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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.25 no.76 Rio de Janeiro  2024  Epub 07-Mar-2024

https://doi.org/10.12957/teias.2024.77756 

Artigo de Demanda Contínua

A RELAÇÃO ENTRE DOCENTE DE MATEMÁTICA E INTÉRPRETE DE LIBRAS: uma análise a partir de subjetividades e relações de poder

THE RELATIONSHIP BETWEEN MATHEMATICS TEACHER AND LIBRAS INTERPRETER: an analysis based on subjectivities and power relations

LA RELACIÓN ENTRE EL PROFESOR DE MATEMÁTICAS Y EL INTÉRPRETE DE LIBRAS: un análisis basado en subjetividades y relaciones de poder

Rayssa Feitoza Felix dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0001-5179-6449; lattes: 1733022541716873

Daniella Rodrigues de Farias2 
http://orcid.org/0000-0002-0288-6699; lattes: 1658117841838353

1Universidade Federal de Pernambuco

2Universidade Federal de Pernambuco


Resumo

A presente investigação se insere no estudo da relação entre dois profissionais que participam diretamente no processo de ensino de matemática a estudantes surdos em escolas regulares, a saber, o docente de matemática e o intérprete de Libras. O objetivo do estudo consiste em analisar as relações constituídas entre docentes de matemática e intérpretes de Libras. Para fundamentar os conceitos-chaves da pesquisa optouse pela concepção pós-estruturalista que vêm, assim, conferir potência às discussões através da apreciação das historicidades, dos devires em jogo. O lastro teórico da pesquisa se firma, portanto, numa rede entre autores da abordagem pós-estruturalista, estudiosos da inclusão e educação de surdos, dentre eles, Deleuze (2006), Quadros (1997). Esta investigação possui abordagem qualitativa e tem como cerne dos procedimentos metodológicos a observação direta em aulas de matemática que dispõem de intérpretes de Libras e entrevistas semiestruturadas com os professores de matemática e os intérpretes de Libras das salas de aula observadas. Após a coleta de dados, realizou-se a análise de discurso a partir do contato com esse universo que estuda o discurso e o percebe como a palavra em movimento, em curso. Percebemos durante a pesquisa, a provisoriedade de pessoas e contextos e, assimetrias em saberes e poderes evidenciados nas relações de poder estabelecidas entre os participantes.

Palavras-chave: intérprete de Libras; professor de matemática; relação profissional

Abstract

The present investigation is part of the study of the relationship between two professionals who directly participate in the process of teaching mathematics to deaf students in regular schools, namely, the mathematics teacher and the Libras interpreter. The aim of the study is to analyze the relationships established between mathematics teachers and Libras interpreters. To substantiate the key concepts of the research, the post-structuralist conception was chosen, which thus gives power to the discussions through the appreciation of the historicities, of the becomings at stake. The theoretical basis of the research is established, therefore, in a network between authors of the post-structuralist approach, scholars of inclusion and education of the deaf, among them, Deleuze (2006), Quadros (1997). This investigation has a qualitative approach and has as its core methodological procedures direct observation in mathematics classes that have Libras interpreters and semi-structured interviews with mathematics teachers and Libras interpreters in the observed classrooms. After data collection, discourse analysis was carried out based on contact with this universe that studies discourse and perceives it as a word in motion, in progress. We noticed during the research, the temporary nature of people and contexts, and asymmetries in knowledge and powers evidenced in the power relations established between the participants.

Keywords: Libras interpreter; maths teacher; professional relationship

Resumen

La presente investigación se enmarca en el estudio de la relación entre dos profesionales que participan directamente en el proceso de enseñanza de las matemáticas a los alumnos sordos de las escuelas regulares, a saber, el profesor de matemáticas y el intérprete de Libras. El objetivo del estudio es analizar las relaciones que se establecen entre los profesores de matemáticas y los intérpretes de Libras. Para fundamentar los conceptos clave de la investigación, se optó por la concepción postestructuralista, que así da poder a las discusiones a través de la apreciación de las historicidades, de los devenires en juego. La base teórica de la investigación se establece, por tanto, en una red entre autores del enfoque postestructuralista, estudiosos de la inclusión y la educación de sordos, entre ellos, Deleuze (2006), Quadros (1997). Esta investigación tiene un enfoque cualitativo y tiene como núcleo procedimientos metodológicos la observación directa en clases de matemáticas que cuentan con intérpretes de Libras y entrevistas semiestructuradas con profesores de matemáticas e intérpretes de Libras en las aulas observadas. Luego de la recolección de datos, se procedió al análisis del discurso a partir del contacto con ese universo que estudia el discurso y lo percibe como una palabra en movimiento, en progreso. Notamos durante la investigación, la temporalidad de las personas y de los contextos, asimetrías de saberes y poderes evidenciadas en las relaciones de poder que se establecen entre los participantes.

