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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia mayo/agosto 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p669a694 

Artigos

Avaliação, exames e poderes: a “docimologia” a partir de algumas contribuições de Foucault e Nietzsche

Evaluation, exams and powers: the “docimology” from some Foucault and Nietzsche’s contributions

Evaluation, examens et pouvoirs: la “docimologie” de certaines contributions de Foucault et de Nietzsche

Bruno Gonçalves Borges* 

Sérgio Pereira da Silva** 

*Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor de Filosofia e Filosofia da Educação na Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: brunogoncalvesborges@hotmail.com.

**Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC - SP). Professor de Filosofia e Filosofia da Educação na Universidade Federal de Goiás (UFG), Campus Catalão. E-mail: spsilva2014@gmail.com


Resumo

Este artigo analisa o tema da avaliação, mais especificamente a “docimologia” como processo avaliativo e axiológico intrínseco à determinada forma de poder ou vontade de poder. Neste sentido, através de Foucault e Nietzsche, procuraremos responder à nossa questão fulcral: o discurso pretensamente “progressista”, em torno de um exame agora processual supera ou mantém a dinâmica das avaliações autoritárias e disciplinadoras que apostam no “bem avaliar” como modulação dos sujeitos aos dispositivos, ao mesmo tempo em que age sobre a individualidade de cada um, como a “docimologia” propôs? Induzem, ou castram a criatividade, a liberdade e a vontade de aprender no educando? Procuraremos comprovar nossa hipótese de que a pedagogia forjou a ideia de “avaliação processual”, também chamada de “avaliação dinâmica” ou “avaliação diagnóstica”, como sendo um “avanço” ou “progresso” nas práticas avaliativas. Entretanto, essas práticas ainda correspondem ao clássico dispositivo do exame “contínuo” dos indivíduos, mas com outra roupagem.

Palavras chave: Docimologia; Avaliação; Poder; Individualidade

Abstract

This article analyzes the evaluation issue, specifically the “docimology” as an evaluative process and set of values intrinsic to a particular form of power or will power. In this sense, through Foucault and Nietzsche, we respond to our central issue: the allegedly “progressive” speech, around a procedural and dynamic examination, exceeds, or maintain, the dynamics of authoritarian and disciplinarian ratings betting on “good review” as modulation of the subject devices, while acting on the individuality of each person, such as ““docimology”” proposed? Induce, or castrate, creativity, freedom and willingness to learn in educating? We will try to prove our hypothesis that pedagogy forged the idea of “process evaluation,” also called “dynamic assessment” or “diagnostic evaluation” as a “breakthrough” or “progress” in assessment practices. However, in fact, it was also based on the students “continuous’ test” in schools, but with another guise.

Keywords: Docimology; Evaluation; Power; Individuality

Résumé

Cet article analyse l’évaluation du sujet, en particulier la «docimologie » comme processus d’évaluation et de valeurs intrinsèques à une forme particulière de pouvoir ou de volonté de pouvoir. En ce sens, par Foucault et Nietzsche, nous cherchons de répondre à notre question centrale: le discours prétendument « progressiste » autour d’un examen maintenant processuel dépasser ou de maintenir la dynamique des évaluations autoritaires et disciplinaires qui parient sur le « bien évaluer » comme la modulation des sujets aux dispositifs, en agissant en même temps sur l’individualité de chacun, comme le proposait la “docimologie”? Induisent-ils ou castrent-ils la créativité, la liberté et la volonté d’apprendre chez l’étudiant? Nous chercherons de prouver notre hypothèse que la pédagogie a forgé l’idée d ‘«évaluation de processus», aussi appelée «évaluation dynamique» ou «évaluation diagnostique», comme une «avance» ou un «progrès» dans les pratiques évaluatives. Cependant, ces pratiques correspondent toujours au dispositif classique de l’examen «continu» des individus, mais avec une autre tenue.

Mots-clés: Docimologie; Évaluation; Pouvoir; Individualité

1. Primeiras palavras

A escola se torna uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a operação do ensino. Tratar-se-á cada vez menos daquelas justas em que os alunos defrontavam forças e cada vez mais de uma comparação perpétua de cada um com todos (FOUCAULT, 2014, p. 181).

Os principais temas do debate pedagógico, desde as primeiras décadas do século passado, contemplam, dentre outras temáticas, a avaliação. Qualidade, igualdade, oportunidade, mérito, sucesso e fracasso passaram a ocupar o território da escola de forma definitiva, exigindo, com isso, um novo suporte teórico e normatizador, que, em certa medida, foi propiciado pelo desenvolvimento da psicologia escolar, da biopedagogia e da própria política educacional.

Acreditamos que, do ponto de vista histórico, o desenvolvimento das ciências humanas foi marcado pelo desejo de objetivar o homem nas suas diversas facetas, a fim de esquadrinhá-lo de forma precisa e útil. A própria pedagogia, sensível ao debate humanista, não poderia ter outra trajetória e, dentre outras inferências, forjou a ideia de “avaliação processual”, também chamada de “avaliação dinâmica” ou “avaliação diagnóstica” (HOFFMANN, 2000; LUCKESI, 2002; SAUL, 2000), como sendo um “avanço” ou se revelando um “sucesso” enquanto, na verdade, reconhecia a instalação do exame “contínuo” dos indivíduos na instituição escolar. Entendemos que, a partir de algumas categorias foucaultiana (atinadas à relação saber-poder) e de conceitos axiológicos e éticos de “bem e mal” (trazidos à baila pela genealogia nietzschiana), surge uma suspeita ou, talvez, nossa problemática, neste ensaio: aquele discurso pretensamente “progressista”, em torno de um exame agora processual supera ou mantém a dinâmica das avaliações autoritárias e disciplinadoras, que apostam na modulação dos sujeitos aos dispositivos, ao mesmo tempo em que age sobre a individualidade de cada um? Induzem, ou castram a criatividade, a liberdade e a vontade de aprender no educando?

