APRENDER É PRECISO
Mais do que nunca a aprendizagem tem se tornado tema de fundamental importância nos meios midiáticos, políticos, econômicos, culturais, sociais e até religiosos1. Todos devem e precisam aprender; nunca será demasiadamente cedo ou tarde demais para isso. A constante exigência do mundo do trabalho por mudanças e por um perfil de sujeito flexível, autônomo e capaz de resolver problemas resulta em uma busca desenfreada por uma aprendizagem infindável, como forma de obter vantagens na vida profissional. Tomar para si a tarefa de se tornar um aprendiz permanente é requisito para manter-se no mercado de trabalho nesse cenário hipercompetitivo, o que exige dos sujeitos que se mantenham constantemente estudando e se aperfeiçoando, de forma a desenvolverem competências que melhorem suas performances profissionais.
Postos de trabalho cada vez mais escassos, aliados à tendência da precarização, produzem uma legião de empreendedores que, em busca de oportunidades, tornam a procura por processos formativos uma solução a curto prazo2. A noção de flexibilidade produz sujeitos que buscam na aprendizagem sem fim os recursos para incluírem-se produtivamente no que Foucault (2010) denomina jogo econômico. A aprendizagem tornou-se um imperativo ao qual todos devem aderir.
Fundamentado nas ferramentas teóricas de Michel Foucault e de outros autores que dialogam com seu pensamento, o artigo tem como objetivo analisar como os sujeitos trabalhadores são direcionados para a busca de uma aprendizagem ao longo da vida3, como forma de assegurar sua permanência no mercado de trabalho. A análise será desenvolvida a partir de dois conjuntos de materiais empíricos. O primeiro é composto por matérias em formato digital da seção Carreira do jornal Valor Econômico, entre os anos de 2018 e 2022. Justificamos tal escolha por entendermos que a mídia jornalística produz visões de mundo e incita determinadas ações através de seus conteúdos. O segundo conjunto consiste em entrevistas realizadas a partir de registro na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa4.
Na próxima seção, desenvolvemos algumas problematizações sobre a aprendizagem entendida como estratégia de competição no mercado de trabalho. Em seguida, analisamos as matérias do jornal Valor Econômico e as entrevistas, mostrando a convergência das concepções aí presentes. As considerações finais encerram o artigo.
É PRECISO APRENDER PARA COMPETIR...
Sandel (2021, p. 129), em seu livro A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?, apresenta a seguinte declaração do ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, no ano de 2013, que indica a propagação de um ideal de educação como solucionadora de problemas econômicos:
Vivemos em uma economia global do século XXI. E em uma economia global, empregos podem ir para qualquer lugar. As empresas estão à procura das pessoas com melhor formação educacional, onde quer que elas morem [...]. Agora, há bilhões de pessoas de Beijing a Bangalore, a Moscou, todas as quais estão competindo diretamente com você [...]. Se você não tem uma formação educacional boa, será difícil encontrar um emprego que pague um salário suficiente para você.
A afirmação acima serve para compreendermos a lógica da aprendizagem como um diferencial para obtenção de renda. Ou, dito de outro modo, como a retórica da ascensão econômica está sendo relacionada a componentes formativos, ao mesmo tempo em que procura dividir as pessoas entre vencedores e perdedores. O emprego torna-se uma recompensa pelo esforço despendido, enquanto que “[...] para quem não consegue encontrar emprego ou ganhar dinheiro suficiente para se sustentar, é difícil fugir do pensamento desmoralizante de que seu fracasso é resultado de suas próprias ações” (Sandel, 2021, p. 39).
Em uma matéria do jornal Valor Econômico, de outubro de 2017 e intitulada O futuro do trabalho exige reinvenções no presente, o consultor Renato Bernhoeft tece alguns comentários referentes às novas relações de trabalho, as quais exigem das novas gerações uma visão diferente daquela de seus pais. Para o autor, os jovens “[...] manifestam claramente que administrar a carreira é assunto da responsabilidade do próprio indivíduo” (Bernhoeft, 2017, s. p.) e “[...] a renovação constante - tanto pessoal como profissional – não depende mais, com exclusividade, das instituições de ensino formal, e muito menos das empresas” (Bernhoeft, 2017, s. p.). A matéria compartilha do entendimento de que, para sobreviver nesse meio, cabe ao sujeito buscar por conta própria o autodesenvolvimento e equilíbrio entre os vários papéis exercidos no meio social. Segundo o autor, as condições para competir na carreira são determinadas por nossa capacidade de identificar necessidades de desenvolvimento dentro do mercado em que estamos inseridos. Argumenta, ainda, que identidades profissionais devem ser fluidas no contexto atual do trabalho e que devem estar relacionadas a projetos de vida que assegurem um futuro aos indivíduos.
