INTRODUÇÃO
Este artigo é uma das muitas rodas de conversa que compõem a dissertação de mestrado: Rodas e fogueiras aos pés das grandes rochas - onde a escuta precede a fala: um exercício de escuta de múltiplas tradições orais do Oeste africano defendida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense em 2021. Quando iniciei o mestrado, tinha como projeto tecer investigações em torno das oralidades e dos saberes africanos. Como ocorre em todo processo formativo, novas caminhadas foram construídas e junto aos estudos de cunho mais documental e bibliográfico, no decorrer da pesquisa, decidimos fazer entrevistas com africanos da região estudada por Hampâté Bâ1. Acreditávamos assim, estar ampliando a nossa escuta da África tradicional e conseguindo indícios que confirmassem a relevância da transmissão oral, dos mestres tradicionalistas e dos espaços formativos tradicionais, nos dias atuais.
Tudo isso, com o objetivo de responder a questão central em torno da qual a pesquisa se elaborou: compreender como a oralidade e o papel dos mestres das tradições orais se presentificam na constituição do ser humano e das sociedades, a partir da cosmovisão de algumas civilizações negras tradicionais do oeste africano, mais especificamente da região sudano-saheliana.
Profundos conhecedores das tradições africanas, da natureza e de si mesmos, meus antepassados, sequestrados de África para terras brasileiras, reconstruíram-se em mata seca2. Isolados pelos profundos vales, cavernas e galerias do Complexo do Peruaçu retiraram da força de seus espíritos, da preservação das tradições ancestrais africanas, da exuberância dos recursos naturais e da destreza de suas mãos, os recursos que os possibilitaram cuidar de si, dos seus e da natureza por gerações. Desterrada, movi-me em direção a minha ancestralidade, instigada pelo desejo de uma escuta profunda de tradições africanas ancestrais. Minhas origens instigam, incentivam e alimentam minhas buscas.
No trajeto, entretanto, percebo-me presa às armadilhas das ideologias pós-colonial, sob a influência de preconceitos e traumatismos causados pela visão de uma África de faltas, de carências, de pessoas escravizadas, de ignorância. E, por mais que minhas origens me lembrem do contrário, acabei por construir minha individualidade numa sociedade diaspórica ocidental. Precisei descartar ideologias ocidentais, que estruturam a sociedade brasileira e que podem ser encontrados em algumas das pessoas que habitam a minha própria pessoa.3 Num movimento de escuta verdadeira4, precisei esquecer por um tempo quem eu era para me permitir ser penetrada e transformada por essa África ancestral. Afinal, eu tinha que abrir espaço para acolher em mim a fala africana. Assim, sentei-me no chão com as mãos no queixo, os cotovelos nos joelhos e os olhos pregados no fogo, sentindo... Cheirando... Ouvindo todas as presenças ao meu redor. Esquecida de mim e de meu tempo, mergulhei, aos poucos, na escuta do outro, deixando a esse outro, toda a experiência de se expressar.
A pesquisa se estruturou a partir dos conceitos de tradição oral e de África tradicional apresentados por Hampâté Bâ5. O intuito era identificar os princípios e valores suleadores6 dessas culturas, não construir um modelo rígido e estático que acabaria por engessar e inviabilizar uma compreensão mais profunda dessas sociedades e, consequentemente, dessas pessoas. Na verdade, compreendemos que o conceito de África tradicional proposto por Hampâté não é algo estático e rígido, congelado no tempo. As sociedades africanas pesquisadas não permaneceram isoladas, ao contrário, interagiram intensamente entre si ao longo dos séculos. Como as tradições ancestrais que estruturam essas sociedades pautam-se nas experiências cotidianas, tais tradições resinificaramse constantemente. Além disso, a presença de árabes, europeus e outros povos na região provocou diversas transformações socioculturais que datam de séculos antes da colonização europeia na África. Compreender as tradições orais passa por compreender os agentes dessas oralidades - tradicionalistas ou mestres das tradições orais, segundo Hampâté - e os elementos utilizados por esses mestres para transmitir os conhecimentos ancestrais às novas gerações.