Com o objetivo de relacionar a clássica ciência dos exames a uma análise realizada por Foucault, especialmente em Vigiar e Punir iniciaremos nossas reflexões com a interpretação do desejo e do interesse comum pelo ato de “bem-avaliar” e pelo nascimento da ciência dos exames, passando pelo detalhamento do dispositivo docimológico, como discurso e prática educacional, chegando, finalmente, ao problema da sofisticação e do aperfeiçoamento da técnica examinadora.

Em seguida, analisaremos a “docimologia” como sendo a concretização do desejo de definir a escola como instituição disciplinadora eficaz, seja no período em que aparece na Europa, ou nas discussões das últimas décadas que criticam a avaliação “somativa”. Então, nossa problemática poderá ser respondida.

2. Antecedentes da “docimologia”

O processo que levou à concentração da formação do indivíduo e da individualidade na instituição escolar foi descrito por Félix Pécault (1882), como um movimento continental, no qual os diversos países europeus tiveram que se “pedagogizar” (NÓVOA, 1996, p. 418) na medida em que almejavam adentrar o mundo moderno.

A exigência cada vez maior de disciplinamento para as funções produtivas fez com a “pedagogização” se tornasse uma travessia obrigatória para os países ocidentais. A industrialização da economia se intensifica, o mercado ocupa o lugar da política na vida social e uma nova realidade passa assim a ser configurada. São marcas desse processo, a implantação da instrução pública obrigatória, estruturada em sistemas burocráticos e fundamentada em ideias protecionistas em defesa do princípio estatal, a formação dos mestres, a diversificação dos postos de trabalho presentes na escola.

Nesse sentido, a sociedade será contemplada com um tipo muito específico de instituição escolar. Primeiro, deve ser fundamentada no princípio de ordem e obediência; segundo, baseada nos princípios de cientificidade, que, aliás, sustentam o primeiro. Consequentemente, “[...] o pedagogo da sociedade industrial, sociedade que aspira a uma educação de massas, achou-se limitado à noção de rendimento escolar” (JUIF; DOVERO, 1972, p. 21), o que ilustra a vontade de poder de uma educação reprodutora, não ativa, não criativa. Numa perspectiva oposta, acreditamos que é possível uma ordem e uma obediência, na lógica de uma vontade de poder e de saber afirmadora da vida, específica de uma “gaia ciência”.

Com o pedagogo da sociedade industrial, não existiu uma gaia ciência, mas uma ciência séria, na qual o método, a previsibilidade, a causalidade, dentre outras características, negou o inaudito, a arte e a alegria inerentes à vida. Assistimos, portanto, ao triunfo da psicologia experimental que lograva o cientificismo no interior da ação pedagógica encampando lugar de destaque nos programas de formação de professores, fazendo chegar às escolas práticas testadas em laboratório como escalas, testes e orientações com intuito de compreender, sistematizar e intervir para a eficiência do dispositivo pedagógico.

Pelas mãos da psicologia e, sobretudo, da biologia1 será gestada a ideia de laboratório pedagógico. Se o espaço da educação foi, do ponto de vista histórico, o espaço da vida social, da tradição cultural, da política e da crise geracional, a partir do final do século XIX, ocorre uma centralização da ação educativa na escola, difundindo, já nas primeiras décadas do século seguinte, a crença de que era possível ensaiar a vida social na escola. Portanto, essa instituição deveria funcionar de laboratório, inclusive, com a reserva de física do espaço para a função de experimentar a melhor forma possível de ensinar e a correção necessária do aprender.

A instalação de laboratórios pedagógicos não esteve centrada, todavia, na iniciativa psicológica experimentalista. O desejo de controlar as “variáveis” da formação humana a partir de “experimentos” seguros e confiáveis encontrou espaço em outras formas institucionais: a colônia de Gorki, por exemplo, configura uma experimentação pedagógica específica, que posteriormente, serviria de modelo para a reeducação de menores infratores da extinta União Soviética. A libertária escola de Summerhill, também se apresenta como outra experiência “laboratorial”, com influência da psicanálise. O sentido, portanto, que sobressai no dispositivo pedagógico experimental é o de ensaio da vida projetada como ideal em um espaço determinado e seguro para tal prática.

Neste contexto, seja pelo assumido controle experimental do corpo ou da vontade, seja pelo controle dissimulado em uma sensação de liberdade, está-se sob a égide da moral idealista, reativa. A vida como ela é não se constitui elemento do currículo experimentalista, muito menos do libertário. Fala mais alto a moral e os valores idealizados do “tu deves” com seus processos de avaliação e exames estranhos à lógica da imanência.

No Brasil, a criação do Laboratório de Psicologia2 na Escola Normal Secundária de São Paulo, no ano de 1914, ocorreu a partir do investimento do professor Oscar Thompson3 (1872-1938), que alinhado aos objetivos de modernização da educação pública, segundo os preceitos da modernização do ensino, concretizou o seu desejo e dos demais intelectuais integrantes ao grupo progressista de desenvolver no Brasil uma pedagogia científica a partir dos métodos das ciências experimentais, sobretudo, da avaliação psicológica do educando.

O laboratório tinha por finalidade a preparação técnica dos professores para a realização de exames em seus alunos e, de certa forma, esperava-se que eles promovessem alguma revolução no ensino, aprendendo de forma experimental a avaliá-los. A expectativa era que o professor cientista fosse psicólogo, antropólogo, fisiólogo e higienista (CENTOFANTI, 2006, p. 35).

A instalação do laboratório de psicologia experimental no Brasil encontra no currículo da escola normal (1894-1920) a sustentação experimentalista necessária para o seu sucesso. Disciplinas como Biologia, Fisiologia e Higiene, Anatomia, Sociologia, Antropologia, Psicologia e Pedagogia Científica corporificam o projeto cientificista de formação de professores, que pretende não apenas certificar mestres aptos a ensinar ciências, mas, sobretudo, mestres que são eles mesmos produtos da ciência contemporânea4.

