SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 issue76THE LITTLE CURUMINS: the state of knowledge of scientific production on indigenous children“THE WAR IS CULTURAL, F*!”: literacy as a trench of brazilian radical rights author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.25 no.76 Rio de Janeiro  2024  Epub Mar 07, 2024

https://doi.org/10.12957/teias.2024.77872 

Artigo de Demanda Contínua

O ORDINÁRIO EM IMAGENS: crianças periféricas e o CEU em São Paulo

Marcia Aparecida Gobbi1 
http://orcid.org/0000-0001-9850-0190; lattes: 7741789991636762

Maria Cristina Stello Leite2 
http://orcid.org/0000-0001-7418-1463; lattes: 3002035461254197

1Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

2Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo


Resumo

Fotografias pinhole são o mote para reflexões constantes neste artigo. Elas foram feitas por crianças frequentadoras de uma Escola de Educação Infantil (EMEI), situada em um Centro de Educação Unificado (CEU), equipamento público e gratuito, criado em 2004 como política pública urbana na cidade de São Paulo. Os pontos de vista de meninas e meninos foram privilegiados, pois permitem aproximações com representações do bairro onde moram, que ao mesmo tempo é onde o CEU está localizado. Trata-se de resultado de pesquisa realizada entre 2015-2017 cujo ponto de partida eram escolas públicas municipais de educação infantil e as crianças frequentadoras de EMEI. O objetivo era compreender diferentes aspectos da cidade a partir de seus pontos de vista. Caminhadas dentro e fora dos espaços institucionais guiadas por crianças e algumas funcionárias da EMEI, diálogos e escuta atentos e a realização de fotografias pinhole - feitas de modo artesanal em câmeras produzidas com latinhas de mantimentos - consistiram na metodologia usada. Destacamos questões fundamentais durante o processo: o que é construído imageticamente pelas crianças? A imagem captada é imagem de quê? Sabendo que são representações, portanto, verdadeiras e falsas (Lefebvre, 2006), o que podemos inferir sobre o bairro e o CEU e as relações espaciotemporais ao observarmos as imagens feitas? Essas questões orientaram pesquisa de campo acerca da infância, periferia e cidade no bairro da Pedreira onde está o CEU, extremo Sul de São Paulo, e nos apresentam a oportunidade de conhecer um pequeno recorte do que foi realizado com e pelas crianças.

Palavras-chave: periferia urbana; infância; educação pública

Abstract

Pinhole photographs are the motto for constant reflections in this article. They were made by children attending a School of Early Childhood Education (EMEI), located in a Unified Education Center (CEU), a public and free equipment, created in 2004 as an urban public policy in the city of São Paulo. The points of view of girls and boys were privileged, as they allow approximations with representations of the neighborhood where they live, which at the same time is where the CEU is located. This is the result of a research conducted between 2015-2017 whose starting point were municipal public schools of early childhood education and children attending EMEI. The goal was to understand different aspects of the city from their points of view. Walks in and out of the institutional spaces guided by children and some EMEI employees, attentive dialogues and listening, and the realization of pinhole photographs - handmade on cameras produced with cans of groceries - were the methodology used. We highlight fundamental questions during the process: what is imagetically constructed by children? The image captured is image of what? Knowing that they are representations, therefore, true and false (Lefebvre, 2006), what can we infer about the neighborhood and the CEU and the spatiotemporal relations when we observe the images made? These questions guided field research about childhood, periphery and city in the neighborhood of Pedreira where the CEU is located, in the extreme south of São Paulo, and present us with the opportunity to know a small clipping of what was accomplished, with and from the children.

Keywords urban periphery; childhood; public education

Resumen

Las fotografías estenopeicas son el lema para las reflexiones constantes en este artículo. Fueron realizados por niños que asistían a una Escuela de Educación Infantil (EMEI), ubicada en un Centro de Educación Unificada (CEU), un equipamiento público y gratuito, creado en 2004 como una política pública urbana en la ciudad de São Paulo. Se privilegiaron los puntos de vista de niñas y niños, ya que permiten aproximaciones con representaciones del barrio donde viven, que a la vez es donde se encuentra el CEU. Este es el resultado de una investigación realizada entre 2015-2017 cuyo punto de partida fueron las escuelas públicas municipales de educación infantil y los niños que asisten a EMEI. El objetivo era entender diferentes aspectos de la ciudad desde sus puntos de vista. Paseos dentro y fuera de los espacios institucionales guiados por niños y algunos empleados de EMEI, diálogos atentos y escucha, y la realización de fotografías estenopeicas - hechas a mano en cámaras producidas con latas de comestibles - fueron la metodología utilizada. Destacamos preguntas fundamentales durante el proceso: ¿qué es construido visualmente por los niños? ¿La imagen capturada es imagen de qué? Sabiendo que son representaciones, por tanto, verdaderas y falsas (Lefebvre, 2006), ¿qué podemos inferir sobre el barrio y el CEU y las relaciones espaciotemporales cuando observamos las imágenes realizadas? Estas preguntas guiaron la investigación de campo sobre la infancia, la periferia y la ciudad en el barrio de Pedreira donde se encuentra la CEU, en el extremo sur de São Paulo, y nos presentan la oportunidad de conocer un pequeño recorte de lo que se logró, con y desde los niños.

