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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.25 no.76 Rio de Janeiro  2024  Epub 07-Mar-2024

https://doi.org/10.12957/teias.2024.73217 

Artigo de Demanda Contínua

EDUCAR PARA O PROGRESSO DA NAÇÃO: recortes de livros didáticos de português do ensino primário e secundário brasileiro (1930-1971)

EDUCATE FOR THE PROGRESS OF THE NATION: excerpts from Portuguese language textbooks for primary and secondary education in Brazil (1930-1971)

EDUCAR PARA EL PROGRESO DE LA NACIÓN: extractos de los libros didácticos en lengua portuguesa para la educación primaria y secundaria en Brasil (1930-1971)

1Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

2Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

3Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo


Resumo

O presente artigo objetiva investigar as finalidades assumidas pela disciplina escolar português no período entre 1930 e 1971 no Brasil, a partir do estudo de livros didáticos. Procuramos efetuar uma periodização inscrita diretamente na história da educação brasileira. Sendo assim, o marco inicial é 1930, ano em que foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública, e em que se percebeu um progressivo controle estatal sobre a educação e a produção de livros didáticos no país. A data final é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei no 5.692/1971), uma vez que provocou mudanças significativas no ensino básico. A partir dos fundamentos teórico-metodológicos da história cultural, buscou-se lançar luz sobre os discursos presentes nos livros escolares da disciplina português adotados no ensino primário e no secundário, evidenciando aproximações de cada etapa. Disponíveis na biblioteca do livro didático na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, as fontes forneceram relevantes indícios sobre as práticas em sala de aula, de maneira a esclarecer em parte o contexto social, histórico e pedagógico do período em questão. Foi possível concluir que o ensino da língua materna, dentro do processo de escolarização, era pensado e mobilizado como aliado a um projeto civilizatório que visava à inculcação de certos valores e comportamentos considerados fundamentais à nação.

Palavras-chave: disciplina escolar; português; livro didático; projeto civilizatório

Abstract

This article aims to investigate the purposes of the school subject Portuguese between 1930 and 1971 in Brazil, based on textbooks analysis. We seek to carry out a periodization directly inscribed in the history of Brazilian education. The starting point is 1930, in which the Ministry of Education and Public Health was created, and an increased state control over education and production of textbooks was perceived. The Law of Guidelines and Bases of Education (Law nº 5.692/1971) is the end point of this study, because it caused significant changes in Brazilian education. Through the lens of cultural-historical theory, an attempt was made to shed light on the contents of Portuguese textbooks for primary and secondary education, revealing similarities among the two education levels. Available at the Biblioteca do Livro Didático of the Faculty of Education of the University of São Paulo, the documents provided relevant traces of the practices in the classroom, partially clarifying the social, historical, and pedagogical context of the period in question. We conclude that the teaching of the mother tongue, within the schooling process, was thought of and mobilized as an ally to a civilizing project that intended to inculcate certain values and behaviors considered essential to the nation.

Keywords: school disciplines; portuguese; textbook; civilization project

Resumen

Este artículo tiene como objetivo investigar el propósito curricular dentro de la asignatura portugués en Brasil entre los periodos de 1930 a 1971, basándose en el estudio de libros didácticos. Se buscó hacer una periodización inscrita de forma directa en la historia de la educación brasileña, con el marco inicial en 1930, año de creación del Ministerio de Educación y Salud Pública, en el que hubo un creciente control estatal en relación a la educación y la producción de libros didácticos en el país, y el marco final con la Ley de Directrices y Bases de la Educación (Ley 5692/1971) que ocasionó cambios significativos en la educación básica. A partir de los abordajes teórico-metodológicos de la historia cultural se buscó aclarar los discursos presentes en los libros escolares de la asignatura Portugués que fueron escogidos en la enseñanza primaria y secundaria brasileña, evidenciando las similitudes de cada curso. Disponibles en la Biblioteca del Libro Didáctico de la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo, las fuentes brindaron relevantes nociones acerca de las prácticas docentes en clase y esclarecieron en cierta medida el contexto social, histórico y pedagógico del periodo analizado. Fue posible concluir que la enseñanza de la lengua materna dentro del proceso mismo de escolarización era pensada y movilizada como aliada de un proyecto civilizador que pretendía inculcar algunos valores y comportamientos considerados esenciales para la nación.

Palabras clave asignatura escolar; portugués; libro didáctico; proyecto civilizador

INTRODUÇÃO

O livro didático é um importante documento, que revela as práticas escolares de um dado momento histórico e denuncia um conjunto de motivações pedagógicas, didáticas, sociais e políticas de determinada sociedade. O livro didático pode assumir diversas funções, que variam de acordo com as circunstâncias (Choppin, 2004). Tal impresso elucida os embates que acontecem no campo da educação e põe em evidência intenções pedagógicas e curriculares, métodos de ensino, indícios de uso, transformações e inovações tecnológicas. É também um guia norteador de conteúdos, que oferece subsídio ao professor ao planejar e executar suas aulas.

