INTERSECCIONALIDADE NOS ESTUDOS SOCIOLÓGICOS DA INFÂNCIA
Este artigo está dividido em duas partes. A primeira parte resulta de uma pesquisa de pós doutorado cuja proposta foi levantar e analisar os feminismos recorrentes no Brasil e a maneira pela qual estes nos ajudam a elaborar bases teóricas para uma educação infantil não sexista. A 2ª parte problematiza a questão da fala das crianças, a partir da pergunta: pode a criança falar?
Concebe-se que uma educação não sexista seja aquela que não componha qualquer tipo de segregação entre crianças, em decorrência de sua constituição biológica, sexual ou de gênero e que esta é uma demanda já recorrente nos debates que se inserem na educação infantil ou nos estudos da infância, uma vez que se observa, desde a emergência destes campos no Brasil, entre os anos de 1970 e 1990, a presença de diferentes pesquisas que relatam, denunciam e problematizam o sexismo sob diferentes esferas. Pode-se observar que a temática esteve presente na produção da pesquisadora Maria Malta Campos, por exemplo, no texto publicado em 1975 quando problematizava Relações entre sexo da criança e as aspirações educacionais e ocupacionais de mães. Destaca-se também a produção da pesquisadora feminista Fúlvia Rosemberg, considerada pioneira da educação infantil e da luta pela infância. Em seus trabalhos observa-se a ênfase dada às temáticas de gênero, sua preocupação com as lutas feministas, seu ineditismo no que diz respeito à proposição já interseccional de suas análises, articulando infância, classe social, raça e gênero, além de cunhar o conceito adultocentrismo de maneira inaugural nos estudos da infância, mostrando a centralidade deste conceito estrutural nas sociedades ocidentais, as quais colocam a criança na ordem hierárquica mais baixa das relações de poder e de discurso (ROSEMBERG, 1976).
A pesquisadora Anete Abramowicz também se insere nesse debate quando inaugura a discussão interseccional entre infância e gênero no livro publicado em 1995 chamado A Menina repetente. Este trabalho problematiza as condições ligadas ao ser criança menina aos processos de reprovações escolares, de maneira a possibilitar um encontro singular entre a menina e o fracasso escolar. Em um momento em que havia uma expressiva quantidade de investigações a respeito do fracasso escolar que, de diferentes maneiras, responsabilizavam as crianças, ou, quando responsabilizavam a escola e a família, elucidavam os aspectos negativos do fracasso, esse trabalho faz à revelia, uma leitura positiva do fato em si, ao compreender que “[...] as crianças respondem à escola, falam também por meio da repetência [...]. Elas também excluem a escola. [...]. Há uma resposta à escola nesse movimento repetente” (ABRAMOWICZ, 1995, p. 12). O atravessamento de gênero na menina singulariza a repetência por ela vivida, o que faz a autora olhar para a diferença, sobretudo em uma perspectiva pós estruturalista Foucaultiana.
Além de Rosemberg e Abramowicz, destacam-se as produções da pesquisadora Ana Lucia Goulart de Faria, que se voltou para essa temática principalmente a partir dos anos 2000, compondo dossiês e estados da arte da infância em intersecção com gênero (FARIA, 2006), amadurecendo a ideia do que chamou de pedagogia macunaímica para pensar a educação da infância, a qual caracterizou como uma pedagogia da escuta, das relações e da diferença, associando o termo macunaímico ao personagem sem nenhuma caráter de Mário de Andrade sob o qual se desprenderia a moralidade, a rigidez e a formatação nos padrões e estigmas sociais (FARIA, 1999). A expressão “[...] pode ser compreendida como uma pedagogia que valoriza o folclore e a cultura popular brasileira e que também critica a supervalorização dos povos colonizadores, assumindo uma postura de certo modo antropofágica: que devora a cultura do ‘outro’ e a deglute, transformandoa em algo novo...” (SOUZA, TEBET, 2015, p. 128). Destaca-se ainda as preposições da última década da pesquisadora, interseccionalizando os estudos da infância com perspectivas póscolonialistas de maneira a propor uma “[...] descolonização da infância” (FARIA et al, 2015).