Palabras clave intérprete de Libras; profesor de matemáticas; relación profesional

TECENDO AS IDEIAS INICIAIS

O presente trabalho emerge de inquietações oriundas de desafios que resultaram em ricas experiências e aprendizados diversos que designaram marcas e afetos. Elementos do pósestruturalismo e da filosofia da diferença, assim como estudos sobre as relações de poder tecerão a nossa base teórica e serão utilizados na análise dos dados produzidos por esta pesquisa. Ao remeter à díade docente e intérprete, Cunha (2016, p. 1, grifo nosso) afirma que “[...] estas relações podem apresentar problemas no que tange ao papel mediador, à ética profissional e à postura atitudinal - fatores observados pelos professores em relação aos intérpretes e vagamente discutidos nos artigos publicados recentemente”.

Propusemo-nos, neste trabalho, analisar as relações estabelecidas entre dois profissionais em sala de aula e, ao considerar a filosofia da diferença e o pós-estruturalismo, percebemos que onde pessoas se relacionam, há uma dinâmica de poder. Nesse sentido, Brígido (2013, p. 58-59) afirma que a “[...] filosofia sempre deu sua contribuição para se entender os mecanismos do poder. Até porque o poder é uma entidade presente na história da humanidade desde sempre. Onde há seres humanos, homens e mulheres que se relacionem e dividem os mesmos espaços, o poder se faz presente nessas relações”.

Foucault (1979, p. 161), por sua vez, trata o poder a partir de uma perspectiva diferente de como ele comumente é visto. O autor afirma: Temos que deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: “[...] ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade”.

Foucault (1979) trata o poder como algo positivo, passível de produção, além disso, ele percebe o poder como algo em movimento. O poder, para ele, não está em algum lugar, portanto, não é localizado ou concedido a alguém, mas, é exercido nas relações. Ao analisar o poder, Foucault (1979), sugere algumas precauções metodológicas. Numa delas, sugere:

[...] não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder - desde que não seja considerado de muito longe - não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos (Foucault, 1979, p. 103).

Para Foucault (1979, p. 84), as relações de poder não são negativas, pois delas surgem deslocamentos, novos saberes. Considerando que as relações de poder envolvem todas as pessoas e que os saberes são produzidos a partir dessas relações, todos produzem saber. “O poder, longe de impedir o saber, o produz”.

Nesses encontros em que as relações de poder insurgem, encontramos também em outras relações, como as de força, de fuga, chegando à ideia de subjetividade. Os encontros vividos são os mais diferentes possíveis e produzem efeitos os mais diversos. Uns encontros passam despercebidos, enquanto outros produzem efeitos que chegam a desorganizar o modo de viver até então conhecido, sendo, assim, fortes, marcantes e até violentos. (Mansano, 2009).

Um conceito relacionado é o de território que pode ser tanto um espaço onde se vive quanto um sistema, ou seja, o território, morada da subjetividade, se estende e se realiza em espaços imaginários: “[...] é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.” (Guattari, Rolnik, 1996, p. 323).

A desterritorialização consiste no exercício de deixar um território - subjetivamente habitado e, outrora, investido - e engajar-se, por intermédio do deslocamento de afetos e sentidos, noutros tempos e espaços ou (re)territorializar. Nesses movimentos, o sujeito se desterritorializa, se reterritorializa, subjetiva e sofre a ação de subjetivações outras. Esses movimentos são constantes e neles o sujeito se constitui e reconstitui, continuamente. A partir de Queiroz (2015, p. 137) “[...] podemos categorizar os tipos subjetivação da seguinte forma: Não perceber que está sendo subjetivado. Perceber, querer lutar contra as forças, mas não conseguir. Perceber e aceitar. Perceber, lutar contra as forças que o subjetivam e conseguir rejeitá-la”.

Nas escolas, podemos observar esses movimentos e as relações de poder a partir das relações que são estabelecidas nesse espaço. Em se tratando da educação de surdos, é nítida, a necessidade da atuação de intérpretes de Libras no contexto educacional contemporâneo, visto que, considerando a realidade das escolas brasileiras que têm pessoas surdas matriculadas nos diferentes níveis de escolarização, seria impossível, sem a presença de intérpretes de Libras, atender as exigências legais que determinam o acesso e a permanência do aluno na escola, considerando-se suas especificidades (Quadros, 1997).

Considerando, portanto, o contexto da educação de surdos, no qual há outro profissional em sala de aula além do professor, a saber o intérprete de Libras, surgem questionamentos que levaram a esta pesquisa, tais como, docentes de matemática e intérpretes de Libras trabalham, de fato, em conjunto e em prol do ensino da matemática a estudantes surdos? Estas pessoas têm desenvolvido uma parceria dentro e fora da sala de aula? É dedicado um tempo prévio às aulas que possibilite a troca de experiências e conhecimentos?

A partir desta perspectiva, elencamos como objetivo geral analisar as relações constituídas entre docentes de matemática e intérpretes de Libras, considerando neste processo, as suas subjetividades.

