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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.25 no.76 Rio de Janeiro  2024  Epub 07-Mar-2024

https://doi.org/10.12957/teias.2024.79167 

Artigo de Demanda Contínua

“ME ACEITAR HOMOSSEXUAL FOI A TRAVESSIA DA MINHA VIDA MAIS DIFÍCIL”: a constituição identitária do corpo-território LGBT+

“ACCEPTING MYSELF AS A HOMOSEXUAL WAS THE MOST DIFFICULT CROSSING OF MY LIFE”: the identity constitution of the LGBT+ body-territory

“ACEPTARME HOMOSEXUAL FUE LA TRAVESÍA MÁS DIFÍCIL DE MI VIDA”: la constitución identitaria del cuerpo-territorio LGBT+

Janivaldo Pacheco Cordeiro1 
http://orcid.org/0000-0002-6165-7589; lattes: 5355802355942705

1Instituto Federal do Espírito Santo (IFES)


Resumo

Constituir-se como sujeito/a da diferença é ser atravessado/a por questões outras que o/a reposiciona distante daquilo do que é considerado/a normal, originando movimentos que dificultam o (re)conhecimento e a (auto)aceitação. Nesse movimento, construir-se e desconstruir-se ocorre dentro de sentimentos diversos que vão da negação à aceitação, angústias e sofrimentos. Este texto é resultado de uma pesquisa de doutoramento desenvolvida entre os anos de 2019-2022 que teve, entre outros objetivos, discutir os processos de constituição identitária de sete professores/as transviados/as que trabalham na educação básica do estado da Bahia. Ancorado nas ideias do corpo-território de Eduardo Miranda e “transviad@s” de Berenice Bento enredo os assujeitamentos e as (re)existências de sete docentes autodeclarados/as LGBTQIA+ que contam suas histórias de vida-formação-profissão atravessadas por uma ordem que modelam corpos e atitudes, e cujas pressões e opressões reposicionaram suas singularidades. As histórias foram contadas por meio de entrevista narrativa e de escrita de autorretratos, as quais foram analisadas na perspectiva da teoria de interpretação proposta por Paul Ricoeur. Os resultados apontam nas fragilidades de suas identidades os atravessamentos cisheteronormativos que provocaram medos, recuos e negações de si, bem como adequação ao sistema, produção de performatividades normalizadas e uma vida-formaçãoprofissão demarcada por cuidados, preconceitos e discriminações naturalizadas.

Palavras-chave: identidades e diferença; docentes LGBTQIA+; performatividades

Abstract

Being a subject of difference is to be flooded by questions that position oneself far from what is considered normal, giving rise to movements that hinder recognition and (self)acceptance. In this process, selfconstruction and deconstruction occur with range of emotions, from denial to acceptance, accompanied by anguish and suffering. This text is the result of a doctoral research project conducted between 2019 and 2022, which aimed, amongst other objectives, to discuss the processes of identity formation among seven queer teachers working in elementary education in the state of Bahia, Brazil. Anchored in the ideas of the body-territory by Eduardo Miranda and the concept of "transviad@s" by Berenice Bento, it weaves the subjectivities and (re)existences of seven self-identified LGBTQIA+ educators who share their lifeeducation-profession stories, shaped by an order that molds bodies and behaviors, under which pressures and oppressions have repositioned their individualities. The stories were narrated through narrative interviews and the creation of self-portraits, which were analyzed from the perspective of Paul Ricoeur's theory of interpretation. The results point to the vulnerabilities of their identities, where cis-heteronormative intersections have caused fears, withdrawals, and self-denial, as well as adaptation to the system, the production of normalized performativities, and a life-education-profession marked by caution, normalized prejudices, and naturalized discrimination.

Keywords: identities and difference; LGBTQIA+ educators; performativities

Resumen

Constituirse como sujeto diferente es ser permeado por interrogantes que lo reposiciona a uno distantemente de aquello que se considera normal, dando lugar a movimientos que dificultan el reconocimiento y la autoaceptación. En ese movimiento, la construcción y la deconstrucción del sujeto se da dentro de distintos sentimientos que van de la negación a la aceptación, hay angustia y sufrimiento. Este texto es el resultado de una investigación doctoral desarrollada entre los años 2019 a 2022 que tuvo, entre otros objetivos, discutir los procesos de constitución identitaria de siete profesores queer que trabajan en la enseñanza básica del estado de Bahia. Anclado en las ideas del cuerpo-territorio de Eduardo Miranda y “transviad@s” de Berenice Bento relato los sometimientos y las reexistencias de siete docentes autodeclarados LGBTQIA+ que cuentan sus historias de vidaformación-profesión permeadas por un orden que moldea cuerpos y actitudes, y cuyas presiones y opresiones han reposicionado sus singularidades. Las historias fueron contadas a través de entrevistas narrativas y de escritura de autorretrato, las cuales fueron analizadas desde la perspectiva de la teoría de la interpretación propuesta por Paul Ricoeur. Los resultados apuntan a las fragilidades de sus identidades, las intersecciones cisheteronormativas que provocaron miedos, retrocesos y negaciones de sí mismos, así como la adaptación al sistema, producción de performatividades normalizadas y una vida-formación-profesión demarcada por cautelas, prejuicios y discriminaciones naturalizadas.

