TRAÇOS INTERSECCIONAIS DAS CONDIÇÕES DE VIDA DAS INFÂNCIAS
Os estudos acerca da infância constituída por sujeitos de direitos são recentes e ressaltam o quanto o próprio conceito de ser criança e adolescente advém de processos marcados pela invisibilidade, anonimato, rejeição e abandono. Apesar de haver um enorme esforço entre os estudiosos da questão, as análises sobre a infância latino-americana ainda não retratam suficientemente a constituição de uma infância outra, que aqui habita, pois as infâncias situadas nos países periféricos trazem em suas trajetórias efeitos dos processos coloniais, que subordinam corpos, vidas e projetos de futuro. Portanto, as vozes infantis precisam ser reconhecidas e enunciadas.
Os processos coloniais tiveram seu advento com a invasão das terras de Abya Yala (nome designado pelo povo Kuna ao continente americano) pelos europeus. Essa problemática histórica ainda repercute seus efeitos nefastos, que se alastram e tomam formas no racismo estrutural, misoginia e pobreza. Consequentemente, a modernidade e o capitalismo, que atuam como lados ocultos da colonialidade, produzem uma série de violências que objetificam e subordinam a vida dos indivíduos no cenário contemporâneo (MIGNOLO, 2017).
São múltiplos os efeitos das violências interseccionais que subordinam a vida, identidades e corpos da infância - compreendida na faixa etária de 0 a 18 anos, conforme a Convenção dos Direitos da Criança (CDC, ONU, 1989) - que se encontram em situação de pobreza. A interseccionalidade, “[...] pensada por feministas negras, cujas experiências e reinvindicações intelectuais eram inobservadas, tanto pelo feminismo branco, quanto pelo movimento antirracista, a rigor, focado nos homens negros” (AKOTIRENE, 2018, p. 13), é compreendida como uma ferramenta de análise e visa a “[...] dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado - produtores de avenidas identitárias” nas quais as infâncias “[...] são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais” (AKOTIRENE, 2018, p. 14).
Nessa perspectiva, torna-se possível transpor a “[...] soma das dominações ou arranjos de identidades e diferenças, possibilitando-nos avançar em perspectiva e prática de problematização rizomática”. Desse modo, pode-se constituir uma teorização transdisciplinar, “[...] visando apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais, através de uma abordagem integrada [...], assumindo a própria produção discursiva das categorias identitárias” (POCAHY, 2001, p. 19-20).
A discussão sobre a infância aqui proposta intersecciona diferentes marcadores de exclusão, sendo impossível compreendê-los de forma isolada; portanto, utilizamo-nos do conceito de interseccionalidade como “[...] uma das formas de combater as opressões múltiplas e imbricadas, [...] como um instrumento de luta política” (HIRATA, 2014, p. 69) que denuncia os discursos e práticas, alimentados pelos traços identitários não hegemônicos dos indivíduos, que promovem violências e exclusão. Nesses contextos, as infâncias se situam entre significações e existências impactadas por questões culturais, sociais, econômicas, religiosas e políticas excludentes, gerando múltiplas desigualdades e violações de direitos, que deslocam os sujeitos para as margens.
Na CDC (ONU, 1989), as crianças e os adolescentes são caracterizados como sujeitos de direitos e “[...] agentes sociais, ativos e criativos, que produzem suas próprias e exclusivas culturas infantis” (CORSARO, 2009, p. 15). Em decorrência dessa concepção, é imprescindível romper com paradigmas voltados à negação das infâncias e violação de seus direitos, como o adultocentrismo e a pobreza infantil.
“Não é possível compreender a pobreza infantil sem a ligar com a pobreza em geral” (SARMENTO, 2010, p. 179), a qual se vincula com as desigualdades sociais e a segregação. A pobreza infantil, concebida como “[...] um fenômeno complexo e multifactorial” (SARMENTO, 2010, p. 180), para além dos indicadores econômicos, é originada nas condições estruturais da sociedade. Portanto, para interpretá-la se conjuga o conjunto interseccional “[...] das condições que a produzem” (SARMENTO, 2010, p. 179), considerando os âmbitos social, cultural, econômico e político, analisados de maneira multidimensional, em cuja perspectiva são compreendidas as violações de direitos que interseccionam múltiplos fatores.
Essas problemáticas ficam evidentes nas vozes juvenis escutadas em pesquisa empírica, expressando subjetividades e sensibilidades de análise crítica dos marcadores sociais que configuram territórios cotidianos desenhados pelo enredamento interseccional das tramas da pobreza infantil.