METODOLOGIA

Mediante o objeto da pesquisa, as relações estabelecidas entre o docente de matemática e intérprete de Libras em sala de aula, fora escolhida a abordagem qualitativa que, segundo Minayo (1995, p. 21), “[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes”. Esta opção deu-se pela compreensão de que o objeto da investigação não é um dado fixo, estático e neutro, porém, efetivamente construído sobre discursos e práticas que só podem ser acessados por intermédio de seus provisórios significados, incessantemente criados e reinventados em históricas relações entre as pessoas.

Os instrumentos utilizados à produção dos dados foram: a observação direta em salas de aula do ensino fundamental nos anos finais, de docentes de matemática e intérpretes de Libras e entrevistas semiestruturadas com tais participantes. Dentre os tipos de entrevista, optou-se pela semiestruturada, tendo-se em vista a compatibilidade com o objeto de estudo, uma vez que, possibilita compreender melhor a circulação de signos e sentidos, bem como os ditos e não ditos presentes nos discursos.

Os dados produzidos pelas entrevistas foram gravados em áudio e posteriormente transcritos para que fossem submetidos à análise de discurso (AD) escolhida por compor o conjunto de teorias pós-estruturalistas e, da mesma forma, por constituir-se como um método forte e produtivo de análise e compreensão das discursividades inerentes aos dados obtidos na investigação. A AD, como teoria e método, possibilita-nos acessar o dito e o não dito, aspectos singulares às subjetividades das pessoas participantes da investigação, bem como fatores relacionados ao contexto histórico em que se situam, respectivamente, através do acesso às inconsciências individuais e ideológicas que constituem as opacidades, aquilo que está borrado e/ou velado nos discursos.

Por este trabalho ser um recorte da dissertação da autora, a pesquisa passou pela análise e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa. Em seguida as observações das relações estabelecidas entre docente de matemática e intérprete de Libras foram iniciadas. Não houve a pretensão de avaliar a prática docente, nem a interpretação realizada. Apenas foram consideradas e refletidas, para esta pesquisa, as relações reciprocamente estabelecidas entres docentes de matemática e intérpretes de Libras.

Após as observações feitas no decurso de três dias de aula, era agendada uma entrevista individual com o professor e uma entrevista com o intérprete. A entrevista destinava-se a possibilitar a expressão destes profissionais que participam, em sala de aula, de como acontece o processo de ensino de matemática a discentes surdos, com o intuito de compreender suas vivências, sob o ponto de vista de cada um.

Os critérios à participação na pesquisa, além da disponibilidade, é que fossem docentes de matemática que lecionassem em sala regular do ensino fundamental com, no mínimo, um estudante surdo; e intérpretes de Libras que atuassem na sala com os referidos docentes. Neste sentido, foram analisadas quatro turmas com total de sete profissionais - três docentes e quatro intérpretes. Nesta pesquisa os professores são classificados com a letra P seguida dos dois últimos algarismos do ano em que se formaram, a saber P05 para o docente formado em 2005, P07 para o que finalizou sua licenciatura em 2007 e P80 para o docente que se formou na década de 1980. Os intérpretes foram classificados pela letra I, porém, seguida da quantidade de anos de experiência como intérprete de Libras.

ANÁLISE DA DIFERENÇA

Uma situação que surgiu nos discursos de intérpretes e docentes foi a necessidade de o intérprete ser reconhecido pelo docente como profissional e não como uma pessoa estranha/intrusa em sala de aula. O incômodo de docentes com a presença de intérpretes em sala de aula pode surgir por motivos diversos: falta de conhecimento da profissão de intérprete, falta de conhecimento da realidade da pessoa surda e da Libras ou pelo fato de o aluno surdo ter um vínculo de melhor qualidade com o intérprete, dentre, é claro, outros possíveis fatores específicos. O P7 comentou durante a entrevista:

[...] de certa forma, tem professor que se incomoda com a presença de outro profissional. Eu não me incomodo em nada. É tão provável como eu te falei, intérprete, você chegou aqui, venha tranquilo! Vai vir um pessoal do residência, tranquilo, venha embora, fica aí, né? Eu sei o que eu faço, eu sei à minha maneira, então... segurança naquilo que faz. Mas, tem profissional que não tem, aí incomoda um pouco a esses profissionais.

Por não (re)conhecerem a função e/ou a posição do intérprete, alguns docentes podem sentir-se vigiados, avaliados, inseguros; é possível, inclusive, que, pelo fato da escola também não trabalhar os sentidos da presença do intérprete, o intérprete seja percebido como um dispositivo institucional para observá-los/regulá-los, mobilizando entre os docentes afetos relacionados a ideias persecutórias e de controle.

Sá e Machado (2011, p. 3), ao remeterem à palavra invadido na citação a seguir, corroboram e citam outro motivo pelo qual o professor acaba sentindo-se incomodado: “Geralmente professores sentem como se seu espaço profissional tivesse sido invadido sentem-se incomodados com a relação mais intensa do estudante com o intérprete que com ele próprio”. A ideia de invasão remete a espaços, lugares, territórios, relações de domínio e de poder. Além da invasão física que ocorreria na sala de aula, propriamente dita, há, de fato, a invasão de territorialidades, ou seja, de espaços em saberes e poderes que são ocupados subjetivamente, lugares para onde são deslocados, investidos e projetados afetos e desejos.