Palabras clave periferia urbana; niñez; enseñanza pública

INFÂNCIA, PERIFERIA URBANA, EDUCAÇÃO E IMAGENS: APROXIMAÇÕES

O que as fotografias tiradas por crianças com até cinco anos de idade permitem pensar sobre um bairro periférico e as vistas que se têm dele? Em que medida o que é visto por essas crianças contribui para reflexões acerca de pequenos moradores de periferias urbanas? Fotografias feitas por crianças nos possibilitam refletir a respeito da história de produção e transformações de um bairro? Trata-se de questões de extrema complexidade, pois pressupõem diálogos entre estudos urbanos, estudos sociais da infância, educação pública, imagens fotográficas e crianças moradoras de periferias em São Paulo, constituindo o que poderíamos denominar de infâncias periféricas ou à margem (Veena Das, 2020), uma vez que se deseja buscar e conhecer pontos de vista de crianças em suas vidas ordinárias, de modo a promover o entendimento sobre a produção de imagens, feita por elas, da vida cotidiana nas periferias urbanas.

O ordinário de vistas e vidas infantis é o que buscamos neste artigo. Nele, apresentamos fotografias pinhole feitas há seis anos por crianças frequentadoras de uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) localizada em um Centro de Educação Unificado (CEU)1, situado no bairro Pedreira, extremo da zona Sul de São Paulo. Trata-se de um recorte da pesquisa Olhar sobre a cidade: fotografia e desenho na construção de imagens sobre São Paulo a partir das escolas municipais de educação infantil2realizada em territórios periféricos de diferentes regiões de São Paulo, cujo objetivo foi apreender como crianças de pouca idade revelam aspectos da cidade plural. Embora tenha sido ponto de partida para a realização das fotografias, o intuito não foi discorrer sobre o equipamento CEU, mas sobre o que foi visto pelos que lá estavam. Acreditamos que o dentro contém o que há fora e vice-versa. O CEU é concebido como revelador e representação de distintas práticas sociais expressas em seus múltiplos ambientes, bem como um verdadeiro dispositivo político, noção utilizada por Capillé (2017).

Dentre 32 fotografias pinhole elaboradas pelas crianças frequentadoras da EMEI mencionada, destacaremos apenas quatro como mostra representativa do conjunto de imagens feitas. Elas se constituem como fio a puxar diálogos. Não objetivamos apresentar um trabalho conclusivo, mas somente provocar reflexões sobre infâncias periféricas, as quais ainda não foram debatidas suficientemente e acerca das quais há pouco debate quando temos processos de elaboração de políticas públicas urbanas e educacionais. O critério para escolha das fotografias considerou: imagens de dentro do CEU para arredores e para a parte interna do equipamento; nitidez da imagem e ter sido doada pela criança autora para o grupo de pesquisa; não escolhemos a turma participante; professora e crianças demostraram disposição para participarem do processo de modo livre devido ao interesse manifesto pela temática, pelo trato com a produção de fotografias e a fatura do pinhole propriamente dito. O uso de fotografias e outras imagens se faz presente em investigações realizadas pelas pesquisadoras e consiste em importante recurso metodológico de pesquisa com e sobre crianças (Gobbi, 2023, 2012).

Os procedimentos metodológicos referem-se à investigação de caráter qualitativo que buscou conjugar caminhadas, dentro e fora do CEU, com todas as crianças da turma, geralmente acompanhadas por uma pessoa funcionária e/ou professora do equipamento. Por tratar-se de um método artesanal de fotografia, o local de revelação foi feito de modo improvisado no CEU. A curiosidade remetia à permanência e insistência no diálogo, nas descobertas e nas alegrias e frustrações com o processo de produção e revelação das imagens. Os locais eram escolhidos pelas crianças durante as caminhadas. Após as fotos feitas, discutia-se com elas e as adultas participantes sobre o processo e seus conteúdos. Esta prática foi fundamental para a construção de vínculos entre todas. Os diálogos nos aproximaram da vida comum produzida e vivida. Detalhes sutis que nos levaram à tentativa de entender uma pequena parte da vida das crianças no CEU, o que reúne imagens feitas em fotos e outras formas e sentidos presentes em falas, gestos e silêncios.

Quais os pontos de vista das crianças desde o CEU? O que é possível ver e descobrir dentro de um ambiente de tão grande riqueza cultural e de relações entre pessoas? Encontramos elementos para pensar sobre cidade e sua relação com o equipamento público CEU? Não temos respostas definitivas. Gostaríamos de enfatizar que as brincadeiras estavam compreendidas, assim como em Benjamin (2002) na relação com os outros quando o brinquedo é forjado e inseparável de sua relação com a cultura. Deste modo, a fotografia e o ato de fotografar encontravam-se como na produção de um brinquedo, cuja imaginação era evocada, sentida e presentificada em ato, posteriormente revelado num contínuo envolvimento brincante.

CEU: LUGAR EM SÃO PAULO ONDE A ÁGUA FAZ A CURVA

Fonte: Acervo pessoal (2016).

Figura 1 Pinhole 

A fotografia em questão destina nossos olhos a alguns lugares e coisas: vasculhando trecho a trecho, inferimos que se trata de uma ampla piscina cujos fundo e água aparentam ser curvilíneos. A forma apresentada pode ser inquietante a alguns. Temos uma trama, uma mistura de códigos e sentidos. A busca pela certeza que nos toma quando dispostos diante de uma imagem, muitas vezes envoltos pela procura do verossímil, ganha outro contorno. A técnica pinhole usada na pesquisa trouxe consigo reflexões e sensações nem sempre redutíveis ao visível na imagem. Provocativas visualmente, implicam mudanças no comportamento esperado para uma fotografia, qual seja, a expectativa de encontrar algo que ao trazer a aparição de uma ausência possa se aproximar do real, do que é mais facilmente identificável. Se, com a fotografia, temos algo que não poderia ser visto sem ela, com o pinhole, temos certa autonomia da imagem, criação em conjunção entre fotógrafo e as condições da câmera artesanalmente criada, em que os aparentes limites permitem a apresentação de resultados inusitados e inéditos. Autoria conjunta entre o fotógrafo e a câmera artesanal e que reduz as possibilidades de conformarmos a imagem àquilo que queremos que seja.