Estas e outras pesquisadoras de diferentes regiões do país, bem como as novas gerações na última década, nos permitem enxergar um conjunto de publicações que desenham um campo teórico consolidado sobre infância, educação infantil e gênero, observando ainda que a grande maioria destas publicações analisa a infância sob uma perspectiva interseccional, considerando as dimensões de classe social, raça, gênero e estudos feministas, sendo esta preposição o que caracteriza e especifica os estudos sociológicos da infância no Brasil. Dito de outra forma, neste artigo estamos sugerindo que no campo sociológico, a infância é em si mesma uma categoria interseccional, porque é pensada sob múltiplas dimensões como geração, como estrutura, como categoria analítica, dispositivo, etc., dimensões estas que são majoritariamente interseccionadas por diferentes clivagens. Por sua vez, o conceito de interseccionalidade se origina no campo dos feminismos, o que nos motiva a olhar a infância por este prisma
A pesquisa que se propôs no pós-doutoramento e do qual o presente texto deriva procurou ir na gênese deste conceito a fim de se alimentar das epistemologias feministas, compreendendo que, com elas e a partir delas, é possível construir um repertório analítico e político em busca de uma educação infantil não sexista, antirracista e antifascista. Reconhece-se o feminismo1 como movimento plural por meio do qual tem se pautado questões muito variadas sobre ser mulher, ser mulher negra, sobre maternidade, violências múltiplas, e o próprio conceito de interseccionalidade e as reivindicações por lugares de fala, entre outras temáticas de luta pela vida e por justiça social para os mais diversos feminismos. Além disso, os movimentos feministas estiveram à frente das reinvindicações por creche e educação de crianças, o que nos coloca frente a frente ao compromisso político de dar visibilidade a estes movimentos tão potentes de (re)existências e resistência aos ataques contra a vida e contra os fascismos que enaltecem as formas hegemônicas de vida.
É na esteira deste movimento de reinvenção que a pesquisa da qual se deriva este artigo revisita teorias feministas, dando ênfase nas perspectivas que mobilizam o conceito de interseccionalidade, mote do presente dossiê, o qual compreendemos ser indissociável da própria ideia de infância.
Percurso metodológico e desdobramentos para uma pesquisa de inspiração feminista.
A pesquisa apresentada é de cunho bibliográfico, de inspiração genealógica, pautada sobretudo em Michel Foucault (2008). Nesta perspectiva, a pergunta genealógica que se fez ao olhar um determinado arquivo que temos sobre os feminismos não é onde e por que se dá, mas quem fala, não do ponto de vista do sujeito, mas do ponto de vista de quem está autorizado a falar e como fala. Para Foucault, a genealogia é uma metodologia sobre a qual se problematizam as condições de emergência de determinados fatos. Há uma série de condições de emergência do feminismo de modo geral, como ideia, conceito e dispositivo de resistência, assim como há uma série de condições de emergência para cada feminismo em particular. A genealogia busca encontrálas e problematizá-las de modo a perceber as relações de forças existentes nas tramas dessas diferentes manifestações. Destaca-se, contudo, que o conceito de interseccionalidade tem sua gênese nos movimentos feministas, sobretudo, nos feminismos negros, e aqui procuramos dar visibilidade às condições de emergência desse conceito e dos feminismos que o mobilizam como ferramenta conceitual e política.
Compreendendo que o feminismo é um movimento dinâmico, vivo, constituído por tessituras teóricas e pragmáticas diversas, observa-se que, há uma contínua redefinição de suas nomenclaturas, que se adequam de modo híbrido a conceitos centrais, a novos corpos teóricos e a novas militâncias. Essas adequações levam os feminismos a se denominarem, por exemplo, marxista, radical, negro, queer etc., e há condições de emergência específicas para cada feminismo.
Se considerarmos as primeiras expressões dos feminismos contemporâneos que emergem a partir do século XX, observa-se que suas bases epistemológicas se pautavam, sobretudo, no marxismo, pois o marxismo representou e fundou os movimentos de esquerda no início deste século. Na contramão deste movimento de esquerda que questionava principalmente a organização do capital e a configuração das classes sociais, existiram também os feminismos liberais, constituídos por mulheres brancas, de classes médias e burguesas, que se aliavam aos pressupostos feministas, mas, sobretudo, àquilo que pouco ou nada transformava em termos de condições sociais, isto é, um feminismo que se apegava nas questões estéticas, valorizando e positivando o corpo da mulher e nesta direção, reforçando a própria objetificação da mulher.