Outra matéria, agora no site da Revista Você S/A, intitulada Lifelong Learning: o desafio de ser um eterno aprendiz (Carvalho, 2021), datada de 26 de julho de 2021 destaca que, quanto mais aprendemos coisas novas, mais ficamos interessantes como seres humanos e, consequentemente, como profissionais em relação às empresas e ao mercado.
Ambas as matérias parecem remeter a um indispensável ajustamento da aprendizagem às exigências profissionais de nosso tempo. Nesse mesmo sentido, para Lima (2017, p. 16), esse contexto exige “[...] que sejamos mais performativos e mais competentes para responder aos imperativos da eficiência e eficácia, de inovação e de competitividade, impostos por uma sociedade cada vez mais complexa”. Para esse autor, o conceito de educação está sofrendo uma transição em direção a “[...] uma concepção de aprendizagem útil e eficaz, sob os lemas da rivalidade e da livre escolha no mercado da aprendizagem” (Lima, 2017, p. 17).
Biesta (2013) nota que o conceito da aprendizagem se encontra em ascensão, enquanto que o conceito da educação encontra-se em declínio5. Para o autor, o ato de ensinar “[...] foi redefinido como apoiar ou facilitar a aprendizagem, assim como a educação é agora frequentemente descrita como propiciadora de oportunidades ou experiências de aprendizagem” (Biesta, 2013, p. 20). Alunos deixaram de ser descritos como tais para serem considerados aprendentes.
Uma das tendências que têm contribuído para o surgimento de uma nova linguagem da aprendizagem, segundo Biesta, é a explosão silenciosa da aprendizagem adulta. O autor identifica um crescimento no número de pessoas que dedicam seus recursos de tempo e dinheiro aos mais diversos tipos e formas de aprendizagens nos cursos formais de instituições educacionais ou fora deles. Biesta (2013, p. 22) também constata a existência de um mercado em veloz expansão para modos não formais de aprendizagem, como nas academias de ginástica e clubes esportivos ou através de manuais de autoajuda, de vídeos ou tutorias nas redes sociais. Nesse mesmo mercado, ascendem as plataformas de oferta de cursos online, como a Udemy e a Coursera, dentre inúmeras outras que se encontram disponíveis na internet. Embasando-se em Field (2000), Biesta destaca que a aprendizagem se tornou um conceito individual e que a linguagem da aprendizagem tem estreita relação com o mercado. Contudo, diferentemente dos outros autores citados anteriormente, sua postura não é de apoio, mas de crítica a essa situação.
Apoiados nessas discussões, analisamos na próxima seção as estratégias argumentativas que vem sendo produzidas pelo jornal Valor Econômico acerca da necessidade de aprendizagem permanente para manter-se no mercado de trabalho e como os entrevistados se vêm posicionando em relação a isso.
TODAVIA, A SOLUÇÃO DE APRENDIZAGEM NÃO ESTÁ NAS INSTITUIÇÕES ACADÊMICAS DE ENSINO FORMAL
Em matérias veiculadas no jornal Valor Econômico, a aprendizagem em instituições acadêmicas de ensino formal é considerada como “[...] fora da realidade” (Campos, 2022a, s. p), como algo que não oferece todas as qualificações (Bigarelli, 2020a) e “[...] não consegue ensinar e treinar as novas habilidades na velocidade que o mercado de trabalho demanda” (Campos, 2019a, s. p), estando longe da rapidez necessária (Moules, 2018) e fornecendo “[...] falsos e enganosos diplomas” (Bernhoeft, 2020, s. p.). A formação superior, não teria, de acordo com as publicações, a importância que usualmente se dá a ela na atualidade.