Durante 15 anos, Hampâté Bâ percorreu diversos países da savana africana do Futa Djalon (Guiné) até Kano (Nigéria) realizando missões de campo como pesquisador do IFAN. Entrevistou representantes qualificados de diferentes grupos étnicos, coletando e registrando histórias, contos, canções, provérbios. Recolheu informações de cerca de mil informantes, comparou as diferentes narrativas e reteve 88 testemunhos de tradicionalistas. Afirmava que a compreensão das sociedades orais era um trabalho minucioso e lento, que requeria muita dedicação, escuta e observação, num constante trabalho de retorno às fontes vivas do conhecimento ancestral. Trata-se de penetrar na memória ancestral de uma coletividade que se autodefine a partir de regras e valores próprios. O autor esclarece que um texto da tradição oral precisa ser escutado em diferentes momentos e por diferentes narradores, precisa ser decorado e repetido para si e para diferentes públicos. Nessas culturas, as habilidades relacionadas à oralidade e à memória são competências altamente valorizadas. Considerava a postura do pesquisador extremamente relevante. Acreditava que o pesquisador não deveria insistir na pergunta, caso a pessoa não quisesse responder e jamais zangarse ou irar-se mesmo se provocado. Deveria estar sempre disponível para viajar de qualquer jeito, deitar-se em qualquer lugar, comer o que estiver disponível e jamais julgar o que vê a partir de seus próprios critérios. Inicialmente, somente gravava sem julgar ou interferir. Posteriormente, comparava as diferentes narrativas, as diferentes versões das inúmeras etnias. Os mestres entrevistados eram africanos criados dentro da tradição, porém de etnias e/ou regiões diferentes. Concluiu que, em sua maioria, os entrevistados das diferentes etnias respeitaram a veracidade dos fatos, a trama era a mesma, embora variasse os detalhes. A capacidade de memória, o temperamento e o grupo social do narrador poderiam tender a aumentar, reduzir ou omitir alguns detalhes, mas os dados básicos permaneciam sempre constantes (locais, batalhas, personagens principais, vitórias e derrotas). Para Hampâté Bâ, os resultados da pesquisa evidenciam que a transmissão oral nas culturas tradicionais do oeste africano era cientificamente válida, principalmente porque o próprio grupo social exercia constantemente o autocontrole. O narrador poderia alterar alguns detalhes, mas não a trama principal, pois logo seria interrompido por seus companheiros ou anciões que o acusariam de mentiroso7. As metodologias utilizadas por Hampâté em sua pesquisa de campo junto aos mestres tradicionalistas, suleram a referida pesquisa.
Ansiávamos por uma pesquisa de campo e em nosso socorro veio o professor Sènakpon Kpoholo - beninense da etnia fon8 - que viabilizou o acesso ao educador social beninense em intercâmbio na Universidade Federal de Juiz de Fora, Narcisse Adjoudeme. Posteriormente, Sènakpon e Narcisse nos apresentaram três jovens beninenses que cursavam a graduação na mesma instituição. Duas moças: Elfy Deguenon e Chryslene Adetonah e um rapaz, Koffi Trinnou. Cinco ricos e generosos encontros, repletos de cores, cheiros e diversidades, que muito tem contribuído para o desenvolvimento da pesquisa. Em dezembro de 2019, participei da oficina A Palavra Através dos Tempos com François Bamba. Natural de Burkina Faso e mestre na arte de contar histórias. Após a oficina, François concordou em conversarmos e, generosamente, nos falou sobre as tradições ancestrais Sénéfo, sua experiência como contador de histórias e sua infância em Burkina Faso. Momento que me permitiu reviver a magia dos contadores de histórias africanos, contida na força e na sabedoria de suas palavras. Assim, em Juiz de Fora, no período de setembro/2019 a março/2021, generosos corações africanos nos acolheram e transportaram às terras de seus ancestrais. Em fevereiro/2020, contatamos o djeli9 Toumani Kouyaté, que generosamente nos forneceu diversos materiais a cerca das tradições orais de seu povo. Kouyaté nos fala do documentário Entre nós, um segredo (2021), que representou um reencontro de Toumani com a história oral ancestral dos maninka10, os ritos de passagem e a iniciação dos djeli.
A roda de conversa em que essas narrativas africanas se fizeram presentes, é fruto de uma escuta de outros e com esses outros. Narrativas que me capturaram logo nas primeiras falas, dada sua potência e inteireza. Nasce de um desejo e de um encantamento. Um desejo antigo de reviver as rodas de conversa de uma infância no coração de Mata Seca. E um encantamento por, surpreendentemente, encontrar ecos da minha história nas narrativas do outro lado do Atlântico, diferentes Áfricas, diferentes tempos. Foi como encontrar por acaso um estranho num banco, numa praça qualquer, a me contar histórias de viagens a diferentes e distantes lugares, que estranhamente eu também conhecia muito bem, mas que já não me lembrava mais, por um silêncio autoimposto pela falta de coragem e de ouvidos dóceis e corações atentos11.
