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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.esp Rio de Janeiro abr./jun 2023  Epub 22-Nov-2024

https://doi.org/10.12957/teias.2023.64662 

Infância, juventude: interseccionalidades

MASCULINIDADE DO BANDIDO: juventudes socioeducativo, entre hegemonia e subalternidade

GANGSTER MASCULINITY: detention center youth, hegemony and subalternity

MASCULINIDAD DEL BANDIDO: entre hegemonía y subalternidad

Izabela de Faria Miranda1 
http://orcid.org/0000-0002-7532-1736; lattes: 0025573179491560

Frederico Assis Cardoso2 
http://orcid.org/0000-0003-2704-3652; lattes: 3293853625234485

Guilherme de Alcântara3 
http://orcid.org/0000-0002-6489-5208; lattes: 5281307281176690

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

2Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

3Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


Resumo

Este texto é resultado de uma pesquisa realizada com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de internação, em uma cidade do estado de Minas Gerais. Tem por objetivo apresentar reflexões sobre essas juventudes, a masculinidade do bandido, seus contextos e dinâmicas que oscilam entre hegemonia e subalternidade. A partir de uma perspectiva feminista, foi realizada uma etnografia com quatro meses de trabalho de campo e 22 entrevistas individuais semiestruturadas com adolescentes. O argumento central é o de que a adesão à criminalidade faz parte de um processo de valorização de um modelo de hegemonia local, por homens subalternizados pelas dinâmicas de hegemonia regional e global. A pesquisa fez uso dos conceitos de masculinidade hegemônica e de masculinidade subalternizada para descrever e analisar as dinâmicas das relações de poder que ocorrem entre homens, atendendo principalmente as demandas do capitalismo global. Entre patrões e trabalhadores e diversos outros modelos de masculinidades são construídas as masculinidades de cada bandido.

Palavras-chave: masculinidades; juventudes; sistema socioeducativo.

Abstract

This paper is based in research with adolescents in a detention center in a city of Minas Gerais State, Brazil. It aims to analyzes the masculinity of the bandit, its contexts and dynamics that range between hegemony and subalternity. Rely on a feminist perspective, this ethnography drew on 4 months of field work and 22 interviews. The main argument is that adherence to criminality is part of a process of appreciation of a model of local hegemony, by men subordinated by the dynamics of regional and global hegemony. We used the concept of hegemonic masculinity and subalternized masculinity to describe the dynamics of the power relations between men, which mainly meet the demands of global capitalism. Among bosses and workers and several other models of masculinity, the masculinity of each gangster is constructed.

Keywords: masculinities; youth; socio-educational system.

Resumen

Este artículo es resultado de una investigación realizada con adolescentes que cumplieron medidas socioeducativas de internación en una ciudad del departamento de Minas Gerais. Nuestro objetivo es presentar reflexiones sobre la masculinidad del bandido, sus contextos y dinámicas que oscilan entre hegemonía y subalternidad. Apoyada en una perspectiva feminista, la etnografía abarcó un trabajo de terreno de cuatro meses y 22 entrevistas. El argumento clavees que la adhesión a la criminalidad es parte de un proceso de valoración de un modelo de hegemonía local, por parte de hombres subordinados a las dinámicas de hegemonía regional y global. Utilizamos el concepto de masculinidad hegemónica y masculinidad subalternizada para describir la dinámica de estas relaciones de poder que se dan entre hombres, las cuales responden principalmente a las demandas del capitalismo global. Entre patrones y trabajadores y varios otros modelos de masculinidad, se construye la masculinidad de cada bandido.

Palabras clave: masculinidade; juventudes; sistema socioeducativo.

ENTENDENDO OS CONCEITOS E AS INTERSECÇÕES

O patriarcado talvez seja, antes de tudo, algo que diga respeito às relações de poder, sendo a subalternização das mulheres apenas a primeira das hierarquias capazes de serem produzidas. Não é fácil supor que, fundado sobre hierarquias, o patriarcado terá horizontalidade entre seus pares. Assim, ele se desdobra em diversas outras formas de dominação que definem quais homens se fixarão no topo hierárquico, como será a distribuição de poder, que estratégias adotarão para permanecer em dominância, que homens usufruem e como usufruem dos dividendos patriarcais.

Refletir sobre o patriarcado pressupõe então identificar o universo de intersecções que o atravessa, e que se refletem nas experiências concretas de cada homem e grupos de homens, em cada contexto. Para Viveros Vigoya (2016, p. 10) a interseccionalidade é uma problemática política, mas também sociológica e, portanto, não pode ser reduzida em termos de vantagens e desvantagens, calculadas aritmeticamente. Neste sentido, a pesquisa com homens jovens, negros e pobres em sua maioria, exige uma abordagem situada dos processos e estruturas de dominação, que leve em consideração as configurações sociais e contextos. Afirma Viveros Vigoya (2016, p. 10, em tradução nossa):

Assim, a posição mais desvantajosa em uma sociedade classista, racista e sexista não é necessariamente de uma mulher negra pobre, se comparada com a situação dos homens jovens de seu mesmo grupo social, mais expostos que elas a certas formas de arbitrariedade, como às associadas aos controles policiais. A análise de configurações sociais particulares pode relativizar as percepções do senso comum sobre o funcionamento da dominação. A raça, a classe e o gênero são inseparáveis empiricamente e se sobrepõem concretamente na produção dos diversos atores sociais.