Na matéria de Bárbara Bigarelli, intitulada Brasileiros não acreditam ter as habilidades que precisam, publicada em 30 de outubro de 2020, são apresentados os resultados de uma pesquisa com cinco mil profissionais, de cinco países, “[...] a qual aponta os brasileiros como aqueles que mais sentem falta de competências para realizar o trabalho atual” (Bigarelli, 2020a, s. p.). Renata Barros, gerente sênior de parcerias com instrutores da Udemy no Brasil, é citada na matéria para sustentar que:
A maioria dos profissionais brasileiros acredita que o ensino superior não ofereceu todas as qualificações de que eles precisavam para serem eficientes no mercado de trabalho e há uma consciência, por parte deles, que precisam continuar aprendendo sempre para continuarem bem-sucedidos nos empregos (Bigarelli, 2020a, s. p.).
Nesse mesmo sentido, a matéria Escola da vida não tem férias ou diploma, de 4 de dezembro de 2020 e assinada por Renato Bernhoeft, afirma que o lifelong learning (aprendizado ao longo da vida) é uma tentativa de transformar o “[...] antigo processo de reconhecimento e uma excessiva valorização da educação formal” (Bernhoeft, 2020, s. p.). Segundo o autor, no passado, “[...] era bastante comum que muitos profissionais, ao concluir seus cursos de graduação ou uma pós, se considerassem preparados para toda uma vida, ignorando a ideia de um permanente autodesenvolvimento” (Bernhoeft, 2020, s. p).
Esta concepção de descentrar a formação do ambiente acadêmico transpassa fronteiras. A matéria Como reinventar o ensino na era digital, de autoria de Stela Campos, de 10 de outubro de 2019, apresenta algumas discussões que aconteceram na conferência Reinventando a educação em um mundo digital, realizada em Madri. Na ocasião, a Ministra da Educação da Espanha, Isabel Celaá, declarou que “[...] para uma economia digitalizada precisamos de uma educação digitalizada com novos currículos” (Campos, 2019a, s. p). Já Rebeca Grynspan, secretária-geral da Secretaria Geral Ibero-americana (SEGIB), apontou que “[...] todo o ecossistema da educação precisa mudar porque a sociedade responde mais rápido às mudanças tecnológicas do que as instituições” (Campos, 2019a, s. p). A matéria conclui que “[...] o setor de educação sozinho não consegue ensinar e treinar as novas habilidades na velocidade que o mercado de trabalho demanda e que o aprendizado deve estar no mobile e ser flexível para que se possa aprender em qualquer lugar” (Campos, 2019a, s. p.).
Portanto, conforme mostramos acima, as matérias veiculadas pelo jornal Valor Econômico vêm propagando a ideia de que para manter-se no mercado de trabalho é necessário investir permanentemente em novas aprendizagens. Porém, os trabalhadores devem se voltar para outras opções, pois as formações acadêmicas já não seriam as mais adequadas. Nesse contexto, redefine- se o papel do professor e o modo de ser aluno e as formas de oferta dos processos formativos.
O professor
A estratégia argumentativa para apresentar as instituições acadêmicas de ensino formal como incapazes de responder demandas do mundo do trabalho atual é mobilizada para destacar os novos papéis dos docentes: facilitador, coach, designer de sistemas, engenheiro (Campos, 2022b) e mentor (Campos, 2019a). Algumas matérias apontam direcionamentos a serem tomados por esses profissionais, de forma a se atualizarem para a nova realidade e mostrarem que ainda podem ser necessários em sua atuação.
A matéria Como reinventar o ensino na era digital, já mencionada anteriormente, afirma que esses profissionais estão “[...] na iminência da automação e da substituição de suas funções por máquinas e robôs” (Campos, 2019a, s. p.). O texto prossegue destacando que “[...] para poder preparar os alunos, os professores também precisam desenvolver as habilidades requeridas para o século 21” (Campos, 2019a, s. p.). A matéria ampara-se em Lúcia Dellagnelo, presidente do Centro de Inovação para Educação Brasileira (CIEB), que afirma que “[...] os professores precisam entender o que significam os algoritmos por trás do Facebook ou as implicações legais do ciberespaço para responder aos alunos” (Campos, 2019a, s. p.). Ainda nesse sentido, Orlando Alaya, consultor de inovação e ex-vice-presidente para mercados emergentes da Microsoft, destaca que em novos modelos de ensino, “[...] a inteligência artificial (IA) pode dar conta das tarefas mais entediantes como corrigir provas” (Campos, 2019a, s. p). Assumindo um tom entusiasta, a matéria não comenta as implicações desse modelo na formação dos sujeitos. Em uma sociedade que fala a linguagem da aprendizagem (Biesta, 2013), o professor parece estar se tornando irrelevante.