Os feminismos se transformaram principalmente a partir dos anos sessenta, anos efervescentes em termos culturais, políticos e econômicos, um período de intensa expansão de movimentos sociais, sejam eles, sexuais, ambientais, raciais e étnicos. Essas movimentações impactaram sobremaneira os feminismos, trazendo para eles novas demandas e pautas, como por exemplo, relativas à liberdade sexual, como as reivindicadas pelas feministas radicais e lésbicas, relativas à igualdade racial e às particularidades das mulheres negras, como as reivindicadas pelos feminismos negros e, na vertente marxistas as reivindicações por igualdade social. Ou seja, os feminismos lutavam por igualdade e pelas diferenças. Posteriormente, na década de 1980, as efervescentes produções teóricas relativas ao conceito de gênero e a própria institucionalização dos feminismos por essa via mobilizaram debates em torno do conceito, como fizeram os feminismos queer, e igualmente, os feminismos transnacionais, que trouxeram para o debate a universalização do conceito e sua insuficiência analítica no que diz respeito aos estudos de mulheres negras, africanas, sul-americanas, indígenas, palestinas etc., isto é, um feminismo que pensou e pensa os processos de racialização de modo geral e transnacional, culminados pela colonização e diáspora de diferentes povos, não se limitando à cor de pele, nem nos limites geográficos e territoriais nos quais vivem diferentes mulheres.
Embora reconheçamos a existência e potência destes e de outros diferentes feminismos, para este artigo procuramos trazer alguns daqueles que acionam em sua base a perspectiva da interseccionalidade. Trazemos como proposição a ideia de um feminismo subalterno, o qual agrega dentro de sua perspectiva os feminismos negros e os transnacionais, entre outros que se colocam na contramão dos feminismos liberais e elitistas.
Sobre feminismos subalternos. Para Luciana Maria de Aragão Ballestrin (2017, p. 1036), o termo subalterno atua como um marcador dos feminismos descoloniais, decoloniais e transnacionais, a medida em que os feminismos subalternos agregam todos que “[...] agenciam um antagonismo irreconciliável diante de um feminismo ‘elitista’, porque hegemônico: branco, universalista, eurocêntrico e de Primeiro Mundo”. Para a autora, o feminismo subalterno é uma composição dos feminismos chamados de terceiro-mundista e pós-colonial, no sentido de compartilhar as críticas feitas ao feminismo hegemônico, questionando as ideias dominantes de história e de representação, e ao mesmo tempo, no sentido de problematizar a interpretação por dentro do próprio pensamento pós-colonial e terceiro mundista a respeito da expressividade do gênero dentro deste pensamento. Ballestrin (2017) explica que o encontro entre o feminismo e o pós-colonialismo ocorreu principalmente a partir da década de 1980 e é marcado pela obra da feminista indiana Gayatri Spivak na qual a mulher colonizada é expressão máxima deste encontro.
Ballestrin (2017) procura destacar a atmosfera teórica e política por meio da qual emerge o feminismo subalterno. Observa-se, por exemplo, que na obra de Fanon Pele negra e máscaras brancas, datada de 1952, o pesquisador já trazia uma intersecção entre gênero e raça, sobretudo nos capítulos dedicados a pensar a mulher de cor e o branco e o homem de cor e a branca, entretanto, prevalece ainda em Fanon, segundo Balestrin (2017) a referência do homem colonizado no sujeito que é o homem negro. Desse modo, essa obra que é referência no debate pós-colonial, não coloca a dimensão do gênero, da mulher e de seu corpo como algo prioritário na construção de sua analítica. No debate pós-colonial, a discussão do corpo, da sexualidade e de gênero insere-se no contexto da violência colonial, como se o poder colonial fosse somado ao poder patriarcal, e a violência sexual, mesmo contra a mulher colonizada, acaba sendo compreendida de modo geral no interior da violência colonial; em suma, nesta perspectiva o corpo feminino pode ser compreendido como um primeiro território a ser colonizado. A discórdia entre o pós-colonialistas e as feministas subalternas consiste no fato de que, para os colonialistas, as feministas ignoravam o debate colonialista, e por outro lado, para as feministas, os colonialistas ignoravam o debate de gênero. Ballestrin (2017) explica que o termo descolonial para denominação de uma perspectiva feminista consistiu em um marcador de diferenciação que estas feministas quiseram salientar em relação do grupo modernidade e colonialidade, o qual foi fundante do pensamento pós colonialista. O des como antecessor do colonial foi estratégico para mostrar o descolamento a este grupo, representado principalmente por Walter Mignolo e Anibal Quijano. Estão dentro desta perspectiva as autoras Maria Lugones e Oyeronké Oyewùmí, as quais têm problematizado a própria universalização do conceito de gênero, compreendo-o como uma categoria em determinada vertente fundada pela colonização.