Optamos pela realização de entrevistas não estruturadas, a fim de identificar quais aspectos da África tradicional apontados pela bibliografia estudada encontravam-se presentes nas narrativas desses outros. Foram ao todo seis entrevistas, sendo duas pessoas entrevistadas individualmente (Sènakpon e Koffi), duas pessoas foram entrevistadas juntas (Elfy e Chryslene) e duas precisaram da presença de um tradutor (Narcisse e François). Iniciei a conversa falando um pouco de mim e de minhas origens, das terras que visitei e das histórias que ouvi. Apesar de estarmos com os pés em solo brasileiro, iniciei uma viagem e fui acolhida em suas terras, em aldeias e cidades africanas. Assim, sendo eu a estrangeira, pelo costume dos povos das savanas, esperava-se que eu a primeira a falar. Em seguida, iniciei com uma pergunta geradora e permiti que eles me falassem livremente, em poucos momentos, eu intervinha para relacionar as informações que recebia aos objetivos da pesquisa. A uma primeira entrevista, longa, com duração aproximada de 2 a 3 horas, seguiram-se diversos outros encontros e oficinas. Uso o termo entrevista não estruturada por ser uma tradição que se consolidou no que a produção acadêmica chamou de pesquisa qualitativa12, mas os fundamentos metodológicos desse trabalho é o diálogo entre pessoas. Optamos pela dimensão da roda e da fogueira como o grande caminho para compreender as relações que se estabelecem com o outro e as atitudes de transformação que esse encontro permitiu. E, ao escolher a roda e a fogueira como caminho metodológico, nessa escolha está implícito o fato de que todos nós sentamos em um mesmo horizonte de conversa, como é a linguagem que nos forja em nossa humanidade, não há hierarquia espacial nesse entrecruzar de vozes.
Aos pés das Grandes Rochas13, ascendemos uma fogueira e sentamo-nos no chão em uma grande roda. A roda e a fogueira são uma forte tradição da produção do saber e da vida em minha própria vida. Compartilhar esse evento foi um dos focos dessa pesquisa: tecer diálogos em torno do tema e iluminar outras existências possíveis pela luz das chamas, dos cheiros, do aconchego, do calor que as palavras ditas e circulares têm na criação de si e do outro. Foram muitas conversas ditas, em muitas rodas, ao redor de muitas fogueiras! Na roda dessa noite, o tapete de histórias se constrói pelas falas de Sènakpon, Koffi, Elfy, Chryslene, Narcisse, e François, que com suas individualidades e histórias de vida tecem uma estamparia única, que se diferencia e se harmoniza na mesma proporção. As falas são acolhidas enquanto narrativas de vida, vivências que se fazem únicas e que refletem as experiências particulares aqui colocadas em diálogo. Não temos a intenção de compartimentalizar ou categorizar, de construir modelos que reflitam o estar no mundo de um grupo étnico ou uma aldeia, e muito menos de toda a África do Oeste. Temos apenas a intenção de propiciar a escuta de vivências de uma África que se faz múltipla. A memória humana e suas enunciações são temporalizadas e espacializadas a partir dessas vivências pessoais e com elas uma porção desse grande continente.
As conversas foram longas, seriam necessárias muitas noites para narrar tudo que ouvi, assim, trouxe para serem ouvidas algumas partes de muitos ditos. E, por se tratar de uma roda de conversa, assumi apenas a escuta, a sensibilidade de deixar cada um falasse por si, nos enunciados que eles mesmos teceram.
Os fios foram sendo tecidos, seguindo uma ordenação própria que parece seguir as sábias mãos de um tecelão ancestral. Minha intervenção foi a mínima possível, sentados no chão, alimentados e aquecidos, apenas desfrutávamos o prazer de ouvir histórias uns dos outros... Temas e histórias que se vão tecendo e retecendo aos poucos...
MAS... O QUE É A TRADIÇÃO ORAL?