TRAÇOS INTERSECCIONAIS DOS SUJEITOS NOS TERRITÓRIOS COTIDIANOS
A composição dos traços interseccionais dos sujeitos, em territórios cotidianos cindidos pelos efeitos das violências advindas da pobreza infantil são extraídos do relatório do projeto de que investiga “[...] a garantia de direitos da infância em situação humanitária, compreendendo os contextos de pobreza infantil multidimensional.” (EYNG et al., 2021, p. 6)
A investigação, realizada no âmbito latino-americano durante o período de aulas remotas, viabilizou a participação juvenil de oito territórios, situados: um em Rosário, na Argentina; quatro no Brasil (dois em Surubim, Pernambuco; um em Almirante Tamandaré, Paraná; e um em Santa Maria, Rio Grande do Sul); um na Pintana, no Chile; um em Bogotá, na Colômbia; e um em Miravalles, na Cidade do México, no México. “O estudo em campo, com a escuta dos sujeitos teve o propósito de diagnosticar necessidades, demandas e estratégias de garantia dos direitos à educação e à saúde da infância em situação de pandemia da Covid-19.” (EYNG et al., 2021, p. 6)
A etapa de pesquisa empírica, prevista para ser realizada em 2020, foi ajustada em função do cenário da pandemia Covid-19, sendo organizada para aplicação remota via formulários on-line. Para alcançar tal intento foi articulada “[...] a parceria com a Rede Marista no Brasil e na Américalatina para a prospecção e seleção de instituições de escolares e de saúde em territórios de vulnerabilidade das infâncias, nos quais se puderam contatar sujeitos que constituem os grupos que se pretendia ouvir na investigação.” (EYNG, et al., 2021, p. 8)
Assim, a partir da parceria foi definida uma amostra que atendesse aos critérios de elegibilidade e representatividade. Para a elegibilidade se buscou instituições educativas que atendessem crianças e adolescentes em contextos de vulnerabilidade e de pobreza infantil multidimensional. E, quanto à representatividade foram incluídas instituições educativas de diferentes regiões da América Latina e do Brasil. A participação dos sujeitos se deu a partir do convite e do aceite mediante termo de consentimento livre e esclarecido. Os dados coletados em 2020 foram sistematizados, compondo nove relatórios de pesquisa, um com os dados gerais e mais um com os dados de cada instituição/território participante. Tais relatórios foram compartilhados com os participantes em 2021, juntamente com sugestões para discussão coletiva dos dados e levantamento de questões, sugestões e demandas que foram apresentadas discutidas em evento online no qual participaram representantes dos participantes da pesquisa década uma das unidades que compuseram a amostra.
Nesse processo, a voz dos 504 estudantes da educação básica, com idade entre 10 e 18 anos, expressaram e compartilharam visões que situam as infâncias, adolescências e juventudes nos territórios nos quais vivem, tecendo considerações sobre seus traços caracterizadores, descritores sobre seus entornos, concepções sobre os direitos e as condições da infância.
Traços caracterizadores dos participantes assinalam a distribuição etária e o pertencimento no tocante ao sexo, raça (Brasil) ou etnia (exterior): quanto ao sexo, feminino - 56,3%, masculino - 43,7%; quanto à raça, amarelo - 1,2%, branco - 32,7%, pardo - 26%, preto - 3,4%, indígena - 1,2%, não declarado - 6,6%; quanto à etnia, pueblos originarios - 0,4%, toba - 0,2%, mapuche - 1,4%, indígena - 0,2%, não declarado - 1%.
Os territórios cotidianos retratados nas falas dos participantes condicionam e circunstanciam possibilidades e limites das vidas das crianças, adolescentes e jovens. Nas suas percepções, foram expressos descritores sobre seus entornos na família e na comunidade, considerando condições de moradia e infraestrutura do entorno comunitário.
Nesse sentido, em relação à moradia: 5,8% dos estudantes moram em somente duas pessoas na casa; 22,4%, três pessoas; 33,5%, quatro; 20,8%, cinco; 8,9%, seis; e 8,5%, mais de seis pessoas. No que tange à quantidade de cômodos, a predominância de respostas foi entre cinco (22,4%) e seis (20,4%). Ademais, 1,4% responderam que possui um cômodo na casa; 1,2%, dois cômodos; 4,4%, três; 15,7%, sete; 11,9%, oito; e 11,9%, mais de oito cômodos. Quanto à divisão do quarto com alguém, 47,4% dos estudantes não dividem o cômodo e 52% o dividem, sendo, destes, 75,7% com os irmãos e 0,6% não respondeu. Ainda, 58,1% dos estudantes possuem computador com acesso à internet em casa e 40,7% não possuem; 74% possuem celular próprio com acesso à internet, 20,6% utilizam o dos pais, 3,4% possuem celular sem internet e 2% não possuem. Referente aos televisores existentes em casa, os dados apontaram que 1,8% não possui televisões em casa, 48,6% possuem um, 33,9% possuem dois e 15,7% possuem três ou mais. Do total de estudantes, 36,1% não possuem irmãos e 63,9% possuem. Sobre as condições de saúde dos estudantes e familiares, 61,1% apontaram que não possuem problemas de saúde e 38,3%, que possuem. Entre os estudantes, 87,7% não trabalham e 12,1% trabalham fora de casa. Com relação a afazeres domésticos, 96,8% contribuem e somente 3,2% dos estudantes não contribuem. Considerando a oferta de serviços e infraestrutura na comunidade, 91,7% dos participantes têm acesso à água tratada, 85,7% possuem coleta de lixo, 78,6% possuem materiais de proteção contra a Covid-19, como máscaras, álcool em gel e sabão, e 72,6% possuem rede de esgoto.