Ainda com a foto diante dos olhos, algumas questões surgem: a piscina e o edifício poderiam estar em qualquer lugar? Embora o preto e branco seja um efeito possível em muitas das câmeras fotográficas atuais, podemos nos perguntar a qual período pertence a foto. Será recente? Torna-se difícil saber a referência de cidade, ao mesmo tempo que nos vemos diante de uma edificação cujo estilo arquitetônico informe que se trata de algo mais recente em tempo histórico. Aliás, ela foi modificada em sua cor original? Por último: quem a teria feito? Há alguma relação entre fotógrafo e a imagem selecionada? Essa imagem foi criada por um homem ou mulher? Adulto ou criança? Menino ou menina? Essa questão está implicada à composição, ou seja, há uma relação entre fotos e gênero de quem as criou? Muitas indagações podem nos tomar ao observarmos uma imagem fotográfica, sobretudo, quando buscamos compreendê-la em diálogo com áreas diversas. Apresentar uma única resposta diante de uma imagem seria, no mínimo, um equívoco. Com isso, trazemos a reflexão proposta por Didi-Huberman (2015): de que exatamente uma imagem é imagem?

O exercício de curiosar a imagem que resultou do processo criador de um fotógrafo-criança é um desafio. Complexas, as imagens fotográficas aqui reproduzidas, e que trazem o ordinário do cotidiano, guardam em si informações e percepções sobre o espaço contido em um bairro periférico, que podem nos levar à construção de outras perspectivas históricas e sociais, não somente sobre a infância, mas sobre o que dela deriva.

Com seus cinco anos de idade, o fotógrafo menino chama-nos a atenção para o enquadramento, nitidez da imagem, escolha do assunto. A foto nos faz refletir sobre a criação de uma imagem ficcional, uma invenção a partir do mundo fotografável que, com a foto vista, cria um universo visual à parte. Olhar para as fotos e com as crianças ao longo e após o processo de revelação permite acessar outras temáticas e informações não obtidas em uma primeira visada. Por meio da fotografia elaborada por Thomaz3, temos a presença de um pequeno e sutil recorte deste espaço público em que o desenvolvimento social e a vida coletiva são aprendidos ensejando a curiosidade necessária para investigar e produzir a vida nos diferentes espaços.

O CEU COLOCADO EM QUESTÃO POLÍTICA E IMAGÉTICA

Atualmente, em São Paulo, contamos com 42 CEUs situados em regiões periféricas da cidade. Os primeiros 13 CEUs foram inaugurados em 2004, pela junção de equipamentos e projetos sociais oriundos de três Secretarias Municipais: Cultura, Educação e Esporte. É esse o lugar onde as fotos aqui reproduzidas foram elaboradas, é nesse cenário que permanecemos por semanas intercaladas, no período da manhã, durante o segundo semestre de 2016. Fomos compreendendo ao longo do tempo que a cidade estava escrita e inscrita dentro dele e, mais, dentro das crianças que fotografavam. Tivemos com as fotografias um primeiro movimento de caráter panorâmico, que posicionou o CEU no bairro e este na cidade, e um segundo, de caráter micro, que nos orientou para aspectos desapercebidos, porém, fundamentais para que nos aproximássemos das investigações das crianças, de suas lembranças, de seus afetos, em suma, de suas vidas.

O CEU em questão está situado em um bairro à beira da represa Billings, fruto de processos de expulsão do centro para a verticalização das regiões centrais da cidade, resultando no espraiamento da periferia para regiões distantes de meios de transportes, cinemas, teatros, parques, entre outros. Segundo Bonduki (2012), não há distanciamento histórico suficiente que permita afirmar que no século XXI temos um novo período quanto às políticas públicas de habitação, e, poderíamos inferir, consequentes alterações nos modos de morar e lidar com o espaço público no Brasil, contudo, conforme o autor, é necessário considerar a inclusão do direito à moradia na Constituição, a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, a criação do Ministério das Cidades em 2003 e a formulação de uma política de habitação. Tais preocupações implicaram também na construção de equipamentos educacionais e culturais em bairros sempre apartados do direito de comunicar-se entre diferentes regiões. A diversidade desses locais nos leva a refletir sobre a pluralidade da infância e suas distintas experiências cotidianas envolvendo classe social, gênero, raça e questões regionais, contrariando compreensões universalistas de infância.

Os CEUs são compreendidos nesse artigo como espécies de bolsões de resistência encravados na periferia paulistana. Ressaltamos isso no período atual no qual temos o efeito de condominialização (Dunker, 2015; Caldeira, 2005), que limita nossas vidas e cria uma tutela espacializada delas, em que os muros se interpõem criando supostas relações entre iguais e que levam ao aumento da revolta, da incapacidade de reconhecer-se no outro, ou deixar-se conhecer pelo outro. Esse pedaço da cidade que evidencia e constrói relações entre todos e de diferentes idades, pode ser compreendido como dispositivo político que considera projetos de cidade e sugere mudanças na paisagem de bairros periféricos fortalecendo comunidades locais Capillé (2017). Vale ressaltar que nos CEUs, situados em grande parte nas periferias paulistanas, observa-se de modo concomitante a ausência e a presença do espaço público e do Estado nos bairros por vezes apartados do consumo e da produção cultural de outros lugares, sofrendo desvalorização de suas criações locais. Ainda assim, algo que nos mobiliza intensamente é que eles não trazem apenas a materialidade do equipamento na cidade, há significados simbólicos que essa materialidade tem e que ela cria.