Como expoente privilegiado da cultura escolar, este artefato veicula saberes, condutas e comportamentos considerados essenciais às gerações mais jovens. Por estar inserido em complexas relações de poder, não é qualquer autor que pode escrevê-lo nem qualquer conhecimento que pode ser disseminado em suas páginas. Ao passo que determinados conhecimentos são reconhecidos como imprescindíveis ao ensino de crianças e jovens, outros são invalidados (Marin, 2020).

Com o presente artigo, tem-se o objetivo central de investigar as finalidades da disciplina escolar Português no Brasil, a partir do estudo de livros didáticos utilizados no ensino primário e no ensino secundário nas escolas brasileiras. Buscamos compreender que tipos de discursos perfazem os livros escolares do período, quais os conhecimentos veiculados e qual a intencionalidade por trás dessas escolhas, sejam elas explícitas ou implícitas. Optamos pelo estudo do período entre 1930 e 1971, em que se percebe um progressivo controle estatal sobre a educação e sobre a produção de livros didáticos no país, materializado pela criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (1930) e a implementação da Comissão Nacional do Livro Didático (1938). Como marco final do período estudado, consideramos a Lei nº 5.692 de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil, 1971), que trouxe consequências diretas para a configuração da instituição escolar e, consequentemente, da disciplina Português.

O referencial teórico-metodológico da história cultural foi o caminho pelo qual foi trilhada a escrita deste texto. Os dados foram coletados por meio da pesquisa documental, centrada sobretudo nos livros escolares. Primeiramente, foi realizado um levantamento na Biblioteca do Livro Didático da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo das obras didáticas de autores que, pela quantidade significativa de livros e edições publicadas, pudessem ser considerados fontes fundamentais para o estudo do período em questão. Foram selecionadas ao menos duas obras de diferentes autores por década, mais especificamente 16 documentos, sendo nove livros de leitura destinados ao ensino primário e sete antologias dirigidas ao ensino secundário. Tais obras selecionadas como fonte documental estão elencadas na tabela 1. Os prefácios, as cartas e as notas aos leitores, bem como os conteúdos culturais apresentados foram considerados como importantes indícios das intenções, usos e práticas adotadas em sala de aula.

Tabela 1 Livros didáticos selecionados como fonte documental 

AMORA, Antônio Soares; SÁFADY, Naief. Português: antologia e gramática - Curso ginasial 2ª série. 2. ed. Editora Paulo de Azevedo, 1961.
BARROS, Enéas Martins de. Curso de Português: 2ª série. 16. ed. São Paulo: Editora do Brasil, 1957.
BRUNO, Aníbal. Língua portuguesa: para a 2ª série ginasial. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.
BUENO, Francisco Silveira. Páginas literárias: 1ª e 2ª séries ginasiais masculinas. 3. ed. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & CIA, 1947.
CARVALHO, Felisberto Rodrigues P. Quarto livro de leitura. 40. ed., v. 4. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1943.
CORRÊA, G. Guimarães. O programa de vernáculo: Curso ginasial 2ª série, 1. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1963.
COSTA, Aída. Segundo livro de Português: 2ª série do curso ginasial. 3. ed. São Paulo: Editora do Brasil, 1951.
JÚNIOR, José Cretella. Português para o ginásio: antologia, vocabulários, exercícios, biografias e comentários para as primeira e segunda séries. 28. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953.
KÖPKE, João. Segundo livro de leituras morais e instrutivas: para uso das escolas primárias. 77. ed., v. 2. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1948.
LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. Pedrinho e seus amigos: 2º livro. 6. ed., v. 2. São Paulo, SP: Melhoramentos, 1958.
SANTOS, Máximo de Moura. O pequeno escolar: segundo livro. 68. ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 1942.
SANTOS, Máximo de Moura. Seleta escolar: 4º livro. 9. ed., v. 4. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1957.
SODRÉ, Benedicta Stahl. Segundo livro Sodré: livro de leitura para a segunda série primária. 288. ed., v. 2. São Paulo, SP: Nacional; São Paulo Editora, 1964.
SODRÉ, Benedicta Stahl. Quarto livro Sodré: livro de leitura para a quarta série primária. 191. ed., v. 4. São Paulo, SP: Nacional; São Paulo Editora, 196-?.
SOUSA, Júlio de Faria e. Leitura para o terceiro grau. 7. ed. São Paulo, SP: Nacional, 195-?.
RICCHETTI, Henrique. Infância. 17. ed., v. 4. São Paulo, SP: Nacional; Distribuidora Paulista, 1947.