Salman Khan6, em entrevista publicada com o título Habilidades do futuro são matemática, escrita, leitura, declara que “[...] estamos em um mundo onde o papel do professor não deveria ser o de entregador de informações, o papel do professor é o de perguntar e desdobrar os assuntos” (Campos, 2022b, s. p.), “[...] um professor também pode [...] em vez de ir todos os dias se apresentar para a classe, criar um sistema do qual faz parte, onde a classe quase pode ensinar sozinha” (Campos, 2022b, s. p.). Portanto, a função docente fica ameaçada não apenas pela IA, como também por comunidades de aprendizes-ensinantes.
Para Olsson e Petersson (2008), a racionalidade neoliberal produz o entendimento de que os professores seriam mediadores de conhecimento ou organizadores de ambientes de aprendizagem, enquanto o aluno seria um indivíduo ativo, que gerencia sua aprendizagem. Ao mesmo tempo em que direcionam os docentes para um suposto novo papel, as matérias deixam implícito o risco desses profissionais não serem mais necessários. Isso está relacionado, entre outros fatores ao protagonismo do aprendiz, que deve ser capaz de construir seus percursos individuais com autonomia.
O aprendiz
O argumento de que a solução de aprendizagem não se encontra em instituições acadêmicas de ensino formal baseia-se também na figura do aprendiz ao longo da vida idealizado como um sujeito que consegue “[...] aprender em seu próprio ritmo” (Campos, 2022b, s. p), passa mais tempo aprendendo sozinho (Campos, 2022b), gosta da flexibilidade (Bigarelli, 2022), aprende a aprender (Bigarelli, 2020b) e possui o “[...] protagonismo no processo de aprendizado” (Bigarelli, 2020b, s. p). Tais enunciações vão no sentido de produzir um entendimento de que não seriam necessários meios educativos formais e, até mesmo, professores no seu percurso de aprendizagem.
A matéria Aprendizagem híbrida é desafio para universidades, datada de 27 de dezembro de 2021 e assinada por Bethan Staton, comenta que as instituições britânicas de ensino superior inovaram no ensino remoto durante a pandemia, o que acarretou novas demandas com o retorno presencial. De acordo com o autor, isto tem relação com o fato de que “[...] os alunos viram que podiam fazer as coisas a distância, e eles querem que essa flexibilidade seja mantida, e que uma maior flexibilidade poderia preparar melhor os alunos para o trabalho” (Staton, 2021, s. p.).
Laval (2019) aponta que no âmbito da racionalidade neoliberal, “[...] ‘o homem flexível’ e o ‘trabalhador autônomo’ são as referências do novo ideal pedagógico” (Laval, 2019, p. 33). Para o autor, “[...] o neoliberalismo visa à eliminação de toda ‘rigidez’, inclusive a psíquica, em nome da adaptação às situações mais variadas com que o indivíduo depara no trabalho e na vida” (Laval, 2019, p. 41).
Essa flexibilidade está muitas vezes ligada à possibilidade de trabalhar e estudar em qualquer momento do dia ou da noite. O que, muitas vezes, implica em maior demanda de trabalho para adequar-se a esses momentos, que podem se traduzir em horários extenuantes e permanente prontidão para as atividades. Durante o período pandêmico, a flexibilidade resultou em sobrecarga de trabalho e exaustão de diversos profissionais da educação. Saraiva, Lockmann e Traversini (2020, p. 13), a partir de análise de notícias publicadas em 2020, concluíram que:
O material empírico mostra repetidas vezes uma demanda por disponibilidade irrestrita dos professores nesses tempos de pandemia. O trabalho vai além da carga horária contratada e o professor encontra-se disponível nos três turnos para responder às perguntas e tirar dúvidas.
O que foi percebido no contexto da pandemia, pode-se tornar rotineiro, à medida que as práticas que foram criadas em um contexto emergencial sejam normalizadas. A exaustão também pode chegar aos trabalhadores, que se empenham em conciliar suas jornadas de trabalho com processos de aprendizagem inacabáveis.
Os entrevistados para a pesquisa estão, eles próprios, na condição de aprendizes permanentes, que justificam por entender que sem isso poderão perder seu lugar no mercado de trabalho. Esses sujeitos apontam que em contratações ou em oportunidades de ascensão profissional, frequentemente, a formação acadêmica não é relevante, apenas conhecimentos práticos.