Como alerta a autora afrocolombiana, as experiências dos homens subalternizados podem trazer questões que subvertem análises apriorísticas sobre as posições e relações de dominação de gênero. Além disso, ainda que grande parte dos países e dos povos tenha passado por processos de genocídio colonial, não é possível homogeneizar noções de patriarcado e as experiências concretas dos/as sujeitos/as sociais em cada contexto. O resultado da pesquisa histórica indica que o imperialismo não só impacta nas ordens de gênero das sociedades colonizadas, mas ele é, em si, também um processo generificado. Masculinidades e relações de gênero específicas foram inseridas nesse projeto de dominação e o gênero “[...] foi formativo nessa construção inicial de um espaço transnacional e transregional” (CONNELL, 2016, p. 168).

O patriarcado é, também, na história do Brasil, um movimento colonial, capitalista, elitista, racista, escravocrata, militarizado, cristão, heterossexual; todas características que compõem noções de hegemonia e que estabelecem padrões regionais de práticas sociais a serem reproduzidos pelos homens na construção das masculinidades brasileiras. A crítica pós-colonial e as autoras do Feminismo Negro estadunidense argumentam que as masculinidades latino-americanas não são uma mera transposição de modelos exportados pelas nações colonizadoras mas, sim, uma configuração própria, entrecruzada por diferentes eixos de poder como classe social, raça, sexo, status etc., além de “[...] diversas dinâmicas que vinculam colonialismo e nacionalismo, sociedades coloniais e metropolitanas” (VIVEROS VIGOYA, 2018, p. 52-53). Acrescenta ainda Kimmel (1998, p. 105) que, dentro dessas construções históricas, há uma produção simultânea de hegemonia e subalternidade, valorização e desvalorização de modelos de masculinidades atreladas ainda ao desenvolvimento econômico.

A masculinidade hegemônica surge então como um conceito que apoia a compreensão das dinâmicas desses eixos de poder estabelecidas entre os homens, que aplicadas aos contextos coloniais possibilita a compreensão das hierarquias estabelecidas entre colonizadores e colonizados, entre escravizadores e escravizados, inaugurando novas noções de hegemonia e de subalternidade, além de movimentos de resistência, subversão e contra hegemonia. Ela é compreendida como modelo normativo que estabelece padrões de práticas sociais, definindo uma forma mais honrada de ser homem (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 245), sendo sua característica fundamental a combinação da pluralidade das masculinidades e a hierarquia entre elas (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 262). Tais práticas expressam sobretudo as demandas do sistema contemporâneo do capitalismo global, descendente direto do imperialismo (CONNELL, 2016, p. 169), um sistema de opressão que concentra poder discursivo, econômico, político, simbólico social etc. nas mãos de pouquíssimos e específicos homens.

Sobre essa questão, Souza (2013, p. 36) afirma que “[...] nas sociedades ocidentais, em especial as que tiveram a experiência colonial, a masculinidade hegemônica é branca, heterossexual e burguesa”. Na mesma direção e no mesmo sentido, Pinho (2004, p. 66) acrescenta ainda que “[....] outros modos específicos e concretos, localizados e estruturados de masculinidade estariam subalternizados ou seriam constituídos por formas contextuais de subalternização”. Em posições distantes desses modelos de hegemonia, estão as juventudes inseridas no sistema socioeducativo1, a qual denominamos juventudes2 socioeducativo.

As juventudes socioeducativo podem ser compreendidas como o grupo de crianças e adolescentes que está inserido no sistema socioeducativo. A palavra juventudes evidencia a pluralidade e a diversidade das pessoas que a compõem, bem como a especificidade de cada trajetória. O objetivo de se utilizar a palavra socioeducativo e não socioeducativas é fazer concordância sintática com a palavra sistema, evidenciando a institucionalização dessas juventudes, o que constitui e reestrutura uma série de experiências e interseções com outras instituições, tais como o poder judiciário e as polícias, produzindo subjetividades, regulando “[...] desejos, tempos e territórios, atravessando de forma bastante marcada as relações” e coproduzindo o funcionamento do sistema socioeducativo (DE GARAY HERNÁNDEZ, 2018, p. 19). Essas juventudes são ainda compostas de homens predominantemente negros, empobrecidos, moradores de periferia e com baixa escolaridade, muitos em estado de vulnerabilidade social e desamparo socioeconômico, conforme apontado pela pesquisa realizada3 e que também acompanham as estatísticas nacionais.

O trabalho realizado teve por objetivo apresentar reflexões sobre essas juventudes, a masculinidade do bandido4, seus contextos e dinâmicas que oscilam entre hegemonia e subalternidade. Adotando procedimentos metodológicos qualitativos, esteve inserido em um projeto de oficinas sobre masculinidades e criminalidade, realizado em uma unidade socioeducativa de internação. A partir de uma perspectiva feminista, foi realizada uma etnografia que produziu dados pelos seguintes meios: 1) elaboração de caderno de campo de dez encontros sucessivos da oficina e; 2) entrevista individual semiestruturada com 22 adolescentes que cumpriam medida socioeducativa na unidade. Foram mais de 30 horas de gravação das entrevistas, no total, e três horas dedicadas especificamente aos registros no caderno de campo. As entrevistas duraram aproximadamente quatro meses, período em que passaram 32 adolescentes pela unidade e pela oficina. Foram entrevistados 27, sendo cinco excluídos do quadro geral da investigação, principalmente por não autorizarem as gravações e seus usos. Outros cinco não foram entrevistados por não permanecerem na unidade por tempo suficiente para serem entrevistados, ou foram inseridos quando as entrevistas já tinham se encerrado. Todos foram considerados para a contagem da heteroidentificação racial que compôs o perfil sociológico dos sujeitos.

