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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.68 Uberlândia maio/ago 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n68a2019-46626 

Artigos

O sentido ontológico do trabalho e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores: considerações preliminares

The ontological meaning of work and the development of higher mental functions: preliminary considerations

El sentido ontológico del trabajo y el desarrollo de las funciones psicológicas superiores: consideraciones preliminares

Ruth Maria de Paula Gonçalves* 
http://orcid.org/0000-0003-0070-4123

Osterne Nonato Maia Filho** 
http://orcid.org/0000-0003-4636-1912

Antonio Dário Lopes Júnior*** 
http://orcid.org/0000-0002-7213-9840

*Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pós-Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora do mestrado em Educação no Programa de Pós-graduação em Educação PPGE-UECE. E-mail: depaularuth@gmail.com

**Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pós-Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará (PPGE-UECE). E-mail: osterne_filho@uol.com.br

***Doutorando em Educação pela Universidade Estadual do Ceará (UEC). Graduado em Psicologia pela Universidade Estadual do Ceará e Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. E-mail: adlopesjunior@hotmail.com


Resumo

O presente estudo tem por objetivo demonstrar de que forma o trabalho auxilia no processo de hominização do homem. Trata-se de um estudo de natureza teórica, realizado mediante pesquisa bibliográfica, sendo dividido em três momentos principais. No primeiro, apresenta-se como o trabalho é concebido por Marx e apropriado por Lukács e os representantes da Escola de Vigotski. No segundo, trata-se das tensões entre a importância conferida aos aspectos biológicos e aos aspectos sociais para o processo de desenvolvimento do gênero humano, demonstrando de que maneira a produção de instrumentos gesta o progressivo afastamento da barreira natural, ao passo que propicia o desenvolvimento cada vez mais social do homem. Tal reflexão servirá de base para sinalizar como a teoria de Vigotski destaca em seu edifício categorial a relação entre os instrumentos e as funções psicológicas superiores no processo de humanização do homem.

Palavras Chave: Trabalho; Instrumento; Funções psicológicas superiores

Abstract

This study we aim to demonstrate how the work supports in the humanization process of the individuals. This is a theoretical study conducted by bibliographic research and divided into three main sessions. In the first moment, we present how the work is conceived by Marx and appropriated by Lukács and the representatives from Vygotsky’s school. In the second, we bring the tensions between the importance attached to the biological aspects and social aspects in the humankind’s development process, demonstrating how the tools’ production manage the progressive separation from the natural barrier, whereas it provides the increasingly social development of individuals. Further consideration will serve as a basis to indicate how Vygotsky’s theory underscore in its categorical building the relationship between the tools and the higher mental functions in the humanizing process of the individuals.

Keywords: Work; Tools; Higher .mental functions

Resumen

El presente estudio tiene por objetivo demostrar de qué forma el trabajo auxilia en el proceso de hominización del hombre. Se trata de un estudio de naturaleza teórica, realizado mediante investigación bibliográfica, siendo dividido en tres momentos principales. En el primero, presentamos cómo el trabajo es concebido por Marx y apropiado por Lukács y los representantes de la escuela de Vigotski. En el segundo, traemos las tensiones entre la importancia conferida a los aspectos biológicos ya los aspectos sociales para el proceso de desarrollo del género humano, demostrando de qué manera la producción de instrumentos gesta el progresivo alejamiento de la barrera natural, mientras que propicia el desarrollo cada vez más social del hombre. Tal reflexión servirá de base para señalar cómo la teoría de Vigotski destaca en su edificio categorial la relación entre los instrumentos y las funciones psicológicas superiores en el proceso de humanización del hombre.

Palabras clave: Trabajo; Instrumento; Funciones psicológicas superiores

Introdução

O que nos torna eminentemente humanos tem sido historicamente objeto de estudo, tanto da Filosofia quanto da Psicologia, desde o surgimento delas. Existem proposições que tentam compreender as particularidades do comportamento humano, tomando como paradigma o desenvolvimento biológico, enquanto para outros tal compreensão se dá a partir das particularidades da alma. Vale registrar que, somente a partir das assertivas apresentadas por Marx e apropriadas pelos representantes da Escola de Vigotski, a Psicologia passou a demonstrar de que forma o trabalho pode engendrar profundas modificações na relação do homem com a natureza, por meio da qual os seres humanos, paulatinamente, passam a ser regidos pelas leis histórico-sociais.

