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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.25 no.76 Rio de Janeiro  2024  Epub 07-Mar-2024

https://doi.org/10.12957/teias.2024.73678 

Artigo de Demanda Contínua

O TRABALHO PEDAGÓGICO EM MEIO À PANDEMIA: discutindo o caso dos Institutos Federais Gaúchos

PEDAGOGICAL WORK IN THE MIDDLE OF THE PANDEMIC: discussing the case of the gaúcho federal institutes

EL TRABAJO PEDAGÓGICO EN MEDIO DE LA PANDEMIA: discutiendo el caso de los institutos federales gaúchos

Vicente Cabrera Calheiros1 
http://orcid.org/0000-0001-8980-2920; lattes: 7211268481398938

Ana Sara Castaman2 
http://orcid.org/0000-0002-5285-0694; lattes: 0260327866661542

Liliana Soares Ferreira3 
http://orcid.org/0000-0002-9717-1476; lattes: 4007512293061299

1Universidade Federal do Tocantins

2Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul

3Universidade Federal de Santa Maria


Resumo

Em virtude das transformações sociais realizadas a partir da Pandemia Covid-19, assumiu-se o ensino remoto no Brasil no primeiro semestre de 2020, com ampla e profunda repercussão no trabalho pedagógico. Dentro de um complexo e variado conjunto de mudanças tidas em todo o território nacional, o objetivo deste estudo é investigar os impactos no trabalho pedagógico na Educação Profissional e Tecnológica, tendo como campo empírico os discursos de professores e professoras dos três Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) presentes no Estado do Rio Grande do Sul. Para a produção dos dados, aplicouse um questionário on-line e fundamentou-se teórica e metodologicamente o estudo na Análise de Movimentos de Sentidos. Constatou-se haver entendimentos díspares, a manutenção/permanência das relações que já aconteciam antes do período pandêmico. Considera-se que é necessário que se compreenda o modo como cada professor(a) lida com estas “novidades”, a fim de entender a complexidade do trabalho pedagógico remoto.

Palavras-chave: trabalho pedagógico; pandemia; educação; institutos federais

Abstract

assumed in Brazil in the first half of 2020, with wide and deep repercussions on pedagogical work. Within a complex and varied set of changes throughout the national territory, the objective of this study is to investigate the impacts on pedagogical work in Professional and Technological Education, having as an empirical field the discourses of teachers from the three Federal Institutes of Education, Science and Technology (IFs) present in the State of Rio Grande do Sul. For the production of data, an online questionnaire was applied and the study was theoretically and methodologically based on the Analysis of Movements of Sense. It was found that there were disparate understandings, the maintenance/permanence of relationships that already took place before the pandemic period. It is considered that it is necessary to understand how each teacher deals with these “news”, in order to understand the complexity of remote pedagogical work.

Keywords: pedagogical work; pandemic; education; federal institutes

Resumen

Debido a las transformaciones sociales llevadas a cabo a partir de la Pandemia de Covid-19, la enseñanza remota fue asumida en Brasil en el primer semestre de 2020, con amplias y profundas repercusiones en el trabajo pedagógico. Dentro de un complejo y variado conjunto de cambios a lo largo del territorio nacional, el objetivo de este estudio es indagar en los impactos en el trabajo pedagógico en la Educación Profesional y Tecnológica, teniendo como campo empírico los discursos de los profesores de los tres Institutos Federales de Educación, Ciencia y Tecnología (IFs) presentes en el Estado de Rio Grande do Sul. Para la producción de datos, se aplicó un cuestionario en línea y el estudio se basó teórica y metodológicamente en el Análisis de Movimientos de Sentido. Se constató que hubo entendimientos dispares, el mantenimiento/permanencia de relaciones que ya se daban antes del período de la pandemia. Se considera que es necesario entender cómo cada docente se enfrenta a estas “noticias”, para comprender la complejidad del trabajo pedagógico a distancia.

Palabras clave trabajo pedagógico; pandemia; educación; institutos federales

INTRODUÇÃO

A importância da reflexão acerca dos fenômenos sociais no campo da Educação - tanto como em qualquer outra esfera social - torna-se evidente quando se buscam respostas e encaminhamentos aos problemas encontrados no conjunto da sociedade civil. Em muitos casos, como no que se trata nesta reflexão, se apresenta um “problema” envolvendo distintas esferas, ou seja, uma situação que extrapola seus próprios limites e exige a articulação entre ambas as partes. Nessas situações, cabem pesquisas, análises e estudos para auxiliar a deslindar as problematizações.

Dentre as distintas maneiras de empreender o exercício analítico, o campo da Educação apresenta suas particularidades. Com esta consideração busca-se aludir ao fato de que a força da abstração deve levar em consideração que as transformações sociais alteram este campo - assim como o político, o econômico etc. - ao longo do tempo tendo, em cada caso, uma manifestação específica. Não há receita de bolo no seio das Ciências Humanas e Sociais que garanta aos cientistas um caminho infalível para solucionar suas questões. Logo, a compreensão do momento passa, também, pela análise dos acontecimentos no passado.

No final de 2019, o mundo tomou conhecimento de um novo vírus com alto índice de proliferação, identificado como coronavírus: Sars-CoV-2. Frente a essa informação que, inicialmente, circulava informalmente pelas mídias sociais, no final de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) detectou uma diversidade de casos de pneumonia, relacionados ao referido agente patogênico, na cidade de Wuhan, na República Popular da China. Face ao alerta e crescimento exponencial de contaminações e mortes ocasionadas por esse microrganismo, no final do mês de janeiro de 2020, a OMS emitiu uma declaração, considerando que a irrupção da doença constituía uma emergência de saúde pública de relevância internacional1.