A inserção de determinados grupos no sistema socioeducativo não está vinculada somente à prática de atos infracionais. Ela é também consequência da seletividade punitiva que determina os tipos de condutas e pessoas que serão criminalizadas. Afirma D’Elia Filho (2017, p. 16) que há uma “[...] inversão total da estrutura formal do aparelho repressor”, quando o poder judiciário passa a ter sua atuação delimitada pela seleção policial que decide “[...] quem vai ser processado e julgado criminalmente”. Dessa forma, fatores como reconhecimento étnico-racial, classe social e gênero compõem o estereótipo do bandido, e tais fatores talvez ainda direcionem as abordagens policiais e centralizem a violência institucional em determinados grupos de pessoas. D’Elia Filho (2017, p. 16) assim descreve esse estereótipo:

O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador da favela, próximo do tráfico de drogas vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda.

As juventudes socioeducativo não podem então ser reduzidas a uma conceituação focada apenas na prática de atos infracionais. A criminalização de juventudes específicas faz parte de um projeto político higienista que associa crime e miséria (D’ELIA FILHO, 2017, p. 19) e está essencialmente ligada aos sujeitos que praticam os atos infracionais e que, consequentemente, serão institucionalizados. O que significa que “[...] vemos assim vários jovens que entram no sistema por erro, por atos infracionais forjados ou aumentados pela polícia ou enquadrados por outras pessoas” (DE GARAY HERNÁNDEZ, 2018, p. 109), especialmente quando eles já têm passagem pelo sistema.

Em um país como o Brasil, poucos homens reais podem se identificar com modelos de hegemonia masculina (PINHO, 2004, p. 66), mas eles são normativos e, portanto, contam com o posicionamento de outros homens e de suas masculinidades, subalternizadas, que a legitimam ideologicamente (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 245). Ainda segundo Pinho (2004, p. 66), como são modelos reiteradamente impostos por vários mecanismos ideológicos - geralmente controlados por aqueles homens que constroem e correspondem às normas hegemônicas -, muitos outros homens as tomam como parâmetro e acabam por legitimar a sua existência.

O posicionamento das masculinidades subalternizadas não supõe um processo pacífico em que os homens das nações colonizadas tenham aceitado as definições hegemônicas e simplesmente incorporado seus padrões. Ao contrário disso, as relações de gênero são sempre espaços de conflito e o colonialismo violentamente reconstruiu as ordens de gênero e as relações entre masculinidades conforme seus próprios interesses (VIVEROS VIGOYA, 2018, p. 53). A construção das masculinidades brasileiras e latino-americanas ocorreu então em contextos históricos extremamente violentos (VIVEROS VIGOYA, 2018, p. 78), que incluíram a desumanização de povos, etnias e de civilizações inteiras.

Desumanizar pessoas se torna então essencial para a manutenção das políticas de masculinidade imperialistas. A chegada dos invasores às terras por eles nominadas Índias, Américas e África foi também a imposição do que seria humano e o que não seria, quais vidas poderiam existir e quais deveriam ser descartadas, de acordo com seus interesses naqueles territórios e naquela época histórica. Essa política de dominação que foi experimentada em escala global - que generificou, racializou, subalternizou e desumanizou pessoas - foi também uma política de masculinidade, que proliferou padrões de hegemonia e que certamente marcou a construção das masculinidades brasileiras.

As socializações masculinas envolvem “[...] uma estranha combinação de poder e privilégios, dor e carência de poder” (KAUFMAN, 1995, p. 123, tradução nossa). O que nossa investigação indica é que as juventudes socioeducativo nem sempre experimentam esse poder, ou pagam com suas vidas e liberdade por algumas experiências fragmentadas dele. O que na verdade experimentam essas juventudes é uma ilusão de poder. Nas palavras de Ryan5: “Poder, poder quem tem é patrão. Poder é ilusão”.

O patriarcado de certa maneira promete poder aos homens, mas uma hegemonia branca e burguesa não oferece solução para as tensões de gênero experimentadas pelas juventudes socioeducativo. É um modelo de poucos para dominação de muitas e de muitos e que, portanto, não dá conta das consequências da exclusão que provoca. Espaços de pobreza, desigualdades e vulnerabilidades, as quebradas6 se tornam então um terreno fértil para movimentos de reconhecimento e valorização de homens que talvez não sejam valorizados em nenhum outro lugar:

[...] homens que são mantidos constantemente sob tensão racial, emasculados pelo racismo, subjugados pelas estruturas de classe, coagidos pelo sistema sexogênero, aprisionados em meios a discursos militarizados, do mercado e da criminalização (PINHO, 2013, p. 233).

A masculinidade do bandido se consolida então como um modelo de hegemonia naquele contexto, oferecendo soluções para algumas das tensões experimentadas pelas juventudes que eventualmente serão inseridas no sistema socioeducativo. Por medo ou por admiração, os bandidos têm o respeito da quebrada e os patrões7 têm, ainda, poder. Tudo isso de certa forma fazendo com que aquele indivíduo, antes subalternizado, possa eventualmente se sentir valorizado. Qualquer movimento de afirmação de identidade que tensione as estruturas dominantes é um movimento transgressor, ainda que, muitas vezes, acrítico ou não-intencional, não reflexivo. Sendo assim, ser bandido é ser algo, é ser alguém na vida, é uma forma de existir, de emergir enquanto pessoa masculina.