Palabras clave identidades y diferencia; docentes LGBTQIA+; performatividades

INTRODUÇÃO

Os ideais da cis heterossexualidade também estão nos modelos reproduzidos diariamente nos diversos espaços do nosso cotidiano, como marca, como regime e produção dos/as sujeitos/as, inscritos na forma reiterada e compulsória dos modos definidos como únicos de viver as experiências do gênero e da sexualidade. Isso foi ensinado, desde muito cedo, pela família, pelas igrejas, pelas escolas, pelas ruas, pelas mortes que extrapolam os limites da normalidade, pelas mídias, por meio de imagens e de narrativas que circulam nessas instituições, nas casas, na televisão, na representação das corporalidades aceitáveis e das performances apropriadas para cada um dos corpos sexuados. Seus ideais encontram-se na elaboração dessa ideologia de sexo-gênero em conformidade cis heteronormativa, a qual encaminha os corpos à sua naturalização (normalização/humanização) ou artificialidade (anormalidade/desumanização). Nesse contexto, aqueles/as estranhos/as a esse regime sofrem a ação de poderes que vigiam, discriminam, segregam e se renovam, intentando manter a ordem hegemônica, determinada e compulsória entre sexogênero-desejo criando obstáculos para o (re)conhecimento.

Curiel (2013, p. 35-36) enfatiza que “[…] una hegemonía no es algo estático ni inmodificable; es producto de la creación de ideologías a través de instancias como la ciencia, sus intelectuales orgánicos, los medios de comunicación, los partidos políticos etc.” Assim, as formas de manter uma cis heterossexualidade hegemônica também inventam e determinam as formas de produção das outras sexualidades, criando os modos de ser e de não ser classificáveis, permitidos e/ou proibidos, hierarquizados inferiormente devido a características consideradas abjetas, anormais. Ir ao encontro dessas características requer um esforço de autoaceitação, aprovação do/a outro/a e, como afirma Miranda (2020), a desobrigação e a deseducação de odiar o nosso próprio corpo-território1.

Dito isso, neste artigo - incorporado e encarnado à minha identidade de professor e gay - pretendo discutir os processos de formação identitária de professores/as transviados/as2 e os possíveis efeitos de apagamentos da identidade sexual e de gênero em seus corpos-territórios dentro de instituições escolares. Resultado de tese de doutoramento3, desenvolvida entre os anos de 2019 a 2022, trata-se de uma pesquisa narrativa e contou com a colaboração de sete docentes LGBTQIA+ da educação básica da Bahia: Babafemi, Eric e Beta Queer (professores gays); Billy (professor bi/pansexual), Cláudia (professora trans), Frida e Janaína4 (professoras lésbicas). Esses/as docentes contaram suas histórias de vida-formação-profissão por meio da entrevista narrativa e da escrita de autorretratos, analisados na perspectiva interpretativa-compreensiva da teoria da interpretação, buscando explicar e compreender a escrita como obra do discurso (Ricoeur, 2019).

TRAVESSIAS TRANSVIADAS: IMAGENSNARRATIVAS

Ser heterossexual, ser normal5, ter comportamentos despercebidos, compõe todo o cenário de uma vida invisibilizada pela semelhança com o outro. Ser normal é não ser notado, não correr os riscos, performatizar os corpos, os gêneros, as sexualidades, de forma a não ser recriminado, pois “[...] a bicha, o sapatão, a trava, o traveco, a coisa esquisita, a mulher-macho devem ser eliminados. Isso faz com que haja um horror, um medo profundo de ser reconhecido como aquilo que retiraria de mim qualquer possibilidade de ser amado(a)” (Bento, 2017, p. 248). Tudo isso foi enfrentado por Janaína que, na ocasião da entrevista, compartilhava sua identidade apenas com dois amigos íntimos, também docentes na mesma instituição.

E eles me incentivando a contar para o pessoal da escola. “Ah, o pessoal daqui é super legal...” Quando foi um dia, eu estava na direção - tava a diretora e a vice... estava eu e [...] um desses professores estava na sala e ele é super amigo delas! E aí, elas começaram a falar de uma colega, de uma outra escola que elas estudaram e essa colega namorava uma outra professora também. E aí, elas começaram a relatar com muito preconceito e ele olhou para mim e arregalava os olhos. E ele, “eu não acreditei que elas estavam falando aquelas coisas”, aí, eu disse assim: não, eu também não acreditei, puro preconceito! Mas quando eu comecei a namorar a Sirena, eu comecei a observar os preconceitos das pessoas que eu não observava, porque como não me atingia diretamente era como se as pessoas... sabe aquelas brincadeirinhas homofóbicas... que parece que é uma brincadeirinha simplesinha, mas que quando você faz parte, machuca de uma forma tão grande?! [...]. Eu devo já ter rido também, achado engraçadinho alguma coisa. Então, eu não percebia... então, quando eu comecei a fazer parte, eu comecei a perceber (Janaína, professora cis lésbica em entrevista narrativa, 2021).