Os dados caracterizadores revelam a eficácia do projeto moderno-colonial-capitalista, que subalterniza a vida das infâncias, negando seus direitos e as posicionando nas margens de exclusão, ou seja, retiram seu status de humanidade e negam a garantia dos direitos de proteção, participação e provisão (ONU, 1989). Essa negação materializa-se numa intersecção de violências que impede que as crianças e adolescentes tenham acesso a uma educação de qualidade e relevância social, a um sistema de saúde público, gratuito e de qualidade, à cultura, lazer, tomada de decisões sobre assuntos referentes às suas vidas e uma série outra de negações que impedem os devires de uma infância e de seus projetos de futuro.
Essa análise fica evidente nas avaliações sobre as condições da infância nos seus territórios cotidianos, tendo os participantes assinalado suas percepções numa escala de classificação no intervalo de 1 - insuficiente a 10 - excelente. Os posicionamentos apresentaram como resultado: 13,7% dos estudantes consideram excelente e 1,6%, insuficiente - 12,3% dos estudantes assinalaram a classificação 9; 20,2% avaliaram como 8; 17,9%, como 7; 12,9%, como 6; 16,5%, como 5; 3,2%, como 4; 0,8%, como 3; e 1% assinalou a classificação 2.
Após enunciarem sua avaliação quantitativa acerca das condições da infância em seus cotidianos, os participantes a justificaram. Nas 461 respostas, se enunciaram as múltiplas condições de vida que coexistem nos territórios, conforme pontuaram as percepções juvenis, desenhando as diversas infâncias, adolescências e juventudes em composições e contrastes. Os marcadores assinalam condições extremas que situam, por um lado, a infância protegida, segura, com seus direitos e condições de bem-estar garantidos (120 respostas) e, por outro, a infância com seus direitos e condições de bem-estar ameaçados pela interseccionalidade de múltiplos fatores de risco (292 respostas) - 66 respostas abordaram outros aspectos, perfazendo 478 respostas, considerando que 17 participantes apresentaram justificativas abrangendo mais do que uma das categorias.
As avaliações positivas enunciaram percepções de suficiência de condições materiais e imateriais de bem-estar, mencionando condições boas (24,2%) e excelentes, sem problemas (12,5%); acesso a direitos básicos (alimentos, moradia, serviços públicos de educação e saúde; 20%); bem viver (18,3%); proteção (14,2%); direitos garantidos (5%); respeito (4,2%); e saúde (1,6%).
A análise das 292 justificativas que situaram as avaliações que designam as insuficiências permitiu o agrupamento em torno de 11 categorias que interseccionam: desigualdade (39 respostas); pobreza (37 respostas); violência e insegurança (26 respostas); negligência e abandono (50 respostas); criminalidade e drogas (13 respostas); violação de direitos (27 respostas); falta de acesso a condições mínimas de sobrevivência e bem-estar (49 respostas); serviços públicos e infraestrutura precárias (31 respostas); educação de baixa qualidade (11 respostas); desemprego (três respostas); e falta de liberdade de ser (cinco respostas).
VIOLÊNCIAS INTERSECCIONAIS NOS TERRITÓRIOS COTIDIANOS DAS INFÂNCIAS
Os territórios comunitários nos quais as crianças, adolescentes e jovens participantes da pesquisa vivem são localizados em espaços periféricos marcados por uma exclusão abissal (SANTOS, 2007), transpassados pelas desigualdades, pobreza, violências, negligências, violações de direitos, precariedades etc., que atuam como marcadores interseccionais dos fatores de risco que incidem nas condições de vida. Nessa configuração, as linhas abissais, já visíveis, cindem os territórios, criando espaços de exclusão, desigualdades e assimetrias, derivados, sobretudo, do modelo econômico promotor da concentração de renda, que perpetua e legitima as desigualdades excludentes, conforme situam os estudos de Milanovic (2017) e Stiglitz (2018).
Tal exclusão intencionada nas decisões, princípios e valores do modelo econômico, que produz níveis brutais de desigualdade, “[...] não é inevitável; não é, na mesma medida, resultado de leis econômicas inexoráveis. Trata-se de uma questão de orientações e decisões políticas” (STIGLITZ, 2018, p. 14) que intencionalmente definem vidas a serem protegidas e vidas a serem descartadas. Milanovic (2017, p. 16) distingue na história dois tipos de força antagônica que foram capazes de diminuir as desigualdades: (i) forças malignas - guerras, catástrofes e epidemias; (ii) forças benignas - acesso ampliado à educação, maiores transferências sociais e tributação progressiva. Portanto, “[...] a desigualdade num sistema capitalista aumenta inevitavelmente, a menos que travada por guerras, outras calamidades ou ação política” (MILANOVIC, 2017, p. 59).