Fonte: as autoras

O presente artigo está dividido em três seções. A primeira apresenta brevemente a origem do ensino escolar da Língua Portuguesa no Brasil e as razões pelas quais a disciplina Português ascendeu no currículo do Ensino Básico no fim do século XIX. A segunda evidencia o contexto educacional inaugurado na década de 1930, caracterizado por um progressivo controle estatal sobre os livros didáticos. Por fim, a última seção apresenta coleções e livros escolares que elucidam as finalidades do ensino da Língua Portuguesa, tanto no ensino primário quanto no secundário, no período entre 1930 e 1971.

A ORIGEM DO ENSINO ESCOLAR DE LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

Como reforçam alguns autores (Chervel, 1990; Julia, 2001; Viñao Frago, 2008), a cultura e o saber produzido pela escola são resultados de disputas de diversos setores. Chervel (1990) indica que a escola não é reprodutora passiva de uma cultura que lhe é externa, mas produz uma cultura singular e original. A instituição escolar desempenha a função de educar e formar as crianças e jovens, ao mesmo tempo que cria a disciplina escolar - esse “vasto conjunto cultural” (Chervel, 1990, p. 200) - que se infiltra sorrateiramente e modifica a cultura da sociedade global.

O ensino da língua portuguesa passou por modificações profundas ao longo de sua história. No contexto escolar europeu, as línguas nacionais não tinham espaço assegurado para seu ensino até o século XVI, já que o latim era mais valorizado como bem cultural, de modo que preponderava na formação básica das classes dominantes europeias (Razzini, 2000). Tal cenário era semelhante no Brasil e se modifica somente a partir do final do século XIX. Até então, não havia propriamente um componente curricular destinado exclusivamente ao ensino da língua vernácula. Ainda que os poucos e privilegiados meninos que iam à escola aprendessem a ler e escrever em português, este aprendizado era unicamente instrumento para a alfabetização e, tão logo atingissem o secundário, deveriam valer-se do latim (Soares, 1996).

Soares (1996) atribui algumas razões para a desvalorização da língua vernácula e a consequente ausência de uma disciplina específica para seu ensino. A primeira delas está relacionada ao uso que se fazia da língua portuguesa nos primeiros tempos do país. O português não era o idioma que prevalecia dentre as outras duas línguas faladas no Brasil naquele período: eram utilizadas a língua geral, que abrangia várias línguas indígenas, e o latim, utilizado no ensino secundário e superior dos jesuítas. Além disso, embora já houvesse algumas gramáticas publicadas desde o século XVI, o português ainda não estava consolidado como área de conhecimento, isto é, desenvolvida o suficiente para gerar uma disciplina escolar. Em síntese,

não havia nem condições internas ao próprio conteúdo [...] nem condições externas a ele - seu uso apenas secundário no intercurso verbal, a precariedade de seu estatuto escrito, na incipiente sociedade brasileira, enfim, seu pouco valor como bem cultural - para que o português adquirisse estatuto de disciplina curricular (Soares, 1996, p. 159).

Este contexto começa a se alterar nos anos 1750, quando o marquês de Pombal implantou reformas no ensino de Portugal e de suas colônias. O estadista português não somente proibiu o ensino em tupi, mas oficializou a Língua Portuguesa como única língua do Brasil, o que, indubitavelmente, contribuiu para a consolidação do Português no país. Ao criticar a maneira pela qual a metrópole tratara a questão linguística até então, Pombal evidencia suas intenções com a nova política:

Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indispensável, que este é um meio dos mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes e [...] lhes radica também o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo Príncipe1 (Cunha, 1985, p. 79-80 apudSoares, 1996, p. 159).

O ensino da língua portuguesa assume então uma função explicitamente política - a de civilizar e garantir a unificação e a uniformidade cultural de um país com extensas dimensões. Assimilar o objetivo inicial que funda essa disciplina escolar é condição sine qua non para compreender as diferentes configurações assumidas pela disciplina português, desde os primórdios de seu ensino até os dias atuais, tanto no primário quanto no secundário.

O tema da nacionalidade passa a destacar-se, especialmente após a Proclamação da República, como uma preocupação estatal que cabe à escola - logo, também à disciplina português - contribuir significativamente, senão solucionar. Nessa perspectiva, o professor Hemetério dos Santos, da Escola Normal do Distrito Federal enfatiza o que se esperava da disciplina em artigo publicado na Revista Escolar do Órgão da Directoria Geral da Instrução Pública (Volume II) de 1928:

Como só a língua pode nos firmar a unificação nacional, o Governo Federal e os Administradores dos Estados devem despender com a instrução primária o melhor de seus cuidados, não só nas escolas, mas tambem em todas as aggremiações sociaes o carinho pela boa linguagem, que nisto está a primeira e imperiosa defesa da Patria (Revista Escolar, 1928, p. 26-27).

Ao longo de sua história, a disciplina escolar português passa a ganhar força no currículo do ensino primário e secundário à medida que a língua vernácula passa a ser considerada uma “[...] força que tem que ser politicamente considerada” (Eagleton, 2011, p. 40). Em outras palavras, começa-se a ensinar a língua materna com uma intencionalidade explícita voltada para a formação do cidadão brasileiro, mais do que para o aprendizado da gramática ou do bem falar.

