Apresentação do problema
Um dos mythoi mais sintomáticos para a discussão do tema da invisibilidade na República, de Platão, é o mythos do antepassado de Giges (R. 2, 359b6-360b2)1 no livro segundo. Nele, um elemento mítico chama bastante atenção: o anel que tem o poder de tornar seu utilizador invisível. Além dessa ocorrência, esse mítico elemento é brevemente retomada na forma de “anel de Giges”2 (R. 10, 612b4), no livro décimo, e funciona como se fosse um proêmio introdutório ao relato de Er. Tentaremos demonstrar a função desse mítico elemento na problemática da vida justa e da vida injusta no diálogo. Para tanto, abordaremos também uma referência indireta à temática da invisibilidade, presente no livro sétimo: a figura do “alguém” (τις - R. 7, 515c6), que liberta um dos prisioneiros da caverna.
Este artigo pretende, portanto, analisar essas três passagens da República que remetem à imagem da invisibilidade, a fim de sustentar a ideia de que o filósofo, na concepção do Platão da República, deveria agir como o “alguém” da alegoria da Caverna, que age invisivelmente pela ideia de “bom”3.
Antes da interpretação dessas imagens da República, no entanto, será necessária uma breve apresentação do contexto da personagem Giges no relato originário de Heródoto, para que evidenciamos melhor a dinâmica de Platão ao propor a recriação do mythos de Giges no interior do diálogo, a fim de sustentar a teoria de que a vida filosófica é um caminho de certa invisibilidade.
Giges no relato de Heródoto
O mythos de Giges (até onde temos notícia) está originariamente nas Histórias de Heródoto4. Nelas, Giges é apresentado como um fiel guardião do rei da Lídia, Candaules. Por considerar sua esposa a mais linda de todas as mulheres, Candaules pede a Giges “que contemple a nudez (de sua esposa)”5 (Hdt. Hist. 1, 8, 11). Embora inicialmente negue o pedido de seu rei, Giges acaba por ceder e, aparentemente “sem ser visto”6 (Hdt. Hist. 1, 9, 14), vê a rainha despida7.
Mas a trama do relato inicia-se, de fato, quando sabemos que Giges foi visto pela rainha. Para sanar a ação de Giges, a rainha oferece-lhe duas alternativas: 1) matar Candaules e tê-la como esposa, conquistando também o trono da Lídia como fortuna; 2) ou ser morto.8 Assim, do mesmo lugar onde havia se escondido para ver a rainha nua, Giges se esconde e “mata”9 (Hdt. Hist. 1, 12, 6) o rei. Desta vez o intento de não ser visto é, de fato, concretizado.
A estranha história herodotiano finda-se com uma noção de justiça ainda mais problemática:
Giges, senhor da Lídia, fez a Delfos várias oferendas, das quais grande parte em dinheiro. Acrescentou muitos vasos de ouro aos já existentes no templo, bem como seis crateras de ouro, com o peso de trinta talentos, dádiva cuja memória merece ser conservada. Essas oferendas estão incluídas no tesouro dos Coríntios, embora, a bem dizer, esse tesouro não pertença absolutamente à república de Corinto, mas a Cípselo, filho de Etion. Giges foi, depois de Midas, filho de Górdio, rei da Frígia, o primeiro dos bárbaros conhecidos a fazer oferendas a Delfos. Midas tinha presenteado o templo com o trono no qual costumava fazer justiça. Esse trono constitui obra digna de ser vista. Está colocado no mesmo lugar onde se encontram as crateras de Giges. De resto, os habitantes de Delfos chamam as oferendas em ouro e prata de “gigeados”, do nome daquele que as fez (Hdt. Hist. 1, 14).10
O nome de Giges é associado à doação que faz ao templo de Delfos. Depois de assassinar o rei Candaules (Hdt. Hist. 1, 12), seu direito de rei é confirmado pelo oráculo de Delfos, apesar da indignação de alguns lídios, conforme se observa a seguir:
Giges subiu, assim, ao trono, e ali foi confirmado pelo oráculo de Delfos. Os Lídios, indignados com a morte de Candolo, haviam, a princípio, pegado em armas, mas concordaram com os partidários de Giges que, se o oráculo a este reconhecesse como rei, a coroa ficaria mesmo com ele (Hdt. Hist. 1, 13).11
Assim, a aceitação da coroação de Giges é reforçada pela enorme doação que ele teria feito ao templo de Delfos, que, por sua vez, confirma seu direito à coroa e faz os lídios concordarem, apesar da insatisfação, com o novo rei: Giges.