Com efeito, na tentativa de aproximação do objeto ora proposto, a fim de analisar de que forma o trabalho atua no processo de humanização do homem, em um primeiro momento, apresentaremos as elaborações de Marx referentes ao complexo do trabalho, pondo em destaque como este complexo social passa a modificar sobremaneira a forma como os seres humanos se relacionam com o mundo que os cerca. As principais contribuições em se considerar tais aspectos sobre o trabalho radicam, de acordo com Leontiev (2004), na investigação psicológica concreta quanto à ideia de historicidade da natureza do psiquismo, bem como do processo de reorganização dos mecanismos naturais em decorrência da evolução sócio-histórica do homem. Para o autor, Vigotski considerava que tal reorganização seria o resultado necessário da apropriação pelo homem dos produtos da cultura no decurso de seu contato direto com outros representantes do gênero humano.

Com tal compreensão sobre o papel do trabalho, uma contraposição às propostas até então imperantes é elaborada, uma vez que, para se estudar o papel da consciência humana, é necessário compreender o modo de vida, por assim dizer; a existência do homem (LEONTIEV, 2004), posto que as particularidades de tal processo são gestadas na tessitura das relações historicamente produzidas pelo conjunto dos homens, as quais, por sua vez, acabam por modificar a estrutura de sua própria atividade. Em suma, consoante Luria (1991), as raízes da atividade consciente do homem não deveriam ser procuradas nas peculiaridades da alma, nem no íntimo dos organismos, mas nas condições sociais de vida historicamente formadas.

As discussões introduzidas na primeira parte do presente artigo serão aprofundadas posteriormente - na segunda - em que abordaremos as particularidades da esfera biológica e social no processo de humanização do homem, com vistas a demonstrar que o homem inicialmente estava submetido às determinações biológicas, e o seu desenvolvimento se dava no âmbito das transformações anatômicas, as quais eram transmitidas de geração a geração pela hereditariedade. Com efeito, o trabalho, como complexo fundante do ser social, gesta um salto ontológico em relação ao homem e às leis biológicas às quais se encontrava submetido, sendo suplantadas pelas leis sociais.

O percurso aqui exposto será necessário a fim de que, na terceira parte deste artigo, possamos compreender, na esteira da Escola de Vigotski, a repercussão psicológica do processo em que o uso de instrumentos vai possibilitar a transformação da própria atividade reflexa do homem em atividade consciente. Assim, retomamos a centralidade que o trabalho ocupa no processo de humanização, visto que, a partir desta atividade, o homem cria os instrumentos e signos que o auxiliarão no domínio tanto da natureza quanto do seu próprio comportamento ou de outrem. Nesse sentido, o trabalho pode ser entendido como o vetor para compreendermos o ser social em sua historicidade. Em decorrência desse fato afiançamos que toda função psicológica superior é social.

Trabalho enquanto fundamento do ser social

Marx e Engels atribuem lugar central ao trabalho, por verem neste complexo social o processo de humanização do homem, cuja configuração ocorre na contínua relação entre homem e natureza, na qual este a modifica, adaptando-a as suas necessidades e criando incessantemente o novo. Assim, Marx (2014, p. 211) pressupõe “o trabalho sob forma exclusivamente humana”, diferenciando-se sobremaneira dos demais seres existentes.

Isso se deve ao fato de que, nos animais, as transformações naturais ou as modificações que estes seres imprimem na natureza são gravadas em suas determinações biológicas, não passando de epifenômenos do ser orgânico e, assim, não indo além de um melhor serviço para a reprodução biológica (LUKÁCS, 2013), em outras palavras, “o animal é imediatamente um com sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela” (MARX, 2010, p. 84). O homem, por outro lado, não é uno com sua atividade vital, mas faz dela um objeto de sua vontade. Dessa forma, em sua relação com a natureza surge um novo, um material no qual o homem imprime um projeto que já havia sido idealmente visado, “o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito” (MARX, 2014, p. 212, grifo nosso).