O CONTEXTO EDUCACIONAL E O CONTROLE SOBRE O LIVRO DIDÁTICO NO BRASIL

No Brasil, a década de 1930 foi marcada por um processo centralizador decisivo na constituição de um sistema de ensino básico. Embora a instituição escolar tenha sido o emblema da nova ordem e do progresso durante a instauração da República (Carvalho, 2011, p. 23), após quarenta anos ainda não se podia afirmar que havia um sistema único de ensino estruturado nacionalmente. Com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública em 1930, contudo, tal cenário começa a se modificar gradativamente.

Ao procurar responder os motivos que levaram à criação de um Ministério da Educação, o então presidente da Associação Brasileira de Educação (ABE)2, professor Ferdinando Laboriau, enfatiza a nacionalidade durante a Primeira Conferência Nacional de Educação em 1927:

Com o fim de manter a unidade patria por meio de um plano nacional de educação, completa: “de todos os magnos problemas nacionaes, o da educação é, sem dúvida, o de maior alcance, porque é pela educação que se formará a nossa nacionalidade, actualmente ainda imprecisa, e que é mais um agglomerado heterogeneo do que um todo harmonico” (Revista Escolar, 1928, p. 235).

A escola assume a responsabilidade de formar a nacionalidade brasileira e dar ao povo uma direção (Abud, 1998). Tal intento fica ainda mais evidente na década de 1940, quando são publicadas as leis orgânicas do ensino. Além de ter como finalidade a elevação do nível de conhecimentos úteis à vida na família, à saúde e à iniciação no trabalho, o ensino primário tinha a principal função de “[...] proporcionar a iniciação cultural que a todos conduza ao conhecimento da vida nacional, e ao exercício das virtudes morais e cívicas que a mantenham e a engrandeçam, dentro de elevado espírito de Naturalidade humana” (Brasil, 1946). Enquanto isso, o ensino secundário, com público bastante restrito e elitizado, até então com função exclusivamente propedêutica, passa a ter como finalidade prosseguir com a obra educativa iniciada no primário, conduzindo os adolescentes à uma formação integral, que permitisse “acentuar e elevar, na formação espiritual dos adolescentes, a consciência patriótica e a consciência humanística” (Brasil, 1942).

A preocupação com os saberes úteis à vida em sociedade e ao trabalho verificada nos textos oficiais provoca mudanças na organização do currículo do ensino primário. A influência da Escola Nova3 se nota no programa curricular, uma vez que passam a constar, além das disciplinas tradicionais, disciplinas que visavam modelar o indivíduo, adequando-o à divisão econômico-social do trabalho. Isso é acentuado no ensino secundário, já que, para o Ministro da Educação do Governo Vargas, Gustavo Capanema, “o secundário era o nível por excelência destinado a formar os futuros cidadãos em sua consciência patriótica. Educar para a sociedade foi interpretado como educar para a nação” (Veiga, 2007, p. 292 apudFreitas, 2011, p. 216). Dentro deste contexto sociopolítico, o ensino secundário era responsável por preparar os filhos da elite, isto é, aqueles que seriam, em um futuro próximo, os indivíduos que conduziriam o povo e a nação. Daí decorre a função específica da escola secundária que se alia ao processo civilizador: enquanto a educação primária alcançava um público mais amplo e visava dar coesão social a um país diverso e desigual, estabelecendo valores e padrões de comportamento comuns, a educação secundária fornecia aos seus privilegiados alunos um critério conveniente para justificar a hierarquia e estratificação social existente (Hobsbawm; Ranger, 1997).

Juntamente com o empenho pelo estabelecimento de um sistema educacional no âmbito nacional, surge uma legislação mais firme, com o objetivo de controlar a produção, circulação e adoção de obras didáticas nas escolas em todas as etapas de ensino. Afinal, no contexto brasileiro, em que a obra escolar assume função organizadora das práticas em sala de aula, ela é “[...] parte integrante de um sistema de ensino institucionalizado” (Bittencourt, 2008, p. 23). Tal material tem como uma de suas características intrínsecas a frequente interferência sofrida pelas esferas política, social, econômica, entre outras. Contudo, é também detentor de um poder inegável: para que uma determinação curricular consiga se consolidar, é fundamental que surjam impressos pedagógicos que a incorporem (Gatti Jr., 1997).