O feminismo negro também emerge dos questionamentos das identidades universais, sobretudo da visão e do próprio conceito universal do que é ser mulher, cunhado pelos feminismos brancos, e desta forma problematiza as construções dos padrões de masculinidade e feminilidade dos demais feminismos. As mulheres negras, desde sempre, ocuparam as ruas, trabalharam e nunca foram associadas à fragilidade e, além disto, sempre precisaram proteger seus filhos da violência do Estado. Observa-se que havia um estigma dado à mulher negra a qual ocupava um lugar de hipersexualização ou de infantilização, no primeiro caso pela objetificação do corpo da mulher negra, e no segundo, correlacionado ao servilismo, a humildade subalterna e as formas de caricaturar os/as negros/as em criolos doidos ou negas malucas. Essas estereotipias foram muito problematizadas nas pautas das feministas negras (ANDRADE, 2018, p. 85).
O feminismo negro é influenciado pelo movimento negro já presente na década de 1970. Opunha-se as questões postas pelo feminismo liberal e a todo feminismo que não se associasse ao racismo, ou a qualquer forma de reivindicação que não situasse o racismo como uma categoria estruturante da sociedade. Produz-se um pensamento que é ao mesmo tempo teoria e prática, com ativismos singulares elaborados a partir de experiências de resistência de mulheres negras, frente às opressões ligadas à raça, gênero e classe social. Entende-se que a particularidade deste feminismo é a proposição da ideia e do conceito de interseccionalidade, o qual tem como proposição a análise das categorias opressoras, que toma corpo e visibilidade a partir das feministas negras norte americanas, como Angela Davis, por exemplo (BLACKWELL, NABER, 2002). A ideia de interseccionalidade também opera a partir de um referencial teórico epistemológico póscolonialista, sobre o qual se questionam as formas de dominação cultural advindas da colonização. Além de Angela Davis, considera-se bell hooks, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Djamila Ribeiro, Patrícia Hill Collins, entre outras, como representantes importantes desta perspectiva, apesar de adotarem referenciais analíticos distintos.
Há uma nomenclatura sendo usada para pensar de modo mais convergente um feminismo que agrega questões raciais e étnicas, sem ser exclusivamente um feminismo negro, mas que se coloca de maneira ampliada, abordando questões relacionadas a discriminações de diferentes ordens, movidas contra pessoas não ocidentais/não europeias e não brancas - trata-se do feminismo transnacional. A respeito do conceito transnacional Silvério (2018, p. 7) destaca que quando os ativistas negros aderiram aos movimentos transnacionais, agregou-se ao movimento uma ampla gama de termos relacionados à questão racial/étnica, como, por exemplo, o etiopianismo, panafricanismo, antifascismo, comunismo, direitos civis, black power, afrocentrismo, antirracismo, antiapartheid, quilombolismo etc. Na leitura de Silvério (2018, p. 6), mais do que a discriminação vivida por diferentes povos e contra determinados regimes autoritários, o transnacionalismo tem em comum a experiência da diáspora e esta é uma leitura muito particular do autor, segundo ele mesmo, pois até então, as pesquisas que se debruçavam sobre o transnacionalismo, não faziam esta associação. O conceito de diáspora tem uma função analítica e se configura como um movimento que proporciona o espalhamento e o desenraizamento de comunidades, construindo histórias de partidas forçadas e traumáticas, com um sentimento de relação real ou imaginária com a terra natal, intermediado por dinâmicas de memórias coletivas e políticas de retorno. Para Silvério (2018, p. 6) “[...] a diáspora africana, da mesma forma, inaugura uma análise radicalmente descentralizada e ambiciosa de circuitos transnacionais de cultura e política que resistem aos padrões de nações e continentes ou os extrapolam”. Por essa abordagem, podemos entender que, se a diáspora é o elemento em comum dos movimentos transnacionais de diferentes ordens, podemos também refletir que o transnacionalismo é um movimento que faz refletir sobre as formas de colonização e aos processos de racialização e traz para a arena de disputa a resistência decolonial. Para Silvério (2018) o transnacionalismo refere-se à opressão vivida por todos os povos não europeus e pode ser pensado como conceito estratégico no sentido de internacionalizar o trabalho de construir uma história dos subalternos, fazendo analogia com o pensamento de Spivak (2010), uma das autoras de referência também para os feminismos que têm sido chamado de feminismos subalternos2.