SILÊNCIO DOS CURIOSOS, PAUSA PARA O ENCANTO: O PERCURSO METODOLÓGICO

Dentre uma dezena de turmas de educação infantil, dos horários matutino e vespertino, uma das professoras apresentou-se disposta a participar com sua turma de todo o processo de pesquisa nessa EMEI e CEU. Participação espontânea após apresentação da proposta e consulta às crianças que estariam envolvidas. Sabemos que as pesquisas implicam alterações na rotina das crianças e dos segmentos que compõem o equipamento educacional e tentamos não alterar em demasia ou de forma impositiva. Frequentamos o espaço objetivando estabelecer contatos, não apenas com as crianças, mas com todos aqueles que ali atuavam profissionalmente ou parte dos que o frequentavam em atividades cotidianamente propostas. Isso foi delineando nossa compreensão sobre o bairro, o CEU e sua relação com a cidade. Considerou-se a concepção difundida pelos situacionistas franceses da segunda metade do século XX, em especial Guy Debord, no que fora denominado como teoria da deriva ou pesquisa psicogeográfica cujo propósito é deixar-se levar pelo contexto físico de determinados espaços da cidade, observando ativamente o urbano e as relações nele constantes. Um ponto importante a ressaltar são os encontros furtivos que podem acontecer e o que resulta deles, o que vimos em profusão, principalmente quando as crianças alteravam os caminhos ao reconhecerem neles as moradias de entes queridos, como avós, ou espaços de brincadeiras e esconderijos. Grande foi a oportunidade de descobrir espaços criados pelas crianças e não percebidos pelos adultos, ambientes preferidos e desconhecidos por muitos que traduzem e expõem modos e jeitos de ser da infância nesses locais. É importante nos aproximarmos desta dinâmica para podermos entender a dinâmica das relações entre as crianças e as demais pessoas, do tempo e de sua agência no ordinário da vida cotidiana deste espaço e fora dele.

O roteiro sofria alterações. Condução essa permeada de exercícios espontâneos de enxergar a vida que se descortinava diferentemente diante de todas as pessoas. Essa forma ímpar de fazer ver e sentir ao corpo todo, por vezes, de percepções nubladas, era permeada por um brinquedo que se fazia na relação, um modo de brincar de quem se faz grupo ao caminhar junto. Vale considerar que os trajetos muito nos informam sobre quem os percorre. A parada em um determinado trecho e o passo mais acelerado em outros vão nos levando a perceber a existência ou ausência de medos, afetos, familiaridades ou estranhamentos diante de determinados locais. Seguramente, isso gera e expressa diferentes níveis de experiências com a cidade e, nesse caso específico, com alguns de seus espaços, das quais, muitas vezes, as crianças são alijadas ou têm uma baixa participação. Ganharam lugar as relações de cumplicidade e consentimento que procurávamos manter com as crianças e demais agentes que buscavam participar das caminhadas ao longo das derivas.

Considera-se a oportunidade de garantir a pluralidade de experiências entre os participantes de todas as idades, a valorização dos bens de cultura material e imaterial e a rica existência das experiências cotidianas das crianças em equipamentos públicos e espaços públicos de modo geral. Isso reforça o que tanto se menciona acerca da escuta em pesquisas com crianças. Afirmamos que, em primeiro lugar, escutar não significa “dar a voz” e sim garantir uma sensibilidade para compreender o dito e o não dito, incluindo o silêncio. Em segundo lugar, implica a escuta alerta em diferentes locais onde as crianças possam estar para participar e garantir o inusitado das falas e manifestações corpóreas e demais expressões. Os acontecimentos ao longo do processo vinham à tona em falas soltas, discussões entre as crianças, observações.

As fotografias aqui expostas compõem e expõem relações entre as crianças envolvendo estados de ânimo, sentimentos, modos de ver e suas histórias. Capta-se imagem, criam-se outras e permeia-se esse processo com afetos que davam o tom da deriva, bem como as dicas de por onde podíamos seguir ou não. Estrangeiras no bairro e entre as crianças, passamos a nos familiarizar com os locais à medida que as próprias crianças nos orientavam pelas ruas internas e externas do CEU. Questionamentos eram feitos, e, de ambos os lados, as perguntas buscavam e evidenciavam modos de vida e de ver, de existir, sentir, pensar das crianças, e a elas os nossos, como a efetivar trocas e mudanças entre as marcas que nos distinguiam e que também causavam estranheza e curiosidade, seus ritmos no andar, formas de lidar com os corpos em espaços públicos, ora mais, ora menos ajeitados ou tímidos, eram percebidos em um exercício constante no qual estávamos juntos e ao mesmo tempo éramos observadoras/participantes e, por que não, sendo observadas, já que não se trata de fazer pesquisa como um estudo “de”, mas como um estudo “do” e “com” o mundo onde se pesquisa, sem esquecer das pessoas envolvidas, evidentemente (Ingold, 2015).