Durante a Era Vargas, especialmente no período do Estado Novo (1937-1945), são criadas políticas que tratam exclusivamente da regulação de livros didáticos. A convicção de que o ensino formal promoveria a afirmação e a constituição da nacionalidade e serviria de legitimação para o governo varguista que ensejou a padronização dos livros escolares. Em 1938, é criada a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), responsável, a partir de 1º de janeiro de 1940, por aprovar obras para uso nas escolas, e estimular a produção editorial. É fundamental para o que procuramos evidenciar neste artigo perceber os critérios que impediriam a aprovação de uma obra no período em questão. A título de exemplo, seria vetado o livro escolar que apresentasse erros gramaticais ou que estivesse escrito em “linguagem defeituosa”. Percebe-se, no entanto, a atenção não tanto com o conteúdo propriamente pedagógico da obra, mas com o conteúdo político-ideológico. Conforme o Decreto-Lei nº 1.006, de 1938, não seria autorizado o impresso:

a) que atente, de qualquer forma, contra a unidade, a independência ou a honra nacional;

b) que contenha, de modo explícito ou implícito, pregação ideológica ou indicação da violência contra o regime político adotado pela Nação;

[...]

j) que atente contra a família, ou pregue ou insinue contra a indissolubilidade dos vínculos conjugais;

k) que inspire o desamor à virtude, induza o sentimento da inutilidade ou desnecessidade do esforço individual, ou combata as legítimas prerrogativas da personalidade humana (Brasil, 1938).

O livro didático deveria, pois, inspirar o sentimento de amor à pátria, o apreço às virtudes e induzir o esforço individual (Razzini, 2000). Intelectuais e professores que se propuseram a escrever obras escolares se empenharam para atender a essas expectativas: produzir uma obra formadora de um caráter compatível com a nação. Esta atenção para o discurso veiculado nos livros se justifica também por “[...] uma concepção iluminista sobre o poder da palavra impressa, entendendo-se que o texto lido era integralmente apreendido pelo leitor” (Bittencourt, 1996, p. 93). Logo, a leitura poderia tanto engrandecer o espírito e imprimir no estudante comportamentos que fariam dele um cidadão útil à pátria, quanto corromper o seu coração ainda ingênuo de jovem aprendiz.

A legislação educacional da década de 1950 aponta para a manutenção da perspectiva dualista de educação, caracterizada por um sistema de ensino específico para o povo e outro para as elites (Beisiegel, 2009). Na década de 1960 houve uma considerável expansão das matrículas no ensino primário e expansão do ensino ginasial. O fim do exame de admissão ao ginásio e a expansão do ensino obrigatório de quatro para oito anos intensificou o processo de democratização da escola, alterando consideravelmente o perfil socioeconômico do alunado e trazendo consequências diretas ao Ensino Básico.

Entre 1930 e 1971, a análise dos programas curriculares de Português mostra que os livros didáticos deveriam contribuir para a formação e simultaneamente servir como exemplo do uso correto da Língua Portuguesa. Um livro escolar adequado e acompanhado de uma prática docente que obedecesse às prescrições oficiais e curriculares formaria as crianças e os jovens para contribuir ao progresso do país. É isto que os livros se propunham a realizar: “[...] incutir na alma do estudante as qualidades que a Pátria e a Religião exigem de seus filhos” (Bueno, 1947). Cabia à escola e à leitura tratar de fazer penetrar no ânimo dos jovens determinados conhecimentos, valores e condutas considerados necessários ao indivíduo e a um país cuja nacionalidade buscava se construir.

O LIVRO ESCOLAR E A FORMAÇÃO DO HOMEM CIVILIZADO

Alicerçada na ordem e vigilância, a escola moderna foi se consolidando como “[...] una agencia patriótica de nacionalización de los sujetos acogidos a su implacable disciplina” (Escolano Benito, 2017, p. 234). Por meio do confinamento cada vez mais prolongado das crianças, a infância foi, aos poucos, se convertendo em um público “[...] a tutelar, controlar e instruir, al tiempo que en un sector a socializar conforme a los nuevos valores de ciudadanía en que se ha tratado de cimentar la nación y el mismo Estado” (Ibidem, p. 234).

A leitura empreendida pela escola pretende, ao mesmo tempo, instruir e civilizar as crianças e os jovens. Busca-se, a partir dos primeiros anos, garantir a leitura de textos convenientes aos espíritos em desenvolvimento. Alguns temas são tratados recorrentemente nos livros dirigidos ao ensino primário, como as maravilhas da terra brasileira, o apreço aos homens que contribuíram à independência e a necessidade de auxiliar no engrandecimento do país, por meio do estudo e do trabalho. O aluno deveria estar preparado para cumprir com as suas obrigações cívicas, pois “depois dos pais, que recebem o nosso primeiro grito, o solo pátrio recebe os nossos primeiros passos” (Santos, 1957, p. 107). Honrar a pátria é, pois, a missão de todos os brasileiros (Sodré, 196-?). Como assinalado por Ricchetti (1947), é imperioso também que os pequenos se orgulhem das dádivas do Brasil, para que possam cooperar com o seu sucesso no futuro.

Os personagens dos livros escolares analisados são disciplinados, trabalhadores e capazes de qualquer sacrifício pelo seu país. Por intermédio da leitura dos textos, as crianças se tornariam cidadãos fortes, honrados e virtuosos - semelhantes aos personagens das anedotas e dos contos apresentados nos impressos. É como se os ensinamentos, à medida que fossem lidos, seriam inculcados gradativamente nas almas dos estudantes.