As falas dos participantes da investigação constatam desigualdades que se manifestam não apenas nos diferentes níveis de rendimento, mas nos efeitos que produzem: “Enquanto muitos têm demais, muitos têm de menos, precisamos mudar isso e dar pelo menos o básico para todos” (EST_BR_085); “Porque ao mesmo tempo que algumas pessoas têm seus direitos e vivem bem, alguns não têm” (EST_BR_087); “[...] aqui onde eu moro tem uns com vida boa e outros passando por necessidade” (EST_BR_095)”; “No todos tienen acceso a Internet ni dispositivos electrónicos y hay desempleo” (EST_MX_483); “Por qué no a todos le pueden dar un estudio o tienen que trabajar para estudiar” (EST_MX_499).
Evidencia-se na análise das falas a percepção sobre as condições de profunda desigualdade que atravessam os cotidianos da infância investigada, pois há uma “[...] humilhação que lhe é infligida ininterruptamente por aqueles que tem o poder. A injustiça mais grave não é a material, mas sim a moral: não se mede em dólares, mas no fato de certos homens estarem privados dos direitos fundamentais em que os poderosos abundam” (MORIN, 2007, p. 52). Nesse contexto, a pobreza intergeracional incide nas condições de vida de crianças, adolescentes e jovens, tanto em países centrais quanto em países periféricos. Na conjuntura da produção da pobreza, esta é ainda mais preocupante quando afeta as crianças, pois elas “[...] constituem o grupo etário mais vulnerável à pobreza e à exclusão social [...]” (BASTOS, 2016, p. 27).
As falas agrupadas em torno da categoria pobreza assinalam as percepções sobre os impactos da pobreza sobre as condições de vida da infância: “Tem muitas pessoas sem trabalho” (EST_BR_126); “Algumas se encontram em situação de extrema pobreza, sem condições dignas de alimentação e moradia, além de não possuírem uma educação de boa qualidade e de referência” (EST_BR_289); “[...] onde eu vivo a maioria vive de bolsa-família, além de que sempre eles têm que colocar as prioridades na balança: comida, roupas, contas pagas etc.” (EST_BR_293); “Há vários que vivem nas ruas, ou em situações muito precárias” (EST_BR_301); “[...] crianças à mercê da exploração sexual, trabalho escravo, fome e miséria afirmam o quão ameaçador um local como o Brasil para vivência das crianças” (EST_BR_311); “Muitas crianças são criadas em situação de pobreza e de violência, isso danifica o sentido emocional dessa pessoa para sempre” (EST_BR_317); “Onde moro, há famílias carentes e que às vezes não têm como sustentar os filhos” (EST_BR_371); “Nem todos os jovens têm onde morar ou condições financeiras” (EST_BR_396); “Tem crianças catando lixo fora da escola passando necessidades de roupas e alimentos e morando nas ruas” (EST_BR_401); “[...] hay muchas familias en situación de calle” ( EST_AR_005); “Creo que los niños sufren de inseguridad y de carencias económicas” (EST_AR_008); “Hay mucha pobreza en la población” (EST_CH_429); “Los salarios a veces no son lo suficientemente para mantener una familia” (EST_CH_442); “[...] hay mucha pobreza” (EST_CO_466); “Hay niños que requieren mejores condiciones, pero desafortunadamente por la economía no se dan” (EST_CO_468).
As falas expressam preocupações, inseguranças e sentimentos que evidenciam múltiplos fatores interseccionais que impactam a vida das crianças e adolescentes e violam seus direitos de participação, proteção e provisão. As múltiplas facetas da precarização e da exclusão social corroboram para a perpetuação da pobreza infantil e das desigualdades que configuram violências interseccionais que acometem as infâncias.
As circunstâncias de vida das infâncias interseccionam os riscos e ameaças, de modo que as desigualdades e a pobreza fazem repercutir diversas faces das violências. Para Cerqueira et al. (2021, p. 31), isso significa que, embora as taxas de mortalidade juvenil tenham variado, “[...] permanece um cenário constante e sem perspectiva de mudança a curto ou médio prazo, em que dezenas de milhares de jovens são vítimas de homicídios todo ano no país. São jovens que perdem sua vida e um país que perde seu futuro”.
Esse cenário também é expresso nas falas acerca da percepção da incidência de diferentes formas de violência sobre as vidas infantis e juvenis: “Muitas crianças estão sofrendo violência, abuso, entre outras situações” (EST_BR_081); “A violência está demais” (EST_BR_219); “mucha violencia, gritos” (EST_AR_033); “Podemos ser roubados, assaltados facilmente e ninguém ajudaria” (EST_BR_086); “[...] muitas crianças morrem na esquina de casa, essas coisas assim, nunca vai ser um lugar totalmente seguro” (EST_BR_109); “Não temos liberdade alguma e se saímos temos risco de não voltar pra casa” (EST_BR_241); “[...] desde criança minha mãe não me deixa sair sozinha de casa ‘porque tem medo de me estuprarem ou me sequestrarem ou me matarem” (EST_BR_271); “Pelean mucho” (EST_AR_034); “Porque acá hay mucha delincuencia, mucho peligro, capaz que anda un nenito y le meten un tiro sin querer” (EST_AR_046); “[...] mucho peligro” (EST_AR_056); “Es un sector malo donde no todos los jóvenes salen a la calle producto de las balaceras y narcotráfico” (EST_CH_422); “[...] es muy peligroso en si” (EST_CH_443); “Porque no se sabía que cosa puede pasar, donde los autos pasan rápidos, se ponen a disparar [tiros] y cosas así” (EST_CH_449); “Las niñas, niños y adolescentes tienen un gran contacto con las drogas y robos” (EST_CO_465); “Falta más seguridad” (EST_MX_496).