Olha!!! Olha como está ficando! É o CEU, lá fora! Tá bem pequenininho. Quem fez? (Thomaz, caderno de campo da autora)

Algumas reflexões apresentaram-se tal como um diário por imagens, um diário visual a guiar nossas lembranças na escrita - e, desse ponto de vista, a compor a metodologia de pesquisa - ao mesmo tempo que permitiam recuperar sentimentos e a própria investigação junto às meninas e meninos participantes das práticas de fotografia pinhole. Acreditando nas crianças e nas imagens fotográficas como agentes capazes de intervir e gerar mudanças nos grupos sociais dos quais participam, vale frisar que não se trata apenas de observar o que o entorno causa às crianças em seu processo de construção de modos de ver, mas, também, de considerar que a existência dessas imagens e sua elaboração levam a mudanças nas relações e interações sociais e naqueles que as veem. Tivemos um primeiro exemplo disso quando ouvimos alguns dos funcionários da limpeza do CEU nos pedindo para fazerem o mesmo que as crianças, simplesmente porque gostariam de elaborar fotografias pinhole. Essa manifestação de desejo nos tocou e compreendemos isso como o desejo pela manutenção e alimentação da poiesis entre adultos e adultas. A proposta de captação e produção artesanal de imagens traz em seu conjunto a possibilidade de projetar, elaborar e criar, envolvendo diferentes investigações.

Algumas professoras, independentemente de estarem mescladas com o projeto de modo mais intenso, participaram de oficinas pinhole para que pudessem compreender o percurso e as alterações de rotina no CEU. Optamos por não reproduzir nesse artigo as imagens criadas pelas adultas professoras e funcionárias respeitando nosso objetivo inicial de ater-se ao processo com as crianças e às imagens por elas produzidas.

O PROCESSO CONTÍNUO, OU A RIQUEZA DAS IMAGENS E DAS CONVERSAS COM AS CRIANÇAS

Lá dentro a lata é preta é escuuuura

(anotação de diálogo entre crianças, Thomaz e Júlia, enquanto participavam da produção das câmeras pinhole)

A técnica pinhole, cujo nome significa furo de agulha, remete-nos ao princípio básico da fotografia, uma caixa escura com um pequeno orifício em que é possível controlar a entrada de luz, tal como o obturador de uma câmera fotográfica convencional. Geralmente, são feitas em latas de mantimentos, seu formato mais conhecido, mas pode ser utilizado qualquer outro recipiente que garanta vedação completa para a luz. Essa sim é a chave para as fotografias serem realizadas. A quantidade de luz que entra é a condição para a captação da imagem. O fotógrafo atento e sensível ao entorno fotografa com todos os seus sentidos a postos, não é só o olho a funcionar, ele considera a relação com todo o corpo e este em sintonia com a natureza, já que as mudanças do tempo atingem fortemente o trabalho a ser realizado. Os elementos contidos nesta prática dialogaram de modo pleno com a inteireza das crianças bastante visível ao longo do processo. E as crianças? Quantos mundos estão se revelando diante de seus olhos? Quantos podem e ficam retidos na retina e se fazem presentes em diversos suportes e que podem ser presentificados em outros locais? Basta o gesto e eterniza-se... o que mesmo? Naturalizamos a captação de imagens e seus registros em câmeras fotográficas, consumindo-as sem reflexão, ou ainda, fruição.

Eu quero ir pra piscina! Vamos escolher um lugar pra colocar a lata e ver o que acontece. (anotações de caderno de campo. Fala proferida por Júlia enquanto discutíamos sobre onde ir para fotografar)

Por que lá dentro é tão escuro? Pra que serve ser assim? (anotações de caderno de campo, fala proferida por Thomaz)

As crianças participaram da feitura das câmeras, pintando, discutindo sobre o percurso a ser realizado até obter a foto. Pois bem, estávamos entre as crianças e eis que surgem as histórias das latas que nos foram generosamente contadas. Reunindo imaginação ao ato fotográfico, as latas não eram apenas objetos vazios que teriam seu interior pintado com tinta spray preta. Elas continham histórias que eram comunicadas em rodas de conversa que antecediam sua confecção. Muitas vezes inventadas, ganhavam contornos plenos de imaginação de todos os envolvidos como em uma costura na qual ponto a ponto se constrói uma veste. Uma “[...] lata exista para conter algo, quando o poeta diz lata, pode estar querendo dizer o incontível... pode estar querendo dizer o inatingível” (Gilberto Gil). E, assim, poeticamente, as crianças fotografam dialogando, algumas vezes, com o intangível. Como afirma Martins (2008, p. 28), “[...] o que o fotógrafo registra em sua imagem não é só o que está ali presente no que fotografa, mas também, e sobretudo, as discrepâncias entre o que pensa ver e o que está lá, mas não é visível”.

Ressalta-se que em tempos de apressamento do olhar e de certa escassez de diálogos que visem maior e mais sensível compreensão do entorno social e físico, a feitura e o uso dessa câmera artesanal implica na construção de outras percepções das relações. Interessa-nos pensar sobre a construção e percepção temporal nesses grupos infantis que se alargam ou se restringem de acordo com as propostas feitas e a garantia de que estas possam ser reconhecidas pelas meninas e meninos participantes. O tempo rápido, das breves vivências, pode ser substituído pelo vagar de descobertas que exigem sorver os movimentos à procura pelo entendimento, pela discussão sobre os resultados, ora frustrantes, ora superior ao esperado. Assim, algumas de nossas preocupações iniciais quanto ao uso do pinhole foram dissipadas e respondidas. Diante de algo instigante, a criançada interage de modo pleno, pulsando curiosidade.

A sala escura improvisada para revelação foi apresentada às crianças primeiramente com as luzes acesas, elas entravam, fechavam a porta, verificavam que havia pequenas bacias com água, em uma altura acessível a todas e, logo em seguida, apagávamos as luzes brancas, permanecendo apenas uma fraca luz vermelha necessária para a revelação. Meninas e meninos experimentavam o escuro. Aguardavam alguns minutos para perceberem que o escuro já não era tão escuro e o que tinham visto antes de as luzes se apagarem ajudaria a identificar a disposição dos objetos. Histórias eram inventadas por aqueles e aquelas que permaneciam do lado de fora da porta, e seus conteúdos nos mostravam personagens já conhecidos como super-heróis ou outros de histórias infantis mais tradicionais. Afinal, o que acontecia nessa escuridão com a porta fechada era uma indagação que se apresentava quase em suspensão expressando curiosidade e prazer intensos, ora no silenciamento das vozes, ora em manifestações de espanto similares às esboçadas em filmes de terror.