Se formulássemos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista africano (o termo tradicionalista significa, aqui, detentor do conhecimento transmitido pela tradição oral): "O que é tradição oral?", por certo ele se sentiria muito embaraçado. Talvez respondesse simplesmente, após longo silêncio: "é o conhecimento total". O que, pois, abrange a expressão "tradição oral"? Que realidades veicula, que conhecimentos transmite, que ciências ensina e quem são os transmissores? Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradição oral africana, com efeito, não se limita a histórias e lendas, ou mesmo a relatos mitológicos ou históricos, e os griots estão longe de serem seus únicos guardiões e transmissores qualificados. A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, v. I, p. 169).
E são esses parâmetros que sulearam, não só as discussões dessa roda, como toda a pesquisa. Quando falamos de tradição oral nas culturas estudadas, estamos nos referimos a uma completude dos conhecimentos que estruturam essas sociedades. Assim, para compreender as tradições orais de determinada sociedade, buscamos entender a realidade desse povo, os conhecimentos que transmite, como os transmite e quem são seus transmissores.
SOCIEDADES ORALIZADAS
Começamos essa trajetória buscando ampliar a nossa compreensão dessas tradições ancestrais que, como nos ensinou Hampâté, são tradições vivas, porque se pautam na oralidade e no aspecto sagrado e exato da palavra, em que o que é dito, é vivido. Consideram que a mentira corrompe quem mente. Conceito trabalhado por Sènakpon14:
Dentro das sociedades tradicionais africanas quando alguém mente, acredita-se que naquele momento, a pessoa não está em equilíbrio. Pensar uma coisa e falar outra demonstra desequilíbrio interior. Neste momento, a pessoa viola um dos princípios mais caros do universo, que é o princípio de equilíbrio.
Essas narrativas outras revelaram, entretanto, não só a relevância da justeza das palavras ditas, mas também a importância do silêncio e da escuta, atitudes valorizadas e cultivadas por seus velhos e velhas. Quando a escuta precede a fala... Como exemplificado por François15:
Em minha cultura, vemos muito mais sentido na oralidade que na escrita. A palavra é tão importante que ela tem uma irmã mais velha: a escuta. É como um filho, que dá à luz a mãe. Porque para que haja escuta tem que ter a palavra primeiro, a escuta é superior à palavra. Os antigos de onde eu venho dizem que para experimentar uma sociedade da tradição oral é preciso ser pelo menos dois: aquele que tem a palavra e aquele que tem a escuta. E é o que tem a escuta que é o mais importante, pois é a escuta que dá importância à palavra.
A educação tradicional busca desenvolver quatro aspectos: a escuta, a consciência dessa escuta, a profundidade dessa escuta e a colocar em prática o que a gente ouviu. A oralidade é essencial para vida; o encontro, a colaboração é oralidade. Começamos muito cedo a falar com os bebes. Cantigas, provérbios, ditados, charadas, contos, lendas, mitos... São ferramentas utilizadas pela escola da tradição oral.
As narrativas de Koffi16 nos trazem um pouco da educação tradicional africana:
Toda noite, na casa da família do meu pai ou da minha mãe, era a mesma coisa, às 8 horas da noite todo mundo já jantou. A avó chama todas as crianças e começa a contar histórias. É por isso que eu sei de onde eles vieram e como foi que eles chegaram na minha cidade. Tem também os contos pra educar. Um dia meu avô nos contou a história de um menino que cada vez que ia para roça se esquecia de levar uma proteção. Os adultos sempre diziam que tinha que levar um bodoque, uma faca, um pau, alguma coisa na mão pra poder se defender. Mas o menino não dava por isso, sempre se esquecia de levar proteção. Um dia apareceu um píton grande, que acabou matando ele. Era assim que as crianças aprendiam a não ir para o mato sem algo para se defender. O avô ensinou a gente a lutar, a se defender sozinho, a como chamar ajuda. Os contos narram isso, pra gente aprender a se defender e a não desistir. As histórias chegavam para gente dentro da família e entre as crianças também, porque a gente compartilhava com os amigos quando tinha um conto novo. Quando eu ia para roça espantar passarinhos ou pescar, a gente contava histórias para eles e eles contavam as deles para gente.
EDUCAÇÃO TRADICIONAL AFRICANA - ESCOLA DOS BRANCOS
Uma das questões recorrentes na pesquisa e nas entrevistas foi a problemática que envolve a imposição da língua francesa e da escola dos brancos17.