As percepções desvelam as condições da pobreza infantil, das desigualdades e das violências, explicitando as consequências interseccionais da violação de direitos e das múltiplas facetas das violências que acometem as infâncias. Os efeitos impactam a formação e todas as dimensões do sujeito, bem como as interações sociais e a constituição identitária. As incertezas e preocupações quanto à manutenção diária dos direitos básicos complexificam a construção de perspectivas de futuro e projetos de vida. Assim, desumanamente, a pobreza infantil usurpa o presente e o futuro das crianças e adolescentes, suas identidades, corpos, direitos, reconhecimento e sonhos e “[...] difere-se da pobreza dos adultos porque tem diferentes causas e efeitos e - mais importante - porque o impacto da pobreza durante a infância tem efeitos de longo prazo nas crianças” (SARMENTO, VEIGA, 2010, p. 26).
No que concerne à categoria violência, para seu entendimento e descrição convém considerála no plural: violências, com o intuito de manter presente a compreensão das múltiplas faces das suas origens, manifestações e efeitos. “Mas essa persistência de uma cultura de violência em ato tornou-se num elemento crucial de sobrevivência política e econômica em muitas regiões do mundo, satisfazendo as (novas) economias políticas de guerra, que dependem desse continuum de violência” (MOURA, 2010, p. 42.)
Entre as manifestações das violências que abrangem os aspectos físicos, psicológicos, sexuais, patrimoniais e simbólicos, a negligência e o abandono afetam sobremaneira as condições de vida da infância. A negligência e o abandono compreendem “[...] a omissão pela qual se deixou de prover as necessidades e os cuidados básicos para o desenvolvimento físico, emocional e social da pessoa atendida/vítima. [...] O abandono é uma forma extrema de negligência” (CERQUEIRA et al., 2021, p. 76).
As percepções infantis e juvenis assinalam aspectos da negligência e do abandono ao avaliar as condições de vida da infância: “Porque depende muito da família” (EST_BR_319); “[...] muitas crianças de onde eu moro ficam sozinhos à noite” (EST_BR_112); “Por que tem crianças e adolescentes que não são tratados muito bem em casa” (EST_BR_116); “Algumas crianças têm obrigações de adultos” (EST_BR_186); “[...] muitas crianças pedindo nas ruas” (EST_BR_197); “[...] uma parcela que não frequenta escolas e vive em condições diversas devido à negligência familiar” (EST_BR_312); “Ainda há algumas crianças e adolescentes nas ruas” (EST_BR_370); “Porque muitas não têm apoio da família” (EST_BR_381); “Nem todas as crianças são tratadas como deveriam ser, muitas têm que trabalhar cedo já” (EST_BR_394); “[...] muchos niños en la calle, sin atención de sus padres” (EST_AR_004); “Los chicos andan en la calle y no los cuidan” (EST_AR_017); “[...] estos chicos están descuidados en sus formas de vida” (EST_AR_019);
“Porque hay chicos descuidados por sus familias” (EST_AR_022); “Depende de los papás, hay chicos que viven cerca de mi casa que están todo el día en la calle, sucios porque los papás no les ponen mucha atención, no hay ni asfalto” (EST_AR_026); “[...] por qué hay casas que se viven mal, gente mal” (EST_AR_045); “[...] muchos peligro, las familias no están presente” (EST_AR_052); “Están todo el día en la calle” (EST_AR_057); “Ya que se ve bastante abandono en los niños y adolescentes” (EST_CH_423); “por qué no todos los padres se preocupan bien de sus hijos, algunos son drogadictos o alcohólicos y los dejan abandonados y pierden toda su infancia” (EST_CH_424); “Aún falta mucha comunicación entre padres e hijos además que muchos hogares son familias disfuncionales y el vivir en una comunidad de bajos recursos l@s expone a muchos factores de riesgo” (EST_MX_471); “Por qué hay muchos papas que se van a trabajar y los niños se quedan solos” (EST_MX_495); “Hay muchos niños que no estudian y sus padres no los atienden” (EST_MX_476).