Ao saírem com as latas abastecidas de papel fotográfico, as crianças vasculhavam lugares no CEU à procura do que fotografar e logo em seguida onde colocar a câmera. Sem a presença do visor, a pinhole exige que se imagine, que se organize o espaço para alcançar a imagem desejada. Onde colocar a lata/câmera? O operador deve compreender todo o complexo processo para chegar à fotografia. Algumas crianças conseguiram tirar mais de duas fotografias, o que dependia do interesse e outras vezes das frustrações que as levavam a refazer tudo com outros tempos para exposição à luz demonstrando não apenas o gosto pela atividade em si, como também, terem tomado consciência do percurso.

“TÁ A PA RE CEN DO!!” era o que falavam as crianças enquanto aguardávamos a revelação dentro da sala; à exclamação, seguia-se o silêncio da espera reflexiva do que virá. O silêncio como ação implicada à criação interna do que se viu e o que será visto, provar o gosto da imagem que se revela. Há excitação, curiosidade, as crianças querem ver, e, por algum momento, este resultado é compartilhado com todas e nos pequenos grupos presentes na salinha escura. SUSPENSÃO. As crianças enlevadas vibram com a imagem e procuram descobrir o que são as formas pouco nítidas gravadas no papel. Porém, não se pode negar que algumas vibravam também em frente à imagem escura. Afinal, não é sempre que se vê diante dos olhos um papel branco transformar-se em preto só de entrar em uma bacia com água límpida. Transformações. Experimentações ao mesmo tempo velozes e vagarosas e que nos permitem ver o enriquecimento da experiência entre as crianças nesses tempos atuais, ainda que ela resulte de raros momentos, minuciosamente cuidados para que tenham espaço no cotidiano que, por vezes, desprovê a todos da capacidade humana de ser um inventa-mundos e, com isso, enriquecer-se em variadas experiências. Percebeu-se que as crianças ao lidarem diretamente com a fotografia pinhole tinham a chance de inventar formas complexas e sofisticadas de imaginar e, mais ainda, colocar isso em prática na elaboração desse artefato. Não podemos esquecer que a fotografia é também artefato da memória e que, a depender da disposição, leva-nos a puxar fios da vida engendrando novos elementos ao contar os pequenos “causos” impulsionados por toda a composição do processo de elaboração, não apenas das imagens, como também dos artefatos necessários para a feitura da câmera de lata. A fala seguia todo esse percurso e nos nutria de conhecimentos para muito além do lugar que estávamos ocupando.

O BAIRRO NUMA FRESTA: TÃO LONGE, TÃO PERTO

Fonte: Acervo pessoal (2016).

Figura 2 Júlia - foto pinhole 

Imagem. Imagens. A menina escolheu um trecho, um pedaço de seu bairro na fresta de um muro dentro do CEU. A cidade está lá entalhada no corpo e nos olhos da menina que a escolhe e de longe a registra. Lá longe vê-se um trecho do bairro Pedreira onde está situado o CEU. Curiosamente, do lado de dentro, Júlia posicionou sua câmera em um lugar capaz de trazer-nos aspectos quase panorâmicos do bairro onde mora e estuda. A autonomia da câmera fotográfica é inerente ao pinhole que, a depender de suas dimensões, determina ângulos mais ou menos inusitados, com ou sem deformações, nesse caso, observa-se texturas diferentes compondo a imagem que, curiosamente, coloca em diálogo plantas altas e o árido cimento. Sem saber, elas surgem entre o CEU e o bairro meio timidamente, e isso permite pensar em diferentes temporalidades: ora o bairro do extremo Sul da cidade de São Paulo, quase uma década e meia atrás e o que nos permite retomar sobre as histórias de ocupação e construção das periferias paulistanas; ora o bairro a partir do projeto CEU, o dispositivo político incrustado na cidade. Ambos em convivência e transformação constantes, cuja presença impõe uma não resignação aos moradores do bairro e frequentadores desse espaço, ou, quem sabe, a dura, vivaz e lutadora existência em que um equipamento desse porte e propostas se mostram em possíveis outras existências humanas e modos de viver. O dedo na ferida dos esquecimentos que fazem lembrar das ausências nos espaços segregados da periferia paulistana. A imagem é imagem de quê?

Como sabido, em grande parte das vezes, as poses e o que as envolve são elaboradas para que possamos “ficar bem na foto”, índices são apresentados de modo a nos permitirem compreender o que fora mostrado, ou, quem sabe, escondido. Acreditamos que algo semelhante possa ser considerado quando observamos as fotografias expostas e que nos levam a pensar sobre o que, afinal, as crianças queriam fazer ver sobre o bairro, de dentro do CEU e deste quando fotografado. Se entendermos que as imagens mostram muito sobre o fotógrafo, talvez mais do que sobre o fotografado, podemos nos perguntar: o que essa imagem nos indica sobre a menina que está do lado de cá da câmera e as relações estabelecidas pelas crianças nesse espaço? Quais entendimentos promovem sobre a infância no CEU e no bairro ou demais equipamentos públicos em São Paulo? Ao refletirmos sobre como a cidade, a periferia e o CEU surgem na fotografia criada por Júlia, não temos, de modo objetivo, apenas o que olhar sobre a cidade ou o equipamento, mas podemos inferir acerca de como essa imagem mostra e faz o urbano periférico. São fontes documentais preciosas cujas imagens, captadas por crianças, mostram-se fecundas para que possamos pensar segundo outros pontos de vista componentes de uma história tida por muitos como exclusivamente adulta.