Desse momento em diante as contaminações pela COVID- 19 começaram a ser reportadas em vários países, mostrando que o surto, até então restrito a Wuhan, tomara proporções mundiais. Em decorrência, então, em 11 de março de 2020, a OMS caracterizou a situação como uma pandemia2, pedindo aos países que adotassem ações urgentes, em especial, medidas de isolamento social, com fins de atenuar as taxas de multiplicação da doença, tida como um dos maiores problemas de saúde pública mundial da história5.

No Brasil, os procedimentos de combate ao coronavírus começaram em fevereiro de 2020, com a publicação da Portaria n° 188 (Brasil, 2020a), do Ministério da Saúde. Na referida Portaria é declarada a situação de emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e estabelecido o “Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-nCoV) como mecanismo nacional da gestão coordenada de resposta à emergência no âmbito nacional” (Brasil, 2020a). Em seguida, no dia 6 de fevereiro do decorrente ano, foi promulgada a Lei nº 13.979, que dispõe sobre as medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública em decorrência da COVID-19. Essa Lei, regulamentada pela Portaria nº 356 (Brasil, 2020b), de 11 de março de 2020, prevê, entre outros, condutas de isolamento e quarentena para minimizar o espectro de contágio ocasionado pelo coronavírus. E, desde 20 de março de 2020, foi declarada como sendo uma doença em estado de contaminação comunitária em todo o território nacional.

Em tal cenário social, em março, o Ministério da Educação (MEC) iniciou um trabalho no sentido de definir critérios para refrear a propagação da COVID-19 na rede de educação do país. Desse modo, os estados da federação brasileira passaram a adotar medidas específicas para esta batalha e, entre estas, foi deliberada, frente ao aumento da incidência de contaminação, a suspensão das atividades letivas presenciais. Na data de 17 de março, o MEC publicou a Portaria n° 343 (Brasil, 2020c), a qual versa sobre a substituição destas atividades, até então em andamento, por aulas que façam uso de meio e tecnologias de informação e comunicação enquanto perdurar a pandemia. Outrossim, as Instituições de Ensino (IEs) do país foram autorizadas a realizarem as atividades letivas em formato de Educação a Distância (EaD), de acordo com orientação já prevista em situações emergenciais na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n° 9.394 (Brasil, 1996).

Nesta conjuntura, toda a rede educacional do país foi e vem sendo desafiada - até o presente momento - por diferentes relações no trabalho, impostas pela pandemia. Cabe destacar que este momento é reforçado por um amplo conjunto de outros elementos que, conforme entendem França Filho, Antunes e Couto (2020), pôs em evidência:

[...] a identificação de uma série de processos já em largo estágio de avanço nos mais diversos setores, da pauta macroeconômica à social ou ambiental, que por sua vez, se desdobram em uma série de pontos tão diversificados que é quase impossível sintetizálos em um quadro amplo de análise (França Filho; Antunes; Couto, 2020, p. 17).

Tendo em vista a amplitude destes desdobramentos possíveis de serem analisados, é dado foco, neste texto, à educação pública, de modo específico para a Educação Profissional e Tecnológica (EPT), no Estado do Rio Grande do Sul (RS). A análise aqui empreendida tem como marco o ano de 2021, momento propício para compreender os desdobramentos tidos após o primeiro ano da Pandemia, tanto como o cenário político e social que se presencia desde então.

Entende-se que, após a diminuição das restrições sociais e o retorno das atividades letivas presenciais - ao longo do ano de 2022 - os impactos na educação se perpetuaram em todo território nacional, não sendo diferente no caso do RS. Deste modo, o trabalho pedagógico realizado pelo conjunto de professores segue sentindo os efeitos tidos neste curto período. De outra maneira, é possível enfatizar que a tempestade já passou, entretanto, a calmaria ainda não chegou. Ou seja, busca-se salientar que o trabalho pedagógico segue sendo impactado pelos acontecimentos tidos em 2021 e 2022, fortalecendo a importância da realização da análise.

Cabe considerar que o RS conta com a presença de três Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), a saber: 1. Instituto Federal Rio Grande do Sul (IFRS); 2. Instituto Federal Sul Rio-grandense (IFSul) e; 3. Instituto Federal Farroupilha (IFFar). Estes três IFs somam 42 campi, ofertando um total de 729 cursos (distribuídos entre: ensino médio, graduação, pósgraduação e qualificação profissional), com 41.340 estudantes matriculados, um corpo docente de 3.327 profissionais, além de um conjunto 2.461 de técnico-administrativos (Brasil, 2020d). Assim, este estudo objetiva investigar os impactos da pandemia no trabalho pedagógico na EPT, tendo como campo empírico os discursos de professores dos três IFs presentes no RS.

A seguir, apresenta-se uma discussão sobre os desdobramentos da Pandemia no Brasil - e no mundo - que vieram a impactar, também, na educação, em especial nos IFS, conforme relatam os discursos dos interlocutores da Pesquisa. Na sequência, realiza-se a análise dos dados produzidos e considerações finais, alinhavando os sentidos observados nos discursos sobre a temática em estudo.

ASPECTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

Por meio da instauração de estado de calamidade pública, a Rede Federal de EPT, no RS, seguiu as orientações das instituições sanitárias internacionais e nacionais. Assim, por meio do Ofício Circular n° 23/2020/GAB/SETEC-MEC (Brasil, 2020e) e das instruções dos comitês de crise para acompanhamento e prevenção à Covid-19 internos às IEs, como forma de preservar e garantir a saúde e integridade de sua comunidade suspendeu suas atividades presenciais no mês de março de 2020, com algumas particularidades - as quais se expõem ao longo do texto.