Nos territórios degradados pela desigualdade e pobreza intergeracional, entre os nefastos efeitos da negligência e do abandono, há o aumento da vulnerabilidade e dos riscos da infância provocado pela criminalidade e drogas. As manifestações dos participantes apontam sua incidência e efeitos em seus territórios cotidianos: “Pois muitas vezes as crianças trabalham para ajudar os pais dentro de casa, menores de idade usando droga muitos às vezes entram até no mundo do crime” (EST_BR_078); “Às vezes vejo, adolescentes e crianças na rua usando drogas, sem ter onde dormir, enfim situação triste” (EST_BR_363); “Muitos jovens se perdem fácil no mundo do crime, não é fácil ver que amigos se vão muito novos, às vezes é por falta de conhecimento, também por falta de emprego😢” (EST_BR_412); “Hay muchos chicos perdidos, haciendo cualquier cosa, todo por la droga y el narcotráfico, hay mucha inseguridad” (EST_AR_006); “Entorno descuidado por las autoridades, basurales, drogadicción, policía ineficiente” (EST_CH_456); “[...] todos están en la calle, mucha droga” (EST_AR_040); “[...] pues la verdad lo digo por la delincuencia” (EST_CH_450); “No es un lugar muy seguro, existe la droga, alcohol, etc. y provoca muchas consecuencias” (EST_CH_451); “Hay mucha drogadicción” (EST_MX_477); “[...] hay mucha delincuencia, alcoholismo” (EST_MX_491).
A escalada das violências sob forma de criminalidade organizada, narcotráfico, milícias, ocupando o controle do poder em territórios pobres, produz as novíssimas guerras (MOURA, 2010), que são circunscritas e travadas nos territórios das periferias políticas e econômicas e “[...] resultam, de um modo geral, da agudização das violências estruturais sentidas ao longo das últimas décadas, são legitimadas pela cultura, têm novas características e se propagam-se por novos espaços” (MOURA, 2010, p. 53). Diante disso, as novíssimas guerras, na visão de Moura (2010, p. 42), apresentam “[...] três grandes características: o seu caráter urbano, a especificidade da sua dimensão armada e as espirais que legitimam e perpetuam essa conflitualidade violenta”. No surgimento das guerras contemporâneas, “[...] os conflitos armados, os regimes autoritários ou a debilidade estatal têm uma influência decisiva na (re)configuração dessa nova tipologia da violência” (MOURA, 2010, p. 45).
Essas condições revelam que todos são potenciais alvos a ser captados pelas redes e estruturas violentas da sociedade que posiciona a infância na precariedade. Para Moura (2010, p. 57), “[...] recentemente tem sido dada uma atenção crescente às características específicas da violência armada e insegurança urbanas, assim, [...] assistimos à inversão da tendência das cidades enquanto locais seguros”. Nesses contextos, são produzidos os guetos, apartheids, separados por linhas abissais, conforme analisa Santos (2007), resultantes das orientações e decisões, mas, sobretudo, das ações políticas, a partir das quais a exclusão se produz. “A exclusão social consiste na ruptura dos laços sociais, com prejuízo do acesso e usufrutos de direitos sociais” (SARMENTO, 2010, p. 182). Sendo a pobreza “[...] a principal fonte de inobservância dos direitos da criança preconizados na convenção [...] as crianças que experimentam a pobreza estão privadas de seus direitos fundamentais [...]” (BASTOS, VEIGA, 2016, p. 28).
As percepções mencionam a gravidade da violação de direitos nos cotidianos infantis e juvenis, comprometendo suas vidas: “Porque muitos não têm uma vida digna” (EST_BR_338); “Violações de direitos que afetam meninos e meninas no Brasil são os homicídios de adolescentes a cada dia, crianças e adolescentes são assassinados no País, quase todos meninos, negros, moradores de rua” (EST_BR_248); “Nem todos têm seus direitos garantidos” (EST_BR_306); “Tem crianças sem condições de vida, falta de alimentação e diversos modos de vida” (EST_BR_336); “Muitas crianças não têm direitos garantidos, sofrem fisicamente e não têm uma educação boa, saúde precária, alimentação” (EST_BR_353); “Algumas não têm direitos básicos” (EST_BR_367); “Algumas crianças têm muitos direitos negados, como o de moradia, respeito, educação, alimentação adequada, dentre outros” (EST_BR_406); “Falta seguridad, responsabilidad, y más que nada educación entre niños y adolescentes” (EST_AR_029); “Porque uno vive en riesgo y con miedo, por los temas de secuestros violaciones muertes asaltos etc.” (EST_CH_434); “Hay muchos niños en malas condiciones” (EST_MX_472).
O percurso entre elaboração e efetivação de uma política de direitos humanos requer condições ainda inexistentes em muitos países, ou seja, “[...] um projeto de sociedade democrática, na qual os atores sociais e políticos, a sociedade civil, a cultura e os atos individuais refletem uma convicção profunda: o respeito do outro, o reconhecimento da diversidade, aceitação do pluralismo” (LÓPEZ DAWSON, 2001, p. 6). O conjunto de direitos de provisão e de proteção define as condições de bem-estar material e imaterial necessárias para a superação da interseccionalidade de fatores de risco provenientes da pobreza infantil.