Júlia denuncia parte da cidade como obra criada pelo homem, porém, que se apresenta nas disputas urbanas, na cidade-encontro que se deixa ruir pela cidade-disputa do mercado imobiliário que joga moradores cada vez mais para as franjas da cidade, tornando-a local de conflito e luta, em que se habita nas brechas encontradas a partir de amplo processo de gentrificação que se avoluma nas grandes capitais e que refaz uma escrita da história da cidade. Ao contrário da história de cidade que vai do centro para a periferia, temos uma percepção que nos lança a ver sua história do lado oposto, qual seja, da periferia.

Mas, tornando a observar a foto depreende-se que há uma percepção sensível para o detalhe da brecha encontrada no muro, a periferia surge, o que, certamente, passaria despercebido a olhos desavisados ou mais apressados. Furta um momento do bairro, revelando as casas ao fundo no lugar onde reside com sua família. Imagens políticas e poéticas são elaboradas pelas meninas e meninos cotidianamente. Paramos diante da imagem e nos deparamos com as folhas, o rasgo do muro que faz ver as casas ao longe. Fonte histórica produzida na periferia por uma criança de tão pouca idade e que permite afirmar a urgência de considerarmos as imagens por elas produzidas como fontes a serem discutidas em perspectiva histórica, com e sobre as crianças e delas sobre o mundo e as sociedades em seus mais diferentes aspectos.

Também por seu caráter documental, a fotografia é agente capaz de difundir conhecimentos sobre a Pedreira, o CEU, a menina fotógrafa, desde o espaço interno do CEU Alvarenga. Concomitantemente, ela é instrumento de aprendizado e ensinamento, não só para quem vê a fotografia, mas também àquele que a faz de modo singular.

Algo semelhante pode ser depreendido da fotografia a seguir.

Há uma existência construída e exibida por aqueles que vivem diariamente nesse espaço ao longo de horas, que irrompe o cotidiano e sua versão mais rotineira e dá sentido, ainda que nas brechas, às suas experiências diárias, modificando-as. A imaginação vai se desenvolvendo, alimentando-se e fazendo-se presente nas escolhas e composições. Como sublinha Sarlo (2014), há nessas escolhas, e no que se mostra a partir delas, um sentido social que é a condição mínima e necessária para que possam se desenvolver os processos ligados ao imaginário de forma metafórica e metonímica da arte, do romance, da poesia, ou mais ainda, para que eles sejam apreciados por todos, reconhecidos ao mesmo tempo como sedutores e, então, não destituídos de sentido. Clara capta a imagem e vê-se a escolha por fotografar a creche do CEU, provavelmente frequentada por ela poucos anos atrás. Obra importante, percebe-se que a disposição de cada equipamento ascende na criação dos lugares, importa aqui que a menina fotógrafa escolhe o que poderíamos chamar de foto oficial do CEU, em que a creche, cuja arquitetura ousada, foi destacada.

A parte externa novamente presta-se como cenário à criação da última foto escolhida para exibirmos o resultado da aventura de um boneco de plástico que ganhou espaço distinto em uma fotografia. Um menino, uma câmera de lata, uma foto pinhole e um rico processo criador.

João: Olhem o que eu trouxe. Um boneco para tirar a foto.

Pesquisadora: Nossa, João, diferente de tudo o que vimos até o momento. Onde você vai colocá-lo?

João: Vem comigo.

E João nos leva até o local escolhido para criar um cenário e então fotografar. (anotações no caderno de campo das pesquisadoras)

Quando propomos que se pense sobre as fotografias elaboradas pelas crianças e passamos a observar seus complexos processos de criação, isso implica acompanhá-las durante suas escolhas, escutar suas decisões, discutir sobre elas e acatá-las, quando pertinente, chegando a mudar rumos, caso necessário. Essa fotografia de autoria de um menino, João, tem uma história de aventura. Um processo longo em que o garoto evocou memórias. Inferimos que dentro de casa selecionou um dos brinquedos - um boneco de super-herói - guardou disfarçadamente em sua mochila, trazendoo no dia em que nos dedicaríamos ao pinhole, e compôs a cena cuidadosamente.

O boneco de plástico, originalmente orientado para a brincadeira individual ou em grupo, ganha outra função e passa a protagonizar a cena. O boneco não se encontra aleatoriamente na região exposta. O desafio enfrentado por João foi deixá-lo em pé na pilastra em posição quase heroica com os braços suspensos e ficar posicionando-o até se contentar com o resultado da escolha. Há uma plástica da criação que traz indícios para vasculharmos sobre o processo de elaboração infantil, e, ao puxarmos tais fios interpretativos, encontramos uma criança pequena com sua capacidade inventiva. Que bom que tenha sido possível o tempo e o espaço coligados contribuindo com a captação da imagem, em um tempo mais lento favorecedor da criação do menino. Ela nos leva a refletir também sobre a memória de brincadeiras aqui materializada em um brinquedo posado para a foto em que estava para ser visto.

Surgiram apenas os espaços de fora ou que levam o olhar para fora, tal como a Figura 3. Segundo Schwarcz (2016), a rotina versus a liberdade parece definir a imagem ambivalente da infância, que carrega sua singularidade entre a autonomia do tempo ou o cotidiano feito de regras, e isso afirma uma oposição entre o mundo da escola e outros mundos, no qual, nesse caso preciso, a regulação de certas práticas deve ser avaliada como mais maleável. A composição de João nos fez refletir sobre rotina e liberdade no espaço escolar, que talvez possam não estar em oposição e sim complementares no cotidiano. As relações estabelecidas entre todos nós, a qual, entre outras coisas, garantiu a criação do menino, talvez seja a chave para se questionar um cotidiano em que, tal como a canção de Chico Buarque, “[...] todo dia ela faz tudo sempre igual”. Há de caber grandes espaços para a criação, os deslocamentos, a escuta e os olhares atentos.