Nesse sentido, a necessidade de assumir imposta pelos amigos fez com que Janaína presenciasse as cenas de lesbofobia e isso dificultou sua reafirmação como professora transviada. Naquele momento, a realidade traduzida pelo preconceito e presenciada por outro professor transviado trouxe à reflexão o reconhecimento de si como corpo-transviado, abjeto, assujeitado às opressões do sistema, mas também reprodutora delas nas brincadeirinhas sem intenção de ofensa. Nesse momento (entre tantos outros), foi afastada da possibilidade de se sentir amada e de se sentir, quem sabe, humana. Os dilemas entre ser ou não ser refletem esse estímulo ao ódio às nossas corporalidades, em que assumir outra condição - diferente daquela considerada normal - é carregar consigo as imagens e as narrativas essencializadas dessas identidades. Quando assumimos ou quando nos é apontada essa diferença, somos (de)marcados/as e assujeitados/as a uma identidade provida de significados para nós, mas que para a norma parece autorizar ações direcionadas a nos diminuir, nos machucar e nos reposicionar em um não lugar da existência. Assumir identidades que não sejam compatíveis com a paisagem é um processo de (re)existências às formas hegemônicas preestabelecidas como verdades absolutas, bem como dar visibilidade, nesse contexto, à diferença e, ao mesmo tempo, criar possibilidades de novos sentidos às representações e representatividades. Para Rios (2008, p. 78), “[...] a identidade é constituída por redes distintas de pertencimentos constantemente negociáveis e revogáveis”, e foi nessas negociações e revogações que Billy buscou os seus pertencimentos, e por meio das quais a realidade de se constituir na diferença produziu seus conflitos. Na impossibilidade de se encontrar entre um e outro, deparou-se com o fosso existencial e com a repulsa, os quais, por um tempo, habitaram o próprio corpo-território.

Na intensidade que sempre marcou minha essência, nos positivos e negativos das experiências juvenis, me apaixonei loucamente pelas pessoas, e ainda não sabia ao certo como chamar isso. Descobri por consequência o buraco profundo do vazio de questionar a existência. A dúvida pela primeira vez foi minha condenação. Era lá ou era cá? A falta de pertencimento me levava a um lugar de repulsa, própria. Não sabia canalizar tanta potência criativa, sexual. Junto ao fosso existencial, veio sua contraparte, a voz incessante e obsessiva da ansiedade [...] (Billy, professor cis bi/pansexual, em autorretrato, 2021).

É possível perceber nessa dualidade entre a identidade e a diferença o atravessamento demarcado por relações de poder que extirpam corpos e comportamentos divergentes da norma, reposicionando-os vazios e não pertencimentos, como ponderaram Billy e Janaína. Diante disso, a diferença é apontada e construída por aqueles/as que ditam a norma e, por meio dos seus discursos, dá origem ao/à outro/a, estranho/a, inumano/a, sendo produzida por processos discursivos de significação estando sempre concebida nesses processos, conforme Silva (2004) e completa que o/a outro/a, nesse caso - o que é considerado/a normal - somente se sustenta nessa relação de comparação. Assim, é por meio das relações sociais entre o/a diferente e o não diferente que as relações de poder são estabelecidas, e atribuem ao/à diferente uma condição de inferioridade. Nessa perspectiva, a linguagem tem relevância significativa na produção das diferenças, “[...] tanto porque ela atravessa e constitui a maioria das nossas práticas, como porque ela nos parece, quase sempre, muito natural” (Louro, 2014, p. 69), por exercer a atribuição de instituir, ditar, governar, fixar a diferença ou, até mesmo, por meio dela, ocultá-la. A linguagem, em sua maior parte, foi construída e dominada para servir aos homens, machos, viris, cujos artigos, substantivos e pronomes apresentam e, ao mesmo tempo escondem a fragilidade de suas masculinidades. Cláudia sentiu na pele - e nas trocas de pele - o peso da linguagem e os efeitos dela em seu corpoterritório.

Desde o 1º ao 5º ano que eu sofri muito bullying na escola, fui muito hostilizada, que era o viadinho... “ah, já vem esse viadinho!”. Sofria violência... Aí, eu fui estudar no Pedro Gonzaga, uma escola [...] periférica e eu percebo que [...] não houve aceitação [...]. Fui bem criticada, sabe? Eu lembro que teve até um dia mesmo que um rapaz queria até [...] me bater porque ele não queria que aquele gay estudasse na sala dele. Eu tive esse probleminha nessa escola (Cláudia, professora trans heterossexual em entrevista narrativa, 2021).

Entre os inúmeros espaços/lugares da existência, a escola contribui consideravelmente para o (não) (re)conhecimento do corpo-transviado como possibilidade de existência, pois ela escolhe aqueles/as, os textos e os contextos dignos de sua atenção e estudo, selecionam muitas discussões e diálogos importantes e designam outros/as ao esquecimento, à marginalidade, à palmatória e à invisibilidade. A escola relativiza agressões a ponto de serem consideradas probleminhas. Ela, por meio dos discursos que produzem a diferença, institui o normal e o abjeto, a voz e o silêncio, o vivo e morto de cada sujeito/a.