MODELOS DE HEGEMONIA: ENTRE PATRÃO E TRABALHADOR

Segundo Connell e Messerschmidt (2013, p. 267), atualmente se entende que as masculinidades hegemônicas podem ser empiricamente analisadas em três níveis; o local, o regional e o global, assim descritos:

  1. local: construídas nas arenas da interação face a face das famílias, organizações e comunidades imediatas, conforme acontece comumente nas pesquisas etnográficas e de histórias de vida;

  2. regional: construídas no nível da cultura ou do estado-nação, como ocorre com as pesquisas discursivas, políticas e demográficas;

  3. global: construídas nas arenas transnacionais das políticas mundiais, da mídia e do comércio transnacionais, como ocorre com os estudos emergentes sobre masculinidades e globalização (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 267).

As masculinidades hegemônicas regionais brasileiras não são cópias dos modelos de hegemonia global, assim como as masculinidades hegemônicas locais não são cópias de modelos de hegemonia regional, mas as “[...] construções regionais e locais da masculinidade hegemônica são conjuradas pela articulação desses sistemas de gênero com processos globais” (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 266). Exemplo disso é que a maior autoridade local dentro do tráfico é chamada patrão, fazendo direta correspondência àquele que já no início do modelo econômico capitalista detinha os meios de produção e acumulava riquezas por meio da exploração da mão de obra dos trabalhadores. A rotina de trabalho na pista8 é chamada de plantão, tem suas escalas, gerentes e chefes de plantão9 e as faltas praticadas podem ser punidas com balão. Esses são alguns exemplos de figuras inspiradas nas rotinas brasileiras de trabalho e nas relações entre empregadores e empregados, estruturada ainda na lógica apresentada por Riquelme10, que aponta que a pista não pode parar.

Já as normativas do capitalismo global chegam por meio de filmes e demais produtos culturais, compondo a imagem de modelos de hegemonia regionais que inspiram a constituição de modelos hegemônicos locais, fazendo e refazendo as masculinidades dos bandidos. Calvin11 informou que sempre gostou do crime, mesmo sabendo que essa trajetória inclui caixão ou cadeia. Ele apresentou algumas informações sobre o início dessa trajetória em nosso diálogo sobre o tema:

Calvin (C): Pode falar a verdade procê?

Entrevistadora (E): Claro!

C: Eu sempre gostei do crime.

E: Por quê? Do que você gosta?

C: Do dinheiro, da fama, andar de peça12, de mulher, da zuação...

E: Onde que você aprendeu a gostar disso? Você já parou para pensar?

C: Onde que eu aprendi a gostar disso? Televisão, vídeo dos cara ostentando. Os cara cheio de mulher do lado, revólver, droga, cheio de whiskyzada, bebendo pra lá

[...].

E: Mas você começou a ver isso, esse negócio de ostentação, mulher, foi vendo já o povo do crime ou vendo filmes?

C: Vendo o povo do crime, meus primos. Meus primos mandando vídeo pra mim tirando onda. Eu via aquilo e eu gostava , e eu gosto até hoje de ostentar . Meu sonho é ficar no crime, naquele naipe, meu sonho não, né mano?!, ficar no crime não, mas vão supor: se for pra acontecer, ficar no crime, daquele naipe, levantar naquele naipe memo. Deixar todo mundo vendendo aí pra mim aí, ir lá pra Miami. Ficar lá em Miami com as burguesas.

A fala de Calvin é muito completa pois pode ser utilizada para ilustrar os processos geográficos das masculinidades hegemônicas. Ele tanto acessa modelos de masculinidades de amplitudes global e regional, difundidas pela televisão, quanto assimila a reprodução desses padrões observados em seus primos, localmente. Em todas as esferas são propagados inúmeros modelos de masculinidades, mas alguns deles serão definidos de maneira idealizada, admirável, serão “[...] exaltados pelas igrejas, narrados pela mídia de massa ou celebrados pelo Estado” (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 252) e assim considerados modelos hegemônicos. Calvin tinha 17 anos na época da entrevista, cursava o 6º e 7º anos do ensino fundamental e talvez não tivesse conhecimento profundo sobre os modelos macroeconômicos ou os modos de produção tais como o capitalismo ou o comunismo, mas foi responsável por cunhar na unidade socioeducativa o adjetivo burguesa, para mulheres brancas e de fora da quebrada que ocupariam melhores posições sociais. Ele sonhava com uma vida tipicamente de uma fração da elite econômica, integrando Miami em seu discurso. É possível notar também que embora ele afirmasse que gostava do crime, talvez gostasse na verdade dos seus sonhos e percebeu que para uma pessoa como ele, o crime seria uma possibilidade de conquistar esses sonhos. “Meu sonho é ficar no crime, naquele naipe, meu sonho não, né mano?!, ficar no crime não”. Ele não queria ficar no crime, ele queria mesmo era ir para Miami ficar com as burguesas.