Convém salientar que a atividade vital é, antes de tudo, aquela que reproduz a vida, configura-se enquanto aquela que toda espécie animal precisa realizar para existir e se reproduzir a si própria enquanto espécie. “A atividade vital é a base a partir da qual cada membro de uma espécie reproduz a si próprio como ser singular e, em consequência, reproduz a própria espécie” (DUARTE, 2013, p. 23).

Assim, uma das principais questões inerentes ao trabalho consiste em que a atividade vital do homem passa a ser objeto de sua vontade, uma vez que esta se constitui no:

[...] processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo - braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza (MARX, 2014, p. 211, grifo do autor).

Por essa razão, Lukács (2013, p. 44) considera o trabalho como a categoria ontológica central, uma vez que, somente este tem:

[...] como sua essência ontológica, um claro caráter de transição: ele é, essencialmente, uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica (ferramenta, matéria-prima, objeto de trabalho, etc.) como orgânica, inter-relação que pode figurar em pontos determinados da cadeia a que nos referimos, mas antes de tudo assinala a transição, no homem que trabalha, do ser meramente biológico ao ser social.

Assim, o homem, ao nascer, deve primeiramente se apropriar do mundo que o cerca, um ambiente composto por objetos e fenômenos, valores de uso desenvolvidos pelas gerações precedentes. Em outras palavras, segundo Marx e Engels (2007a), o homem precisa se apropriar dos produtos históricos, tendo em vista que estes correspondem aos resultados da atividade de uma série de gerações, uma devendo subir nos ombros da precedente. Em outros termos, o ser humanizado passa a seguir as determinações das leis histórico-sociais, às quais engendra significativas modificações no processo de autoprodução do homem e na forma como este se relaciona com a natureza em busca da satisfação de seus carecimentos vitais.

A importância de se assumir a centralidade ontológica do trabalho, nos auxilia a tomá-lo como base para o entendimento dos outros pores socioteleológicos, já que, quanto ao ser, o trabalho pode ser considerado ato originário. Com efeito, o trabalho enraíza uma progressiva diferenciação na vida social, gestando uma multiplicidade de complexos heterogêneos, os quais podem ser considerados os responsáveis pela criação do homem enquanto um ser social.

A esse respeito, Duarte (2013) afiança que a atividade de trabalho cria uma realidade humanizada, tanto objetiva quanto subjetiva. Ao se apropriar da natureza e transformá-la para satisfazer às suas necessidades, o ser humano acaba por objetivar-se nessa transformação. “Por sua vez, essa atividade humana objetivada nos produtos e fenômenos culturais passa a ser ela também objeto de apropriação, isto é, o ser humano deve se apropriar daquilo que ele mesmo criou.” (DUARTE, 2013, p. 27).

O processo de trabalho evoca a liberdade, que consiste precisamente em ir além da fixação dos seres vivos na competição biológica com seu ambiente, em sua produção unilateral, transformando os seus próprios carecimentos em perguntas e sofisticando suas formas de satisfação.

Ao tratar das diferenciações entre a produção dos animais e a produção humana, Marx (2010) advoga que o primeiro, ao estar preso por suas determinações biológicas, produz:

[...] apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria; produz unilateral[mente], enquanto o homem produz universal[mente]; o animal produz apenas sob o domínio da carência física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só produz, primeira e verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação] a ela; o animal só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira; [no animal,] o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem se defronta livre[mente] com o seu produto. O animal forma apenas segundo a medida e a carência da species à qual pertence, enquanto o homem sabe reproduzir segundo a medida de qualquer species (MARX, 2010, p. 85, colchetes do texto).

Em outros termos, mesmo quando o animal produz, esse processo não se configura como trabalho, pois não gera uma realidade qualitativamente nova como um processo capaz de gestar a démarche histórica, uma vez que estão circunscritas ao aspecto biológico (LEONTIEV, 2004). No homem, por outro lado, evidenciamos o progressivo afastamento das barreiras naturais com o progressivo fortalecimento das leis sociais, despojando assim, cada vez mais de suas determinações biológicas (LUKÁCS, 2013).