Nas percepções, evidencia-se a falta de acesso a condições mínimas de sobrevivência com dignidade nos cotidianos infantis e juvenis: “Algumas crianças não têm condições para comprar uma roupa e calçado bons para usar, nem sempre têm comida, boa moradia etc.” (EST_BR_071); “Porque muitas crianças não têm moradia” (EST_BR_064); “[...] muitas crianças e adolescentes vivem em estado de calamidade” (EST_BR_223); “Porque às vezes eu vejo algumas passando fome” (EST_BR_228); “Muitas pessoas não têm onde morar e acho injusto eles não terem uma moradia” (EST_BR_262); “Muitas não têm onde morar e o que comer e acabam ficando na rua com os seus pais” (EST_BR_276); “[...] pois muitas crianças não têm direito à educação, moradia e saúde” (EST_BR_286); “[...] falta de alimentación , vestimenta” ( EST_AR_013); “Les falta un techo, comida que sea comida, hay chicos que están en la calle y no comen a veces, ahora en la pandemia es peor” (EST_AR_023); “Porque no todos tienen casa hoy en día” (EST_AR_049); “[...] mucho que no tienen donde vivir” (EST_AR_059); “No todos tienen viviendas dignas u optimas” (EST_CH_420); “Por qué no todos tienen un lugar donde vivir o no están en condiciones” (EST_CH_440); “Hay niños que les hace falta comida, casa en mi comunidad” (EST_CO_460); “Por qué no todos tenemos el acceso a la educación y a una vida sana en mi comunidad” (EST_MX_490); “Falta de educación, la alimentación y limpieza” (EST_MX_494).
Desigualdade, pobreza, violências, criminalidade e violação de direitos se concentram nos territórios urbanos degradados. “A origem e a expansão da violência e do crime urbanos - que tendem a localizar-se nas zonas mais degradadas das grandes cidades - foram associadas, pela sociologia urbana, a processos de marginalização e exclusão social e a fenômenos de segregação espacial urbana” (MOURA, 2010, p. 61).
As falas registram as avaliações quanto à precariedade dos territórios cotidianos, que condiciona as vidas da infância, quanto à falta de infraestrutura básica: “Porque nem todos têm água tratada, saneamento básico etc.” (EST_BR_084); “Porque no lugar onde elas estão vivendo podem ser ruins para aquela família tipo num lugar onde pode e já aconteceu deslizamentos” (EST_BR_137); “Em relação ao bairro onde moro, falta infraestrutura e projetos sociais para as crianças” (EST_BR_153); “Eu moro em uma comunidade (favela) muito pobre e muito ruim” (EST_BR_154); “Está faltando o olhar do poder público para periferias e para as condições de vida” ( EST_BR_234); “Saneamento básico” (EST_BR_242); “Das vezes que a ponte deságua, muitas pessoas perdem seus pertences com a força da água, e sem contar os moradores de rua” (EST_BR_290); “Falta mais lazer e emprego” (EST_BR_303); “Há crianças que moram em locais bastante vulneráveis, sem saneamento básico, algumas nem têm moradia e não possuem ajuda, ficam sem alimentação, sem saúde e educação” (EST_BR_313); “Crianças e adolescentes sentem falta de um melhor serviço de saúde” (EST_BR_325); “Faltam muitas estruturas em escola, saúde e segurança” (EST_BR_402); “Falta muita coisa” (EST_BR_408); “El barrio en general es sombrío, muy gris, las calles están en mal estado, hay delincuencia y venta de drogas por el sector, es peligroso, falta iluminación en calles, hay casas que están hechas de materiales frágiles, falta de dinero” (EST_CH_439); “Entorno descuidado por las autoridades, basurales, drogadicción, policía ineficiente” (EST_CH_456); “Es una zona con muchas carencias” (EST_MX_486); “Esta es una colonia donde se ve mucha drogadicción y la urbanización apenas está en proceso, pues es una zona marginada, pero la labor educativa ha ayudado bastante” (EST_MX_493).
Pelo simples fato de ser obrigado, por conta das condições econômicas, a viver em lugares mais degradados da cidade, nos quais a lei e o poder do Estado não chegam, a vítima da violação de direitos sociais é revitimizada, passando a ser identificada como delinquente, marginal criminoso, lhe diminuindo ou negando oportunidades de condições de acesso para uma vida digna.
O direito à educação objetiva o pleno desenvolvimento mediante aprendizagens que capacitem crianças e adolescentes à participação, forneçam recursos de proteção e se constituam como estratégias de prevenção, se esperando que gradativamente lhes possam vir a suprir meios para provisão de suas necessidades. Em outras palavras, a garantia do direito à educação supõe o desenvolvimento de condições de emancipação quanto às capacidades de proteção, que incluem a participação, prevenção e provisão. Esse desafio se amplia em contextos de grande desigualdade, nos quais as crianças que estão sob a égide da opressão da pobreza têm necessidades que ultrapassam as respostas que a educação escolar formal tem condições de dar.