Fonte: Acervo pessoal (2016).

Figura 3 Clara - foto pinhole 

Fonte: Acervo pessoal (2016).

Figura 4 João - foto pinhole 

POR MUITAS IMAGENS VISTAS E CRIADAS COM AS CRIANÇAS

O entrelaçamento de história e memória às produções infantis periféricas nos aproximam de amplo tecido de relações que em suas redes vão sustentando a vida e lhe conferindo sentidos aos vestígios do cotidiano. Reprodução do capital, mediado pela mercadoria e seus usos (Lefebvre, 1991), objetivamos nesse artigo uma aproximação com lugares de apropriação das crianças e por elas marcados em suas práticas sociais estabelecidas na metrópole.

Trazemos novamente a pergunta: a imagem é imagem de quê? A ela somamos outra questão ainda inspiradas em Didi-Huberman (2012, p. 209): que tipo de contribuição ao conhecimento histórico é capaz de aportar este “conhecimento pela imagem”? Olhando várias vezes as fotografias, hoje reconhecemos que são mais que fotografias do CEU ou do bairro em que ele está localizado. Afirmamos, tomando em conta as inúmeras vezes em que nos detivemos nelas, que são imagens das próprias crianças e que, ao buscar elementos do CEU e do bairro, apresentavam-nos e faziam suas vidas vividas nesses lugares ao mostrarem delicadamente suas experiências, no tartamudear das imagens e entre imagens. Dessa forma, não se comportam como meras ilustrações ao texto. Suas fotos revelaram-se como investigações implicadas na curiosidade e imaginação, estas imbricadas a experiências no cotidiano em um dos bairros paulistanos, levando-nos a refletir sobre as relações entre espaços públicos também escolares, como o CEU, e o que está em torno dele. As imagens guardam e revelam posições políticas, servem como resistência, como levantes. Nesse sentido, ainda considerando Didi-Huberman (2012), ao mesmo tempo que nos trazem histórias, elas as desmontam e desarticulam verdades, sugerindo outras formas de compreender e se relacionar, assim como outras práticas embebidas e apreendidas com o que temos diante e dentro dos olhos. Interessa aqui sublinhar mais uma vez que isso se dá pelas crianças, o que ainda é percebido como incomum e nos coloca no dever do exercício de estar junto com elas e de modo não hierarquizado. E agora é caminhar e ver com as crianças, e de todas as idades, aquilo que estão criando e, quem sabe, as cidades e seus equipamentos públicos e o entorno. As fotografias são compreendidas aqui como agentes desencadeadores de ações sobre as pessoas e de relações sociais, é um novo modelo de cognição com o qual podemos conhecer e revelar mundos. Continuamos a perguntar: como serão os mundos em seus distintos espaços físicos e de relações segundo as infâncias que neles habitam? Buscar o encontro com seus pontos de vista, colocando-se lado a lado sem discriminação, sem processos excludentes em que predominem e aprofundem desigualdades é um bom começo para entender e produzir a vida com as crianças, desde bebês.

Fonte: Acervo pessoal (2016).

Figura 5 Imagens pinhole 

1Doravante denominados EMEI e CEU.

2Financiamento CNPq, 2013-2015.

3Nomes fictícios, criados pela pesquisadora combinados com os participantes.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. Obras Escolhidas. v. 1. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. e apresentação de Marcus Vinícios Mazzari. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002. [ Links ]

BONDUKI, Nabil. Os pioneiros da habitação social: onze propostas de morar para o Brasil moderno, São Paulo: Ed. Unesp, 2012. [ Links ]

CALDEIRA, Teresa. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2005. [ Links ]

CAPILLÉ, Cauê. Arquitetura como dispositivo político. Revista Prumo, [s. l.], v. 2, n. 3, jul. 2017. [ Links ]

DAS, Veena. Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Ed. Unifesp, 2020. [ Links ]

DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. PÓS: Revista do Programa de Pósgraduação em Artes da EBA/UFMG, [s. l.], p. 206-219, 2012. [ Links ]

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2016. [ Links ]

DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015. [ Links ]

GOBBI, Márcia Aparecida. Desenhos entre mundos: elementos para pesquisar e tentar compreender as crianças e seus pontos de vista. Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho, (57), 2023. Disponível em https://periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/view. Acesso em 11 de jul. de 2023. [ Links ]

GOBBI, Márcia Aparecida. Desenhos e fotografias: marcas sociais de infâncias. Educar em Revista. n. 43, p. 135-147, jan./mar. 2012. Curitiba, Paraná: Ed. UFPR. [ Links ]

INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Rio de Janeiro: Vozes, 2015. [ Links ]

LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991. [ Links ]

LEFEBVRE, Henri. La presencia y la ausencia: contribución a la teoría de las representaciones. México: Fundo de Cultura Econômica, 2006. [ Links ]

MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto, 2008. [ Links ]

SARLO, Beatriz. A cidade vista: mercadorias e cultura urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014. [ Links ]

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Histórias da infância: convenções visuais em torno de um tempo que lembra de esquecer. In: Histórias da infância. São Paulo: MASP, 2016. [ Links ]

Recebido: Julho de 2023; Aceito: Novembro de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution NonCommercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.