A escola ocidental [escola dos brancos] começou, portanto, combatendo a escola tradicional africana e perseguindo os detentores do conhecimento tradicional. Foi a época em que todos os curandeiros foram jogados nas prisões como "charlatões" ou por "exercício ilegal da medicina"... Foi também a época na qual se impedia as crianças de falar sua língua materna, com o propósito de afastá-las das influências tradicionais. Isso chegou a tal ponto que, na escola, a criança que fosse surpreendida falando sua língua materna recebia pendurado no pescoço um quadro chamado "símbolo", no qual estava desenhada uma cabeça de burro, e ficava privada do almoço...Os grãos desta nova tradição, uma vez semeados, cresceram e deram frutos. É por isso que a jovem África, nascida da escola ocidental, tem tendência a viver e a pensar de modo europeu, pelo que não podemos repreendê-la, pois é apenas o que ela conhece. O aluno vive sempre de acordo com as regras de sua escola (HAMPÂTÊ BÂ, 1997, p. 26, grifo nosso).
Hampâté aponta que a imposição do francês e o projeto de educação imposta à chamada A.O.F.18 tinham por objetivo criar gerações de africanos que compreendessem o francês e pudessem, assim, executar eficientemente os ditames da administração colonial. Inicialmente, o projeto educacional francês não era destinado a todas as crianças, apenas aos filhos dos líderes, para que esses, no futuro, liderassem e conduzissem as famílias, clãs ou comunidades pelo caminho traçado pelo colonizador. As diferentes vozes com quem dialoguei, alertaram para um projeto educacional arquitetado para viabilizar o projeto colonial, a exploração, a escravidão. Era preciso que os miúdos abdicassem completamente de suas raízes e aceitassem, com alegria e sem questionar, a liderança do colonizador europeu. As crianças eram severamente punidas pelos professores caso ousassem falar em sua língua nativa ou contar as histórias narradas pelos anciões, afinal, as narrativas dos mestres da tradição não favoreciam os interesses do governo colonial. A educação tradicional baseia-se nos conceitos de pares e nas diferentes associações de idade, neste contexto, as crianças aprendem a compartilhar os seus saberes e a aprendem a zelar pelo bem estar uns dos outros. Em oposição, o projeto educacional colonial incentivou a competição e o individualismo. Na escola dos brancos, as crianças eram incentivadas a competirem entre si, somente as que alcançassem um desempenho superior eram premiadas. Em consequência, ao invés de compartilhar com seus pares, alguns aprenderam a manter para si suas conquistas. Recebiam presentes e favores quando denunciavam aqueles que não cumprissem os ditames da escola. E alguns aprendem a denunciar e a ridicularizar os colegas que falavam as línguas africanas nativas, que tinham dificuldades com o francês ou que narravam histórias e cantos aprendidos com seus familiares e mestres da tradição. As vistas do colonizador, as línguas tradicionais africanas são renegadas e lançadas à categoria de dialetos, como metáfora para uma ancestralidade que foi estigmatizada de primitiva e incivilizada.
Reportando-se ao aspecto inclusivo das comunidades e da educação tradicional africana, François19 afirmou:
Caminhando pelo meu vilarejo, é comum ver uma criança comprar um pão com sardinha por vinte e cinco francos, e logo em seguida dar um pedacinho desse pão a cada um dos seus amigos, nem que sejam pedacinhos bem pequenininhos. A criança que recebe o pedacinho, que talvez a língua dele mal reconheça, vai mastigar e agradecer de coração. Porque para eles nesse momento, não é a quantidade, mas o ato de dar que conta. De maneira geral, as crianças vivem muito bem aqui, mesmo os que ajudam a família, sempre tem tempo de se divertir. [...] A vida é dura e tem família que tem falta do mínimo, mas entre as crianças a vida é bela, porque ainda vivemos numa sociedade em que uma criança que tiver na casa do seu colega na hora do jantar vai comer exatamente a comida que o colega estiver comendo. Então, independente da situação real de cada família, todas as crianças são recebidas nas famílias como seus próprios filhos. Às dezessete horas começamos a lavar as crianças, é comum que crianças de outros pátios venham brincar com as crianças do nosso pátio. Na hora do banho, a gente não vai mandar a criança para casa tomar banho, a gente vai dar um banho nele aqui, e vai botar nele as roupas limpas do amigo que ele veio visitar. E é assim que todo mundo se torna pai e mãe de todas as crianças. Isso tem se transformado ao longo dos anos, mas ainda é a realidade nas aldeias. Quando as crianças estão brincando juntas, não dá para saber quem é o filho do diretor e quem é filho do homem que conduz a charrete.