Primeira coisa que eu quero que precisa ser registrado é que eu não me descobri, eu fui descoberto. Eu acredito que muitas pessoas que ocupam essa margem, que são dissidentes, não se descobrem, são descobertos! [...] E aí, quando eu falo que fui descoberto... eu me remeto muito ao tempo que eu era criança que... e aí a gente volta pra escola - esse espaço que teoricamente é para instruir, educar -, mas que para alguns... para algumas subjetividades é, sei lá, uma tortura. Até porque é justamente lá onde algumas coisas são postas e impostas a você, como no meu caso. E aí, eu lembro quando eu era criança, todos os meninos da escola sempre falavam: viado, é gay, frutinha, vai dá pra viado, [...], boiola, baitola. Eu lembro que eu ficava “tá, mas o que é viado?” E aí ficava “eu sou uma coisa que eu não sei o que é!” [...] E aí eu sempre ficava nisso de “tá, o que é viado? Eu não sei o que é, mas sei que é errado!” E aí eu ficava nisso “então, não posso ser isso”. E aí, nessa coisa é... quando eu fui crescendo e essa repetição foi [constante]... eu ficava “oh, mãe! Eu preciso engrossar minha voz!” A primeira coisa que eu sentia necessidade era engrossar a voz. E aí eu ficava, “meu Deus como é que engrossa a voz?” Porque minha voz sempre foi muito aguda e aí, normalmente, homem não tem voz aguda. Eu ficava “hum, não posso... não posso porque tinha alguma coisa errada comigo” e ficava nessa cobrança de tentar mudar a voz (Beta Queer, professor cis gay em entrevista narrativa, 2021).

Nesse trecho, Beta Queer situou sua história de vida em espaços e tempos em que a compreensão sobre si mesmo carecia de explicações e normas que suas corporalidades não abrangiam e que, ainda na atualidade, funcionam como práticas naturais, ecoam em outros corpostransviados que, como visto, não encontra(va) apoio na comunidade escolar. Seu relato corrobora com Rios (2008), pois tentou revogar algumas de suas características e negociar com a cis heterossexualidade as performances normalizadas. Beta Queer era a outra coisa que precisava ser primeiramente descoberta, nomeada, para depois ser xingada, minguada, normalizada constantemente, até abdicar de suas subjetividades, as quais produziam as imagens e as narrativas do ódio.

Seu discurso revela que a linguagem foi usada para designar Beta Queer, por ele mostrar características que o distingue dos demais, sem mais explicações, apenas para acusá-lo por um crime que desconhecia. Assim, a língua demarca quem se faz pela identidade e quem se desfaz pela diferença, cria os não lugares, os espaços para subalternização, guetização, exclusão, bem como abre caminhos para outras violências. Efetivamente, na e por meio da escola, as práticas discursivas imprimem suas marcas distintivas sobre os/as sujeitos/as, limitam e anulam possibilidades, invisibilizam performances inadequadas e revelam que “[...] a linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças” (Louro, 2014, p. 69).

Desse modo, a escola não somente colabora para construir a abjeção e a anormalidade das diferenças, ela potencializa, determina o inumano, designa o errado, destitui as subjetividades, como observado nas falas de Beta Queer, (“Eu não sei o que é, mas sei que é errado! E aí eu ficava nisso ‘então, não posso ser isso’”), naturalizando e se conformando com a opressão sofrida em seu corpotransviado. Assim, a língua ergue-se sobre o inumano, fabrica corpos dóceis, engaja-se culturalmente na produção de imagens e narrativas minunciosamente perversas, as quais, muitas vezes, aquele/a que se percebe como diferente considera como verdades intrínsecas, cujos poderes desestabilizam. O próprio sistema corrobora com essas opressões quando impõe limites, acusa o/a outro/a, o/a descobre para poder vigiar, punir, proibir, negar ou dificultar a acessibilidade, não manter sua permanência e não garantir equidade a todos/as, ao priorizar aqueles/as que mostram simetrias e igualdades, desumanizando, dessa maneira, o/a sujeito/a da diferença. Essa relação entre acusação e descoberta é recorrente também nas narrativas de Eric.

Acontece isso com os jovens em sala de aula porque o menino não se vê gay, o menino não se vê normal e geralmente é o colega que chama ele de viado. É o colega que identifica que ele é diferente. É o colega que quer tirar uma casquinha dele nas escondidas, entendeu? Então, acontece muito isso nas escolas, menos nas universidades (Eric, professor cis gay em entrevista narrativa, 2021).

Eric explanou como essa relação da linguagem ao ser apontado/a pelo outro/a produz suas significações, cria as anormalidades, fabrica as diferenças. Embora ele tenha afirmado em vários pontos de sua entrevista que não teve esse tipo de problema, Eric foi assumido pelos/as outros/as que o apontaram como gay, após fazer suas performances no grupo de fanfarra da escola.

E aí, chega... um concurso que tem lá do interior - chega uma fanfarra muito famosa na época aqui que era do colégio [...] também, e que tinha muitos homossexuais e que balizavam com a mão e que faziam coisas e eu queria fazer aquilo na minha fanfarra. Aí, eu fui fazer, pronto! Todo mundo me assumiu, né? “Ah, o Eric é viado! [...] tá igual aos viados de Salvador! Olha a marcha dele!” (Eric, professor cis gay em entrevista narrativa, 2021).