A história herodotiana oferece a Platão um elemento que, alterado miticamente, provoca uma reflexão acerca da vida justa e da vida injusta na República: o ato de Giges esconder-se atrás da porta e passar desapercebido, como se gozasse de certo poder de invisibilidade, é, na República, alterado em um certo anel da invisibilidade. Embora Giges não tenha passado desapercebido pelos olhares da rainha, ele se invisibiliza aos olhares do rei, e, com isso, ganha sua esposa e seu trono, semelhante ao que faz o antepassado de Giges no diálogo de Platão, conforme veremos de agora em diante.
A recriação do mythos de Giges no livro segundo
Platão recontextualiza o relato de Giges ao tratar a questão da vida justa e da vida injusta no livro segundo da República. Em sua recriação, Platão acrescenta um elemento mítico fundamental para tal reflexão: o anel da invisibilidade12. A personagem Glauco apresenta, nesse sentido, o mythos de “um antepassado de Giges”13 (R. 2, 359d1), segundo uma perspectiva que pretende retoricamente explicitar a incapacidade humana natural de ser justo.
Glauco diz que se fosse dado um anel da invisibilidade para um homem justo e um outro para um homem injusto, ambos agiriam sem justiça, matando, roubando e fazendo o que lhes apetecesse (R. 2, 360b-d).14 Platão, com isso, dá ao relato originário uma forma mítico-alegórica e espera refletir a disposição do caráter da psyche humana.
Diante da possibilidade mítica da invisibilidade, Platão faz sua personagem Glauco apresentar uma maneira de despir e tornar nua15 a própria psyche humana. A metáfora pretende verificar a psyche humana em uma forma inobservável em meio social. Glauco propõe a imagem da invisibilidade, considerando que, se fosse possível tornar as ações humanas invisíveis, cada um faria aquilo que realmente fosse necessário para alcançar suas satisfações particulares, afinal não seria julgado. Assim, o anel da invisibilidade é o elemento mítico que tornaria visível a psyche humano.
Já tratado anteriormente por Antifonte (DK 87 B44 col. I), o tema da vida injusta é dimensionado pela ideia de que a ação justa só existe diante dos olhares de testemunhas: primeiro porque um indivíduo busca a justiça porque busca também as recompensas particulares; segundo porque esse indivíduo teme ser julgado, caso cometa algum crime.
Em Platão, a problemática recebe uma roupagem mítica, na medida em que os olhares das testemunhas - que se pretendem um tipo de freio social das ações injustas - são anulados pela mítica possibilidade de invisibilidade.
Com isso, o anel é encontrado pelo antepassado de Giges em uma situação inesperadamente mítica:
Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas que para aí fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umas aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver, aparentemente maior que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão (R. 2, 359d)16
É sob o acréscimo do “anel de ouro”17 (R. 2, 359e1), juntamente com outros importantes elementos míticos, como a katabasis (R. 2, 359d5)18 (representada pela sua descida por uma fresta aberta no solo) ou a tempestade e o terremoto19, que o mythos deve ser analisado na República. É nesse cenário com acontecimentos míticos que o antepassado de Giges não resiste, desce, e é capturado por um embuste que revelará seu caráter psíquico mais profundo e verdadeiro. Nesse sentido, “[o]s últimos nove livros da República são reflexo prolongado de Sócrates sobre esse poema inventado por Glauco para tornar visível o poder e naturalidade da injustiça na alma e a fraqueza e a convencionalidade da justiça”20 (DAVIS, 2000, p. 636). É nesse sentido que precisamos verificar alguns dos elementos do mythos.
O “cavalo de bronze”, assim como o cavalo de troia em Homero21, apresenta-se como um embuste para desvelar o caráter do pastor simples no relato de Glauco. O anel, que está oculto em um “cavalo de bronze, oco”22 (R. 2, 359d6) “reclama a invisibilidade dos guerreiros homéricos trancados no cavalo de Troia que utilizam o engano e, mediante invisibilidade, conquistam o reino que de outra maneira não seria conquistado”23 (CALABI, 1998, p. 175).