Dentre os modelos disponíveis em uma sociedade capitalista, nada mais dicotômico que as figuras de patrões e trabalhadores, ambas valorizadas dentro das quebradas e assim consideradas padrões de hegemonia. Calvin sonhava com uma vida que só seria possível sendo patrão, mas o trabalho e o trabalhador apareceram em oito entrevistas, como características diretamente ligadas ao que entendiam por ser homem, utilizadas para responder a primeira pergunta do modelo semiestruturado da entrevista: “O que é ser homem para você?”. Além do trabalho, a responsabilidade, o cuidado com a casa e a família, esses também relacionados à remuneração como ferramenta de cuidado. A honestidade, a sinceridade, o caráter, o respeito ao próximo, todas essas características também foram associadas ao que entendiam por ser homem, encontradas em 14 entrevistas desenvolvidas.

É indispensável para o capitalismo que o trabalho seja algo valorizado dentro das dinâmicas das masculinidades e que o trabalhador seja um modelo de hegemonia, principalmente entre as camadas populares. Se o capitalista, ou o patrão, sobrevive à base da exploração do trabalho alheio, é indispensável que existam pessoas para trabalhar. É então pertinente que aqueles homens que centralizam o poder global estabeleçam uma política de masculinidade que difunda a ideia de que o trabalho dignifica, honra e enobrece o homem.

Trabalhar é algo importante para essas juventudes. Afirma Pinho (2013, p. 244) que o trabalho é um meio de acesso ao mundo do consumo, com isso atraindo a dignidade pessoal. As pesquisas sobre o lugar do trabalho nas construções identitárias masculinas latino-americanas evidenciam o seu peso de caráter obrigatório (VIVEROS VIGOYA, 2018, p. 70) e “[...] identificam o trabalho e o emprego como elementos distintivos da masculinidade e como atividades que permitem aos homens ocupar um lugar social no mundo adulto masculino” (VIVEROS VIGOYA, 2018, p. 73). Diante da evidência de que o trabalho é um atributo obrigatório para a construção das masculinidades latino-americanas, ser trabalhador é desejo de muitos. Entre todos os 22 participantes, 13 manifestaram interesse no trabalho, formal ou informal, fora da criminalidade.

Ainda dentro do debate sobre trabalho, perguntamos se eles concordariam em ter uma vida comum aos trabalhadores empregados celetistas das camadas populares e “[...] trabalhar 8-10 horas por dia, pegar ônibus, trabalhar no fim de semana e ganhar um salário-mínimo”. Responderam que sim 15 deles. Sobre essa rotina do trabalhador, Elias afirmou ainda que aceitaria porque é honrada. Contudo, seis participantes não concordariam, acrescentando Miguel que essa perspectiva de trabalho é péssima.

Miguel é o tipo de pessoa que se posiciona, que defende suas opiniões. Ele não achava honrada, mas sim péssima a situação do/a trabalhador/a e por isso defendia o crime e o seu direito de ter muito dinheiro. Calvin também questionou a dureza da vida do/a trabalhador/a e reivindicou o direito de sonhar e de ter condições sociais, materiais e objetivas de existência, melhores. Calvin tem sonhos do tamanho das realizações de um patrão capitalista, mas ele e a maioria dos participantes não reúnem características e nem acessam bens materiais e simbólicos suficientes para se tornarem um. Esses homens são predominantemente brancos, capitalistas, ou burgueses, ou de elite, ou ricos, ou qualquer outra denominação análoga. Eles representam cerca de 79,1% dos membros dos parlamentos espalhados pelo mundo, cerca de 95,6% das mais poderosas lideranças de negócios ao redor da Terra, controlam os meios de força e acumulam o dobro das riquezas que acumulam as mulheres no mundo (CONNELL, PEARSE, 2015, p. 29-36).

Nesse modelo de sociedade colonial estratificada, de pessoas como Calvin são esperadas posições de subalternidade e que elas trabalhem para sobreviver enquanto enriquecem outros homens que não precisarão trabalhar. As alternativas de trabalho e de profissionalização disponíveis para as juventudes socioeducativo são limitadas e fazem parte desse projeto de subalternização das camadas populares. Elas também não oferecem competitividade frente ao status e à remuneração ligada ao tráfico. Como aponta De Garay Hernández (2018, p. 123):

Também escutamos questionamentos em que o foco na profissionalização dos jovens costuma ser em empregos com salários baixos, o que faz parte de uma domesticação da classe baixa para trabalhar para classe alta, como apontado por um profissional. Mesmo compreendendo a importância da empregabilidade desses jovens como um direito, acredito que caiba uma perspectiva crítica de quais as alternativas oferecidas e construídas com eles, especialmente frente ao status e à ostentação fornecida pelas facções do tráfico em uma sociedade atravessada pela instituição-forma da subjetividade capitalística que nos atravessa a todas/os, assim como por uma profunda exclusão e desigualdade social.

Apesar de todo reconhecimento dedicado ao trabalho e ao trabalhador, um número significativo de participantes mencionou não querer, ou estar indeciso sobre sair do crime e ter uma vida de trabalhador comum fora dele. Afirmaram ainda, 14 participantes, que gostariam de ser patrão do tráfico, que é também um modelo de hegemonia, a mais notável dentre a pluralidade de masculinidades de bandido. “Poder, poder quem tem é patrão!”, que é também quem tem condições econômicas para deixar pessoas trabalhando para ele “[...] ficar lá em Miami com as burguesas”. Ryan e Calvin estão corretos e a premissa é válida, dentro e fora das quebradas. No caso do patrão do tráfico, ele pode também estar privado de liberdade, o que foi citado por 10 participantes, ou ser um procurado da polícia, o que certamente dificulta sua ida para Miami. Mas o patrão é quem manda, quem acumula dinheiro, quem é dono da quebrada e a quem os participantes se subordinam. Informaram, 21 deles, que obedecem a seus patrões. Embora nenhum dos participantes seja patrão e que talvez a maior parte corra o risco de morrer ou ser preso tentando atingir esse posto, a imagem do patrão permeia a formação de suas identidades de bandido. Isso significa que:

Desse modo, as masculinidades hegemônicas podem ser construídas de forma que não correspondam verdadeiramente à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses modelos expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos. Eles oferecem modelos de relações com as mulheres e soluções aos problemas das relações de gênero. Ademais, eles se articulam livremente com a constituição prática das masculinidades como formas de viver as circunstâncias locais cotidianas. Na medida em que fazem isso, contribuem para a hegemonia na ordem de gênero societal (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 253).