De modo geral, as discussões internas nos IFs giraram em torno da dificuldade em atender e contemplar, com o trabalho letivo remoto3, todos(as) os(as) estudantes. Outra questão fundamental foi a preocupação com o andamento do calendário escolar diante da suspensão das atividades presenciais e a não realização do trabalho remoto, promovendo um amplo e profundo impacto no trabalho pedagógico.

Por trabalho pedagógico, entende-se, a partir de Ferreira (2018), como sendo o trabalho dos professores, pois este seleciona, organiza, planeja, realiza e avalia continuamente, acompanha, produz conhecimento, estabelece interações e está em íntima relação com os estudantes. Imerso em um contexto capitalista, a força de trabalho é organizada pelas relações de emprego e os sujeitos agem em condições determinadas socialmente. Entretanto, salienta a autora que o trabalho pedagógico, por suas atribuições e pelas relações e engendramentos capitalistas, permite ao sujeito trabalhador projetar-se no seu trabalho, tendo o momento da produção da aula como espaço de vital importância (Ferreira, 2018).

Considerando o objetivo do estudo e perspectivando uma maior aproximação com as instituições, aplicou-se um questionário on-line com questões abertas e fechadas, de modo a encontrar um material para as reflexões. As questões, em conjunto, objetivaram que os interlocutores, integrantes de diferentes campi dos três IFs, respondessem, elaborando discursos sobre o impacto da Pandemia em seu trabalho pedagógico. O formulário foi enviado para todos os professores e recebeu-se o retorno de 30 interlocutores sendo 9 do IFFar, 9 do IFRS e 12 do IFSul. Estes, como conjunto, são representantes do grupo maior de professores da EPT nos IFs gaúchos, constituindo-se por serem, em maioria, doutores em diferentes áreas do conhecimento, terem entre 30 e 55 anos, trabalharem em Ensino Médio, Ensino Superior (cursos tecnológicos, licenciaturas e pós-graduação) e manterem contrato com a Rede Federal há mais de um ano (um único caso), sendo que a maioria trabalha na Rede há mais de dez anos. Dentro destas vivências, é pertinente detalhar elementos característicos dos professores interlocutores do estudo.

No que diz respeito à formação inicial, segue o gráfico 1.

Fonte: elaborado pelos autores, 2021.

Gráfico 1 Formação inicial 

Identifica-se um conjunto de professores originários da área da Engenharia, assim como, da Agronomia, da Ciência da Computação e da Medicina Veterinária que, diferente dos demais, tiveram uma pequena aproximação com a área da Educação ao longo de seus cursos de formação inicial. Este comentário não intenciona criar uma diferença qualitativa entre os professores, entretanto, é um ponto que pode vir a impactar na realização e/ou entendimento em relação ao trabalho pedagógico. Há uma diversidade em relação às áreas de trabalho dos professores, contudo, há uma aproximação com o campo da Educação (cursos de licenciatura). Com isso, evidencia-se que cada área possui sua especificidade - de objetivos, conteúdos e técnicas - que, sem dúvida, impacta na realização do trabalho pedagógico, do mesmo modo que na forma como ele se expressa remotamente.

Tocante à titulação acadêmica geral, segue o gráfico 2.

Fonte: elaborado pelos autores, 2021.

Gráfico 2 Titulação acadêmica 

Constata-se que a maior parte dos professores cursou pós-graduação em nível de Mestrado e Doutorado sendo, apenas um professor - do IFSul - especialista.

Por fim, cabe pontuar a relação com o tempo de trabalho, a partir do gráfico 3.

Fonte: elaborado pelos autores, 2021.

Gráfico 3 Efetivo exercício profissional nos IF´s 

Com o exposto no gráfico 3, constata-se que mais da metade desses professores possui um tempo superior a dez (10) anos de experiência profissional. A notoriedade desses dados reside no fato de se estar dialogando com professores que possuem uma vivência de sala de aula “presencial”, situação que auxilia no exercício “comparativo” com o trabalho pedagógico em caráter remoto.

Como fundamento teórico-metodológico adotou-se a Análise dos Movimentos de Sentidos (AMS), que permite, dialeticamente, analisar nos discursos, os sentidos relativos às temáticas em cena, evidenciados no que fora exposto pelos interlocutores. Para Ferreira (2020), discursos são:

[...] enunciados organizados e expressos pelos sujeitos, mediante uma intencionalidade, um objetivo em relação aos interlocutor(es), preestabelecido e teleologicamente elaborado, porque antecipam reações, compreensões, interações a serem alcançadas por meio da organização expressiva da linguagem. Discursivar, primeiramente, é repartir-se no social, indo ao encontro do outro, seja para compartilhar, seja para contrariar. Essa dimensão do discurso é que o consubstancia como produção social. Pelo discurso, os sujeitos narram, descrevem, planejam, projetam, avaliam, reconstroem e registram seu trabalho (Ferreira, 2020, p. 4).

A partir deste conceito, admite-se que os discursos dos seres humanos expressam as posições que ocupam no social, por isso tratam-se de materialidades, já que “São materiais as condições de vida humana, a produção humana para sobreviver, e, em decorrência, produzir historicidade e, assim, autoproduzir-se humano” (Ferreira, 2020, p. 9). Para tanto, verificou-se os sentidos atribuídos ao trabalho pedagógico em meio à pandemia, pelos professores que trabalham nos IFs. Os sentidos foram avaliados “[...] em suas variações, incidências, repetições, faltas e exageros, etc, ou seja, em seus movimentos” (Ferreira, 2020, p. 150). Após, a leitura perscrutadora, comparou-se, organizou-se e interpretou-se os discursos, de modo a “[...] adentrar nos discursos, evidenciando sentidos que se confirmarão ou não, quando cotejados com outros” (Ferreira; Braido; De Toni, 2020, p. 150), realizando as sínteses. Por fim, apreendeu-se os movimentos de sentidos e realizou-se a sistematização, a partir da categoria trabalho pedagógico. Reforça-se que os excertos serão apresentados a partir da sequência PROF. 2 e assim sucessivamente, com o intuito de proteger com anonimato a identidade dos interlocutores.