Mediante esta compreensão, a presença do intérprete tensiona linhas de forças que agenciam o docente a deslocar-se de seus próprios territórios - o que implica em abandonar certas posições relacionadas a práticas e discursos estabelecidos e, assim, reposicionar-se em saberes e poderes, reforçando-os, abandonando-os ou recriando-os.

A presença do intérprete impele à mudança, agencia deslocamentos. Podemos então afirmar que o devir intérprete e suas próprias singularidades, provocam deslocamentos nos devires docentes, convidando-os a, de fato, saírem de seus territórios - desterritorializarem e reterritorializarem - subjetivamente, seus espaços.

Não é à toa, portanto, que estes desafios e o convite à mudança trazidos pela presença do intérprete, sejam percebidos pelos docentes, como ameaças, o que desperta neles sentimentos persecutórios e os leva a acionar mecanismos de defesa. Os mecanismos de defesa acionados entre os docentes - mediante o que se assemelha a uma ameaça à sua autoridade e à sua posição de professor de matemática em sala de aula e, ainda mais grave, na escola - parecem ser o afastamento e a desvalorização (destruição discursiva e defensiva) dos saberes do intérprete.

A intérprete I3 diz que “[...] alguns nem querem... alguns nem sequer cogitam em perguntar como seria. Não aceita nem opinião do intérprete em sala de aula. O professor é ele, a gente entende, mas só que a gente entende um pouco mais da questão da surdez”. Nesse discurso, vê-se o apego a uma hierarquia imaginária sob a afirmação da superioridade e autoridade docente frente à ameaça evocada pelo intérprete. A assimetria é, portanto, para o docente, uma estratégia de segurança subjetiva, o agarrar-se às territorialidades tradicionalmente estabelecidas em sala de aula e em que o professor é a personagem central. A assimetria é uma tentativa rígida e autoritária de conter devires, historicidades, transformações.

Está, portanto, forjada e investida a hierarquia em sala de aula. Na assimetria investida pelo docente em sua relação com o intérprete, uma relação binária, que camufla os valores: docente x não-docente, ou seja, aquele que possui o saber sobre a matemática - mais importante nessa hierarquia - e aquele que traz um saber acessório - o conhecimento sobre Libras -, saber não central, o intérprete.

Estas práticas revelam os sentidos possíveis à negação da relevância do intérprete como profissional que melhor conhece as especificidades dos surdos. Apesar desses relatos de experiências negativas, paradoxalmente, todos os intérpretes informaram que com o atual professor de matemática, não estão tendo problemas nesse sentido e que, pelo contrário, os professores lhes dão abertura para dialogar, e expor seu pensamento a respeito dos estudantes e tudo que lhes envolve. Com isso, evidenciamos que há professores que aceitam o conhecimento do intérprete e compreendem sua relevância, assim como o oposto também acontece.

Quando questionado ao P07 sobre sua relação com o intérprete daquela sala de aula, ele faz uma comparação com a relação estabelecida com outro intérprete com quem trabalhara outrora e, com isso, entra no debate sobre o papel do intérprete: “Tem profissional feito I6, aí, é um excelente intérprete. Mas, eu já me deparei com intérprete, que foi complicado, que queria fazer algo, que não era da alçada dele, além do papel dele”. Em outro momento da entrevista, P07 remete mais uma vez a esse outro intérprete com quem trabalhou anos atrás, e, dessa vez explica melhor o que o aconteceu:

Já teve outros intérpretes que queriam fazer além do que era permitido pra ele, e teve um problema. Não era problema de discussão, nem de nada disso não, é que, a pessoa teve que colocar, ó, tu tá pra interpretar, tu não tá pra coordenar não. Teve que colocar no lugar, cada um tem que saber seu papel.

Considerando-se que o papel do intérprete é algo que ainda está em construção e que, como discutido anteriormente, por questões históricas as relações entre docentes e intérpretes em trabalhos com pessoas surdas são demarcadas por intensas assimetrias, vê-se, assim, o reafirmar desta percepção em linhas de força e agenciamentos que constituem estas relações de poder. O docente, autoridade em sala de aula, exerce este arbítrio ao colocar o intérprete em seu lugar, afirmando que “cada um tem que saber seu papel” (sic). Todavia, parece, na realidade, não ter suportado as territorializações e reterritorializações do intérprete, dinâmica dos devires deste na relação. Atuando, dessa forma, em potência, o docente P07, utilizando-se dos dispositivos de poder que lhes foram concedidos histórica e culturalmente, conduz, impele o intérprete a posicionar-se em discursos e práticas, de modo a não desterritorializá-lo. As assimetrias se fortalecem neste contexto em que os saberes e poderes são distribuídos de maneira desigual.