O homem no interior do cavalo de bronze, do relato de Glauco, representa os guerreiros homéricos “escondidos dentro do cavalo” de Troia, e, como em Homero, reserva uma surpresa perigosa àquele que descobrir seu conteúdo. O conteúdo no interior do cavalo de Troia leva os habitantes da cidade à derrota, enquanto o conteúdo no interior do cavalo de bronze leva o “antepassado de Giges”24 a uma aparente vitória. Aquilo que o anel proporciona, é, na verdade, um desvelamento do caráter psíquico de seu utilizador. Nesse sentido, o anel seria antes uma arma disfarçada em benefício, já que exporá a falta de virtude da psyche de seu utilizador. Se tal artefato existisse, seria possível, segundo sugere Glauco, ver as ações injustas de um homem que se diz e é considerado justo.
Colocado no relato como um “pastor”25 (R. 2, 359d2), o antepassado de Giges representa uma vida simples, reivindicando a ideia de vida purificada, justa. Mas, com o acontecimento mítico, a trama configura-se com a revelação da má disposição de caráter psíquico do antepassado de Giges.
No relato originário, a ação de Giges conduz a um certo tipo de invisibilidade, afinal é exatamente ao se esconder atrás da porta que o intento de assassinar Candaules se concretiza. O princípio de vida justa, no contexto herodotiano, é, portanto, relativizado na medida em que Giges opta por matar o rei em prol de sua sobrevivência e benefício particular. Outro ponto fundamental é que a noção de justiça também é assumida a partir de uma grande oferenda feita ao templo de Delfos, a partir da qual o espírito do povo lídio é apaziguado, para que Giges seja aceito como novo rei. Seu bem-estar e sua posição política como rei, portanto, teriam sido alcançados pelo dinheiro, que fora conquistado de modo injusto. A palavra final está no discurso religioso de Delfos, que garante, depois de recebida a grande oferenda, a coroa ao Giges herodotiano.
Baseado nisso, Platão mantém a ideia do contexto originário, mas intensifica a problemática miticamente. O anel da invisibilidade a que se refere Glauco serve como elemento alegórico para a reflexão da vida justa diante do mítico poder da invisibilidade: “[n]o início do livro segundo, Glauco exige que Sócrates mostre o que é a justiça na alma - ou seja, despida de todas as consequências externas, com tudo à mostra”26 (DAVIS, 2000, p. 652).
Segundo sugere Davis, o Giges das Histórias aceita ver a rainha nua em função de uma tensão trágica no próprio fundamento contextual herodotiano das leis.
A história nos revela esta duplicidade de uma dupla maneira, o que é verdade para Candaules também é verdade para Giges. Giges reverencia a lei; isto parece ser o porquê de Candaules confiar nele assim. Ele, então, recua a partir do comando de olhar para as belas coisas secretas - ta kala. Mas, como seu rei legítimo o comanda, ele deve obedecer. A lei força Giges a transgredir a lei.27 (DAVIS, 2000, p. 644)
A esse respeito, Dazing relembra o fato de que Heródoto desculpa a decisão de Giges, “enfatizando que ele não teve alternativa, ou que a única alternativa era a morte. Explicando porque Giges concordou com a sugestão do rei, Heródoto diz que ele era ‘incapaz de escapar’ (1, 10, 1) da demanda do rei”28 (DAZING, 2008, p. 174). Esta única alternativa a que se refere Dazing é o que, para Davis, está ligada à situação trágica da lei, uma vez que, ao ser um súdito da lei, Giges precisa obedecer ao rei, que é símbolo legislativo por excelência, acabando por aceitar, de tal maneira, ver a rainha nua, desobedecendo, assim, a lei vigente da Lídia.
Ao aceitar matar o rei, no entanto, para não ser ele próprio morto por ordem da rainha, Giges relativiza a virtude mais uma vez. Em Heródoto, no entanto, isso não parece ser algo imperdoável: “[a]o descrever a decisão de matar o rei, Heródoto diz meramente que Giges escolhe que ele próprio deve viver (1, 11, 4), certamente um motivo compreensível e perdoável”29 (DAZING, 2008, p. 174). A amoralidade própria do relato originário apresenta uma única alternativa para Giges, já que a morte não está em questão: “Giges acredita que, contra sua vontade, a rainha forçou-o a matar o rei, como se escolher a morte não fosse uma opção séria (1, 11, 4)”30 (DAZING, 2008, p. 174).