Então, o estudo assentou-se na pesquisa bibliográfica, entrevista por meio de questionário, análise dos sentidos de trabalho pedagógico durante a pandemia nos discursos dos interlocutores e sistematização. A seguir, aprofundam-se aspectos teóricos considerados na realização do estudo.

EDUCAÇÃO E PANDEMIA: ELEMENTOS PARA O DEBATE

O ponto de partida desta reflexão foi uma discussão a respeito do tempo, centralmente, a partir do início do século XXI. Não é de hoje que a humanidade se preocupa com o “compositor de destinos” (como disse Caetano Veloso4), ou seja, é muito antiga a busca por conhecer “[...] essa força ao mesmo tempo amiga e adversa, palpável e invisível - o tempo” (Donato, 1978, p. 7). Uma das inúmeras formas possíveis de contar os dias, anos e séculos, é virando a página do calendário, entretanto, Hobsbawm (1995) pontua que os séculos terminam quando crises colocam em questão verdades aparentemente pré-estabelecidas. É por meio desta compreensão que se entende que a pandemia ocasionada pela Covid-19 é um dos marcos do novo milênio.

Em artigo publicado em 12 de junho de 2020, Caetano (2020) analisou o discurso de diversos políticos ao redor do mundo (presidentes e primeiros-ministros) que têm comparado a pandemia a uma guerra. Cita o autor que:

Na maior crise sanitária dos últimos 100 anos, estamos aprendendo mais sobre a pedagogia da guerra do que sobre os motivos que levaram ao fracasso da saúde pública global. Essa situação, além de inverter a realidade, nos coloca diante de novos desafios e novas dinâmicas de relacionamento (Caetano, 2020, p. 72, grifos nossos).

O filósofo Slavoj Zizek (2020, p. 1) salienta que a pandemia também desencadeou a propagação de uma grande epidemia de um vírus ideológico5, que se manifesta como: “[...] noticias falsas, teorías de conspiración paranoicas, exploraciones de racismo”. No conjunto de sua reflexão, entende que esta conjuntura irá afetar - e percebe-se que afetou e seguirá afetando as interações humanas mais elementares6 - a sociabilidade, a relação com os objetos e com o próprio corpo.

Entrou-se no novo milênio com a existência de uma doença de propagação mundial, com uma retórica belicista, um profundo ataque à ciência e à verdade por meio das fake news e amplas transformações sociais que foram e seguem impactando profundamente em todos os setores sociais (economia, saúde, turismo, educação, etc) no mundo e, particularmente, no Brasil. Nesse contexto, concorda-se com Antunes (2020a), quando este alude estar o trabalho, sob fogo cruzado. Em outra reflexão, este mesmo autor evidencia que:

O cenário social no país, antes do ingresso da pandemia, já contabilizava uma massa imensa de trabalhadores informais, precarizados, flexíveis, intermitentes, e que, no caso dos uberizados, não tinham alternativa senão trabalhar 8, 10, 12 e até 14 horas por dia. Se não o fizessem, não perceberiam salários, pois compreendem uma categoria completamente à margem dos direitos do trabalho (Antunes, 2020b, p. 181).

Corrobora com esta análise, o exposto por Alessi et al. (2020), quando reiteram que a pandemia não foi a responsável pelo quadro de crise social no Brasil. Neste estudo, afirmam que a doença expressou e aprofundou os elementos de precarização social, assim como as condições materiais e objetivas a que a população está submetida. O reflexo desta situação é visto “a olhos nus”, ao acessar os dados referentes ao alto índice de mortalidade7, ainda mais, quando se percebe que a parcela mais vulnerável da sociedade é a mais atingida8.

As transformações ocorridas em todo o mundo demonstraram - e seguem demonstrando - parte dos limites do capitalismo. Como afirma Marx (2013, p. 113), “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma enorme coleção de mercadorias”. Com o crescimento da mortalidade, a exigência da produção de medicamentos e instrumentos para utilização hospitalar aumentaram exponencialmente, a ponto de que os poucos países produtores - como a Índia - não tiveram condições de atender a demanda. Este “simples” aumento da necessidade destas mercadorias desencadeou uma reação em cadeia que precisa ser melhor analisada9 por diferentes vieses. Como uma breve nota, pontua-se a “corrida” pela venda de doses das vacinas no Brasil, em uma clara mercadorização da vida.

Como referido, no campo da educação foi possível perceber, ainda em 2020, a paralisação das atividades (letivas e administrativas) presenciais tendo, no conjunto do país, distintas e variadas respostas. Dentro das múltiplas possibilidades de estudo e reflexão que permeiam a área educacional, o foco dado ao trabalho realizado pelos professores - aqui entendido como trabalho pedagógico - demonstra uma situação que engloba uma ampla gama de problemas - políticos, econômicos, sociais e culturais - evidenciando a complexidade presente nas relações sociais. Tal emaranhado se manifestou na esfera privada, bem como na pública, em âmbito municipal, estadual e federal. De acordo com Soldatelli (2020):

Os professores, como todos os trabalhadores, foram pegos de surpresa. E como todos, estão pagando o preço pela irresponsabilidade dos governos que não quiseram implementar uma política verdadeiramente em defesa da vida. Sabemos que no sistema capitalista a vida não está entre as prioridades. Mas nem o mínimo foi feito. Vimos que com todo o avanço da ciência e da tecnologia, que podiam ter sido usadas pelos governos pelo menos para amenizar tanto sofrimento, continuaram a serviço do lucro dos grandes empresários. Com as escolas fechadas (como se isso por si só representasse um grande feito), estudantes e professores tiveram a árdua tarefa, da noite para o dia, de se reinventarem. Palavra bonita quando se tem a liberdade de pensamento e a estrutura necessária (Soldatelli, 2020, on-line).