Silvério (2018) também problematiza a maneira pela qual o uso das categorias universais postas pelas feministas brancas, não atendiam/atendem demandas de mulheres não brancas. Por exemplo, a crítica à família nuclear, muito incisiva, posta pelas feministas brancas, como instituição predominante na opressão da vida da mulher branca de classe média, não fazia sentido para designar as formas de opressão vivida por mulheres negras, uma vez que, para estas, a família se constituiu como polo de referência cultural/étnica e de resistência contra o racismo, e como já foi dito, contra a violência do Estado produtora do genocídio dos/as jovens negros/as entre outras medidas genocidas , como as prisões, por exemplo. O texto de Hazel Carby (1982) traz essa problemática mencionada por Silvério.
Embora possamos ver muitas semelhanças deste debate com o feminismo negro, parecenos que a questão central que singulariza a existência de um feminismo transnacional é o fato de que, o embate travado pelo feminismo transnacional transcende ao racismo sobreposto à dimensão da negritude, mas se expande no sentido de trazer para a arena de disputas os demais aspectos que configuram um movimento transnacional, isto é, toda dimensão diaspórica, anticolonialista advinda dos estudos pós-coloniais, que também impactam sobremaneira nos estudos dos feminismos negros. Deste modo, subalternidade, colonialidade / decolonialidade / descolonialidade, interseccionalidade ou transnacionalidade e por fim, diáspora, são nomenclaturas que aludem convergências entre os feminismos que assim se expressam, embora existam também especificidades epistemológicas que os diferenciem em certa medida.
Caroline B. Bozzano (2019) enuncia um feminismo transnacional descolonial, cujo objetivo é, segundo a autora, fazer um debate equitativo entre os feminismos que se expandem do norte ao sul, de modo a lutar transversalmente contra a violência colonial. Essa violência é majoritariamente infligida sobre a população imigrante, seja ela branca ou negra. Ou seja, o debate do transnacionalismo vai além da discriminação pela cor e pela negritude. A autora, que se apresenta como imigrante branca, destaca que a questão migratória é pouco priorizada nos debates feministas e que quando se faz esse debate, ele é, ora apresentado por pessoas que foram racializadas e/ou imigrantes, com poucas influências para compor o debate em uma agenda política, isto é, por imigrantes com poucos lugares de fala e também subalternizados, e ora trazido por posturas racistas e neocoloniais. Entende-se que a colonialidade foi a condição de existência e de construção do capitalismo e da acumulação do capital e que essa dimensão se tornou o grande hiato da esquerda europeia, isto é, a colonialidade foi uma dimensão ignorada pelo pensamento de esquerda europeu (como o próprio marxismo assim o fez). (BOZZANO, 2019, p. 3)
Em uma perspectiva feminista, segundo Bozzano, é a pesquisadora Maria Lugones quem levanta essa problemática, entendendo que a colonialidade se dá de forma específica sobre o corpo da mulher e que existe um “[...] sistema moderno colonial de sexo e gênero” (BOZZANO, 2019, p. 2), sobre o qual o corpo da mulher é constituído; este corpo não seria entendido de maneira subalterna se não fosse de maneira constitutiva, isto é, de maneira a se constituir por meio de uma relação de subalternidade conjunta de raça, gênero e classe social. Segundo a autora, esse debate se fortalece nos anos de 1990 a partir da IV Conferência Global da Mulher em Beijing e prossegue nos anos seguintes com a expansão dos feminismos da América Latina, por meio dos quais se problematiza a colonialidade do norte sobre o sul da América. Bozzano (2019) também menciona a lei brasileira - Lei Maria da Penha, como reforço legal para a mobilização de narrativas inversas, isto é, narrativas de mulheres que são vítimas de abuso e violência sexual, na contramão das narrativas colonizadoras sobre a mulher.