A masculinidade hegemônica depende de legitimação ideológica, sem a qual ela ficaria impossibilitada de existir. Ela atua então no campo dos desejos dos homens, desejo de que também exerçam poder, poder esse restrito a um pequeno grupo de homens, e talvez manifestado pelo desejo de ser patrão. Para ser legitimada, a masculinidade hegemônica do patrão do tráfico vai ser tomada por inúmeras características admiráveis, sendo as principais delas associadas ao poder, ao dinheiro e às mulheres, objetificadas.

O dinheiro dos cria

“Dinheiro!” É a principal resposta à pergunta “O que você mais gosta no crime?”, encontrada em 14 entrevistas. A figura do patrão, muitas vezes controversa, divide opiniões, mesmo entre aqueles que desejam ser patrão. Porém, para masculinidades subalternizadas, o patrão do tráfico é o modelo de hegemonia que mais aproxima as juventudes socioeducativo do dinheiro. Não uma quantia qualquer, mas um dinheiro excessivo e quase ilusório, suficiente para que não necessitem trabalhar. Na lógica do tráfico, para além do poder de compra, o dinheiro faz parte da produção estética. As notas e os maços são adornos que exaltam as potencialidades daqueles homens e por esse motivo o dinheiro precisa ser visto pelos outros bandidos, lançando parâmetros de disputa entre eles - e também pelas mulheres, que igualmente integram a ornamentação no crime. Dessa forma, aquele homem antes condenado à subalternidade pelos modelos de hegemonias regional e global, passa a reunir algumas de suas características, se consolidando como um modelo de hegemonia local. Sobre essa dimensão do dinheiro, acrescenta Mizrahi (2018, p. 9):

O dinheiro participa da produção de uma estética, feita em performance, que produz a forma adequada, apropriada, de modo a extrair do outro um nível particular de atenção. E, nesse processo, a pessoa revela e traz à flor da pele as suas potencialidades internas. O dinheiro, dessa perspectiva, tem o papel de provocar no outro o olhar e trazer para si os olhares do espectador fazendo com que a pessoa social emerja. A pessoa é efetivamente vista, conhecida, quando está adornada e aparamentada. Mas é também o olhar do outro enquanto espectador que contribui para que a forma adequada seja produzida. E aqui o dinheiro, mesmo que acumulado e entesourado, deve ser gasto e exibido.

A subalternidade e a exploração dos trabalhadores das camadas populares são percebidas pelas juventudes socioeducativo. O tráfico subverteria essa lógica e coloca dinheiro nas mãos de adolescentes, que rompem definitivamente com vínculos que, eventualmente, possibilitariam sua inserção no mercado de trabalho, como a escola. Sobre as possibilidades do tráfico acrescenta de Garay Hernández (2018, p. 208):

[...] a instituição-organização-tráfico oferece a reafirmação de uma masculinidade capitalística a jovens que crescem em um contexto de desigualdade racial, pobreza, judicialização e retrocesso nos avanços dos direitos humanos, que por si já são seletivos na nossa sociedade, o que produz situações de violência de diversos tipos. São apresentados a um lugar onde é possível exercer certo tipo de poder, onde se tem acesso a um status, onde se pode se aproximar de um modelo de masculinidade configurada como projeto de distinção social (VALE DE ALMEIDA, 1996) através da ostentação, para utilizar um termo caro ao campo, que significa ter armas, motos, joias, roupa de marca - itens sempre integrados nos desenhos que os jovens faziam nas nossas atividades -, assim como relações com muitas mulheres.

O tráfico oferece o que mercados de trabalhos formal e informal não oferecem aos trabalhadores, nem de fora, nem de dentro da quebrada. As juventudes serão então agora exploradas por outros patrões, que dentro da amostra de pesquisa, concentram uma média de 80% do capital que passa pelas mãos dos participantes. Mas esse novo patrão que explora, em regra, já foi um menor da pista13 e é também cria14 da favela. Esse patrão representa uma masculinidade possível para as juventudes socioeducativo. Ele tanto guarda a intangibilidade de alguém que ocupa uma posição hierarquicamente superior, pois não é comum que os participantes tenham contato próximo e direto com os patrões, quanto guarda a humildade de uma pessoa que tem seus laços construídos dentro da favela e também na favela seu cenário de ascensão.