No caso dos IFs presentes no RS este processo não foi diferente, ou seja, cada instituição buscou uma organização, um reinventar próprio, a fim de manter suas atividades de modo a não prejudicar o processo educativo dos estudantes. Para tanto e no intuito de compreender o modo como os IFs atenderam à “nova demanda”, dando foco aos desdobramentos tidos no trabalho pedagógico, passa-se à discussão referente aos elementos presentes nos dados produzidos com a pesquisa.

OS IFS GAÚCHOS: A PANDEMIA E OS IMPACTOS NO TRABALHO PEDAGÓGICO

A primeira problematização a ser marcada antes mesmo da exposição e reflexão sobre os dados produzidos com o questionário é que, nas questões humanas, o que é “ruim para o José, pode ser bom para a Ana”? Ou seja, há um discurso que, por seu caráter universalizante, atende às diferentes singularidades de compreensão e de vida? Esse fato ficou evidente ao se deparar com discursos - denominados de negacionistas em relação à Pandemia e, também, referências discursivas aos prejuízos na economia, na saúde, no turismo, na educação, etc.

Como exposto anteriormente, seja por meio das fake news (o vírus ideológico apontado por Zizek, 2020), ou por qualquer outra razão, a diversidade precisa ser considerada e entendida como um fator importante para engrossar o caldo de nossas reflexões. Os incontáveis discursos contidos nas notícias dos inúmeros jornais - impressos, digitais e on-line - e canais televisivos, as intervenções do Presidente da República - na época, o senhor Jair Messias Bolsonaro (2018-2022) - contrariando (e mais, pondo em questionamento) o desenvolvimento científico e tecnológico, sem apresentar uma comprovação, demonstram a complexidade da situação tida ao longo da pandemia.

Cabe considerar previamente à exposição de nossas reflexões, o fato de que as particularidades condizentes ao campo da EPT lhes conferem características próprias, constituindo um campo distinto nos seus objetivos e formas de trabalho. Entretanto, no conjunto das análises mediante o retorno dos professores dos institutos gaúchos, percebeu-se haver uma aproximação com situações/problemas enfrentados no campo da educação brasileira, independentemente da modalidade educacional. Deste modo, sinaliza-se a compreensão de que a EPT se coloca no conjunto da educação brasileira e busca, a seu modo, responder aos desafios enfrentados na dinâmica social.

Referente aos impactos no trabalho pedagógico10 a partir da suspensão das atividades presenciais, Santana Filho (2020) demonstra parte das debilidades dos professores. Ao assumir as suas atividades pedagógicas em ambiente domiciliar, realizam a transposição de seus planejamentos para plataformas digitais, com a utilização de recursos via Internet, conduzindo “[...] à reprodução pura e simples da exposição oral para a repetição à distância das explicações e exercícios” (Santana Filho, 2020, p. 06). Prossegue sua análise afirmando que esta situação é um arremedo de proposta pedagógica.

Na prática, fere a docência na figura do professor e da professora que, não dominando devidamente aparatos de tecnologia, são conduzidos a trabalhar mais horas improvisando apresentações de slides para plataformas virtuais abertas; a expor sua prática e suas atividades em um ambiente totalmente novo, suas fragilidades documentadas, suas potencialidades negadas e interditadas por decisões de gabinete. Também é arremedo porque a prática educacional à distância, mesmo para seus defensores, exige que se repense a concepção de aprendizagem, da ação pedagógica, do currículo e dos próprios sujeitos do processo e não se constrói assim, de improviso. Há desigualdades explícitas também nesse aspecto (Santana Filho, 2020, p. 6).

Evidencia-se, assim, a relação existente no trabalho pedagógico entre os professores e estudantes (centralmente no que tange ao processo de produção do conhecimento), ao mesmo tempo em que expõe a complexidade presente no interior das instituições educacionais nas decisões. Neste sentido, pensando no trabalho pedagógico a partir da suspensão das aulas presenciais, Fernández Enguita (2020)11 descreve três lacunas que contribuem com as reflexões ora abordadas. Inicia suas considerações discorrendo sobre as dificuldades de acesso, pontuando que a distribuição de conexão e dispositivos (como aparelhos de celular e computador em casa) é desigual conforme o nível socioeconômico dos(as) estudantes. O segundo ponto - lacunas de uso - refere-se ao fato de que há uma aproximação no tempo de uso de conexão à Internet ao se comparar com estudantes de outros países. Por fim, salienta, como terceiro ponto, as questões ligadas aos(as) professores no que refere à adequação às plataformas digitais.

Estas lacunas reverberam no trabalho pedagógico, impactando nas transformações curriculares (propostas de alteração curricular), nos processos avaliativos (centralmente para os estudantes que, em 2020, estavam cursando o último ano letivo do Ensino Médio e os cursos superiores), nas disciplinas de estágios supervisionados (momento de vital importância nos cursos de Licenciatura), na organização do calendário escolar, na seleção de materiais de apoio aos professores para a realização do trabalho remoto (a fim de que estes tenham melhores condições de prover as necessidades dos estudantes) e, também, na gestão institucional que, de modo inesperado, depara-se com um grande desafio.