Para Deleuze (2001) o sujeito não está dado, mas se constitui em devires a partir dos encontros vividos - e, dessa forma também se constituem as posições de docentes e intérpretes nas relações com discentes surdos. Schefer (2018) destaca o que ocorre, quando o professor não tem clareza sobre a função do intérprete e lhe atribui mais demandas do que lhe são devidas.

Na entrevista, o docente P07 fala sobre o papel do intérprete, queria fazer algo, que não era da alçada dele, além do papel dele. Podemos ver na margem dessa enunciação, o não-dito, mas presente. Aqui se percebe que esse professor se considera conhecedor do papel que cabe ao intérprete cumprir. Neste caso, ao analisar sua fala, durante a entrevista, podemos observar que P07 pensa ter clareza sobre o papel do intérprete e, diferenciando-o do seu próprio papel, emite isto, sob a forma de paráfrase, ao intérprete. O docente P07 demonstra em seu dizer, que o intérprete está em sala para interpretar os conteúdos da matemática para a Libras, não devendo ultrapassar esta fronteira.

No caso dos intérpretes, entretanto, observamos algumas evidências de que conhecem sua função e que sabem diferenciá-la da função do docente. Durante as observações, notamos que quando os alunos pedem ao intérprete para se ausentar da sala para beber aula, por exemplo, o intérprete o direciona ao professor. Da mesma forma, os intérpretes direcionam ao professor, atribuições como a de corrigir os cadernos dos surdos.

Perguntamo-nos, entretanto, o seguinte: se o intérprete agisse dessa forma continuamente, os estudantes não já direcionariam o caderno ao professor? Podemos entender, por outro lado que, o compartilhar a língua com o intérprete, o sentir-se compreendido e acolhido desta forma, fortalece não apenas a comunicação, mas, o caráter do vínculo afetivo entre discente e intérprete, talvez por isso, os alunos sintam-se mais à vontade para se dirigirem ao intérprete do que ao docente.

Por outro lado, numa das últimas nessa turma, a intérprete agiu de forma diferente, recebendo o caderno do estudante para conferir as respostas da atividade sobre adição e subtração de números decimais, ao invés de direcionar ao professor como fizera no dia da primeira observação. Com isso refletimos, se o papel do intérprete, apesar de conhecido, não é às vezes atravessado por outras atribuições no cotidiano escolar; além disso, podemos considerar também, o tipo de vínculo estabelecido com este aluno o que motivou o intérprete a agir desta forma.

Essa discussão sobre o papel ou a função do intérprete, pode remeter mais especificamente ao fato dessa profissão ter sido regulamentada relativamente há pouco tempo. Sobre esse recente reconhecimento, P07 afirma “[...] é tão recente, que é tão provável que eu ainda não tinha visto concurso pra o estado pra intérprete. E nesse concurso que teve agora, teve”.

Por fim, apesar de reconhecido recentemente o profissional intérprete de Libras, professores e intérpretes se percebem, sim, conhecedores deste papel, de modo que os limites e ultrapassagens observadas nesta função podem ser mais facilmente compreendidas pela qualidade e intensidade dos vínculos estabelecidos na tríade ou triangulação discente - docente - intérprete.

Apoio ao docente

O P4 falou na entrevista que vê o intérprete como um apoio necessário ao professor e compara este contexto ao apoio de que demandam discentes com outras deficiências. Ele informa que em outra escola “[...] tem uma menina especial só que ela não é surda, ela tem outro tipo de problema, de situação, e fica difícil a gente trabalhar com ela porque a gente não tem um apoio. Aqui, por exemplo, eu tenho os intérpretes, lá eu não tenho ninguém de apoio para trabalhar comigo” (P4). Destaque-se: “Aqui, por exemplo, eu tenho os intérpretes, lá eu não tenho ninguém de apoio para trabalhar comigo”. Ressaltamos nesta fala, o compreender o trabalho do intérprete como pertencente à categoria de apoio à personagem docente.

É possível, inclusive, entender esta fala como uma paráfrase (Orlandi, 2015), como uma maneira sutil de comunicar outra coisa - na realidade, uma ideia menos conveniente ou menos politicamente correta - a de que tais profissionais de apoio são um complemento, um arranjo pontual ou um acessório em uma situação não ideal. O acessório que é aquilo que não é central, mas, secundário, prescindível, não obstante a sua importância circunstancial e localizada, enfim, acessório é tudo aquilo que segue ou acompanha o principal.

Nas entrelinhas do discurso do docente P4, percebe-se que admitir a relevância e a simetria em relação ao que denomina como profissionais de apoio - e aqui estão incluídos os intérpretes - poderá surtir como um atributo negativo, que remete, inclusive, à possibilidade de ser ele mesmo prescindível. Para alguns docentes, o devir professor fomenta subjetivações ainda ancoradas em visões de mundo binárias e/ou dicotômicas, a exemplo do saber x não saber e destas, outras dicotomias em poderes, práticas e discursividades emergem como enunciados a orientar contextos sócio-políticos: saber x não saber: docente x não docente: docente x profissionais de apoio, dentre outros pares de oposições binárias possíveis.