Ele confirmou em sua entrevista que sente essa diferenciação ocorrendo nas escolas, entre elas, os apontamentos, as características que diferem as pessoas como uma maneira de classificar e desnaturalizar outras existências não hegemônicas em um processo que se renova e se repete continuadamente. Apesar disso, tratam com certa indiferença (ou quem sabe alegria) as insinuações recebidas. Ao contrário dele, ao revelar ter sido descoberto, Beta Queer relembrou as torturas que tornam as instituições escolares um lugar de estímulo para a incompreensão das identidades dos/as alunos/as transviados/as, empurrando-os/as à marginalidade social, além de revelar que a escola é um espaço não pensado para acolher as diferenças. Seria, nessa perspectiva, na maioria das vezes, um recinto tóxico onde a cis heteronormatividade impõe-se como modelo de normalidade. Também, se nunca disseram a alguém o seu defeito, é nesse espaço que, enfaticamente, será apontado. E se esse defeito for algo muito íntimo (de ordem sexual, por exemplo), provavelmente, precisará aprender sozinho/a a lidar com ele.

Diante dessa realidade de serem descobertos/as, apontados/as pela voz do/a outro/a, arrancados/as à força do armário, descortina-se a diferença que os distinguem e, com ela, as autorizações discursivas que abjetam os seus corpos-transviados elaboradas pelo desprezo de sua existência e de suas subjetividades. A identidade sexual não normativa de Beta Queer enfrentou as pressões por não performatizar a masculinidade esperada, bem como as opressões por ocupar esse lugar outro da masculinidade. Sentiu-se também consumido pelas angústias da incompreensão de si, da sua própria identidade empurrada para a margem, como uma não existência que precisava ser xingada diuturnamente pelos/as colegas de classe, lembrada de sua abjeção até que esta fosse suprimida e/ou invisibilizada em seu próprio corpo, ou sofrer as consequências por carregar os desvios da heterossexualidade. Paralelamente a esses ataques, ocorre a invisibilização dessas ocorrências pela escola e a culpabilização das vítimas por performatizarem uma identidade outra que não aquela considerada adequada. Nesse sentido, dita comportamentos, vestes, posturas adequadas e diferenciadas aos sexos e aos gêneros, bem como suas profissões para os corpostransviados.

[...] meu primeiro estágio, eu fui no noturno, já tinha aqueles alunos maiores, adolescentes, e eu ouvia muita brincadeirinha... eu era estagiário, eu tava fazendo um curso de pedagogia; e aí, “ah, professor e tal!”; e aí, teve uns adolescentes que fizeram umas brincadeiras que me chocaram, eu dizia assim “poxa, mas é tão óbvio assim que ser pedagogo é ser gay, é?” Aquilo pra mim foi assim iiih, caí na real, sabe? E aquilo me chocou um pouco e até por essa experiência de militarismo que, às vezes, eu... me sinto... eu forço uma barra para tá dentro de um padrão heteronormativo sim, não vou negar. (Babafemi, professor cis gay em entrevista narrativa, 2021).

As identidades escolarizadas (Louro, 2014) exigem desses/as sujeitos/as coerência e adequação com a norma. Para Rios (2008, p. 166, grifos da autora), “[...] quando se trata de identidade no espaço escolar uma tendência é atribuir características singulares, únicas, idênticas, marcada pela continuidade, pela ‘produção do mesmo’”. Nesse modelo, Babafemi teve sua identidade profissional atrelada e fixada à sexualidade transviada e, ao buscar o curso de Pedagogia, foi automaticamente reclassificado como gay, ainda que viesse de outra experiência em que suas identidades e performatividades eram mascaradas dentro do sistema heteronormativo até mesmo pela questão de sobrevivência, como pontua Janaína: “Essa questão de nos adaptarmos à hetero norma é uma questão de sobrevivência” (entrevista narrativa, 2021). Assim, precisa cair na real, aceitar-se e chocar-se com a realidade que se descobre evidente a partir do seu corpo-transviado. Vistos como abjetos, as suas corporalidades, os seus comportamentos, as suas imagens e narrativas provocam desestabilizações, ocultações, silenciamentos, violências e evasões dos diversos espaços que podem/devem frequentar. São como uma presença insidiosa, estranha que precisa ser invisibilizada e, caso não se comporte nos moldes definidos, deve ser expulsa, pois:

[...] tanto na sua superfície quanto no seu interior, o corpo é um fenômeno social: ele está exposto aos outros, é vulnerável por definição. Sua mera sobrevivência depende de condições e instituições sociais, o que significa que, para “ser” no sentido de “sobreviver”, o corpo tem de contar com o que está fora dele. (Butler, 2018, p. 57-58, grifos da autora).

O posicionamento das instituições, principalmente escolares, como espaço discursivo defende a cis (hetero)normatividade como prática de vida normal, pautou-se/pauta-se pela homogeneização dos corpos, atuando de forma a impor seus ideais. Além disso, promove o apagamento dos/as sujeitos/as da diferença em suas subjetividades, torna-os expostos, vulneráveis a contar com o que está circunscrito fora dele, e cria formas “[...] em que o sujeito ressignifica suas identidades sociais, levando em consideração as experiências as quais foram submetidos na família e na própria escola, o uso delas em suas práticas sociais, o conjunto de fatores que constitui sua singularidade” (Rios, 2008, p. 106). Assim, por meio de suas práticas discursivas, a escola está presente nas proibições e nas classificações também por meio de seus/suas professores/as.