Em Platão, o antepassado de Giges também não consegue manter a virtude sem relativizações circunstanciais:
Assim, senhor de si, logo fez com que fosse um dos delegados que iam junto do rei. Uma vez lá chegado, seduziu a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o e assim se assenhoreou do poder”.31 (R. 2, 360a-b)
Platão intensifica a problemática da virtude na medida em que estar ao lado do rei é um processo provocado já pelo poder do anel e não uma questão de mérito. Em Platão, o antepassado de Giges mata o rei como um ato de pura ganância, enquanto em Heródoto esse ato pode ser consequência de uma única opção, se a morte não está em questão pelo conceito de virtude do contexto herodotiano. A tensão recriada pelo filósofo ateniense desnuda a psyche humana diante dessa possibilidade alegórica da invisibilidade, buscando compreendê-la diante de sua mais profunda disposição de caráter, além de buscar elucidar que matar o rei não seria a única opção séria a ser tomada, se a cadeia de eventos fosse, desde o início, traçada não pela ambição.
Para tanto, Platão, além do anel da invisibilidade, também acrescenta a imagem da descida do antepassado de Giges pela fenda do solo. Afinal, é apenas diante dessa katabasis que seu antepassado encontra o tal anel, e pode, segundo o relato de Glauco, apoderar-se do poder da cidade ao matar o rei. A katabasis, nesse contexto, presta uma dupla função: 1) a conquista do anel da invisibilidade por parte do soma de Giges; 2) a visibilidade da verdadeira disposição de caráter da psyche de Giges diante do poder de invisibilidade do anel.
Platão, com isto, torna invisível o soma de Giges, ao mesmo tempo em que visibiliza sua psyche, tornando o mythos de Giges apto à reflexão acerca da vida justa. A verdadeira disposição de caráter da psyche tornar-se-ia visível, se um indivíduo pudesse agir livremente, sem medo de testemunhas. Essa fantástica imagem da invisibilidade leva, portanto, à compreensão daquilo que está, verdadeiramente, na psyche de cada um. Nesse sentido, a katabasis tem a função de fazer a psyche do antepassado de Giges mergulhar em si própria, levando-a à sua máxima exposição, enquanto seu soma é miticamente invisibilizado.
O “anel de Giges” como proêmio do relato de Er no livro décimo
O mythos alegórico da invisibilidade é arrematado pela personagem Sócrates no livro décimo da República com o intuito de chamar a atenção para o exercício da vida justa. Mesmo diante das tentações dos poderes do “anel de Giges”32 (R. 10, 612b4), um homem verdadeiramente justo agiria de maneira justa, segundo acredita Sócrates.
Platão não espera que a psyche humana seja perfeita, mas que se “faça ela própria justa”.33 (R. 10, 612b3-4)
A questão da utilização do nome de Giges na República tem causado certa confusão entre muitos comentadores, pois o diálogo apresenta duas referências distintas: uma é para o “antepassado de Giges” no livro segundo (R. 2, 359d1); outra é para o “anel de Giges” no livro décimo. (R. 10, 612b4)
A hipótese de Frutiger é que há duas histórias referentes a duas personagens com o mesmo nome na Lídia: “[e]ssa analogia, podemos dizer (ou relatar), está sugerida desde seu início aparente na Lídia mesma, por uma espécie de contaminação anedótica sobre as duas personagens homônimas, uma histórica e a outra lendária”34 (FRUTIGER, 1976, p. 234-235). Pode-se dizer, todavia, que “Frutiger teve um lapso ao relacionar Giges e não o antepassado de Giges como protagonista de Glauco”35 (LAIRD, 2001, p. 14, nota 16). Laird propõe uma leitura bastante elucidativa ao observar que as referências a Giges são dadas por personagens diferentes no interior da República: a referência no livro décimo, na página 612b4, “é feita por Sócrates, não por Glauco”36 (LAIRD, 2001, p. 14).
O mythos alegórico da invisibilidade, nesse sentido, assume um papel fundamental ao ser associado, por Sócrates no livro décimo da República, ao relato de Er, já que ambos são contextualizados à vida justa: “Não descobrimos que a justiça era, em si mesma, a coisa melhor para a alma, e que esta devia praticar a justiça, quer fosse possuidora do anel de Giges, quer não, e além desse anel, o elmo de Hades?” (R. 10 612b4)37.