Essa inversalidade de narrativas, ou dito de outra forma, essa produção de contra narrativas é uma das condições estratégicas para compor epistemologias feministas transnacionais decoloniais, que se volte para as pessoas mais vulneráveis, e que faça um movimento de “[...] provincializar os centros e centralizar as periferias”, como recurso temporal de resistência descolonial (BOZZANO, 2019, p. 5). Isso significa colocar no centro vozes e experiências colonizadas, não somente como meras fontes, mas como constitutivas de sujeitos des e anticoloniais. Jamil Khader (2003, p. 80) entende que esse movimento se trata de um cosmopolitanismo subalterno à medida que traz à tona experiências cosmopolitas não tradicionais.
Maylei Blackwell e Nadine Naber (2002) que também abordam o feminismo transnacional trazem para o debate o conceito de interseccionalidade e a maneira pela qual este se colocou como importante recurso na agenda dos feminismos transnacionais, a partir, principalmente de dois eventos subsequentes: a Conferência Mundial contra o Racismo, que ocorreu em Durban no primeiro semestre de 2001, no qual se pautaram temas relacionados ao colonialismo, crimes de ódio e violência, purificação étnica, migrações/refugiados, escravidão e tráfico de escravos, pobreza e exclusão social, racismo institucionalizado, antissemitismo, discriminação por casta, gênero, orientação sexual, juventude, ocupação estrangeira, racismo ambiental, intolerância religiosa, reparações, trabalho, tráfico e globalização (conferência esta que não teve a participação dos Estados Unidos), e meses depois, o atentado de 11 de setembro que ocorreu nos Estados Unidos, e que marcou definitivamente as políticas anti-imigratórias em diferentes países. Nesta conferência os debates ficaram marcados pelo que ficou chamado de intolerâncias correlatas (BLACKWELL, NABER, 2002, p. 191), isto é, uma preocupação ampliada, exposta por diferentes países, sobre o modo pelo qual o racismo se intersecta com a pobreza, com as discriminações de gênero e com a homofobia.
O debate indígena também se insere no feminismo transnacional, como destacam Blackwel e Naber, e foi na mesma Conferência mencionada que feministas indígenas, como as lideradas por Cándida Jimenez, trouxeram a reivindicação de que seus povos sejam sempre caracterizados em suas pluralidades, com inserção do s na nomenclatura povos indígenas no lugar de povo indígena. Além desta, a violência e discriminação vivida por mulheres palestinas que vivem em Israel, também foi colocada em pauta, depois que, de modo bastante crítico, mulheres israelenses expuseram os efeitos da ocupação israelense na dissipação dos feminismos palestinos e da mesma forma criticando a marginalidade dada a este debate no interior de diferentes movimentos feministas, entendendo que o sionismo3 é o ismo esquecido dos feminismos, problematizando o tema de modo a ampliar ainda mais o debate em torno do transnacionalismo.
Backwell e Naber trazem à tona diferentes pautas e demandas que emergiram na Conferência internacional contra o racismo, mas embora estas se apresentam sob perspectivas muito particulares, há um atravessador comum que delas emanam, isto é, uma visão mais ampliada do racismo sobre o qual se consideram aspectos da globalização, da colonialidade e do imperialismo, e para entender/analisar esse racismo transnacional se acionam conceitos como o da interseccionalidade, segundo as autoras, oriundo dessa percepção de intolerâncias correlatas. Para as autoras, Viola Casares traz uma frase emblemática do movimento feminista transnacional, assim se pronunciando: “Não abriremos mão de nossas culturas e não seremos separadas pela raça” (CASARES, 2001, p. 10 apud BACKWELL, NABER, 2002, p. 192).
MAS, AFINAL, PODE A CRIANÇA FALAR?
A pesquisa da qual este artigo se deriva localizou a recorrência de muitas e variadas perspectivas feministas, entre elas, os feminismos marxistas, os feminismos lésbicos, o queer, feminismos negros, os feminismos caribenhos, latinos, feminismos transnacionais, subalternos, coloniais, decoloniais ou descoloniais, entre tantos outros que vão se desenhando a partir de demandas específicas ligadas ao grupo no qual se originam. Apesar de toda multiplicidade destas perspectivas, há algo em comum que atravessa o feminismo como um todo, como movimento político e social único (e não homogêneo): o feminismo busca justiça social de todas as ordens. Difere-se entre eles a forma pela qual essa justiça social é projetada, isto é, os conceitos acionados ou a metodologia utilizada.