Nesse sentido, Vigotski (2012) e Leontiev (2004) reconhecem que, no polo animal existe uma relação associativa direta, um reflexo entre os estímulos e a resposta por eles evocada. Já o homem, através da preparação e utilização dos instrumentos, relaciona-se com a natureza não por determinações imediatamente biológicas, mas dirigido pelo objetivo consciente, o qual só adquire sentido com a comparação dessas ações com o resultado final.

Lukács (1968) e Leontiev (2004) evidenciam que o momento essencialmente separatório do trabalho tem início pelo processo de fabricação de instrumentos, os quais se configuram enquanto uma coisa, ou complexo de coisas,

[...] que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto. Ele utiliza as propriedades mecânicas, físicas, químicas das coisas, para fazê-las atuarem como forças sobre outras coisas, de acordo com o fim que tinham em mira (MARX, 2014, p. 213).

Em outros termos, o trabalho consiste no processo por meio do qual um projeto ideal alcança sua realização material, o “pôr pensado de um fim transforma a realidade material” (LUKÁCS, 2013, p. 53), inserindo na realidade algo radicalmente novo. Deste pôr teleológico surge uma objetividade inteiramente diferente, uma vez que o gênero humano, ao se defrontar com a realidade natural, não a apreende segundo suas propriedades imediatas, mas, conforme as palavras do autor húngaro, apreende-a de modo diferente “das legalidades e das forças operantes no mero ser-em-si” (LUKÀCS, 2013, p. 53). Nesse sentido, uma série de relações totalmente novas passa a ser objetivada por meio dos elementos existentes na natureza, possibilitando que o homem possa produzir algo inteiramente novo: o instrumento de trabalho. A título de exemplo, no momento em que o homem escolhe uma pedra ao invés de outra para confeccionar o machado de pedra, ele deve reconhecer o nexo entre as propriedades do material e a sua posterior utilização concreta.

Lukács (2013) assinala que o ato da escolha da pedra apresenta-se extremamente simples quando visto exteriormente, no entanto, ao pensarmos em sua estrutura interna percebemos o quão complexo ele é, uma vez que aí se inaugura a escolha entre as alternativas das quais o homem poderá obter êxito ou não. Podemos idealizar e até confeccionar um machado que utilize o algodão ao invés da pedra, no intuito de que ele corte madeira, contudo, no confronto com o objetivo posto, este instrumento não se mostrará útil. Assim evidenciamos que existem na pedra certas características que carecem no algodão, as quais possibilitam que o primeiro seja usado para o corte.

A escolha do material a ser utilizado no processo de trabalho, ou seja, a escolha entre alternativas, por si só, já se trata de uma faculdade humana, tendo em vista que esta configura um ato consciente, sendo para Lukács (2013) a categoria mediadora, por meio da qual o espelhamento da realidade se converte em um fator que auxilia na construção dos instrumentos, estando na égide da separação entre sujeito e objeto. Para que o indivíduo possa escolher os materiais necessários à confecção do instrumento, deve conhecer as particularidades de cada material e quais estariam aptos a determinada função. Assim, a peculiaridade da alternativa não se encontra apenas na confecção do instrumento de trabalho, mas em sua complexificação ulterior (LUKÁCS, 2013; VIGOTSKI, 2012). Nesse sentido, compreendemos que “a alternativa revela ainda mais claramente, a sua verdadeira essência: não se trata apenas de um único ato de decisão, mas de um processo, uma ininterrupta cadeia temporal de alternativas sempre novas” (LUKÁCS, 2013, p. 71). Em outros termos, o homem se depara com os frutos de seu trabalho, analisa-os e os aperfeiçoa. Assim, a satisfação das necessidades se dá em uma espiral crescente, na qual a cada volta as necessidades são mais complexas, bem como as formas de sua satisfação (LUKÁCS, 2013; MARX, 2014; VIGOTSKI, 2012).

Assim, para Luria (1991, p. 77, grifo do autor): “o surgimento de várias ‘operações’ auxiliares por meio das quais se executa essa atividade é o que constitui a mudança radical do comportamento, que é o que representa uma nova estrutura de atividade consciente do homem”, o espelhamento da realidade na consciência.