Muitas empresas hoje não cobram informações de graduação, ou pós-graduação, mestrado ou doutorado... não querem nem saber muito disso. Vamos colocar dessa forma, elas querem saber se você sabe... se você sabe... se você é bom em tecnologia... se consegue resolver o problema dessas empresas. (Quinze)
Após destacar a habilidade de resolução de problemas, Quinze prossegue afirmando que “[...] como o mercado evoluiu bastante, muitas empresas estão aderindo a isso, nesse sentido, elas só querem saber se a pessoa sabe realmente”. O entrevistado avalia esse movimento organizacional como espontâneo, fruto de uma evolução natural do mercado. A fala de Eloísa vai no mesmo sentido.
Na contabilidade... ela se renova todo dia, todo dia tem legislação... todo dia... todo dia... todo dia tem uma coisa nova que eu tenho que ir buscar. Então, na verdade, a formação mesmo... ela não ajuda... o que te ajuda é você ter um aprendizado... e eu tenho um aprendizado todo dia e toda hora em revistas da área, em grupos... atualizo-me muito através do Facebook, através do Instagram, através da revista eletrônica e através de Gmail... toda mudança é através de e-mail... eu recebo newsletter todo dia. Eu acho muito mais interessante eu me atualizar através dessas modalidades do que eu ir para uma faculdade fazer especialização porque ali é só teoria e minha função é prática.
Hélkia compartilha da opinião de que as aprendizagens que a academia proporciona não permite que o profissional se destaque no mercado.
Eu sou uma pessoa que gosto de buscar muito conhecimento... sim conhecimento... em sala de aula foi pouco... a gente sabe que é muito limitado, que é muito curto e para a gente ser um diferencial a gente tem que buscar fora né?
Quando ela menciona fora refere-se a algo que não se encontra nas instituições acadêmicas, a uma aprendizagem informal. A ideia de que precisa ter um diferencial indica uma lógica na qual os outros sujeitos são entendidos como concorrentes e a aprendizagem como meio de vencer uma competição. A aprendizagem, nessa lógica, é entendida como um meio de crescimento de capital humano, pois “[...] são os indivíduos que devem capitalizar recursos privados cujo rendimento futuro será garantido pela sociedade” (Laval, 2019, p. 21).
Aqui, recorremos novamente aos argumentos de Quinze, que afirma que nesse meio “[...] você sempre precisa estar inovando... sempre tá precisando aprender coisa nova”. Para ele, a educação formal é importante no início do processo, mas perde relevância para a atualização dos conhecimentos.
Tem a escola para te auxiliar, mas você tem que evoluir no conhecimento, uma coisa que você aprendeu, no outro dia não serve mais e você nunca aprende totalmente... tem que tá sempre procurando aprender coisas novas e melhorar cada vez mais tanto pessoalmente quanto profissionalmente... eu recomendo sempre muitos eventos nesse sentido e tem que ser agora.
Hélkia afirma que “Infelizmente, na sociedade, as pessoas acham que a graduação é suficiente para elas terem conhecimento, para aprenderem e atuarem com eficiência, pensam elas, mas não é assim que funciona”. Ela ainda comenta que fica descontente ao se deparar com sujeitos que depreciam outro tipo de aprendizagens, por valorizarem unicamente um diploma: “Eu fico muito triste quando vejo uma pessoa que menospreza os outros conhecimentos, porque tem o nível superior, porque tem um diploma superior, eu tenho pena dessa pessoa”.
Tal como analisa Laval (2019), a fase neoliberal do capitalismo está mudando a relação entre o diploma e o valor pessoal que esse traz como meio de reconhecimento social, tornando-o mais frouxo e impreciso. Em um período marcado por saberes frágeis e com prazo curto de durabilidade e competências que se desatualizam velozmente e de maneira permanente, o diploma universitário acaba perdendo força simbólica. “O saber acadêmico é cada vez mais considerado uma fonte de rigidez que já não corresponde aos novos imperativos de adaptabilidade permanente e relatividade imediata da empresa” (Laval, 2019, p. 44-45).
Retornando à análise das matérias do jornal, destacamos a matéria Não é por trabalhar remotamente que as pessoas estão mais digitais, publicada no dia 15 de julho de 2020, em que a colunista Bárbara Bigarelli entrevistou José Cláudio Securato, CEO da Saint Paul Escola de Negócios. Ele descreve o protagonismo no processo de aprendizado como heutagogia, termo relacionado a “[...] um processo de educativo no qual o estudante é o único responsável pela aprendizagem, uma autoaprendizagem” (Bigarelli, 2020b, s. p.), quer dizer, trata-se do método no qual “[...] o aluno é quem define o quê, como e quando aprender” (Securato, 2017, p. 323).