O laboratório tinha o caráter articulador entre as aulas teóricas e práticas, o que lhe rendia maior destaque. Não obstante, algumas das principais lições foram acerca dos exames, além da observação de comportamento e registro de resultados. No final dos anos 1920, o Laboratório de Psicologia Experimental assume nova denominação, passando a ser conhecido por Laboratório de Pedagogia Experimental, o que, consequentemente, evidencia a influência da psicologia sobre a educação, que, aliás, já era tomada como saída para uma abordagem científica da pedagogia. Sob influência italiana, foi dirigido ao menos em duas ocasiões por psicólogos daquele país (Clemente Quaglio e Ugo Pizzolli), o primeiro laboratório instalado em escola normal também foi marcado pela passagem de Henri Piéron em 1927, que lá proferiu alguns de seus cursos no Brasil.

3. O desejo de “bem-avaliar”: o nascimento da ciência dos exames

É certo que o ato de avaliar ou examinar os estudantes constituía cultura de longa data quando as questões de “bem-avaliar”; de “justiça” no emprego do procedimento e da necessidade de comparação asséptica passam a ocupar as preocupações de professores, psicólogos, pedagogos, políticos dentre outros interessados nesse tipo de atividade. Não por acaso, a “docimologia”, objeto de investigação do presente artigo, desenvolve-se no interior dos laboratórios de psicologia experimental e pedagogia científica, porém insensível à necessidade de uma crítica dos valores, da moral e à urgência de se forjar uma transvaloração que significasse novos fundamentes para uma nova cultura avaliativa, mais ativa, mais criativa e imanente.

Etimologicamente, de origem grega, o termo tem raiz na palavra (δοχιμεο) dochimeo, que corresponde a aprovar e, também, a (δοχιμαξο) dochimaxo, referindo-se ao ato de examinar. Não é possível, contudo, sustentar relação que não seja o uso por empréstimo da língua grega para a criação de um conceito totalmente novo que se empreendeu no início do século XX.

Criada no interior dos laboratórios de psicologia experimental, a “docimologia” se desenvolveu na França no início dos anos 1920, tendo como objetivo responder ou ainda questionar a prática avaliativa nas instituições educacionais, na expectativa de subsidiar, rigorosamente, a seleção e classificação dos indivíduos, “com vista à utilização racional das suas aptidões pela sociedade.” (JUIF; DOVERO, 1972, p. 111).

Conforme Foucault, não é possível especificar o nascimento de uma ciência de forma inaugural, com uma cerimônia da história gloriosa que tende a iniciar a produção de novos discursos e práticas a partir de um ponto igualmente novo. Nesse sentido, se o discurso sobre a clínica aparece ao mesmo tempo em que as práticas de normalização da população também se tornam realidade, sugerindo uma retroalimentação, a “docimologia” deve ser entendida segundo o mesmo espectro.

Portanto, Foucault, por meio do empreendimento genealógico, desvela o complexo conjunto das regras discursivas presentes na constituição do objeto de conhecimento uma vez que para ele o objeto é produzido junto com o discurso que o referencia. É no território da linguagem que o filósofo promove uma interpretação das formas de como um discurso é produzido, ao mesmo tempo, como processo e produto, que permite ao saber de determinada época constituir seus objetos de conhecimento a partir do exercício de disciplinamento.

Diante disso, a compreensão do exame ininterrupto da sociedade disciplinar descrito por Foucault requer que seja feita uma análise, ainda que breve, do fundamento genealógico que nutriu o empreendimento do filósofo francês: o filósofo alemão F. Nietzsche.

Logo, a questão que se coloca de imediato é quando, por que e como o homem desenvolveu o ato de valorar, de avaliar, de emitir juízos de valor? Nietzsche afirmou que o homem é um “animal avaliador” e a criação dos valores resultou de suas demandas sociais ou relacionais. E o ato de valorar foi imprescindível ao ato de pensar porque o indivíduo precisou:

Estabelecer preços, medir valores, imaginar equivalências, trocar - isso ocupou de tal maneira o mais antigo pensamento do homem, que num certo sentido constituiu o pensamento: aí se cultivou a mais velha perspicácia, aí se poderia situar o primeiro impulso do orgulho humano, seu sentimento de primazia diante dos outros animais. [...] o homem [Mensch, em alemão] designava-se como o ser que mede valores, valora e mede, como ‘o animal avaliador’. (NIETZSCHE, 2006, p. 59).

Ora, essa atitude de criar valores conferiu ao homem o poder e a iniciante confiança na sua autonomia. Nenhum outro animal possuía essa capacidade, seu orgulho era merecido. Atribuir valores às coisas (dizer que isso é bom e aquilo é mau!) é um ato criativo, é dar sentido humano a essas coisas, sem o qual a vida se torna uma experiência medíocre. Viver, verdadeiramente, passou a requerer a capacidade de enunciar juízos de valor que, por sua vez, elege a verdade do indivíduo que valora, assim como sua ousadia de criar novos valores ou “transvalorar”. Neste trabalho axiológico, o indivíduo revela sua vontade de verdade e seu poder. Sobre a intrínseca relação entre verdade e poder, comenta Foucault:

a verdade não existe fora do poder ou sem poder. [...] Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” - entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui aos verdadeiros efeitos específicos de poder.” (FOUCAULT, 1998, p. 12-13).

Este filósofo francês, como o filósofo alemão F. Nietzsche, desmascara a ingenuidade política de uma pretensa verdade altruísta e despojada de vontade de poder. Deste modo, os juízos de valor, consequentemente, os exames e avaliações estão grávidos de vontade de poder. Resta indagar: a “docimologia” moderna rela o poder de quem? A quais interesses ela corresponde?