Sócrates chama agora nesta dívida “em nome da justiça” e, então, prossegue com seu argumento teológico e, portanto, com a narrativa, que funciona como um tipo de réplica de Glaucon. Filósofos hoje em dia não são susceptíveis de atribuir qualquer significado profundo para o tipo de simetria detectado por aqui - entre a história do anel no início do debate e a história de Er no final dele. Eles vão ver tal simetria como puramente poética, uma característica da ornamentação literária.38 (LAIRD, 2001, p. 24)
Enquanto recriação mítica a partir de elementos da tradição órfica, o relato de Er propõe que não são os deuses do Além que determinam o destino das almas, mas antes que é a alma a responsável pelo seu próprio destino, na medida da “escolha”39 (R. 10, 620a1) daquilo que ela gostaria de ser na próxima vida. Em outras palavras, o que seria decidido pelos deuses do julgamento, segundo sugere a tradição órfica, passa a ser decidido, no relato platônico de Er, pela própria alma.
Platão não está preocupado em confirmar a crença órfica no destino da alma no Além, mas sim em sustentar a tese de que a psyche, enquanto princípio psíquico, é responsável, “aqui”40 (R. 10, 621c7; 621d2), por sua vida presente, pelas ações que determinam seu próprio destino psíquico. Mesmo podendo escolher a vida da próxima transmigração, a alma acaba por fazer sua escolha “segundo o intercurso dos hábitos da vida”41 (R. 10, 620a2-3)42. Er acrescenta que a disposição de caráter da alma não depende da vida escolhida, pois essa disposição de caráter acompanha a psyche em todas as vidas. É suposto, portanto, que a disposição de caráter da alma melhore a cada vida (R. 10, 618a7-b4). Para que ocorra essa melhoria da disposição de caráter, Platão propõe que a vida psíquica deve pautar-se na vida justa.
Platão chama a atenção para o fato de que a disposição de caráter da psyche pode melhorar ou piorar no percurso de cada vida presente. Assim, a teoria psíquica de Platão sustenta o melhoramento da vida psíquica no “aqui” da vida presente, e isto ocorre a partir da prática da vida justa. É neste sentido que, mesmo sob a posse do “anel de Giges” (R. 10, 612b4), um indivíduo justo é capaz de agir com justiça, pois ele busca melhorar sua própria psyche, melhorando também a polis, independentemente das testemunhas que o cercam. Nesse contexto, o anel da invisibilidade é aludido por Sócrates como um tipo de proêmio ao relato de Er, que funciona, no livro décimo, como uma resposta mítica à mítica imagem de Glauco no livro segundo.
A invisibilidade do τις na alegoria da Caverna
Cícero, em 44d.C., aponta a temática do mythos de Giges na República como uma história que trata “a imoralidade de comportamento secreto ou furtivo” (LAIRD, 2001, p. 25) da psyche humana: “portanto, o fato de um homem sábio ter um anel, como este, não lhe permitiria cometer erros mais do que se não o tivesse; o homem honesto busca a moral, não o que é secreto”43 (De officiis 3, 38).
Cícero está elucidativamente correto por um lado, já que o homem sábio deve buscar a moral, mas equivocado por outro, na medida em que o homem “belo e bom” (R. 6 489e4), de Platão, mesmo sendo invisível e secreto, continua agindo segundo princípios morais de justiça. Para dar um exemplo desse tipo de comportamento, o próprio Sócrates oferece o misterioso “alguém”44 (R. 7, 515c6) que liberta o prisioneiro na alegoria da Caverna. Afinal, este “alguém” age com justiça de maneira praticamente invisível, ou pelo menos bastante desapercebida.
Por meio desse mythos do anel da invisibilidade, Platão sugere que a vida justa é vivida por aquele que se guia, sem os olhares de testemunhas, pela ideia de “bom”45 (R. 6 508b12-c2). Nesse sentido, sugerimos que o “alguém” que liberta o prisioneiro na alegoria da Caverna, no livro sétimo, é invisibilizado esteticamente por Platão, para representar o justo agindo, invisivelmente, para o melhoramento da psyche humana e da polis - em nível psíquico e político46 - sem precisar dos olhares de testemunhas. É nesse sentido, que o “alguém” que solta o prisioneiro, na alegoria da Caverna, busca guiá-lo ao conhecimento, sem pretender ganhar, em nível particular, nada em troca. Agindo invisivelmente, esse “alguém” mostra-se um filósofo, na medida em que desce, retornando à caverna, para tirar de lá quem ainda acredita psiquicamente nas sombras e nos reflexos como se fossem verdades.