O protagonismo está relacionado com o principal sujeito em um processo ou evento. O responsável, através de suas escolhas, pelos rumos de uma determinada história. O termo protagonista deriva do grego protagonistes, composto pelo prefixo de prótos, que significa principal ou primeiro, e agonistès, que significa ator, lutador ou competidor (Protagonista, 2024). Apesar de a etimologia não definir o uso de um termo, é possível problematizar a partir da ideia de lutador ou competidor. O aluno protagonista poderia ser pensado como alguém que luta para ser o primeiro. O aluno protagonista seria um sujeito que visa seu benefício individual. Sua aprendizagem ocorre por meio de seu próprio esforço depreendido, de sua tomada de decisão. É um mérito totalmente individual, sem reconhecimento de tantos que contribuem para isso. Seu êxito está relacionado a um prêmio por sua dedicação e esforço em aprender.
Isso remete às problematizações de Sandel (2021), segundo o qual os ideais meritocráticos levam a crer que as pessoas melhoram suas condições exclusivamente por meio de seus talentos e engenhosidades, ignorando uma competição desigual, marcada por privilégios e preconceitos. “A ênfase da meritocracia em esforço e trabalho árduo busca defender a ideia de que, sob as condições certas, somos responsáveis por nosso sucesso e, portanto, capazes de alcançar liberdade” (Sandel, 2021, p. 183-184).
Na mesma matéria, lemos que “Os profissionais precisam desenvolver a capacidade de aprender constantemente, de resolver problemas complexos e de se adaptar frequentemente para trabalhar, juntos, em uma nova lógica” (Bigarelli, 2020b, s. p.). Dardot e Laval (2016, p. 333), que tratam a racionalidade neoliberal como a nova razão do mundo, indicam o perfil desejável do trabalhador atual.
Trata-se do indivíduo competente e competitivo, que procura maximizar seu capital humano em todos os campos, que não procura apenas projetar-se no futuro e calcular ganhos e custos como o velho homem econômico, mas que procura sobretudo trabalhar a si mesmo com o intuito de transformar-se continuamente, aprimorar-se, tornar-se sempre mais eficaz.
A seguir, discutimos os enunciados que visam produzir o deslocamento do que seria uma aprendizagem formal desatualizada para os novos modelos digitais, que corresponderiam às exigências de uma atualização constante, bem como a um ensino personalizado de acordo com as necessidades de cada um.
NOVOS MODELOS DIGITAIS
Nas matérias do jornal Valor Econômico, em geral, são mobilizados argumentos em defesa dos novos modelos de aprendizagem digitais, os quais “[...] podem aumentar, aprimorar e até mesmo substituir com sucesso algumas abordagens tradicionais” (Bigarelli, 2022, s. p.). Seus criadores, apesar de na maior parte das vezes terem formações em áreas distantes da educacional, propagam ideias ousadas como: “Sabemos o que pode funcionar para os alunos” (Campos, 2022b, s. p.), “[...] menos disciplinas e mais colaboração” (Bigarelli, 2021, s. p.), “O ensino informal está mais próximo de preencher as lacunas do mundo moderno do que os cursos mais tradicionais” (Campos, 2018, s. p.) e “A tecnologia está influenciando a maneira de ensinar e aprender no mundo” (Campos, 2019b, s. p.).
A matéria do dia 1º de novembro de 2019, intitulada O fator humano frente à transformação digital nas empresas, de autoria de Stela Campos (2019b, s. p.), destaca que “[...] o futuro é mais tecnológico e que a tecnologia dá ao indivíduo a capacidade de aprender mais rápido”. Nessa enunciação é possível perceber traços do que Morozov (2018) denominou de solucionismo tecnológico. Ou seja, a crença de que a tecnologia, por si mesma, é capaz de solucionar problemas complexos nas mais diversas áreas. No caso, é capaz de acelerar processos de aprendizagem, sem qualquer justificativa mais consistente de como isso iria ocorrer.