Nesta pesquisa observou-se que os feminismos expressos nas perspectivas transnacionais, subalternas ou pós-coloniais trazem contribuições mais convergentes com a realidade das crianças que habitam a educação infantil brasileira. Essa interpretação deve-se, sobretudo, ao fato de que estes feminismos (ainda que carreguem especificidades entre eles) orientam suas análises e reflexões a partir de duas dimensões centrais: primeiramente, a compreensão da racialização como processo transnacional que segregou as populações entre humanas e não humanas, justificando por esta via toda forma de exploração e escravização de populações negras no Brasil; em segundo lugar, a dimensão interseccional cunhada pelos feminismos negros e abraçadas pelas demais abordagens, cuja problematização central se dá sobre as concepções hegemônicas - de mulher, de gênero, de classe social etc., por entender que existem atravessamentos singulares que diferenciam, por exemplo, a mulher branca de classe média da mulher negra, e mesmo, a mulher branca pobre da mulher negra.
A interseccionalidade como conceito central do feminismo negro, embora recorrentemente atribuído a Kimberlé Crenshaw (2002), já vinha sendo sinalizado por diferentes feministas negras; o problema central exposto por esse conceito é o fato de que as opressões não possuem um efeito somático para quem as vivem, mas as conferem, sobretudo, um lugar fronteiriço, singular e subalterno porque experienciam de maneira direta diferentes intolerâncias correlatas. Tem-se em Gayatri Spivak, uma feminista indiana que ganha visibilidade na década de 1990 no Brasil, a precursora desta problematização e, sobretudo, o modo pelo qual o conceito de subalternidade se agrega ao de interseccionalidade em sua produção: o subalterno é aquele que intersecciona diferentes modos de opressão. A pergunta central da autora na obra Pode o subalterno falar? (2010), projeta e inspira o presente artigo na compreensão de que, olhar mais profundamente estes feminismos, que têm sido cunhados como subalternos, nos possibilita compreender de modo mais amplo o conceito de interseccionalidade e da racialização, os quais nos ajudam a compreender a lógica estruturalista das opressões, sob a qual o subalterno não pode falar, não no sentido de não ter capacidade ou voz, mas porque não há espaços políticos, institucionais e de poderes possíveis para falarem e serem escutados.
O embate que se coloca e que trazemos como provocação é: será que a criança pode ser compreendida como subalterna, ou não? David Lapoujade (2017) a partir da obra de Etienne Sourriau cunha o termo existências mínimas também para pensar as crianças. Então vejamos:
Penso em uma criança que dispôs diversos objetos, grandes e pequenos, cuidadosamente, longamente, de uma maneira que ela achou bonita e ornamental, sobre a mesa de sua mãe, para “agradá-la”. A mãe chega. Tranquila, distraída, pega um desses objetos do qual ela vai precisar, recoloca um outro no seu lugar de sempre, e desfaz tudo. E quando as explicações desesperadas que acompanham os soluços contidos da criança lhe revelam a extensão do seu pouco caso, ela exclama desolada: ah, meu amor eu não vi que era alguma coisa! (LAPOUJADE, 2017, p. 43)
Lapoujade se pergunta “[...] o que a mãe não vê?” E ele arrisca: “Podemos dizer que é a disposição de um ponto de vista preciso da criança”. “Podemos dizer que é a alma da criança - inteiramente transportada para a disposição dos objetos” (LAPOUJADE, 2017, p. 43). E continua mostrando que a mãe vê os objetos, mas o que ela não vê “[...] é o modo de existência deles sob o ponto de vista da criança, a arquitetura esboçada diante de seus olhos. O que ela não vê é o ponto de vista da criança: ela não vê que há um ponto de vista - que existe a seu modo” (LAPOUJADE, 2017, p. 44). Podemos dizer que a mãe, ou a professora, ou os adultos estão cansados e também cegos, pois não veem que há um mundo construído, que Lapoujade enuncia: há almas nestes mundos. E os adultos não enxergam, e também não escutam, atarefados e brutalizados, no sentido dado por Mbembe (2020) que estão. Estamos incessantemente ouvindo os adultos anunciarem o seu esgotamento pois atuam nesta cronopolítica temporal que acelerou o tempo. Portanto o que temos, de um lado, adultos esgotados e de outro, vidas produzindo existências, que não entendemos e nem compreendemos.
A questão complexa que se impõe é: como adotar um ponto de vista das crianças quando todos os dispositivos de saber e poder são adultocentrados e assinalam para as crianças um espaçotempo determinados, bem como uma função social dada? Que ponto de vista devemos adotar para entender o ponto de vista das crianças? Como escapar dos dispositivos de saber/poder, linguagens adultocentrados?