Para que “valoremos” com precisão e justiça, exercitando nosso poder avaliador, uma genealogia dos valores, inerente a uma genealogia da moral, se faz necessária. De outro modo, simplesmente reproduziremos os valores (e o poder) hegemônicos do entorno onde emitimos juízos de valor. A virilidade e a ousadia de criar novos valores, “transvalorar” estes valores hegemônicos, distingue o guerreiro do covarde e o “forte” do “fraco”. Nietzsche (2006, p. 12) afirma que o indivíduo reativo (o “fraco”), ou ressentido, aquele que não afirma a vida como ela é, incorpora ou toma “o valor desses ‘valores’ [os da cultura, os já existentes.] como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao ‘bom’ valor mais elevado que ao ‘mau’ [...] E se o contrário fosse a verdade?”. A possibilidade de que o contrário seja verdade já revela a suspeita e a dúvida como elementos constitutivos da valoração afirmativa. Eis o motivo de algumas indagações serem fundamentais:

O que é bom? - Tudo o que eleva o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder no homem.

O que é mau? - Tudo o que vem da fraqueza. O que é felicidade? - O sentimento de que o poder cresce, de que a resistência é superada. Não a satisfação, mas mais poder; sobretudo não a paz, mas a guerra; não a virtude; mas a capacidade (virtude à maneira da Renascença, virtú, virtude isenta de moralina.). (NIETZSCHE, 2007, § 2).

Deste modo, nossa vontade de verdade nos coloca em confronto direto com a moralidade hegemônica, elevando nosso sentimento de poder, nossa virtude e nossa autonomia avaliadora. Desta maneira, nossos valores afirmativos serão sustentadores de uma avaliação virtuosa, nobre. E o que dizermos da moral reativa (“moralina”)? Segundo este filósofo, em uma cultura avaliada como sendo “negadora” da vida, ou “decadente”, o ato realmente criativo, moral e revolucionário seria a marteladas, desconstruindo os valores de negação e cunhando valores afirmativos. Em outras palavras, seria uma “transvaloração”, ou criação de novos valores, mesmo porque os valores anteriores foram forjados por abstrações, por idealizações oriundas dos princípios metafísicos e seus valores transcendentes. Uma avaliação imanente, em oposição a uma transcendente, exige, para o filósofo alemão, no mínimo,

um escrúpulo que me é peculiar, e que confesso a contragosto - diz respeito à moral, a tudo o que até agora foi celebrado na terra como moral -, escrúpulo que surgiu tão cedo em minha vida, tão insolicitado, tão incontido, tão em contradição com ambiente, idade, exemplo, procedência que eu quase poderia denominá-lo meu “a priori” - tanto minha curiosidade quanto a minha suspeita deveriam logo deter-se na questão de onde se originam verdadeiramente nosso bem e nosso mal. (NIETZSCHE, 2006, p. 9).

O escrúpulo de Nietzsche o levou à sua genealogia da moral, ao começo da valoração do “bem” e o “mal”. Resta-nos fazer o mesmo, indagar sobre os fundamentos das nossas avaliações e exames. Devemos indagar sobre os fundamentos morais da nossa valoração: se ela é própria de uma moral afirmativa ou negativa em relação à vida, como ela é. Estaremos contribuindo para um estudo e uma análise dos processos avaliativos, os processos de exame, ou seja, para a “docimologia”.

Larrosa aborda de forma complementar essa mesma questão, quando afirma que a linguagem constrói a realidade a ser dada, em que há um conjunto de práticas discursivas capaz de agir decisivamente e de uma vez por todas, sobre aquilo que será tomado como real. Segundo ele, esta é uma operação linguística em que o homem,

Primeiro irá inventá-la, depois irá impô-la e, finalmente, poderá se apoiar nela. Então, a realidade com toda a sua força, seu prestígio, sua solidez e sua autoridade, estará do seu lado. Porém, para nós, essa realidade nos produz uma estranha sensação de irrealidade. (LARROSA, 2014, p. 64).

Nessa direção, a obra mais difundida de “docimologia” intitulada “Examens et docimologie”, escrita por Henri Piéron e publicada em 1963 parece ser exemplar no que se refere à operação linguística de criação, difusão e sustentação do discurso, tratada há pouco por Larrosa (2014). A primeira parte do livro apresenta o histórico dessa nova ciência, que não por acaso, é o passo crucial: “Para existir é necessário afirmar-se na história”.

O contexto desenhado por Piéron é o da escolarização francesa. O estabelecimento da obrigatoriedade do ensino e da centralidade da iniciativa estatal, a certificação e seleção para os cursos secundário e superior apresentavam sérias demandas quanto ao problema do ato de examinar e classificar os indivíduos. Mais uma vez, o problema não é originário da escola, mas uma demanda da economia produtiva que exigia a orientação, a seleção para o trabalho na indústria, “a distribuição dos contingentes militares e a promoção social interna e externa” (JUIF; DOVERO, 1972, p. 112) dos indivíduos.

Sob a direcção de H. Piéron, que retoma as análises inglesas de Hartog e as hipóteses do suíço P. Bovet, uma equipa composta em especial pela Sr.ª Piéron, H. Laugier D. Weinberg empreendeu, no período entre as duas guerras, um estudo sistemático dos exames e lançou as bases da “docimologia” que é essencialmente francesa. (JUIF; DOVERO, 1972, p. 112).

Piéron analisa detalhadamente, a partir de uma vasta documentação escolar a sistemática francesa do exame. Propõe a distinção entre os objetivos formais da avaliação - provas e concursos em geral e, o significado das notas obtidas quanto a sua variabilidade: exame oral ou escrito; o que deve influenciar a distribuição de notas, a aplicação de índices de corte, até chegar ao problema da subjetividade presente na ação dos examinadores.