Na matéria Como as companhias estão inovando na área de treinamento, de 2 de janeiro de 2020, a autora Bárbara Nór traz a opinião de Victor Queiroz, diretor de RH do Bradesco, para quem a sala de aula não é uma possibilidade para preparar os trabalhadores para as rápidas transformações do mercado, visto que seria “[...] algo tradicional e por isso é preciso buscar novas formas de ensinar” (Nór, 2020, s. p.). Essa reportagem também cita como modelos de inovação utilizados pelas empresas a gamificação e a realidade virtual.
Na contramão dos autores anteriores, compartilhamos com Biesta (2013, p. 37-38) a concepção de que, inovações que visam produzir aprendizagem sem esforço induzem a uma lógica que transforma o aluno em consumidor de serviços educacionais. Ou seja, a educação passa a ser entendida como:
[...] uma transação em que (1) o aprendente é o (potencial) consumidor, aquele que tem certas “necessidades”, em que (2) o professor, o educador ou a instituição educacional são vistos como o provedor, isto é, aquele que existe para satisfazer as necessidades do aprendente, e em que (3) a própria educação se torna uma mercadoria.
O entrevistado que chamaremos de Aparício é um entusiasta dos benefícios da aprendizagem por meio das tecnologias, sem vínculo acadêmico. Apesar de reconhecer que as instituições de ensino superior possam ter uma certa utilidade, argumenta que seus professores não têm conhecimentos úteis para o mercado.
Os cursos [de instituições de ensino superior] ajudam? ajudam, entendeu? Por que os cursos... são os cursos que dão asas, te dão consistência, mas você também consegue através de outras coisas mais curtas, mais focadas [...] hoje em dia, com a complexidade do mundo, há novas tecnologias diferentes para você se desenvolver consistentemente. [...] Tem muitos cursos [digitais] bons... são feitos por pessoas do mercado mesmo, pessoas que realmente trabalham, não aqueles lá que tão dando aula sem saber nada dessas coisas, assim... a pessoa que não tem experiência nenhuma, aí você vê lá é que um profissional que tem um perfil.
Aqui, Aparício contrapõe dois perfis de docentes: os acadêmicos e os que realmente trabalham Ele reproduz um entendimento que circula com força entre alunos de cursos de bacharelado e tecnólogos, que divide os docentes entre os que trabalham e os que somente dão aulas, sinalizando que, no senso comum, a docência não é um trabalho de verdade.
Conforme sustentam as matérias anteriores e o excerto da entrevista acima, uma aprendizagem atualizada, ou, em outras palavras, condizente com os ditames do mercado, precisa ser mediada pelas tecnologias digitais, dando-se preferência a cursos rápidos e ágeis, pois a educação formal já se encontra ultrapassada. É uma tarefa contínua dos indivíduos gerenciar seu processo de aprendizado para produzir capital humano e utilizá-lo como diferencial para permanecer incluído o mercado de trabalho. Além disso, entre os benefícios dos cursos rápidos mediados por tecnologias digitais estaria a personalização, ou seja, uma aprendizagem conforme a necessidade do cliente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo mostrou como o jornal Valor Econômico emprega uma série de estratégias argumentativas que produzem a concepção de que a aprendizagem, compreendida como um fator determinante para o sucesso profissional, deve ser buscada fora das instituições de ensino superior, que já não atendem necessidades do mercado. Essa discursividade redefine os papéis e as atribuições dos professores e dos aprendizes e exalta o uso de tecnologias digitais como uma solução para a oferta de cursos voltados para formações rápidas e individualizadas.
Imersos nessa racionalidade, o alinhamento a essas estratégias de condução das condutas dos sujeitos entrevistados ocorre, na maioria das vezes, de forma naturalizada, já que a linguagem da aprendizagem se apresenta, em seu cotidiano, como um meio de aumentar o estoque de capital humano. As análises apresentadas mostram uma convergência entre os enunciados presentes nas matérias do jornal e nas entrevistas, indicando que a mídia e os indivíduos compartilham de um mesmo regime de verdade7 acerca de uma aprendizagem que capacita para o trabalho.
Em dívida consigo mesmos, tais sujeitos sentem que precisam, de alguma forma, estar sempre atrás de uma nova capacitação que lhes proporcione algum diferencial. Reproduzindo ideais meritocráticos, naturalizam a concepção de que “[...] o futuro está em suas mãos.” (Sandel, 2021, p. 38), cobram-se cada vez mais para apresentarem os melhores resultados e investem de modo interminável na aquisição de novas aprendizagens.