As dificuldades enfrentadas pelos miúdos ao ingressarem na escola formal estão presentes na fala de Koffi20:
Meu primeiro contato com o francês foi na escola, na zona rural, eu fiquei muito perdido, foi muito estranho porque a gente não falava francês em casa, na aldeia. Eu comecei na escola com os quatro anos e, na escola a gente fala só francês. Antigamente, quando eu comecei, a gente não podia falar as línguas locais na escola, só o francês. O professor ficava falando e eu não entendia nada, era uma língua nova pra mim. Alguns professores tentavam explicar com uma língua africana. Foi desse jeito que eu consegui falar a língua do Togo, porque a maioria dos professores fala a língua do Togo, o minã. Assim, eu aprendi duas línguas juntas: o francês e o minã. Eu sou muito curioso. Quando eu não entendo alguma coisa, eu fico pensando que um dia eu vou entender. Eu já sabia falar várias línguas, umas cinco ou seis línguas, era mais uma língua que eu ia aprender. E depois eu me adaptei, comecei a entender. É igual para todo mundo que entra na escola, ninguém sabe nada sobre o francês quando começa na escola. A minha mãe me ajudava em casa, com os exercícios. Quando eu tinha uns quinze anos, eu saí da zona rural e fui viver na capital, Kútɔ̀nú. E eu fiquei perdido, porque em Kútɔ̀nú eles falavam fon e eu não sabia falar o fon, eu só falava pedá e as línguas do entorno da minha cidade. Com um tempo eu fui pegando, tem um pouco de semelhança entre o fon e o pedá. Na escola não fez diferença, tanto na roça quanto em Kútɔ̀nú, a gente só pode falar francês. Começar na escola em Kútɔ̀nú não é diferente que em Kpété. A minha irmã que tem agora entre quatorze e quinze anos, quando ela começou a escola na capital, ela chegou em casa e me falou que ela tinha ido para escola, mas o professor falava uma língua que ela não estava entendendo nada. Era o francês. Hoje, ela fala o francês melhor do que eu, mas o primeiro contato é muito difícil.
E Sènakpon21 acrescenta:
Há muitos conflitos entre a escola europeia e a educação tradicional. Ao chegar na escola europeia, vão começar a te falar com outro pensamento que já não é mais o pensamento das nossas tradições. [...] Quando eu ia para escola, ainda criança, a gente nem tinha direito de falar na escola nossa própria língua. Se a gente falasse a nossa língua na escola, tinha um colar de um material de osso de animal muito fedorento, que a gente tinha que colocar no pescoço, como forma de punição. Ou o próprio professor te batia. O professor dizia que você estava ali para falar francês. [...] Meu pai percebeu, desde o ensino primário, que para estudar na escola formal a criança tem que aprender o francês. No início, eu tinha as minhas dificuldades, eu sempre tive professor particular em casa. [...] Ele bancou isso junto com minha mãe e eu fui para escola.
Sènakpon, em sua pesquisa para a dissertação de mestrado, que aborda a realidade das escolas francesas nas áreas rurais do Benin, afirmou que a metodologia utilizada pelas escolas formais é desestimulante para grande parte dos alunos que vêm de famílias e comunidades que não adotaram o francês no cotidiano. Descreve uma escola completamente distante da realidade dos alunos, principalmente na zona rural. Acredita ser esse um dos fatores responsáveis pelo elevado índice da evasão escolar. Refletindo sobre os conflitos entre ensino escolar e o ensino tradicional nas áreas rurais do Benin, Sènakpon chegou a afirmar:
As pessoas não têm condições de esperar por 20 anos para ter um emprego. E daqui a 20 anos pode terminar e não ter emprego. Ele volta para casa para trabalhar a terra e sua família vai perguntar: “Por que você levou esse tempo todo lá e não consegue fazer nada com esse conhecimento todo?” Além disso, todas as disciplinas são ensinadas em francês. Conclui que isso é a causa de grande parte da evasão escolar no meio rural, porque a criança pode não conseguir falar bem o francês, pode não conseguir ser alfabetizado dentro do prazo definido, mas mesmo assim passou para o ensino secundário. E começou a ter muita dificuldade, porque o ensino se complexificou mais. Ele não consegue ler o que está no quadro, quem diria compreender, anotar no caderno certinho e fazer o dever de casa. Em casa, não tem o irmão mais velho ou alguém que possa ajudar nessa tarefa, porque talvez o pai e a mãe nunca tenham ido para escola. Então, a criança entra, não consegue e reprova. Vem no ano seguinte e começa a ter as mesmas dificuldades. Ele desiste e sai. Eu descobri durante a pesquisa que a evasão é muitas vezes precedida de fracassos. E fracassos muitas vezes justificados pelos desencontros entre os métodos do ensino formal e do ensino tradicional.