Outro ponto que merece destaque é a crença difundida de que um aluno que estuda suas lições é um patriota que contribui ao engrandecimento de seu país e, portanto, a dedicação às tarefas escolares é reforçada de maneira constante nas fontes. As crianças que não cumprem com seus deveres sofrem represálias e, somente quando se arrependem, podem ser perdoadas, como mostram as lições de Pedrinho e seus amigos, de Lourenço Filho (1958). As atividades escolares são também uma forma de trabalho.

Percebe-se a importância voltada para o trabalho desde os primeiros anos. Na obra de Sodré, destinada à segunda série, a autora enfatiza o que o Brasil precisa para ser a primeira nação do mundo:

Primeiramente precisa de brasileiros fortes. Sem força e sem saúde quase nada podemos fazer pela grandeza da Pátria. [...]

Em segundo lugar, o Brasil para ser grande precisa de brasileiros cultos. Todo brasileiro precisa de instrução. Por isso, vocês que são a esperança da Pátria, os cidadãos que amanhã irão governar a nossa Terra, precisam estudar bastante, mas estudar com vontade, desejando ser brasileiros de valor.

Vocês agora já sabem que o brasileiro precisa ser forte, culto e honesto. Mas só isso não basta. É necessário também que seja trabalhador. [...]

Crianças. Lembrem-se de que sem trabalho nada de bom obteremos. Vocês todos, como bons brasileiros que desejam o progresso do Brasil, vão comigo repetir estas palavras: Esforçar-me-ei por ser um brasileiro forte, culto, honesto e trabalhador (Sodré, 1964, p. 133-135).

As crianças deveriam estar preparadas para as tarefas relacionadas ao trabalho que exercerão no futuro e, para tanto, devem cuidar da própria saúde. Os documentos se voltam para a necessidade de acordar cedo, escovar os dentes, calçar sapatos, praticar esportes e alimentar-se com regularidade, afinal cuidar da saúde é preparar o homem do amanhã para o trabalho (Sousa, 195-).

Foi possível notar que, como homogeneizadoras do saber escolar, as obras didáticas buscavam assegurar determinadas atitudes em relação aos professores e suas turmas. Cabia aos livros didáticos propiciar um repertório nacional comum aos estudantes, além de inculcar princípios necessários ao convívio social tanto no primário, quanto no secundário.

A partir de 1930, o ensino secundário assume uma importante finalidade, que é exatamente dar prosseguimento aos estudos do primário e formar integralmente o jovem. O ciclo que antes tinha função exclusivamente propedêutica, ou seja, que fazia com que os alunos obtivessem aprovação nos exames preparatórios, compromete-se oficialmente com a formação do cidadão iniciada com as crianças da mais tenra idade. Com acesso ainda bastante restrito em relação ao primário, compreender o que se ensinava aos filhos da elite no ginasial em termos de visões de mundo, valores e comportamentos, pode nos fornecer elementos para a reflexão acerca dos mecanismos de reprodução e de autoconservação da classe dominante (Razzini, 2000).

Um dos pontos centrais que marcam esta etapa de ensino é a dedicação para com a Educação Moral e Cívica, que embora já existisse na década de 1930, ganha força como disciplina escolar e se estende ao primário em 1969. Todos os programas curriculares no ginasial deveriam considerar a Educação Moral e Cívica. Assim, disciplinas escolares e o próprio “processo da vida escolar” - entendido da maneira mais ampla possível - deveriam proporcionar uma oportunidade para que ocorresse este aprendizado, de maneira a elevar a dignidade e o “sentimento de brasilismo” de cada jovem que passasse pelo ensino secundário brasileiro (Brasil, 1948).

Além disso, o programa de português, história e geografia - disciplinas que, juntas, formavam o tripé da nacionalidade - revela-se central no currículo precisamente por serem essas matérias as principais responsáveis por atingir a finalidade da escola naquele período. Por consequência, a crescente ascensão do português e sua literatura no secundário, iniciada na década de 1870, ganha força com o empenho em tornar o ensino mais científico e menos humanista a partir da Proclamação da República e atinge seu apogeu quando, em 1942, a Literatura passa a ser requisito obrigatório para o ingresso em todos os cursos superiores.

Na década seguinte, de forma geral, os programas de Português indicavam a manutenção das diretrizes estabelecidas durante o Estado Novo (Razzini, 2000). Tal como na década anterior, o Português estava aliado à formação integral do adolescente, focado tanto na consciência humanística quanto na consciência patriótica. No Plano de Desenvolvimento dos Programas Mínimos do Ensino Secundário de Português no Ginasial4, a leitura aparece com dois objetivos, sendo um deles predominante:

Com esse caráter predominantemente educativo prosseguirá a leitura por todo o curso secundário; mas, tão cêdo quanto possível, começará o professor a tirar dela tudo o que seja necessário para a cultura intelectual dos alunos, esforçando-se por estimular neles o gôsto literário e exigindo-lhes, cada vez mais, expressão correta e elegante, não só do falar, senão também do escrever (Junior, 1953, p. 11, grifos nossos).