A hegemonia está ligada aos desejos, não só de possuir coisas, ou se aproximar de um modelo de masculinidade que tem status e distinção social, mas também o desejo de existir e de ser notado. Esses desejos podem ser tão fortes e a cumplicidade com o sistema tão concreta que minimizar a gravidade da exploração envolvida no tráfico e aceitar os riscos da atividade, que envolvem a própria vida e a liberdade, é algo absolutamente comum. Na entrevista com Miguel travamos uma verdadeira discussão sobre a acumulação de renda do seu patrão. Sua quebrada é especializada na venda de cocaína e ele era o único adolescente que ocupava o cargo de chefe de plantão15. Segundo ele, uma carga de cocaína renderia cerca R$48 mil, dos quais R$40 mil seriam repassados para os cargos superiores e R$8 mil seriam divididos entre ele e outros nove adolescentes da pista que estavam sob a sua responsabilidade. Ao ser interpelado sobre a concentração da renda gerada pela atividade do tráfico Miguel defendeu os seus patrões ferrenhamente alegando que eles o ajudaram, que o colocaram como chefe de plantão, mesmo sendo adolescente, e que seria ele quem precisava dos patrões para ganhar dinheiro.

Desejar ser um patrão do tráfico tem sentidos diferentes para cada um dos participantes. Porém, um expressivo número se identificou com a masculinidade do patrão, fazendo e refazendo suas identidades inspiradas nesses modelos. Esses participantes manifestaram desejo em ser um homem poderoso, que tem dinheiro, que se relaciona com várias mulheres e que manda na quebrada. Alguns afirmaram que gostavam de viver o crime, que também se divertiam nessa atividade, ainda que reconhecessem que essa trajetória envolveria muitas coisas, inclusive a possibilidade da morte.

Identificamos também um outro grupo, composto por adolescentes que, em sua maioria, nutriam desejo por ser patrão apenas como uma ascensão possível dentro da estrutura que atuavam. Esse grupo pode ser somado ao grupo daqueles que sequer desejavam essa posição. Suas identidades de bandido são aparentemente moldadas com uma pluralidade maior de experiências de masculinidades, como a dos estudantes, dos cria que soltam pipa e vão à igreja, dos trabalhadores comuns, etc. Foi também possível observar que os participantes com as condições socioeconômicas mais severas e mais vulneráveis integraram esse segundo grupo. Eles também desejavam ser um homem que possuísse certo poder, que tivesse uma condição econômica melhor, que conseguisse se relacionar com as mulheres que os atraem. No entanto, a maioria deles não necessariamente reivindicava status, ou pelo menos não o tomavam como essencial à sua identidade masculina. Esse grupo tanto se identificava com a imagem e as potencialidades do patrão, como do trabalhador das camadas populares. Esses participantes demonstraram que o crime seria apenas um caminho possível e que talvez com os estímulos e investimentos corretos, superando as condições socioeconômicas que o atravessam, poderiam abandonar essa atividade em algum momento.

A condição socioeconômica dos participantes e outras diversas situações de vulnerabilidade social são mencionadas nos corredores e salas das equipes técnicas da unidade socioeducativa, confirmadas ainda por materiais oficiais e narradas em algumas entrevistas. A pobreza e a insegurança alimentar aparecem em seis narrativas, como uma das situações que motivaram a adesão ao crime. Ronaldo informou que em uma fase de sua vida comia apenas arroz e feijão, que pegava restos de feira levados pelos carroceiros e que esses alimentos seriam usados para alimentar os cavalos. João Vitor informou que um dos prazeres associados ao crime é poder ajudar a família e que antes disso viviam com feijão e farinha.

Percebemos também que os limites e as noções de vulnerabilidade expressadas pelos participantes eram muito baixas. Por diversas vezes os adolescentes expressaram que em suas casas sempre tinham arroz e feijão, ou um fubá suado16, mas que fome nunca passaram. Argumentaram que as mães tiravam de suas próprias bocas para alimentá-los e que, portanto, a adesão ao crime não seria justificada. Eles atraíam para si acusações de serem vagabundos e malandros, por não gostarem de estudar e nem de trabalhar. Ao mesmo tempo experimentavam uma relação extremamente conflituosa com a escola e eram submetidos a trabalhos braçais pesados e ilegais,

como foi o caso de Elias, que já teria trabalhado como ajudante de pedreiro e em lavoura de café, com jornadas extensas e sem nenhuma garantia trabalhista.

A masculinidade do bandido é uma das masculinidades disponíveis no contexto de quem possui tão restritas possibilidades de escolha. Entre patrões, trabalhadores e diversos outros modelos de masculinidade a masculinidade de cada bandido é construída. O que fez com que escolhessem17 ser bandidos e não trabalhadores comuns é uma reflexão que extrapola aquelas possíveis na pesquisa realizada. Fernando apresentou algumas hipóteses, que também representaram parte considerável da análise da nossa investigação: dinheiro e mulher. Ele disse que começou a se aproximar do tráfico aos 12 anos de idade, que via os homens envolvidos com o crime, no baile, com dinheiro e várias mulheres, e começou a se identificar com eles. Afirmou que ele ficava só de beijinho com as mulheres, mas que queria transar com elas. Fernando entendia a dualidade mulher e dinheiro com parte da ostentação: “Ostentação. O tráfico é ostentação. Os cara andava de roupa, pá!, tudo de ouro no pescoço, motão. Você olha pro trabalhador tipo umazinha 125, ué?!, eu um menor e o que eu ia querer? O tráfico”. Quando questionado sobre o fato de que nem todas as mulheres se interessam por essa ostentação, ele acrescentou que “[...] tem mulher interesseira” com quem ele só conseguiria se relacionar se tivesse dinheiro. Provocado pela existência de várias mulheres que não ligam para o dinheiro, ele pareceu referendar querer justamente as interesseiras: “[...] é lógico, é as melhores, ué! Nós quer as melhores, as melhores”.