Além do profissional de apoio mencionado pelo professor P4 para trabalhar diretamente com os estudantes com deficiências, outros envolvidos na situação deveriam fornecer, cada um de acordo com suas atribuições, e responsabilidades, o suporte que o professor necessita. Esta compreensão de um conjunto de profissionais que devem amparar, apoiar o trabalho docente - então compreendido como o eixo central da escola - parece mesmo consolidada, é o que se percebe, por exemplo, no que afirmam Denari e Sigolo (2016, p. 17), “[...] o professorado necessita de apoio dentro e fora da escola: desde o gestor escolar, passando pela família de seus alunos”.

Entendemos, ao contrário, que deverá haver necessária simetria entre saberes e poderes nas articulações da tríade docente - intérprete - discente e que o apoio deve ser recíproco. Para que isso ocorra, entretanto, e venha a tornar-se uma prática, é necessário, efetivamente, um contínuo trabalho de vinculação e conscientização, pois, ainda é comum a percepção de que nem sempre os professores aceitam a opinião de intérpretes, afinal, “[...] o professor é ele” (sic).

A intérprete I3 informou que “[...] alguns nem querem... alguns nem sequer cogitam em perguntar como seria. Não aceita nem opinião do intérprete em sala de aula. O professor é ele - a gente entende - mas só que a gente entende um pouco mais da questão da surdez”.

Para os intérpretes, por sua vez, são eles, como conhecedores das especificidades de surdos, que repassam seus conhecimentos para os docentes e demais profissionais da escola, neste sentido, o I2 comenta:

Até um dia, a professora chegou, e perguntou: a gente avalia o surdo como? Aí a gente disse: não, no momento em que o intérprete está na sala, ele vai ser igual aos outros. Se ele merece dois, dê dois a ele, se merece dez, dê dez a ele. Não é só por conta que ele é deficiente vai ficar com peninha, não. Intérprete está ali para auxiliar, fazer a ponte entre o professor-aluno. Aí, quem vai dar a nota é o professor em sala de aula.

Além do intérprete apoiar a ação do docente com sua atuação, fazendo com que o conteúdo chegue até o aluno surdo em sua primeira língua, também auxilia com sugestões referentes à atuação docente, visto que conhece as especificidades dos surdos, suprindo, de certa forma, parte da lacuna deixada pela formação dos professores.

Como vimos, portanto, o intérprete é o profissional que geralmente tem mais conhecimento sobre a realidade do surdo e, por vezes, sente que poderia auxiliar o docente quanto às especificidades discentes, mas não o faz por não perceber receptividade para este tipo de discurso e prática. Todas estas questões reiteram a importância que o trabalho realizado entre docente e intérprete seja colaborativo, com trocas de conhecimentos entre ambos. Lacerda e Bernardino (2014, p. 69) corroboram que o professor e o intérprete de Libras devem atuar em parceria:

Acreditamos que na educação do aluno surdo a contribuição principal do ILS é mesmo a de interpretar. Contudo, nesse processo, é preciso que atuação do intérprete se constitua em parceria com o professor, propiciando que cada um cumpra com seu papel em uma atitude colaborativa, em que cada um possa sugerir coisas ao outro, promovendo a melhor condição possível de aprendizagem para a criança surda.

A intérprete I7 citou uma situação em que o conhecimento sobre as singularidades das pessoas surdas fez a diferença em uma aula. Ela relatou que uma professora estava explicando um tema na disciplina de ciências e ela, então, pediu para que a professora mostrasse o livro, o que foi significativo para a compreensão do discente surdo. Ela relata:

[...] a professora de ciências tava lendo um texto e eu tava interpretando, mostrando a parte reprodutora da mulher, né? Útero, trompas etc., aí ele ficou meio perdido. Aí, eu disse assim, professora, me mostre o livro. Quando ela mostrou o que ela estava abordando, ele foi quem deu a aula. Ele se levantou, fez útero, trompas, perna, entrou, dois, aí gêmeos; olhe, foi maravilhoso! Pra ele, ver a imagem foi fantástico. (I7)

Nisso, percebemos que são simples ações no cotidiano escolar que, se realizadas, proporcionam ao discente surdo uma real experiência no aprendizado. A intérprete ao se incomodar com a situação da leitura de um texto, sabendo das especificidades do aluno, conduziu a professora a agir de forma que possibilitasse ao aluno surdo vivenciar o conteúdo da forma mais apropriada às suas condições, já que sua língua e, portanto, suas experiências de percepção e aprendizado acontecem através da perspectiva visual.

Ações simples, mas, significativas como esta poderiam ser feitas com mais frequência e partindo, inclusive, dos professores, caso tivessem conhecimentos sobre as singularidades da pessoa surda, enfim, sobre a diferença na diferença.