Ao longo do curso secundário, a leitura deveria ser explorada sobretudo em seu caráter educativo. Tal objetivo estava refletido diretamente nas escolhas de excertos literários a serem publicados nas seletas e compêndios que seriam apresentados aos jovens. Deveriam ser selecionados os bons exemplos de uso da língua vernácula, além de textos e excertos que mostrassem uma narrativa da realidade social, que lhes conferissem um repertório, bem como modelos analíticos de interpretação da realidade autorizados pelas gerações mais velhas (Boto, 1997). Por isso, temáticas como terra natal, escola, família, fatos heróicos e virtudes cívicas deveriam ser o assunto principal dos textos publicados nas obras escolares.

É importante destacar, ainda, que somente seria possível que uma obra didática atendesse a tais expectativas se fossem “genuinamente” nacionais. No período aqui analisado, os livros escolares adotados já eram, em sua grande maioria, escritos por brasileiros, o que permitia que temas nacionais se materializassem nesses impressos e, consequentemente, em práticas escolares. Algumas décadas antes, entretanto, esta não era uma realidade. Como apresenta José Veríssimo, em seu diagnóstico datado de 1890, eram os escritores estrangeiros que fizeram a educação da mocidade: “Eram portuguezes e absolutamente alheios ao Brazil os primeiros livros que li. [...] ainda hoje a maioria dos livros de leitura, si não são estrangeiros pela origem, são-no pelo espírito” (Veríssimo, 1906, p. 4-5). Nas décadas seguintes colheria-se o fruto de uma demanda e de um esforço de um grupo de educadores comprometidos com a nacionalização do livro didático.

Autores literários como Olavo Bilac, Visconde de Taunay, José de Alencar, Coelho Neto, Gustavo Barroso, Machado de Assis, Raul Pompeia e Afonso Celso fazem parte do corpus de autores clássicos que tiveram diversos excertos publicados nas obras dirigidas ao ensino secundário. Seus trechos não apenas forneciam à juventude modelos do bem falar e do bem escrever da Língua Portuguesa, mas também direcionavam o olhar para a construção de visões de mundo específicas. Dessa forma, a escola cumpria com sua tarefa fundamental: conferir prioridade à transmissão sistemática e institucional de formas de pensar e se comportar.

Por volta de 1943, Silveira Bueno, catedrático de Filologia Portuguesa da Universidade de São Paulo, publicou coleções de acordo com a Lei Orgânica do Ensino Secundário. Nota-se, na organização das obras, a divisão por trechos que tivessem como temáticas exatamente aquelas prescritas pelo Decreto-Lei nº 4.244, de 1942: Família, Pátria e Escola. Em outras palavras, Silveira Bueno organizou sua coletânea pelas mesmas temáticas apresentadas na normativa, o que se mostrou uma tendência comum neste período.

Embora essa divisão possa, em uma primeira análise, sugerir que as temáticas pouco se relacionam entre si, fica nítido pelos textos literários apresentados o quão interligadas são. Um texto que trata da escola, por exemplo, costuma trazer também elementos da instituição familiar ou até da nação. Em Páginas literárias (1947), obra destinada às 1ª e 2ª séries ginasiais masculinas, parte-se, não por acaso, da Família, do lar, descrito em excerto publicado por Antero de Figueiredo como “único conforto inalterável da vida” (Bueno, 1947, p. 13). Só então, são apresentados os excertos da Pátria, caracterizada por Rui Barbosa como “a família amplificada” que tem os mesmos elementos orgânicos: “a honra, a disciplina, a fidelidade, a benquerença, o sacrifício” (Ibidem, p. 136). A escola também é, pelo livro e pela escola, apresentada à mocidade. É, segundo trecho de Basílio de Magalhães, o lugar de onde a luz irradia e onde o nacionalismo é plantado nos corações. Nas palavras do autor:

A escola é o foco donde a luz irradia, a luz que aclara os tempos e as nações [...]Pois onde é que o soldado balbuciao nome “Pátria”, que enche os corações? (Magalhães, [s.d.] apud Bueno, 1947, p. 71).

A instituição escolar seleciona partes do mundo e as apresenta para os sujeitos em formação (Boto, 2010). A escola também trata de mostrar à criança e ao jovem normas e comportamentos a serem repetidos, isto é, a escola apresenta o que se espera do adulto que está se tornando. Nessa direção, Gilberto Amado ([s.d.] apud Bueno, 1947, p. 37) ganha espaço na obra de Silveira Bueno e destaca que homens de caráter são “os ardentes, os iluminados, os que não se temem do perigo, os que não pactuam com as injustiças, nem dissimulam a verdade, fugindo ao sacrifício das reivindicações perigosas [...]”.