As avaliações da precariedade das condições de vida da infância incluem a educação, indicando que a educação de baixa qualidade também é um fator de exclusão e violência: “É mais na relação da educação, pois a escola que tem aqui perto não é muito boa (opinião dos meus primos que estudaram nela)” (EST_BR_089); “Precisa de mais educação” (EST_BR_231); “Nem todas as crianças e adolescentes têm acesso a uma educação de qualidade” (EST_BR_321); “Algumas crianças não têm qualidade educacional boa, algumas precisam ajudar extremamente em casa” (EST_BR_322); “A educação que alguns recebem poderia ser bem melhor” (EST_BR_323); “Nem todos estão tendo o direito à educação de qualidade, e alguns nem à alimentação” (EST_BR_374); “No hay educación” (EST_AR_020); “Les falta mucha educación y valores” (EST_MX_475); “Porque si no les funciona en la educación lo más fácil para ellos es el camino delictual” (EST_CH_425).
Nessa conjuntura, a pobreza se torna um ciclo que precisa ser interrompido. “Sem educação de qualidade, crianças desfavorecidas têm mais probabilidade de cair em situações de mão de obra barata e trabalhos inseguros, impedindo que quebrem os ciclos intergeracionais de desvantagens quando adultas” (UNICEF, 2016, p. 6). Tais falas também reiteram a tese de que o fracasso da educação nos países periféricos é um projeto, ou seja, “[...] muita da pobreza da base da tabela de rendimentos deve-se à discriminação econômica e à incapacidade de disponibilizar uma educação e uma assistência médica adequadas às crianças [...] que crescem num meio pobre” (STIGLITZ, 2018, p. 152).
A garantia dos direitos humanos, em especial, a educação, pode ser a diferença para que as crianças, adolescentes e jovens tenham melhores experiências em seus cotidianos e possam construir expectativas positivas quanto aos seus futuros.
A violação de direitos em contextos marcados pelo colonialismo e patriarcado também revela violências culturais e simbólicas, fragilizando o respeito à diversidade e à identidade de crianças, adolescentes e jovens. Nas justificativas das avaliações, esses aspectos são enunciados pelos participantes: “Pois muitas crianças e adolescentes não têm sua privacidade, não têm o direito de ser quem eles realmente são” (EST_BR_361); “Pois muitas vezes somos reprimidos e colocados pra baixo” (EST_BR_376); “Ya que a veces la pequeña libertad que tienen es arrebatada” (EST_CO_467); “Não há muitas crianças e adolescentes no meu bairro e as que tem não são livres de interagir entre outras crianças e adolescentes” (EST_BR_200).
Emergem das falas as violações explícitas dos direitos da infância relativos à proteção, provisão e participação, de modo que a vida dessas crianças e adolescentes está exposta cotidianamente aos múltiplos riscos e ameaças, sendo afetada pela multidimensionalidade interseccional das violências. Nessa perspectiva, a violência interseccional é uma condição estruturante da pobreza infantil, ao passo em que viola os direitos da infância, afetando o desenvolvimento geral dos sujeitos ou mesmo rompendo com a continuidade da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados da pesquisa explicitam a profundidade das desigualdades e os impactos nas condições de vida das crianças, adolescentes e jovens, os quais possuem seus direitos violados e sofrem processos múltiplos de exclusão que negam suas identidades, histórias, sonhos, corpos e vidas. A estrutura econômica, cultural e social que exclui e invisibiliza os sujeitos em situação de pobreza nega as múltiplas diferenças e identidades, uma vez que o modo como eles concebem a si e o mundo diverge do padrão estabelecido pela sociedade do capital.
A constituição identitária e a construção de vínculos nas relações sociais são impactadas pela pobreza infantil, que reverbera nos âmbitos de convivência, formação e desenvolvimento, nos contextos familiar, escolar e comunitário. Para além de as crianças e adolescentes serem concebidos como sujeitos de direitos nas declarações, convenções e estatutos, esses direitos devem ser garantidos, visando a um desenvolvimento pleno e à garantia da dignidade humana desde a infância.
Como categoria social, a infância é consubstanciada nas perspectivas da pluralidade, da (re)construção contínua de significados e vivências nos contextos cotidianos, sendo profundamente afetada pela interseccionalidade da violência multidimensional e intergeracional. Dessa maneira, superar as desigualdades e exclusão que se expressam nas injustiças significa derrubar os obstáculos institucionalizados que impedem muitos sujeitos de participar, “[...] em condições de paridade com os demais, como parceiros integrais da interação social” (FRASER, 2008, p. 5). Essa intencionalidade remete à necessária garantia interseccional de direitos, na perspectiva da justiça social, que integra: a redistribuição, buscando a alocação mais justa de recursos e bens; o reconhecimento das diferenças, que constituem a diversidade sob os mais variados aspectos (gênero, geração, etnia, nacionalidade, sexualidades e outros.); e a representação política, que requer arranjos sociais que permitam que todos participem como pares na vida social (FRASER, 2008).
Portanto, a interseccionalidade dos efeitos das violências nas condições de vida das infâncias implica políticas e programas que concebam e efetivem o conjunto de direitos de modo indissociável, na perspectiva intersetorial. Isso porque somente a garantia interseccional de direitos nos permite esperançar a superação dos riscos e ameaças das violências interseccionais que incidem sobre a infância.