre o cenário contemporâneo, apontando as práticas conservadoras atuais e suas reiterações em torno de um regime normativo das infâncias. Entrevemos, assim, as infâncias queers engendrando práticas de resistência que contaminam a didática e o currículo, queerizando-os, proliferando de forma potente e performativa, outras experimentações educativas possíveis.

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Recebido: Setembro de 2023; Aceito: Outubro de 2023

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