Em relação a este “grande desafio”, Saviani e Galvão (2021) esclarecem que os IFs, de 41 unidades, em todo o país, 40 aderiram às aulas remotas, alcançando um índice superior a 925.000 estudantes. Por maiores que sejam as diferenças entre as instituições, algumas questões estão presentes em todas elas - com maior ou menor incidência - como, por exemplo, “[...] os interesses privatistas colocados para educação como mercadoria, [...], a exclusão tecnológica, a precarização e intensificação do trabalho para docentes e demais servidores das instituições, etc” (Saviani; Galvão, 2021, p. 38).

Correlatamente, Castaman e Rodrigues (2020, p. 19) salientam que a pandemia “[...] expôs a nervura do real”. Para os autores,

Ela permitiu olhar um pouco mais demorado sobre a práxis, o que está sendo feito e como está sendo feito. Defende-se que a Pandemia do Covid-19 foi de algum modo, um momento privilegiado de reconhecimento das fragilidades e das potencialidades enquanto comunidade educativa. Isso não significa que podemos com isso demonizar as aulas à distância ou mesmo endeusá-las. Na verdade, revelam de algum modo, as potencialidades e as fragilidades de nosso cotidiano, tanto em sua versão mais luminosa, como mais sombria (Castaman; Rodrigues, 2020, p. 19, grifos nossos).

Por meio destes apontamentos, abre-se a possibilidade de afirmar que esta polivocalidade se encontra nos discursos docentes, sendo estes, o resultado de distintas realidades vivenciadas ao longo da pandemia.

Retomando os dados que caracterizam os interlocutores, demonstrados anteriormente, encontram-se condições de analisar as diferentes vivências e compreensões acerca da realização do trabalho pedagógico ao longo da pandemia. Inicialmente, ao questionar a respeito do modo como apreendem seu trabalho na atual conjuntura, fica perceptível a existência de duas tendências: 1. uma destas, entende estar “[...] difícil conciliar com demais atividades de casa, em especial por dividir o tempo com atendimento a filhos” (PROF. 4). Da mesma maneira que o PROF. 5, ao demonstrar estar “[...] com muita dificuldade pela novidade que se apresenta”. Outra resposta sugere outros elementos para analisar a questão:

O período correspondente à pandemia tem sido de dificuldade, especialmente pela adaptação do trabalho ao modo remoto. As jornadas de trabalho não seguem mais as horas definidas, mas estão muito mais vinculadas às metas e necessidades que se apresentam. Outro ponto problemático é a adaptação das próprias atividades com os alunos, a dinâmica das aulas, os conteúdos planejados estão muito modificados em relação ao trabalho presencial (PROF. 14, grifos nossos).

2. Em outra perspectiva, verificou-se respostas que entendem haver “[...] uma excelente interação e parceria. O trabalho com áreas de suporte permite envolver o aluno e desenvolvê-lo ativamente” (PROF. 6). Os PROF. 10 e 12 revelam esta mesma perspectiva: “Com máximo de disposição, responsabilidade, dedicação, atenção e constante adaptação às novas realidades e aprimoramento técnico” (PROF. 12).

Procuro desenvolver da melhor e mais plena forma possível. No momento, procuro oferecer aos estudantes diversas ferramentas e possibilidades. Me coloco à disposição para contato o tempo todo em através de diferentes meios de comunicação. Enfim, reconheço que tenho limitações a serem superadas nesse momento, mas dentro do possível procuro desenvolver um trabalho sério e comprometido como sempre fiz. (PROF. 10, grifos nossos).

Destas tendências, percebe-se uma clara diferença no que toca à compreensão do momento referente à pandemia, tanto quanto das transformações na realidade profissional vivenciada.

Quando solicitados a informar quais as relações demonstram haver entre o trabalho que realizavam antes e que realizam desde o início da pandemia, no sentido de pontuar as modificações, encontram-se novamente, distintas concepções. Entende-se que toda mudança gera desconforto e desafios. “Mas, esta nova experiência forneceu novas perspectivas em instrumentos e estratégias modernas de ensino-aprendizagem. Apesar de tudo, do ponto de vista pessoal, foi enriquecedora” (PROF. 8). Em acordo com esta compreensão, o PROF. 3 cita que: “Ganha-se tempo pois não há deslocamento até a instituição. As práticas pedagógicas foram adaptadas ao ensino remoto sem maiores dificuldades”. O PROF. 23 julga “[...] que a pandemia teve seu viés positivo no sentido de obrigar muitos de nós a sair da zona de conforto e aplicar novas ferramentas e metodologias de ensino para que pudéssemos seguir nosso principal objetivo: educar”. Nesse viés de compreensão, coaduna sua forma de pensar com outro colega de profissão:

Muitas modificações, positivo foi a quebra de barreira com o ensino remoto, houve muito aprendizado também, e hoje gosto do moodle e sei usar a maioria de suas ferramentas e as vejo muito positivas mesmo para o ensino presencial. [...], todos tivemos impactos nas nossas rotinas, professores, alunos, suas famílias, desafios financeiros, mas minha perspectiva é que esses desafios serão superados num futuro próximo. Porém não vejo retornando a rotina e realidade que tínhamos antes da pandemia (PROF. 9, grifos nossos).

Em contrapartida, a PROF. 4 acredita que tenha havido uma “[...] piora nas condições, dificuldade em relação à organização de tempo, espaço, saúde mental” e, também, existe a “[...] falta de contato humano” (PROF. 12). Além disso, se passa muito “[...] tempo na frente do computador” (PROF. 15). Denotam, conjuntamente, uma preocupação com sua vida pessoal e suas características humanas, abaladas com as alterações profissionais, parecendo subsumir-se a estas.