Eu me lembro no terceiro ano, uma professora me chamou a atenção dizendo “Ah, isso não é coisa de menino não, tá?!” Assim, quando a gente ia brincar com as meninas, as brincadeiras de menina e ela queria me separar: “Você vai brincar de bola! Você vai brincar de bola com os meninos!” Eu dizia: “não, eu quero ficar aqui com as meninas!” - “Ah, não pode! Menina com menina! Menino com menino!” (Cláudia, professora trans em entrevista narrativa, 2021).

A experiência de Cláudia mostra como o discurso generificado dos corpos estão entranhados nas brincadeiras da escola. Tal entranhamento também pode ser observado e se estende a outras políticas de produção dos/as sujeitos/as, entre elas, banheiros, organização de filas, cores de pratos e copos, separação nas práticas de educação física etc. (Foucault, 2010a; Louro, 2014). Revelam, desse modo, que “[...] a construção política do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações políticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma análise política que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento” (Butler, 2019, p. 19), e não apenas dificultam a autoaceitação, mas impedem a ressignificação das identidades sociais.

Assim, a perpetuação dessas estruturas e a reiteração obrigatória delas nas diversas instituições produzem, desde a infância, sujeitos/as subordinados/as às vigilâncias, teorias e práticas discursivas, e fabricam as identidades escolarizadas com atribuições específicas para corpos específicos. Para Rios (2008, p. 20), “[...] considerando a relevância da escola na vida dos indivíduos, as práticas discursivas ocupam um lugar importante no desenvolvimento de sua conscientização sobres suas identidades e a dos outros”. Nesse sentido, ao recriminar Cláudia por desejar estar junto às meninas e brincar com elas, a professora reproduziu as opressões das normas socialmente construídas do gênero, legitimada por estruturas jurídicas e práticas discursivas cis heteronormativas, com o agravante de que, por ser professora, estaria licenciada e reconhecida por sua autoridade docente. Cláudia, por sua idade tenra, foi recriminada por normas que iam além de sua compreensão e do entendimento de si como corpo-território, como experimentou Beta Queer ao ser descoberto, ao tentar se adequar a outras normas, a outra voz, a outras performances, a outra identidade. Essas histórias evidenciam que a cis heteronormatividade e suas construções performativas estiveram/estão presentes e vigilantes nas relações cotidianas. Ao se tornar vigilante da norma e cobrar sua execução nos corpos sexuados, a professora de Cláudia (re)produziu a condenação do seu aluno e, desse modo, abriu espaços para que essas crianças, desde muito cedo, embasadas em atos de diferenciação e exclusão, tivessem uma conscientização equivocada das diferenças, o que impacta no desenvolvimento e na construção da identidade própria, de sua aceitação como sujeito/a constituído/a e da situação do/a outro/a. O ato em si é, pelo menos, duplamente perigoso: uma, por deslegitimar outras existências como possibilidades aos corpos-territóriosLGBT+ e, outra, por (re)posicionar essas existências em não lugares de não existências, alimentando processos de sofrimento, desnormalização e desumanização dos/as sujeitos/as e, por consequência viabilizar o estranhamento, a discriminação e o preconceito.

Nesse contexto, constrói-se a vigilância, as imagens e as narrativas acerca das corporalidades que podem e não podem ser reconhecidas publicamente, sobre os termos desse (re)conhecimentos, sobre a voz, comportamentos, olhares que fazem pensar o/a sujeito/a transviado/a como alguém inferior, desonroso/a, possuidor/a de uma identidade não digna de ser assumida e representada, a não ser naqueles tempos e espaços outros, em lugares onde as “[...] marcas da inferioridade, da dominação sofrida, da servidão aceita, só poderia ser considerado como vergonhoso: e vergonha ainda maior se ele se presta a ser objeto complacente do prazer do outro” (Foucault, 2010b, p. 270), como disse Eric: “[...] você pode ser viado de madrugada, de dia não! [...] então, meus amigos héteros tinham um certo contato íntimo comigo de madrugada” (entrevista narrativa, 2021). Assim, criase dentro da diferença a identidade silenciada, clandestina, negada quando questionada, regulada dentro das performatividades possíveis e cujas existências são evidenciadas para delimitar espaços e mostrar poder. Daí, percebe-se que as identidades são determinadas não apenas pela semelhança, mas, principalmente, pelas diferenças visíveis e não visíveis com o/a outro/a, que fazem com que esse/a outro/a seja hierarquizado/a inferiormente corroborando a ideia de que “[...]a forma identitária é inseparável de uma forma de poder, e relação social e de alteridade” (Dubar, 2009, p. 32). Nesse sentido, ser ou não ser reflete diretamente nessa relação social de poder e hierarquia. Janaína relatou em sua entrevista narrativa (2021) as experiências com as identidades dissidentes que (de)marcaram seu corpo-território: gordinha e negra, no qual o não ser (branca e magra) a colocava fora dos padrões de normalidade considerados e precisou se ressignificar para compensar o que ela não era: “Então, isso fez eu estudar muito, eu estudo muito! Precisava ser boa em alguma coisa para compensar aquilo que tinha que não era bom!” e completou:

Se você perguntar assim “qual foi a coisa mais difícil da sua vida?” Foi ser gordinha! As pessoas podem falar assim “mas você é uma menina negra!” [...] Ser gordinha potencializou também quem eu sou, porque eu acho que sou muito atenta às pessoas, eu escuto muito, eu observo muito, eu fui muito atenta a quem eu sou, sabe... na minha relação com as pessoas. Eu defendi e defendo muito as crianças... todas as crianças com todas as suas formas identitárias. Se é deficiente, se é gordinha, se é baixinho demais, se tem o olho muito grande... e... as crianças LGBT também, que demonstravam características que apontavam para as pessoas apontarem... “ah.... aquela ali é gay!”, “aquela ali é coisa” (Janaína, professora cis lésbica em entrevista narrativa).