Observa-se que sobre o corpo da criança interpela-se variados dispositivos de saber e poder; há uma axiomática do capital que se une às múltiplas formas de semiotização, em uma rede de saberes, verdades apoiadas nas retransmissões institucionais, que reverberam saberes em relação às crianças que impedem que as escutemos. O que temos então é a criança dos psicólogos, a criança dos pedagogos, a criança dos juízes, a criança do estado, a criança da família, a criança das ONGs, a criança dos padres/pastor/rabino, como escapar disto? Pois todos estes sistemas de significação do que é ser uma criança, investem incessantemente sobre elas, e lhes instauram também uma subjetividade. Não há território mais disputado e controlado do que o corpo da criança. Como escapar destes paradigmas? O desejo da criança não é redutível à triangulação edipiana, e pode dele querer escapar, ou passar ao largo desta inscrição, como tentou nos mostrar largamente dois filósofos: Félix Guattari (1981) e Liane Mozère (2007). O campo teórico da criança pequena é saturado por alguns saberes que impedem a voz da criança, mesmo quando pretendem escutá-la. Todas estas representações sobre o que é uma criança fazem desaparecer as forças que elas anunciam, de que modo ver as forças que emanam das crianças sem enquadrá-las nos sentidos das lógicas de representação? Gilles Deleuze (2007) escreveu sobre Francis Bacon algo que serve aqui para nos remetermos às crianças. Ele disse que um pintor não tem de preencher uma superfície em branco, mas sim esvaziá-la, desobstruí-la, limpá-la, tenho de esvaziar, desobstruir e limpar esta superfície. O pintor busca outras formas de percepção, pois a tela em branco, ela não está em branco, mas repleta de clichês, opiniões, imagens, lembranças, fantasmas, significantes. É o que acontece em relação à criança, quando a vemos não vemos nada. Nessa lógica, perguntamos, tal como Spivak, pode a criança falar? Parece-nos que não.
Shulamith Firestone, uma feminista representante da perspectiva radical na década de 1970, dizia que a infância era um inferno, e que era necessário incluir a opressão das crianças em todo o programa de revolução feminista, pois caso contrário estaria fadada ao fracasso. Mesmo ela dizendo da necessidade de separar as crianças das mulheres, pois muitas mulheres eram englobadas como crianças, infantilizadas como tais, destacava a importância da luta feminista trazer a vida das crianças como pauta. Dizia ela:
[...] nossa meta final deve ser a eliminação das próprias condições de feminilidade e da infância que conduzem a esta aliança entre os oprimidos, abrindo caminho para uma condição humana totalmente humana. Ainda não existem crianças capazes de escrever seus próprios livros, de contar suas próprias histórias. Nós teremos que, uma última vez, fazermos isto por elas (FIRESTONE, 1976, p. 123).
Entendemos por esta via que não há luta feminista possível se as crianças não forem incluídas, por mais que a elas se atribua uma pequenice que desmereça e inferiorize suas causas, suas falas, suas demandas, sua vida de modo geral.
E nos feminismos subalternos, qual o lugar da criança e da infância? Do ponto de vista conceitual, eles nos ajudam a olhar as diferentes relações de poder que se projetam sobre as crianças e seus corpos, nos ajudam a entender e analisar a subalternidade, as relações de poder correlatas e as interseccionalidades dessas relações, acionando dimensões fundamentais como colonialidade /decolonialidade / descolonialidade, interseccionalidade ou transnacionalidade e diáspora. Do ponto de vista político e ético esses feminismos nos colocam a frente do compromisso de produzir narrativas inversas, isto é, contra narrativas, que mobilizem a desconstrução das lógicas hegemônicas, e essas contra narrativas estão, no nosso entender, de modo muito pontual, no modo pelo qual as crianças falam, o que elas falam, e ao falar e reverberar estas vozes, produz-se outra micropolítica discursiva de fazer falar aqueles/as cujas vozes não são escutadas.
Esta é uma das mais importantes dimensões do feminismo. Nós reconhecemos que ao falarmos sobre uma questão aparentemente pequena, afetamos o todo. E isso faz parte do entendimento de lutar por liberdade e justiça para todos. Para o feminismo ser relevante ele precisa ser antiracista e incluir todas as mulheres das mais diversas esferas.
(Angela Davis)