Com isso, o psicólogo francês anuncia a “revolução” necessária para a prática do exame, que não mais se circunscreve ao ambiente escolar, mas apenas é uma reprodução em menor escala da preocupação com o rendimento e a disciplina. Produzir um teste que seja confiável passa pela adoção de rigor científico na prática avaliativa, com recurso às técnicas psicotécnicas e a estatística educacional, sem, contudo, criticar a validade e fidelidade dos próprios exames defendidos como modelares - da psicologia experimental. Para criticar a validade destes exames, seriam necessárias uma sensibilidade moral e uma axiológica, estranhas à lógica cientificista da época.

A fim de apresentarem uma visão panorâmica da ciência dos exames, Juif & Dovero (1972, p. 114-115) fizeram uma compilação em que pontuam a incidência das investigações docimológicas segundo H. Laugier, H. Piéron e P. Dague, a saber:

- estudo da “estabilidade” de um exame, medida do seu “conformismo” em relação às mesmas prestações fornecidas no caso de um grande número;

- provas escritas; provas orais: estudo do peso respectivo de cada série;- descoberta dos examinadores anormais através do estudo do fator aleatório constituído pela personalidade de quem faz correção; - estudo dos afastamentos de notas entre examinadores da mesma prova; - estudo da disposição das notas brutas em notas elaboradas pela utilização de um aparelho eletrônico;

- investigações sobre a variabilidade interindividual dos examinadores (correção das mesmas provas pelos mesmos examinadores dois ou três anos depois);

- comparação das prestações fornecidas pelas provas tradicionais e pelos testes. Estudo da mistura dos dois sistemas;

- investigação das soluções susceptíveis de melhorar a objetividade dos exames (introdução de provas com perguntas múltiplas; dupla correção ou correção múltipla após adoção de uma tabela; seleção e formação dos examinadores etc.).

O desejo de bem-avaliar é, por fim, reiterado diversas vezes, seja nas obras inaugurais como de Piéron, seja em diversos congressos e cursos promovidos pelo grupo liderado por ele e propagados pelo Ocidente. A genealogia nietzschiana nos alerta que para bem-avaliar é necessário conhecer, afinal, de que “bem” e de que “mal” se está falando. Assim, a ciência docimológica vê-se “animada por uma preocupação de justiça escolar e por uma preocupação de interesse social” (JUIF; DOVERO, 1972, p. 115). Porém, uma suspeita a respeito do que seja “justiça” e “interesse social” se faz necessária diante do perspectivismo inerente aos juízos de valor.

4. O interesse comum em “bem-avaliar”

Entendemos que o interesse em “bem-avaliar”, uma vez posta a “suspeita” mencionada no final da secção anterior, não atende a uma necessidade do examinado que se queixa cronicamente do método ao qual foi submetido, desvantajoso em qualquer circunstância, pois é um fim e não um meio. Todo avaliado sabe que da sua avaliação resulta alguma contingência ou expansão. Ainda, sabe que aquilo que é comum, não reúne e nem preserva, as subjetividades individuais, tampouco comporta suas demandas sociais e cotidianas: profissionais, políticas, culturais etc. O comum, neste caso, deve ser lido como interesse social. Interesse de uma sociedade específica, a disciplinar, que produz a sensação de coletividade ao mesmo tempo em que anula qualquer possibilidade de subversão a ela em nome, justamente, do bem comum.

O exame é um componente apresentado por Foucault, sobretudo, em Vigiar e Punir, que faz parte dos recursos que a sociedade disciplinar pode lançar mão tendo em vista o bom adestramento dos indivíduos. Combina nele mesmo a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora, comportando-se, por excelência, como elementos da engrenagem permanentemente em movimento do sofisticado mecanismo de controle.

Por si só,

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade (FOUCAULT, 2014, p. 181).

A escola é o lugar privilegiado desse tipo de avaliação, onde se vê a materialização mais do que perfeita do exame como continuum do poder disciplinar por meio de exames que determinam um currículo consequente. Mas não falamos de um poder abstrato, falamos de um poder concreto que, paradoxalmente, pode engendrar exames idealistas e/ou transcendentes fiéis a uma lógica e a um discurso moral e axiológico de outro mundo, não o do cotidiano do avaliando, tampouco sensível às suas demandas reais. Por meio do exame, gira a complexa maquinaria pedagógica, que centra em si mesmo para definir seu discurso e sua prática, ao mesmo tempo em que responde a uma exigência que invade a escola, de classificar, seriar, promover, excluir etc., por meio da prática examinadora supostamente bem intencionada.

Foucault não hesitou em assemelhar a constituição dos saberes médico e pedagógico. Cada um destes está centrado em suas “patologias” e são conhecimentos consolidados a partir do momento em que se definiram como “aparelho de examinar” (FOUCAULT, 2014). O hospital como lugar adequado ao exame e a escola como aparelho ininterrupto dele. A partir de então, o ato de examinar passa a ser tão importante quanto o próprio exame.

Especificamente, na instituição escolar, as preocupações com o exame passam a gravitar em torno do interesse disciplinador em promover um bom adestramento dos indivíduos a partir do cientificismo pedagógico. Para os psicólogos envolvidos nos problemas de conteúdo, forma e modalidade de avaliação, “as lamentações dos examinados e os escrúpulos dos examinadores alimentam desde há muito tempo a contestação dos exames” (JUIF; DOVERO, 1972, p. 112), mas, que acima de tudo, seria necessário proteger o exame, pois constitui prática incontestável dos sistemas de ensino.

Na mesma direção, Landsheere, na obra “Evaluation continue et examens - précis de docimologie”, de 1974 e que teve algumas traduções para o português via editores portugueses, afirma que:

Os tempos de oposição entre psicometristas e práticos da educação já foram ultrapassados. Os primeiros deverão humanizar os seus números; os segundos, introduzir mais rigor nos seus processos. Ambos têm de unir e harmonizar os esforços para maior benefício do estudante e da comunidade (LANDSHEERE, 1976, p. 9).