Evidencia-se em sua narrativa que as identidades que a constituíram fora do padrão definiram a necessidade de ser boa em alguma coisa, pois, para ela, as suas diferenças de corpotransviado a (re)posicionavam em não lugares das existências ainda demarcadas desde a infância não apenas por se reconhecer lésbica, pois já se inculcava como algo negativo e errado, mas, principalmente, por ser gorda - embora ser negra também lhe trouxesse outros atravessamentos. Dessa maneira, Janaína obrigou-se a ser boa, compensando, assim, as suas diferenças em outras coisas que dariam invisibilidades a elas, mas que alcançariam destaque, chamariam a atenção para outras possibilidades que poderiam emanar do seu corpo-território. Janaína sofreu com as características que fundam as suas identidades, como se essas possibilidades pudessem defini-la, resumi-la, limitá-la, dizer quem é e o que se é baseado nesses aspectos físicos que confrontam e estão em desacordo com a norma, imersa no contexto de que “[...] o corpo está situado como uma instância da reprodução da sociedade, através de um processo de transmissão de estruturas culturais para o suporte da subjetivação mediante o engendramento de práticas determinadas (Pinho, 2004, p. 106107).

Desse modo, Janaína precisava se reinventar, inculcar em si a inadequação de seu corpo fora do padrão, criar outras imagens e narrativas para seu corpo-território, reposicionar-se, situarse no imaginário ideal de suas corporalidades para, enfim, poder dizer quem ela é, ou o que ela não é. Dessa forma, os atravessamentos sobre o corpo racializado ganhou outros contornos, amenizados (ou invisibilizados por ela) por outra diferença que não lhe permitia a condição de sujeita. Janaína negociou sua identidade atravessada por condições em que a norma cria e dita suas práticas determinadas de subjetivação e, por um período, ressignificou-se, reposicionou-se, reconfigurouse em busca de adequação à normalidade.

Diante do vivenciado, escolheu ser outra coisa além daquilo que estipularam para ela: estudiosa, como forma de compensar o que a abjetava como sujeita. “Nesse terreno, a ambiguidade, a incerteza, a indefinição podem trazer muitas complicações para o indivíduo” (Seffner, 2016, p. 141). De fato, pode-se observar que essa constituição de si mesmo/a está profundamente enraizada em significados, sentidos e motivos que podem não ser o que cada pessoa define para si mesmo: ambíguos, incertos, indefinidos, estabelecidos por regras e normas que enquadram, esquadrinham, determinam, normalizam e atravessam os corpos, os produzem, os (re)posicionam no tempo. Contudo, também se transformam conforme a inadequação e a ambiguidade perdem as complicações e o (re)conhecimento extravasa aqueles significados, sentidos e motivos. As perguntas feitas pelo corpo-transviado a si mesmo podem ter respostas avassaladoras.

Foram muitas angústias, eu me sentia fora. Foi um processo assim, por um período que eu chorei muito. [...] E foi por conta desse processo [descobrir-se lésbica]. Poxa! É horrível você não se sentir... não ter a quem contar! É horrível você estar dentro do espaço, dando os maiores conselhos pra todo mundo... e eu dizia: “eu sou uma mentira”! Porque eu dou conselhos maravilhosos e eu não posso dar conselho pra mim mesma! [...] Foi um processo muito doloroso, sabe? E, assim, eu cheguei à conclusão que o meu maior dilema no meu processo foi a autoaceitação [...]. Aí, nesse processo [...], a escrita foi um espaço de libertação para mim [...] e eu fui vendo que os meus escritos foram se ampliando, ou seja, à medida que eu fui me aceitando, à medida que eu fui me modificando, que eu ia me transformando, os meus escritos mudaram. Eu tenho “escritos” de tristezas profundas... como se eu tivesse... coisas horrorosas mesmo, muita tristeza... (Janaína, professora cis lésbica em entrevista narrativa, 2021).

É possível perceber, no relato, que os sentimentos de incertezas e ambiguidades apontados por Seffner (2016), por muito tempo abrigaram o corpo-território de Janaína. A sua descoberta, depois de adulta, de uma identidade lésbica já era atormentada por outros sentimentos de anormalidade vividos nos corpos-transviados de um tio e um sobrinho homossexuais, tendo vivenciado também os preconceitos e sofrimentos entre seus familiares, (re)posicionando-se na obrigatoriedade de estar sempre defendendo-os. Desse entendimento de corpo-transviado, ela aprendeu como a LGBTfobia atravessava esses corpos, deixando explícito que os sofrimentos causados por não pertencer à norma, por ter entes queridos alvejados por seus corpos-transviados, ou por não apresentar aquilo que a norma expecta dos/as sujeitos/as, foram importantes para forjar o seu corpo-território. Diante dessa realidade, constituiu-se com subjetividades outras, buscou outras formas de compensar sua diferença, como por meio dos estudos, pois precisava ser boa, destacar-se de uma forma outra que não fosse por seus marcadores sociais da diferença. Tal movimento permitiu a ela se constituir como uma pessoa atenta às corporalidades e às dissidências alheias, bem como (re)posicionar-se no espaço docente como um corpo de representação e representatividade da/pela diferença, lhe possibilitou ser algo ou alguém além daquilo estipulado pela norma.