Relação docente de matemática e intérprete de Libras na prática

Quando perguntado ao intérprete I2 se ele se sente à vontade, caso precise interromper a aula e pedir para que o professor explique novamente, responde que em cada início de ano, antes de conhecer o professor e sua forma de trabalhar, há algumas barreiras que, com o passar do tempo, vão sendo ultrapassadas; além disso, afirma ter abertura para diálogo com o professor, quando necessita. Quando foi questionado ao intérprete I2 se conversa com o docente, caso tenha alguma dificuldade com o conteúdo matemático, ele responde:

Converso, converso. Procuro, perguntando a ele, qual seria o conteúdo do próximo semestre. Ele me dizendo procuro pesquisar tanto na internet quanto com meus amigos aqui mesmo intérpretes. A gente tá com... se eu tô no sexto ano, e vai passar a matéria do quinto ano, aí eu já vou perguntar ao intérprete do sétimo, do oitavo ano, porque ele já tem mais experiência, já.

Em todas as observações realizadas numa das salas de aula, o professor P80 interage bastante com a intérprete I3 e, assim, demonstram ter uma relação de afeto e colaboração. No decorrer das demais observações, inclusive, o professor sempre dizia que a intérprete iria sair dali doutora em matemática, como demonstração de apreço e como forma de incentivá-la a continuar estudando.

Outro intérprete, o I2, por sua vez, afirmou não ter contato com o professor, antes das aulas ou em momentos extraclasse e declarou: “[...] a gente tem uma certa demanda complicada. Porque muitas vezes o professor já tem a sua aula preparada, aí chega a coordenadora, e diz: você não vai ficar com essa sala hoje, você vai pra outra sala, você vai dar aula de física, ou de matemática... entendeu? Tem essa troca...”. Com efeito, presenciamos essa realidade na escola durante as observações: em uma aula, o professor P04, conversa com os alunos sobre o conteúdo que outro professor passou na aula da semana anterior para eles naquela disciplina. Em outro momento, o P4 que estávamos observando, é convidado a deslocar-se - apenas naquele dia - para outra turma na qual não é docente.

Mesmo com essa dinâmica diferenciada nesta escola, o I2 afirmou que o professor de matemática ao término de sua aula, avisa o conteúdo do próximo encontro: “[...] sempre, quando termina uma aula, ele sempre avisa. [...] Isso também já é um feedback pra pessoa captar a próxima aula”.

Outra intérprete, a I3, também diz que o professor que a acompanha às vezes fala qual será o conteúdo da aula seguinte, o que a auxilia a preparar-se. Ela relata: “[...] às vezes ele até me diz: ó, eu vou dar aula, próxima vai ser tal coisa, e às vezes dá tempo de até eu pesquisar antes, vê o que é. Então tem sido muito bom a aula com ele”. Na visão dos intérpretes, esse contato prévio com os conteúdos das aulas - no que se refere à pesquisa de sinais e de conceitos dos principais termos a serem abordados - favorece a interpretação, que nestes casos é realizada com mais propriedade e fluidez, o que beneficia o aprendizado da pessoa surda.

O professor P07, por outro lado, demonstra ter uma visão diferente a este respeito, pois, acredita que se o intérprete for informado sobre o conteúdo da aula com antecedência, ficará com a obrigação de conhecer o conteúdo, coisa que, não corresponde ao seu papel e explica:

[...] são muitas disciplinas, e aí se todos os professores forem fazer isso... aí fica meio complicado. Na teoria, é bonito, na prática não vai funcionar não. [...] E, também, acredito que isso aí também vai acarretar uma certa responsabilidade no intérprete. Por que, o intérprete tá ali pra quê? Pra interpretar o que o professor tá passando. O intérprete não é obrigado a saber do conteúdo. E se fizer isso aí, vai ser como se fosse uma obrigação, o intérprete vai ter que saber. Vai sobrecarregar. Aí vai além da função dele.

Outro professor, o P04 opina em direção oposta: “[...] eu acredito que pra ele [intérprete] vai ficar, possa ficar mais fácil durante, né, a aula, pra ele. Mas, infelizmente a gente não tem, a gente não tem esse encontro antes”. P04 atribui essa ausência de contato prévio com o intérprete não apenas à correria que é a realidade escolar, mas à ausência de um olhar diferenciado à perspectiva inclusiva, ele aponta: “[...] a realidade é muito corrida e a realidade também é que falta essa questão com olhar diferente mesmo, sabe? Olhar diferenciado e dizer assim, é uma coisa diferenciada que está se fazendo aqui, né? Tem que existir esse espaço pra que intérprete e surdo possam evoluir, né?” (P04).

Foi possível observar em diversos momentos, que os professores de matemática e os intérpretes de Libras da escola escolhida para esta investigação, desenvolvem harmoniosa relação profissional.