Platão utiliza uma estratégia semelhante à de Homero, que faz Ulisses assumir-se “Ninguém”47, para invisibilizar-se (embora não literalmente) diante de Polifemo e, assim, não ser morto por ele, já que, se soubesse quem é Ulisses, o ciclope certamente buscaria sua vingança por ter sido cegado por ele. A semelhança entre as duas imagens, portanto, guarda a diferença de que Ulisses age em benefício próprio, e o “alguém” da caverna age em prol do bem coletivo.
Assim, da mesma maneira que a referência de Sócrates a Er no livro décimo é um tipo de resposta mítica ao mythos de Giges relatado por Glauco no livro segundo (LAIRD, 2001, p. 25), o misterioso “alguém” da alegoria da Caverna, no livro sétimo, funciona como uma alegoria contra-imagética do relato de Glauco presente no livro segundo.
O mythos de Giges, no livro segundo, sustenta princípios diretamente ligados às práticas da psyche na polis. As ações injustas cometidas pelo antepassado de Giges buscam desvelar a disposição de sua psyche, para, alegoricamente, desvelar as disposições das psychai humanas no contexto da polis. O “anel de Giges”, no livro décimo, por sua vez, é associado ao relato de Er, que busca revelar, em nível mítico, a alma como regente de sua própria vida, na medida em que ela escolhe o destino de sua próxima transmigração, com o intuito de sustentar a noção de que as consequências atribuídas à psyche são fruto de suas próprias ações. Por isso, o homem “belo e bom”, mesmo sob posse de um anel com tamanhos poderes míticos, agiria de maneira justa, pois ele não depende dos olhares das testemunhas para agir bem.48
Assim, a vida justa é aquela que tem como fundamento a necessidade de buscar as ações baseadas na ideia de “bom” para o coletivo. A vida justa não busca alcançar recompensas particulares nem teme ser julgada49. Sua recompensa é o melhoramento da psyche e da polis. O julgamento de sua ação é dado por sua capacidade psíquica de autoconhecimento, que busca a harmonia no interior de sua própria psyche.50
Para reforçar sua referência ao “anel de invisibilidade”, Platão coloca, na voz de Sócrates, ainda um último recurso: um artefato retirado diretamente de um mito tradicional: o “elmo de Hades”, que, na Ilíada de Homero, surge como um artefato utilizado pela deusa Atena para que “Ares poderoso não a visse” (Il. 5, v. 845). Em outras palavras, Platão, além de seu artefato mítico, recorre a um elemento da tradição, para indicar que, mesmo de posse de um artefato que supostamente tenha existido (segundo atesta a tradição homérica), o filósofo continuaria a agir virtuosamente.
Assim, o “alguém” da caverna (ou o filósofo, se preferirmos) busca o bem coletivo e não as recompensas ou as vantagens particulares. A alegoria da caverna, nesse sentido, simboliza, com esse “alguém” inviabilizado, o exercício filosófico da busca pela superação das satisfações51 particulares em prol da vida justa no interior da polis, indicando-nos que o indivíduo que pratica a vida justa não precisa de testemunhas para agir bem, já que tem sua psyche em harmonia e, assim, não conduz suas ações em função de suas satisfações.
Considerações finais
A República de Platão diz muito acerca da vida justa, que, por sua vez, está diretamente ligada à noção de vida filosófica. Nesse sentido, a mítica imagem da invisibilidade, que se encontra explicitamente na imagem do anel de invisibilidade (referenciado tanto no livro segundo quanto no livro décimo do diálogo) é explorada por Platão para a reflexão das ações psíquicas de um indivíduo no interior de uma polis.
Com isso, Platão não pretende propriamente criar a imagem de invisibilidade do soma de um indivíduo, mas antes a visibilidade da psyche humana. É pensando na hipótese da invisibilidade somática que podemos refletir acerca de nossas ações psíquicas, afinal, sem testemunhas para julgar nossas ações, poderíamos agir livremente, e, assim, buscar nossas satisfações mais ocultas. Isto, por assim dizer, revelaria o verdadeiro caráter de nossa psyche.
É nesse sentido, que a vida filosófica está ligada às ações que visam ao bem coletivo. Assim, o filósofo não deve buscar agir para alcançar benefícios particulares. Por isso, o “alguém” da caverna é o exemplo prático, na República, da ação filosófica em prol do bem comum. Dito de outra maneira, Platão, no livro sétimo, alegoriza uma ação prática no interior de uma polis com a imagem de um exemplo de verdadeiro filósofo: o “alguém” que liberta o “prisioneiro” de sua prisão psíquica.