Como recurso para se (re)conhecer e se apropriar, Janaína (des)construiu-se por meio de escritos acerca de suas experiências. A (auto)biografia surgiu como uma aliada disponível para desabafar, falar de si, escrever sobre suas angústias e tristezas, refletir sobre os transvios que habitavam o seu corpo-território, sem ser descoberta, mas se descobrindo, se aceitando e se (re)conhecendo, pertencendo à sua identidade. A lacuna de pertencer a uma identidade que pudesse externalizar para si mesma, para o/a outro/a, poder falar de si abertamente, foi um processo doloroso que provocou silenciamentos, angústias, dúvidas de sua realidade e outras percepções de si.

E aí, assim, nesse processo eu me abri muito cedo pra essa discussão, não no sentido de como eu me via, não era como eu me via, porque eu não me via assim! Mas era como eu via as pessoas. Então, eu saí de uma experiência que ouviu a vida inteira “isso é errado, isso é errado, isso é errado”. Aí, eu construí como errado (Janaína, professora cis lésbica em entrevista narrativa, 2021).

[...] confesso que o autoconhecimento e a formação acadêmica me salvaram de mim mesma, ainda bem que eu conseguir vencer os 34 anos de aprendizagens hetero. Escrevo isto pois, embora eu seja uma pessoa aberta, embora sempre tenha acolhido esta pauta ao longo de minha vida, com todas as contradições que se possa ter, me aceitar homossexual foi a travessia da minha vida mais difícil (Janaína, professora cis lésbica em autorretrato, 2021, grifos meus).

Desse modo, Janaína externalizou essa fase de sua vida como como se vivesse uma mentira, construída sobre algo errado, questionando-se e, posteriormente, também sua atuação como docente ao dar conselhos para outros corpos-transviados, sendo que ela mesma não conseguia ouvi-los, praticá-los como modos de vida autorizados, revelando nesse processo os próprios dilemas com a autoaceitação. As angústias, os choros, a vida fora das formas, potencializada por também sentir-se desencaixada pela sua compleição física não padronizada, mostram essa relação de dependência que alguém impõe a si mesmo quando ainda não sabe quem ou o que é. Resulta, assim de um não pertencimento, de uma falta de legitimidade em sua identidade por conta de não haver amadurecimento naquilo que não é claro, por não ocupar lugares dentro da paisagem, por performatizar imagens e narrativas naturalizadas para que a completude ocorra em um processo contínuo de luta contra os próprios sentimentos e por aquelas condições de vida que não poderia ter escolhido.

(IN)CONCLUSÕES (IM)PERTINENTES

Infere-se, dos relatos, que as identidades dos/as professores/as transviados/as colaboradores/as da pesquisa foram atravessadas por processos de diferenciação e exclusão e tal processo provocou nesses/as sujeitos/as uma produção identitária fragilizada pela construção social do gênero performativo nos corpos sexuados e pela ilegitimidade das sexualidades dissidentes. Seus corpos-territórios sofreram os efeitos das identidades padronizadas atravessando suas existências com opressões diversas, (de)marcando para eles/elas os não espaços fora daqueles permitidos como modos de vida (re)conhecidos. Assim, a (auto)aceitação enfrentou processos que foram desde as imagens narrativas de anormalidade, concepções do errado sobre o próprio corpo, tentativas de adequação em suas corporalidades, recriminações por performatizar o gênero oposto, normalização da identidade clandestina, tristezas, depressões etc., até o corpo-transviado proceder a troca de pele e se perceber como corpo-território.

1 Miranda (2020, p. 25) defende a ideia de corpo-território como “[...] um texto vivo, um texto-corpo que narra as histórias e as experiências que o atravessa”

2É de Bento (2017) a ideia de transviados/as para professores/as LGBTQIA+. Na tradução da palavra queer, ela tenta traduzir para o contexto brasileiro os significados acompanhados pela repulsa e pelo ódio a essas identidades. Para ela, pode ser considerado um transviado no Brasil: uma bicha louca, um sapatão, um travesti...

3A pesquisa Corpo-território-LGBT+: imagens e narrativas de professores/as transviados/as na educação básica foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia.

4À exceção de Cláudia, todos os outros nomes são fictícios. Este artigo contém narrativas de seis participantes.

5Essa ideia de normalidade existe desde a infância. Apontado como gay - desde sempre -, fui me constituindo na incompletude, na anormalidade, na abjeção. Hoje, entendo que esses conceitos são socialmente construídos e defendidos como forma de classificar e excluir os/as sujeitos/as que escapam do padrão estabelecido como norma.

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Recebido: Setembro de 2023; Aceito: Outubro de 2023

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