Na comparação entre o “antes e o durante” da pandemia, o PROF. 10 pontua, de modo a avaliar não somente as mudanças nas condições de trabalho, mas o impacto destas na sua vida e no seu modo de trabalhar:

Creio que meu trabalho [no] presencial era mais efetivo, conseguia atingir os estudantes de maneira mais eficiente. Já no trabalho remoto há sobrecarga de ações/atividades e menor efetividade. Há significativo desgaste emocional, principalmente em situações em que temos de refazer trabalho já realizado ou buscar ininterruptamente estudantes que abandonam ou não realizam atividades (PROF. 10, grifos nossos).

Interessante considerar o retorno de uma resposta que evidencia não ter encontrado uma diferença significativa na realização do trabalho pedagógico. “Procuro no ensino remoto desenvolver meu trabalho de forma semelhante ao presencial, compartilhando todos os recursos necessários para um bom processo de ensino aprendizagem” (PROF. 25). Interessante porque gera questões: não foi percebido por não comparar efetivamente o antes e o depois? Ou os professores, neste caso, introjetaram de tal forma seu trabalho pedagógico que não o alteram em conformidade com as demandas externas? Ou ainda, há uma repetição de padrões que não se alteram independentemente das situações nas quais se inserem o trabalho pedagógico?

Por fim, ao pedir que descrevessem o trabalho realizado com a mediação da tecnologia educacional, o ensino remoto e a falta da presencialidade, constata-se que não se apresentam versões distintas, ou seja, vislumbra-se um entendimento aproximado e semelhante pelos professores. Para o PROF. 16, “Inicialmente foi difícil, depois satisfatório e agora já estou no status ´cansativo´. Porém, há que se considerar que estamos sendo cuidadosamente preservados ao manter o distanciamento social neste contexto, um direito de privilegiado”. Nesta mesma perspectiva, o PROF. 13 enfatiza: “Busco fazer um bom trabalho. Há muitas possibilidades para isso. Todavia, os estudantes estão neste momento ´cansados´ de aulas remotas. Isso está dificultando bastante o trabalho”. Para o PROF. 7, em contrapartida, refletindo acerca do trabalho pedagógico em caráter remoto, descreve entender como “necessário e importante”.

Acredito muito na relevância das relações interpessoais no presencial, mas também acredito que devemos aproveitar os diferentes espaços para a aprendizagem. Nesse sentido, a tecnologia vem ocupando um espaço grande na vida das pessoas, portanto é algo imprescindível que precisa também fazer parte do universo pedagógico dos docentes (PROF. 7).

Já o PROF. 14, argumentou que há a necessidade de manter as atividades remotas em uma situação próxima ao que vivenciava no ensino presencial, “[...] mas isso nem sempre é possível. Tenho buscado elaborar materiais de apoio, pensando que os alunos têm que estudar mais tempo sozinhos agora” (PROF. 14).

Aproveitando a questão que salienta o cansaço dos estudantes em relação às aulas remotas, questionou-se sobre a carga horária semanal de trabalho, levando em consideração o tempo de trabalho no computador. No retorno recebido, encontrou-se um quadro no qual mais da metade dos interlocutores investe entre 20 a 40 horas por semana, tendo uma pequena parcela que permanece entre 10 a 16 horas. Neste caso, reitera-se que o “cansaço” se estende, também, aos professores.

Em relação ao prolongamento da permanência em casa, tanto como em frente ao computador, metade dos professores precisaram realizar alguma mudança em seu local de trabalho (o conhecido home office). Dentre estas modificações, foram relatadas as seguintes: 1. melhora no plano de Internet; 2. compra de equipamentos tecnológicos ou móveis; 3. adaptação de cômodos da casa e; 4. dispor de outro modo a rotina familiar.

De nossas análises, buscando dialogar com Fernández Enguita, resulta na aproximação com apenas a terceira lacuna exposta pelo autor - adequação às plataformas digitais. Ou seja, não se encontraram elementos que demonstrem haver lacunas de uso e de acesso, entretanto, não se pode afirmar que elas não existam, sendo uma questão que exige o aprofundamento das pesquisas realizadas. Conforme as considerações do PROF. 1, pondo em relevo haver uma “Dificuldade imensa no software que dá apoio às atividades pedagógicas remotas”, ficam em evidência os óbices à realização do trabalho pedagógico mediado pela plataforma específica do Instituto. O PROF. 12 salienta que:

Embora tenha sido maior utilizado o sistema já existente, nesse período não ocorreu evolução nenhuma em nível tecnológico. Me parece que o sistema é engessado e parado no tempo há uns cinco anos. Não há proposição de novas técnicas e tecnologias em um período em que tudo mudou. Somente o uso de reuniões por vídeo, o que ocorreu por obrigação e não por pensamento de evolução (PROF. 12).

Por meio da exposição realizada, parece haver um distanciamento entre o que se encontra em parte da literatura com o retorno do discurso destes professores. Ou seja, a partir dos discursos dos professores que retornaram o questionário respondido, não se evidenciou, até o momento, uma forte tendência que demonstre haver um aprofundamento de relações que venham a precarizar o trabalho pedagógico. O que se viu, é que, em alguns casos, houve - e se mantêm - transformações que impactaram negativamente em variadas esferas, mas, identificou-se também, que em outros casos, não.