Silveira Bueno (1943) publica a coleção Páginas seletas, destinada às classes ginasiais femininas. Esse ensino deveria ter uma metodologia específica, que tivesse em mira “a natureza da personalidade feminina e bem assim a missão da mulher no lar” (Brasil,1942). Era esta uma das razões que justificavam a permanência da obrigatoriedade de classes femininas exclusivas. Bueno então vê nesta determinação, na Livraria Acadêmica Saraiva, uma oportunidade editorial que se concretiza em 1943 em Páginas seletas. Compatível com a alma feminina, a obra, ainda que publicada pelo mesmo autor e editora, propõe às moças uma educação distinta da proposta aos moços em Páginas literárias. A nação e família são também temas norteadores para as classes femininas. No entanto, os exercícios de composição e os textos literários indicam que, para a mulher, os valores e comportamentos esperados são outros. Em ambas as obras, o mundo é apresentado à mocidade. À mulher, é apresentado o mundo das mulheres. O que se esperava de uma mulher exemplar? Almeida Garrett, ao enaltecer D. Maria Teresa Midosi e Mazarem após seu falecimento, esclarece às meninas:

Todas as qualidades de uma senhora exemplar se davam nela: religiosa sem hipocrisia, amavel sem afetação, instruida sem pretenções. [...] escolheu viver para si, entregar-se às modestas ocupações do lar doméstico (Garrett, [s.d.] apudBueno, 1943, p. 140).

A partir de uma prática semelhante à trazida para as classes masculinas, a lição buscava fazer penetrar no espírito da jovem o texto lido. Para tanto, acreditava-se que “obras modernas” deveriam ser priorizadas, pois provocariam “emoções sinceras” nos jovens, que passariam a relacionar o lido às suas vidas (Razzini, 2000). Os exercícios de composição como as propostas em Páginas seletas - “a vaidade das mulheres”, “o recato é o mais belo enfeite de uma mulher” e “a má impressão que nos dá a mulher que fuma” - tinham como objetivo central a inculcação efetiva de valores, normas e códigos.

O que procuramos apresentar nesta seção foi o fato de que, no período estudado, a literatura, tanto no primário quanto no secundário, foi mobilizada com o intuito de apresentar à infância e à juventude o Verdadeiro, o Bom, o Belo (Candido, 1999), conforme o interesse de determinados grupos sociais. As intenções e as finalidades da produção dos livros escolares são nítidas, e mostram o que era considerado fundamental de ser lido, sabido e conhecido entre 1930 e 1971 no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio do estudo de 16 obras escolares, o presente texto pretendeu elucidar as aproximações entre o ensino de Português no primário e no secundário no período de 1930 a 1971 no Brasil, de maneira a contribuir com o campo de História da Educação e, em especial, com a história da disciplina escolar Português.

Foi possível perceber quais saberes são reconhecidos e validados pela instituição escolar. Pautado nos parâmetros curriculares, na legislação educacional, nos pressupostos oficiais e nos valores da sociedade, tal impresso evidencia o que era considerado necessário de ser lido e conhecido pelas crianças e pelos jovens. É por meio do aprendizado da disciplina Português que as crianças e os adolescentes do Brasil aprenderiam a falar e escrever correta e adequadamente. Além disso, valores considerados fundamentais, como a obediência, a moral e o civismo também eram conteúdo a ser ensinado.

O ensino da disciplina Português assumiu um papel político e, particularmente nos anos entre 1930 e 1971, objetivou unificar e uniformizar uma população dispersa em um território extremamente extenso, por meio do uso de livros didáticos. Consequentemente, foi possível compreender que a obra escolar é um dispositivo de poder, na medida em que é concebida para educar, aculturar e civilizar a população, sendo pedagogicamente adequada aos objetivos e fins a que se destina.

1O texto é do Diretório de 3 de maio de 1757, em que são determinadas medidas aplicadas inicialmente no Pará e no Maranhão, estendidas posteriormente a todo o Brasil, em 17 de agosto de 1758.

2A Associação Brasileira de Educação foi criada em 1924 por educadores, cientistas e intelectuais com o objetivo de aperfeiçoar a educação brasileira.

3Movimento de renovação do ensino que ganhou força no Brasil durante a primeira metade do século XX. Além de defender os princípios da escola pública, gratuita e laica, “buscava organizar a escola como um meio propriamente social para tirá-la das abstrações e impregná-la de vida [...] propiciando a vivência das virtudes e valores morais” (Saviani, 2011, p. 245). O movimento culminou na publicação, em 1932, do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, redigido por Fernando de Azevedo e assinado por diversos educadores brasileiros.

4Publicado no Diário Oficial da União, na sexta-feira, 22 de fevereiro de 1952.

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Recebido: Fevereiro de 2023; Aceito: Outubro de 2023

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