Aspirar, desejar as melhores coisas da vida e com elas fantasiar não é específico das juventudes socioeducativo. O traficante tem ouro no pescoço, motão e o trabalhador das camadas populares, com muito esforço, terá umazinha 125. Segundo Mizrahi (2018, p. 37), sob uma perspectiva patriarcal, a mulher é um objeto, umas das mais antigas moedas de troca, que nesse contexto reificam as identidades masculinas. Nada mais esperado que elas estejam divididas entre melhores e piores, e que sejam um dos objetos de disputa e hierarquização das masculinidades. As escolhas têm seus fundamentos, mas são discursos como o de Fernando, que na verdade são conjurados pela articulação de sistemas de gênero de ordem global (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 266), que permitem a continuidade das hierarquizações e as noções de subalternidade, sempre reconstituindo o sistema patriarcal (CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 272) e que em contextos regionais e globais prendem pessoas como Fernando (inserido no sistema prisional aos 18 anos) e matam pessoas como o Ronaldo (assassinado logo após completar 19 anos).

1É o conjunto de instituições que integram as políticas públicas destinadas à implementação e o cumprimento de medidas socioeducativas. A Lei Federal n. 8.069/90 instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e prevê que comete ato infracional o/a menor de 18 anos que pratica conduta descrita como crime, devendo a ele/a ser aplicada uma medida socioeducativa. A Lei Federal n. 12.594/12, por sua vez, instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que regulamentou a execução de medidas socioeducativas.

2As juventudes aqui consideradas são uma concepção jurídica, vinculada à menoridade cível e penal, e que está definida no ECA. As juventudes são divididas entre crianças (até 12 anos incompletos) e adolescentes (entre 12 e 18 anos de idade), orientando também a fixação das medidas socioeducativas. Embora 18 anos de idade já configure a maioridade cível e penal, cumprem medidas socioeducativas aqueles que cometeram o ato infracional antes de completar os 18 anos e por esse motivo serão aqui considerados adolescentes.

3Detalhes sobre a pesquisa realizada foram suprimidos para evitar a identificação dos/as autores/as, mas serão inseridos caso o texto seja aprovado.

4O termo é utilizado popularmente para designar pessoas em conflito com a lei, geralmente lhes sendo atribuído caráter pejorativo. Neste trabalho, porém, bandido é utilizado para referenciar os adolescentes participantes da pesquisa, uma vez que verificamos que o termo foi por eles apropriado, ressignificado e transformado em uma forma valorosa de ser homem. O termo é constantemente utilizado como objeto de disputa e hierarquia, em que o melhor e mais respeitado homem pode também ser representado como o melhor e mais respeitado bandido.

5Para preservar a identidade dos sujeitos depoentes adotamos nomes fictícios, sempre destacados em itálico neste artigo.

6Nomenclatura dada pelos participantes à região, comunidade, aglomerado, vila ou favela onde moram ou atuam no crime.

7Também chamados de paizão, meu moço e cara de óculos, o patrão é um dos cargos da estrutura do tráfico de substâncias criminalizadas, ou do tráfico de drogas ilícitas. É a autoridade máxima identificada pelos participantes, muito embora em sua maioria não consigam descrever o que ela faz. É comum dizerem que o patrão não faz nada, mas é o dono da quebrada e uma autoridade não só do tráfico, mas também das pessoas da região.

8Um dos primeiros cargos da estrutura do tráfico de drogas. É aquele que fica com a droga para efetuar as vendas e por esse motivo é o mais exposto às abordagens policiais. Em regra, esse cargo é ocupado por adolescentes e todos os participantes da pesquisa já tinham passado por essa atividade.

9São outros dois cargos apontados dentro da estrutura do tráfico de drogas.

10Riquelme hoje tem 19 anos e foi inserido no sistema prisional 20 dias após o seu desligamento do sistema socioeducativo.

11Calvin atualmente tem 19 anos. Ele é usuário de cocaína e de outras drogas criminalizadas e atualmente está em situação de rua, trabalhando como catador de latinhas para reciclagem.

12Arma de fogo, revólver.

13Expressão comum utilizada para designar adolescente, ou o menor de idade que atua na pista. Passar pela pista e demais cargos da estrutura do tráfico é um meio comum de se tornar um patrão.

14Pessoa que nasceu ou foi criada dentro da favela, que tem as noções de comunidade elaboradas naquele e daquele contexto. Ser cria é um atributo que compõe as identidades dos participantes, passando pela ressignificação e valorização de ser favelado.

15Cargo da estrutura do tráfico. É um segundo nível da pista, mas suas funções não são muito detalhadas. Dentre as atividades narradas estão: decidir vender ou não vender pessoalmente as drogas, fazer escalas de plantões, distribuir a droga, recolher o dinheiro da pista, participar de reuniões e ser a referência do contato com o gerente.

16Uma receita que geralmente inclui fubá, açúcar e água. Nesse contexto, utilizada para evitar a fome, quando não há outro alimento.

17O termo escolha e suas derivações entre aspas é tanto o respeito à autonomia dos adolescentes participantes da pesquisa, que de maneira crítica ou não, em sua totalidade afirmaram que entrar para o crime seria uma escolha, como a percepção de que essa escolha não seria algo inspirado tão livre e conscientemente quanto pode parecer.

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Recebido: Janeiro de 2022; Aceito: Abril de 2022

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