Assimetrias em saberes e poderes

Algumas falas dos professores evidenciaram, um aparente entrosamento, esta suposta afinidade: “Tranquilo. Como te falei, já teve outros [...]. Mas o intérprete atual aqui, não. Tranquilo, tranquilo...” (P07). Outro professor discorre:

Eu com o intérprete? Tranquilíssima. Tanto o ano passado como esse ano. Eu espero que seja assim nos próximos anos também. Porque é muito bom, quando você tem um bom relacionamento, quando você reconhece a necessidade como eu reconheço, e tenta fazer o melhor, eu tento fazer o melhor. (P04, grifo nosso)

Apesar de reiterar a tranquilidade em que, naquelas circunstâncias, decorria sua relação com o intérprete, a fala do docente (acima transcrita) não destaca tanto a qualidade da relação entre ambos, todavia, sutilmente, ilustra e põe em evidência a sua própria dinâmica - docente - e uma assimetria de saberes e poderes frente ao intérprete.

É possível compreendermos nesta fala: “[...] quando você reconhece a necessidade como eu reconheço, e tenta fazer o melhor, eu tento fazer o melhor (sic)” que a tranquilíssima (sic) relação com o intérprete ocorra, na percepção deste docente, P04, por um esforço seu, isto é, como se o tom de positividade da relação entre ambos se desse, porque o professor reconhece a necessidade e, assim, investe cognitiva e afetivamente - em desejos e intensidades, no vínculo estabelecido.

A mesma compreensão decorre do depoimento deste docente, P4, quando afirmou: “[...] eu sou muito aberto, eu não sei se essa condição [boa relação] se dá por conta disso, dessa minha abertura, eu sou muito aberto”. Neste contexto assimétrico - em que o docente se esforça ou permite, consente a troca de conhecimentos - na hierarquia não-dita, porém, discursivamente endossada, as relações de poder ganham, portanto, contornos mais nítidos e o que era evidência ou opacidade - as ideias de tranquilidade e de abertura - como cortinas de fumaça discursivas, se dissipam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatamos, a partir dos dados analisados, que há uma clara diferença na fluidez da interpretação em Libras do conteúdo da Matemática quando há uma parceria entre intérprete e docente, neste mesmo sentido, quando os profissionais atuam de maneira isolada, aumentam as dificuldades para o aprendizado, percebidas entre as pessoas surdas.

Verificamos, portanto, que há contextos em que docentes de matemática e intérpretes de Libras trabalham, de fato, em uma relação de parceria, visando o ensino da matemática a estudantes surdos, assim como há aquelas situações em que ocorre o oposto.

Além dos aspectos históricos e materiais, propriamente ditos, através da análise de seus discursos, pudemos compreender que a constituição destes contextos depende também das singularidades relacionadas ao devir intérprete e ao devir docente, à forma como os profissionais investem histórica/ideológica e afetivamente nestes trabalhos, assim como dos desejos agenciados e produzidos nestas diligências.

Dito de outro modo, a qualidade das relações entre docente e intérprete depende substancial e recursivamente do contexto escolar e dos provisórios e contínuos processos de subjetivação encarnados em devires.

Há que se destacar, entretanto, que a parceria entre ambos os profissionais está delimitada à sala de aula, pois, como efetivamente dito nas entrevistas, em geral, não é dedicado um tempo prévio às aulas que possibilite a troca de experiências e conhecimentos - saberes e poderes - entre professores e intérpretes.

Muito percebemos de avanço qualitativo se consideramos que a Lei que regulamenta a profissão de intérprete é recente, mas, muito ainda temos a conquistar, docentes e intérpretes juntos, em prol do ensino ao estudante surdo.

Uma das contribuições advindas desta investigação é que pudemos refletir sobre o quão desestabilizadora e, portanto, complexa é a participação do intérprete de Libras em sala de aula, uma presença agenciadora, que propicia reorganizações em devires por intermédio de territorializações, desterritorializações e reterritorializações entre as subjetividades presentes.

Não se trata apenas do professor aceitar outro profissional em sua sala, mas, de firmar uma parceria, cada um reconhecendo a função e a posição do outro, de modo a viabilizar, juntos, a troca de saberes e poderes em prol do aprendizado do estudante surdo.

Uma complexidade pelo fato de os participantes desse processo de ensino estarem em constante devir - provisoriedade - sendo subjetivados e moldados a cada experiência e troca de saberes e poderes. Não é à toa que, apenas no curto período de tempo da pesquisa, as respostas tenham mudado e o que antes eram certezas e/ou verdades, que poderíamos pensar como resultados, inclusive, no momento seguinte são desconstruídos para que apareça o novo.

Consideramos, assim, que as discursividades dos participantes apontam para a percepção de que a relação de troca e de parceria entre ambos é algo necessário, muito embora ainda haja aspectos a serem melhorados. Entendemos ainda que os temas aqui imbricados, assim como os dados obtidos pela pesquisa realizada, são uma iniciação a reflexões mais profundas.

Realcemos que, muito embora tenhamos traçado uma análise a partir dos dados produzidos no contato com o outro, compreendemos que outras análises, outras leituras são possíveis - e é esta também uma das grandes lições da perspectiva pós-estruturalista. Dito de outro modo, não instauramos aqui o esgotar das análises sobre o objeto de pesquisa pela perspectiva adotada, mas, propomos possibilidades de compreensão sobre o contexto abordado.

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Recebido: Julho de 2023; Aceito: Novembro de 2023

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