A superação das diferenças entre psicólogos e pedagogos só foi possível com a imposição do saber psicológico centrado no exame rigoroso sobre o pedagógico que se pautava na observação arcaica. Finalmente, conforme Foucault (2014, p. 183), “a era da escola ‘examinatória’ marcou o início de uma pedagogia que funciona como ciência”.

Landsheere, julgando fazer uma análise isenta sobre a “docimologia”, desenha um cenário de negação e pessimismo, ainda que, por fim, seja possível compreender seu verdadeiro posicionamento. Ele mesmo afirma

Que se tenha abusado dos exames até ao ponto de viciar a acção educativa da escola, ninguém o poderá contestar. Que muitos concursos não foram mais que sinistras lotarias e ratoeiras parece também fora de dúvida. Que a certos scores se tenha atribuído uma significação que eles não tinham é igualmente evidente. Daí até concluir que exames e concursos devam ser definitivamente proscritos para manter apenas classificações ocasionais e as relações que as sintetizam, parece utópico (LANDSHEERE, 1976, p. 56).

Na mesma direção está o posicionamento de P. Dangue, entusiasta da “docimologia” de H. Piéron, com o qual contribuiu no desenvolvimento estatístico e experimental da ciência dos exames.

Longe de construir um meio de diagnóstico ou de orientação ao serviço de educação, os exames tornaram-se a própria finalidade do nosso ensino, o objetivo que os alunos e a maior parte dos professores se atribuem e, no final de contas, o único critério de êxito de toda a vida escolar (JUIF; DOVERO, 1972, p. 115).

Este cenário conflui para a produção da “normalidade”, anunciada por Foucault a partir dos mecanismos científico-disciplinares. O exame, operado por meio da psicometria, da biopatologia, da pedagogia diferencial e das demais formas discursivas e ações práticas da atividade pedagógica, funciona como mediador constante entre os saberes aprendidos pelos alunos e aqueles percebidos pelos professores, “substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável” (FOUCAULT, 2014, p. 189), o que evidencia aquilo que Nietzsche chamou de vontade de poder agindo no processo educativo através da imposição de um “bem” e de um “mal”, de um “certo” e de um “errado” etc.

Logo, a partir do discurso em defesa de práticas de “boa avaliação” de “justiça escolar” e “interesse comum” tem-se a formação dos indivíduos no espectro da “normalidade”, ou seja, da moralidade idealizada por valores impostos pelo poder do avaliador. Não por acaso, Landsheere (1976, p. 53) ressalva que “[...] a floração dos exames de carácter seletivo parece característica das condições culturais do século XIX, em articular, do desenvolvimento duma burocracia extremamente hierarquizada, ao serviço da economia capitalista”. Este modelo de exame, que nada mais é que uma seleção de trabalhadores alienados forja o homem reativo, incapaz de “transvalorar” porque não é intenção deste modelo estimular a “autossuperação” do avaliado, tampouco sua autonomia e sua autoestima, suficientes para que ele exija um novo modelo de exames.

Portanto, o homem metrificado e esquadrinhado por meio das ciências humanas, ao ser concebido pelo espectro pedagógico, é acomodado na função primordial de normalização da sociedade disciplinar através do “rendimento” resultante do bom adestramento que, em última instância diz respeito às economias que gerenciam a vida. Não basta, assim, no caso do exame, classificar os indivíduos de zero a dez. É necessário, primeiro, antagonizar o dez e o zero. Em seguida, disseminar o desconforto tanto de ser zero quanto de ser dez, pois na sociedade capitalista sempre é necessário ser mais (produtivo). No fim das contas, nunca se está além do mediano, da mediocridade.

Se, contudo, a origem do problema de rendimento não seja propriamente escolar, ele invadirá e dominará a atividade pedagógica. O rendimento, enquanto produto de uma avaliação há muito tempo encontra-se distribuído em todas as instituições sociais: desde a mais clássica - a instituição militar, passando pelas indústrias e chegando à escola, que, aliás, não teria função outra que atender as duas primeiras.

5. O dispositivo docimológico: docimástica e doxologia

O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício de poder (FOUCAULT, 2014, p. 183).

A “docimologia” comportando-se como ciência que se ocupa do estudo sistemático dos exames (a produção do exame; a atribuição de notas; e, a investigação comportamental afetivo-cognitiva de examinados e examinadores), anteviu a necessidade de compreensão do mecanismo que liga o saber docimológico e o exercício de poder, que pode ser reconhecido na instalação do conjunto “heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais” (FOUCAULT, 1976, p. 244), que também envolve o ato de examinar

A princípio, a “docimologia” tomou um carácter negativo, criticando as maneiras de classificar e mostrando experimentalmente a falta de fidelidade e de validade dos exames. Em seguida, entrou numa fase construtiva, tentando propor métodos e técnicas de medida mais objectivos ou, pelo menos, mais rigorosos e afirmando os meios de tornar as notas comparáveis, por forma a assegurar mais justiça escolar (LANDSHEERE, 1976, p. 13).

Assim, os agentes da ciência docimológica tiveram de reacomodar as múltiplas perspectivas que incidem sobre o exame, o que resultou em uma precipitada especialidade e uma rasa subdivisão. Desta empresa resultaram a docimástica, que estaria a cargo da técnica dos exames, ou seja, o desenvolvimento procedimental e a doxologia como “o estudo sistemático do papel que a avaliação desempenha na educação escolar” (LANDSHEERE, 1976, p. 13). Essa divisão não poderia ser mais emblemática segundo a perspectiva da especialização e hierarquização do saber pedagógico.

Landsheere (1976 apud Taba, 1962, p. 17) com o intuito de diferenciar medida e avaliação revelando um paradoxo do exame.