A problemática que envolve a imposição da língua francesa para a preservação das tradições africanas é sintetizada por Toumani quando afirma que “[...] uma palavra em minha língua equivale a um livro em francês.” Pensamento que é compartilhado por François e Sènakpon, que abordam a dificuldade de se traduzir a complexidade das tradições africanas a partir do pensamento ocidental.
Compreendo a dificuldade, sempre foi muito difícil falar do meu povo para pessoas que se interessavam pela minha história, mas não tinham o conhecimento das sociedades africanas e afrodescendentes. Existem alguns conceitos que não consigo traduzir em uma única palavra em português, acabo criando sentenças.
O idioma francês não chega sozinho, ele invade a região da A.O.F. impondo uma política, uma escola, uma religião, uma cultura, um sistema administrativo e jurídico, que combinados, praticamente legitimaram o direito dos europeus de sequestrarem, violarem e traficarem africanos, invadirem terras e usurparem suas riquezas.
O projeto colonial da escola dos brancos tal como descrito por Hampâté, não se restringe nem ao Mali nem ao período da infância do pequeno fulBe. Infelizmente, está presente na infância do djeli Sotigui Kouyaté22 e foi a mesma estrutura encontrada, décadas mais tarde, por Toumani e François em Burkina Faso. Em O Menino Negro de Camara Laye, encontraremos o pequeno maninka da aldeia de Kouroussa na antiga Guiné Francesa, descrever uma escola dos brancos que institui a língua e os conhecimentos franceses e proíbe, sob a força de castigos físicos e morais, as línguas e costumes tradicionais africanos. Todos os meus interlocutores africanos reportam o trauma e o incômodo de chegar à escola, no primeiro dia de aula e encontrar um professor que só falava francês e que geralmente, desconhecia a sua língua. Eram punidos por falarem sua própria língua e enquanto não aprendiam o francês, não evoluíam em nenhuma área do conhecimento, pois tudo era ensinado em francês. A realidade dos castigos físicos e/ou morais para coibir o uso das línguas e costumes africanos consta da experiência de Toumani, François, Sènakpon e Koffi, embora relatem que, para a geração mais nova, a punição física tem cedido lugar a outros tipos de castigos ou humilhações. Entretanto, o francês ainda é o único idioma ensinado nas escolas públicas e, o conteúdo das demais disciplinas consideram somente a história, as ciências, as artes e culturas ocidentais, com foco nas civilizações europeias. As pesquisas indicaram que, considerando a região estudada, os mestres das tradições e os conhecimentos tradicionais ancestrais permanecem sendo combatidos ou ignorados pela escola formal. Em ambos os casos, bem longe das carteiras, do quadro negro e das mentes das crianças. Assim, não só restringem a transmissão dos conhecimentos ancestrais das civilizações africanas como também apagam da história que esse conhecimento existiu. Um projeto tão desumano e cruel, quanto eficiente!
A história e a cultura dos povos africanos são desconhecidas para grande parte dos brasileiros. A tradição literária oral africana e a performance dos narradores tradicionais africanos integram a herança cultural da maior parte da população brasileira. Reconstruí-los e recontá-los é devolver a população brasileira, uma ancestralidade que lhes foi roubada pela escravidão de seus antepassados, num esforço brutal e maciço de apagar origens e identidades culturais. Um dos objetivos da pesquisa foi contribuir para a visibilidade dessa história, dessa memória que se tentou esquecer, uma história que os livros não registraram ou fizeram questão de apagar. As tradições das sociedades orais africanas possibilitam uma viagem sensorial a este continente tão presente em nossa cultura, mas ao mesmo tempo tão desconhecido.
E os tambores silenciam... Na fogueira só algumas brasas e um forte cheiro de muitas folhas e ervas no ar... Um doce cansaço, aquele de quem caminhou muito, mas encontrou... Encontrou a si, num colo, num olhar, num abraço... Rostos queridos se indo, felizes, pois alimentaram um coração saudoso...