Com esta consideração, não se pretende negar a existência de inúmeros problemas encontrados na realização do trabalho pedagógico ao longo da pandemia. Não obstante, faz-se mister realizar a análise com base no material até então produzido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Tempo tempo tempo, entro num acordo contigo”, como canta Caetano Veloso (1979). Retorna-se a este pequeno trecho da canção para introduzir as considerações que, embora estando na finalização do texto, não possuem um caráter de “ponto final”. Muito pelo contrário, o momento que se presencia com os resquícios da pandemia - que ainda assombram - exigem atenção e constante esforço intelectual, para que seja possível realizar uma aproximação (no pensamento) em relação ao amplo conjunto de transformações sociais tidas no Brasil.

Todavia, qual “acordo” estabelecer com o tempo? Como exposto ao longo do texto, por meio da compreensão de que a pandemia marca o século XXI, solicita-se gentilmente, ao tempo, que dê mais tempo. Que se tenha mais tempo para analisar e refletir a respeito das transformações vivenciadas no campo da Educação, tanto na EPT como nas demais redes educacionais. Contudo, sendo o tempo um caminho só de ida e sem volta, tem-se claro que é de fundamental importância que as análises e reflexões busquem compreender os fenômenos sociais no momento presente.

Com a análise do material obtido com o retorno do questionário, constatou-se haver entendimentos díspares, no sentido de não se ter encontrado um conjunto de respostas com sentidos interligados. Deste modo, com foco na realização do trabalho pedagógico, identificou-se a existência de diferentes relações, assim como a manutenção/permanência das que já aconteciam antes do período pandêmico. Considera-se que o trabalho remoto acarreta novas situações, mas é necessário que se compreenda o modo como cada professor(a) lida com estas “novidades”. Parece haver, em alguns casos, que parte das transformações tidas no trabalho pedagógico atenderam ao local de realização, ou seja, o que se fazia presencialmente, passou-se a fazer em caráter remoto. Desta forma, a partir do material reunido nesta pesquisa, compreende-se que a busca por uma distinta forma de organização e oferta das atividades letivas visou a alcançar um modo de minimizar prejuízos relativamente ao processo de suspensão das aulas com a pandemia.

Por fim, respondendo a uma pergunta feita anteriormente, o que é ruim para João, pode ser sim, bom para Ana. Neste caso, é premente reforçar a realização de estudos que busquem dialogar com a diversidade, a fim de entender e reconhecer a complexidade existente na realização do trabalho pedagógico em caráter remoto.

1Informações disponíveis no site: https://www.who.int/eportuguese/countries/bra/pt/. Acesso em 18 dez. 2021.

2A caracterização de uma pandemia é restrita à OMS. Conforme explica Carlos Magno, professor da Faculdade de Medicina da Unesp (Universidade Estadual Paulista), em entrevista à CNN Brasil, é considerada uma pandemia quando uma epidemia toma proporções globais. Mas, explica que é preciso que a epidemia tenha se propagado em, pelo menos, três continentes, embora esta questão possa ser flexibilizada, como no caso da pandemia de ebola, mesmo tendo maior incidência no sul da África, no ano de 2018. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/03/12/quala-diferenca-entre-epidemia-e-pandemia. Acesso em 18 jul. 2021.

3O destaque dado ao trabalho letivo remoto objetiva evidenciar o fato de que o trabalho remoto nos IF não deixou de ser realizado diariamente (por técnicos administrativos antes do retorno do corpo docente). Busca-se, assim, diferenciar o trabalho realizado pelos professores que, por certo período, realizou outras atividades remotas que não os momentos letivos - aula.

4Expõe-se aqui, a fim de esclarecimento, parte da letra da canção “Oração ao tempo” (1979), do músico Caetano Veloso: “És um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho; Tempo tempo tempo tempo, vou te fazer um pedido; Tempo tempo tempo tempo; Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos; Tempo tempo tempo tempo, entro num acordo contigo; Tempo tempo tempo tempo”. Disponível em: https://www.letras.mus.br/caetanoveloso/44760/. Acesso em: 26 nov. 2021.

5A qual se refere às “novas dinâmicas de relacionamento”, aludidas por Caetano (2020).

6No campo da educação e, particularmente, na EPT, como será discutido nas próximas páginas, as transformações seguem impactando a todos(as) os/as envolvidos(as): professores(as), estudantes, técnicos(as) administrativos e demais funcionários(as) terceirizados(as).

7Para acesso aos dados referentes à mortalidade ocasionada pelo Covid-19, disponível em: https://covid.saude.gov.br/.

8Para acesso aos dados referentes à mortalidade ocasionada pelo Covid-19 em articulação com a renda, disponível em: https://www.cidadessustentaveis.org.br/noticia/detalhe/mapa-da-desigualdade-renda-e-mortalidade-por-covid-19nas-capitais-brasileiras.

9A realização desta discussão foge do nosso objetivo para este texto, embora tenha relação a partir da compreensão do modo de produção capitalista como uma totalidade articulada.

10Detalhadamente, estabeleceu-se que trabalho pedagógico seria a produção do conhecimento em aula, tanto dos professores, quanto dos estudantes. Mas vai além. Considera-se, ainda, que a produção do conhecimento pressupõe envolvimento e participação política em todos os momentos escolares, além de intenso imbricamento, comprometimento e responsabilidade com o projeto pedagógico institucional. Trata-se, pois, de um movimento dialético entre o individual e o coletivo: entre o que os professores concebem seu projeto pedagógico individual, e o que a escola, comunidade articulada, estabeleceu em seu projeto pedagógico institucional em consonância com o contexto histórico, social, político, econômico (Ferreira, 2018, p. 594).

11Cabe considerar que os pontos expostos na pesquisa pelo autor dizem respeito a sua análise da realidade espanhola, porém servem como referência, uma espécie de chave analítica, a fim de possibilitar as reflexões empreendidas neste texto.

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Recebido: Fevereiro de 2023; Aceito: Novembro de 2023

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