O processo de medida é fundamentalmente descritivo, porque indica quantitativamente em que grau se possui determinada característica. A medida em educação concentra-se em geral em determinadas características específicas, delimitadas e bem definidas.

No cruzamento que se opera entre um tipo de saber e uma forma de exercício do poder, Foucault (2014, p. 183-188) explicita três características próprias do exame, que são: 1) O exame inverte a economia da visibilidade no exercício do poder; 2) O exame faz também a individualidade entrar num campo documentário; e 3) O exame, cercado de todas as suas técnicas documentárias, faz de cada indivíduo um “caso”.

O dispositivo docimológico opera, justamente, na inversão da economia da visibilidade na medida em que naturaliza o processo disciplinar da avaliação do rendimento - a avaliação não é o final do processo, nem mesmo o processo, mas a marca ininterrupta do ato de localização, determinação e previsão do lugar do indivíduo, tornando-se invisível quando considerado acima de qualquer suspeita. Ao mesmo tempo, submete a uma exploração obrigatória da individualidade segundo escalas, boletins, ranking, menções honrosas, sanções, retenções e todo tipo de intervenção parcial com intuito de totalização: o aluno é a sua nota.

É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar. E o exame é a técnica pela qual o poder, em vez de emitir os sinais de seu poderio, em vez de impor sua marca a seus súditos, capta-os num mecanismo de objetivação. No espaço que domina, o poder disciplinar manifesta, para o essencial, seu poderio organizando os objetos. O exame vale como cerimônia dessa objetivação (FOUCAULT, 2014, p. 183).

A “cerimônia dessa objetivação” celebra valores não processuais, não circunstanciais, em outras palavras, não históricos. Se conforme Foucault o exame funciona como cerimônia da sujeição ao poder disciplinar e tal circunstância exige uma forma de registro, dando visibilidade ao processo invisível, no exercício avaliativo esta prática deve ser bem distribuída. A minúcia e o detalhamento cotidiano por meio do exame na escola exigem ser constantemente registrados e, por isso, o aperfeiçoamento da técnica por meio da docimástica, seguindo as quatro vias de racionalidade do exame:

- à investigação da conformidade dos exames com o fim em vista;- ao estabelecimento de formas de classificação e de “descontos” adequados;

- à preparação dos examinadores para a sua tarefa;

- ao apelo para métodos objectivos (FOUCAULT, 2014, p. 115-116).

No dispositivo docimológico, a docimástica precisa ser combinada à doxologia com a finalidade de abranger a totalidade do exame. A subdivisão da ciência dos exames ocupada em relacionar a mais bem sucedida forma de avaliar o indivíduo e o enquadramento dessas técnicas aos objetivos disciplinares gerais - doxologia abrange, segundo Landsheere (1976 apud Giullaumin, 1968, p. 250-275):

- estudo dos efeitos inibidores ou estimulantes das diferentes formas de exame;

- estudo das reações emocionais dos alunos e, a partir daí, das reacções intelectuais aos juízos do professor;

- estudo dos efeitos de opinião do professor, no que toca aos alunos, sobre o seu ensino e sobre a aprendizagem escolar;

- estudo dos processos postos em jogo e dos efeitos obtidos pela automatização, pela interclassificação, pela classificação de equipa, pela ausência de classificação

Disso resulta, na instituição escolar, um aparato documental complexo. A ficha de matrícula, a pasta do estudante, o diário de turma, o boletim, a caderneta de anotações, o livro de ocorrências entre outras formas configuram a “rede de anotações escritas” que registra continuamente os resultados dos exames, ou seja,

Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha, o exame abre duas possibilidades que são correlatas: a constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável, não, contudo, para reduzi-lo a traços “específicos”, como fazem os naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-lo em seus traços singulares, em sua evolução particular, em suas aptidões ou capacidades próprias, sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a constituição de um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa “população” (FOUCAULT, 2014, p. 186).

O exame, portanto, não se restringe à captura instantânea do nível de aprendizagem ou do conteúdo aprendido, como inclusive afirmam os críticos das teorias avaliativas, mas se ocupa da permanente combinação da vigilância hierárquica e da sanção normalizadoras para a perpetuação do poder disciplinar, que extrapola a instituição escolar. Com essa constatação, o filósofo francês traz à luz, como também o fizera F. Nietzsche, a vontade de poder ocultada pela retórica de exames inofensivos, objetivos, assépticos.

A consequência última do exame, conforme Foucault (2014) é a individualização profunda do examinado, tornando-se limitado e circunstanciado ao processo que o tornou objeto conhecível. O indivíduo passa a ser reconhecido por aquilo que é descrito e, portanto, a visibilidade a qual é submetida é possível apenas por meio do conjunto documental produzido sobre si.

Por isso, o exame é bem mais do que uma ação pontual. Ele produz um rastro que é permanentemente perseguido até chegar ao ponto em que cada sujeito só pode ser tratado como um “caso”, que “pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria individualidade” (FOUCAULT, 2014, p. 187), que na instituição escolar, encontrará, no dispositivo docimológico, o saber-poder capaz de determinar o “indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado, tem que ser classificado, normalizado, excluído, etc.” (FOUCAULT, 2014, p. 187).

Não obstante, a individualização promovida pelo instrumento examinador da sociedade disciplinar atravessa o período de maior efervescência pela adesão aos modelos de cientificidade das ciências na natureza e, ainda permanece, nas críticas às teorias clássicas do exame, que se pretendem superadoras daquela “sociedade disciplinar” e presente nas propostas avaliativas do mundo contemporâneo reclamantes por uma educação mais progressista e humanizada.

E por que “ainda permanece” se estas novas propostas reclamam para si a característica de ser uma educação revolucionária? Ora, faltam-lhe os vírus corrosivos das suspeitas nietzschiana e foucaultiana que desvelam a vontade de poder escondida no micro (em cada célula, em cada palavra, em cada ato, em cada gesto “altruísta”, “asséptico” ou demagógico) e no macro (que é a global produção, organização e disseminação de valores que constituem os poderes econômicos, políticos, culturais etc.).

6. Considerações finais: sofisticação e aperfeiçoamento da técnica?

O principal legado da “docimologia” é a naturalização5 do exame. Depois de ser elaborado como técnica cientificamente eficaz e tomado como prática moralmente necessária, o exame ultrapassa o dilema de ser “um mal necessário” para ser uma constante. Aos exames,

O essencial é que não venham inserir-se, como corpos estranhos, no processo de educação, mas façam dele parte integrante. Por esta mesma razão, não se devem acantonar no domínio estreito do conhecimento, mas sim visar a personalidade no seu conjunto (LANDSHEERE, 1976, p. 8).

A ressalva feita por Landsheere (1976) indica a sofisticação e aperfeiçoamento necessários ao exame para que se torne inquestionável e infalível no ambiente escolar. O exame deve estar acima do examinado, pelo abismo criado entre a apreensão de ter capturado seu status cognitivo-afetivo e a incompreensão do código científico que o fez. Mas, também, acima do examinador, que deve seguir obrigatoriamente as técnicas confiáveis para elaborar, aplicar e corrigir o exame de forma equidistante.

Diante das supostas desconfianças que pudessem recair sobre o processo avaliativo, o sucesso do bom adestramento por meio da técnica do exame, segundo Landsheere, é possível na medida em que a “docimologia” adentra um território mais amplo e decisivo: o da política educacional. Há, portanto, um alinhamento entre sentido clínico, herança experimental da avaliação, espírito crítico que não compreende os antagonismos e concentra a discussão apenas no Estado e o poder normatizador da formação, distribuído entre o governo estatal e as diversas instituições que se cruzam no campo educacional.

A “docimologia” produziu, com isso, um resultado bem mais duradouro do que a sua própria existência. Nesse sentido, o desejo de “bem-avaliar” alimenta os sonhos de educadores, gestores e dirigentes mundo afora. Como argumentam Juif & Dovero (1972), caberia à ciência dos exames a definição de uma política educacional geral, que parece ter se concretizado nos últimos cinquenta anos. A “docimologia”, segundo Juif & Dovero (1972, p. 116), deve procurar “substituir em toda a medida do possível as selecções por meio de exames por uma orientação contínua, baseada num conhecimento apropriado de cada personalidade, obtido com o auxílio dos métodos objectivos”.

Nossa suspeita (problemática), descrita na introdução deste texto, indaga se as avaliações contemporâneas, pretensamente “progressistas”, superam ou não a dinâmica das avaliações autoritárias e disciplinadoras. Concluímos que as formas avaliativas contemporâneas pautadas na individualização, também denominadas formativas, qualitativas ou processuais, não são portadoras de uma revolução na cultura dos exames. Antes de representar a libertação do avaliado, uma abertura à subjetividade, essas novas formas correspondem à intensificação do exame clássico, que agora pode invadir a individualidade de cada sujeito, sem encontrar resistência real no campo educativo.

A autoavaliação, o portfólio e o diário de estudos, são apenas alguns dos instrumentos que não substituem, mas aperfeiçoam a técnica do exame contínuo da sociedade disciplinar. Além da captura do estado cognitivo momentâneo de um saber, esses instrumentos operam uma constante verificação dos estados afetivos e emocionais, agindo sob a ótica psíquico-normativa.

O caráter diagnóstico e processual desse tipo de avaliação poderia significar um importante início da “transvaloração” no ato de examinar e avaliar porque a fixidez do valor atribuído, através dos conceitos e dos números imutáveis, típicos da cultura e da moral metafísica e do modelo avaliativo adequado à lógica formativa neoliberal, daria lugar à possibilidade do inusitado, da transformação, do vir-a-ser, estes que são mais adequados à dinâmica real da vida e do cosmos. Entretanto, a engrenagem social ainda clama pelo controle e pela satisfação coletiva e massificadora do processo formativo, inviabilizando uma virada conceitual e prática da avaliação, fazendo com que o grau de perversidade seja ainda maior, pois tenta invadir a singularidade.

Por fim, os resultados, registrados com a micro-intervenção incessante sobre a subjetividade auxiliada pelas técnicas personalizadas de avaliação, são massificados ou consolidados. Ocorre uma atualização à linguagem contemporânea, transmitidos a um lugar macro-institucional, onde estarão disponíveis para o exame contínuo e ampliado dos indivíduos, suscetíveis, a todo tempo, à divisão, agrupamento, isolamento, ocultação e destacamento.

Os casos, finalmente, são transformados em dados.

Referências

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1Sobre este assunto há discussões tanto na área de ciências biológicas quanto nas ciências humanas e sociais. Ver: Glória (2009) e também Veiga (2008).

2Não se trata, contudo, do primeiro empreendimento do tipo no país, mas um importante passo para a institucionalização da prática experimental na formação de professores. Em 1906, por exemplo, ocorre a instalação de um laboratório de psicologia experimental no Instituto Nacional de Pedagogia, que posteriormente, daria lugar ao atual Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP.

3Oscar Thompson foi diretor da Escola Normal da Praça de 1901 a 1920 e Diretor Geral da Instrução Pública de São Paulo por dois períodos: entre 1909 e 1911; e, depois, de 1917 a 1920.

4Dentre a ampla produção acerca do currículo da Escola Normal, sugere-se: Almeida (1995). Este artigo apresenta um histórico dos projetos curriculares pertinente para a questão.

5A naturalização de que se trata esteve ancorada no próprio sentido de neutralidade.

Recebido: 25 de Agosto de 2015; Aceito: 23 de Março de 2016

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