Diante dessas proposições, seguimos com Lukács (2013, p. 59), ao afirmar que “uma ferramenta pode, com uma análise correta, não só revelar a história da própria ferramenta, mas também desvendar muitas informações sobre o modo de viver, quem sabe até sobre a visão de mundo etc., daqueles que as usaram”. De tal modo, no âmbito do ser social, sinalizamos que, mesmo “o conhecimento humano mais simples, que se realiza diretamente numa ação concreta de trabalho com a ajuda de um instrumento, não se limita à experiência pessoal de um indivíduo” (LEONTIEV, 2004, p. 90), mas é efetivada tendo por base a aquisição da experiência e da prática social.

Assim, a escolha da pedra como um instrumento configura um ato de consciência, não tendo mais uma relação de caráter puramente biológico, denotando que, a confecção dos instrumentos ocorre mediante a observação e a experiência. Em outras palavras, graças ao espelhamento e a sua elaboração na consciência, acabam por ser reconhecidas na pedra certas propriedades que a tornam adequada, ou inadequada, para determinada função. Com efeito, somente a partir de seu uso posterior, o processo ganha sentido (LUKÁCS, 2013).

Vale ressaltar que o processo de trabalho impulsiona um tipo de relação nunca antes vista, daí podemos afirmar que o ser não apenas reage à natureza, ou passa por transformações para adaptar-se a esta em um processo de especialização, mas a transforma, modifica, altera, devendo necessariamente gerar um produto, o qual, para Marx (2014), constitui-se de um material da natureza que foi adaptado às necessidades humanas, passando a servir como vetor da atividade humana sobre a natureza.

Ao se utilizar os instrumentos como meios de trabalho, de uma forma intencional, instaura-se, no âmbito do ser social, a possibilidade de uma elaboração/concepção sobre a sua ação, ou a forma como se deve agir, propiciando um progressivo afastamento das barreiras naturais.

No entanto, destacamos que essa produção só pode ser efetivada mediante a “atividade comum coletiva, de modo que o homem, no seio deste processo, não entra apenas numa relação determinada com a natureza, mas com os outros membros de uma dada sociedade” (LEONTIEV, 2004, p. 80). Em suma, o trabalho é, portanto, mediatizado desde sua origem, tanto pelo instrumento que produz, como pela sociedade na qual está inserido de uma maneira mais geral.

Trabalho e processo de humanização do homem

As discussões travadas no tópico anterior servem de base para compreendermos de que forma o trabalho nos auxilia a entender o processo de humanização do homem. Assim, embora Marx (2014) já tenha preconizado o trabalho como uma estrutura geral, a partir do modo como o homem interage com a natureza, transformando o existente natural em um médium, um órgão de sua própria atividade, o qual passa a acrescer o seu próprio corpo natural. É mérito de Engels (LUKÁCS, 2013), a partir do estudo “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, alocar o trabalho como centro do processo de humanização, do homem. Na letra engelsiana,

O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. Assim é, com efeito, ao lado da natureza, encarregada de fornecer os materiais que ele converte em riqueza. O trabalho, porém, é muitíssimo mais do que isso. É a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem (ENGELS, 1983, p. 1).

Ancorados nessa visão, tanto Vigotski (2012), Leontiev (2004) e Luria (1991) quanto Lukács (2013) convertem em um momento primordial de seus estudos as formulações sobre o processo de evolução biológica das espécies animais até o aparecimento do Homo sapiens, e, por outro lado, apresentam as características do desenvolvimento histórico, graças ao qual o homem primitivo se transforma em um ser de cultura. Lukács (2013, p. 191) reconhece que, mediante a gradação ontológica dos níveis de ser,

[...] a natureza inorgânica não pressupõe qualquer ser biológico ou social. Ela pode existir de modo totalmente autônomo, enquanto o ser biológico pressupõe uma constituição especial do inorgânico e, sem a interação ininterrupta com ele, não é capaz de reproduzir o seu próprio ser nem por um instante. Do mesmo modo, o ser social pressupõe natureza orgânica e inorgânica e, se não tiver essas duas como fundamento, não lhe é possível desenvolver as suas próprias categorias, distintas daquelas.

Assim, no processo de tornar-se homem, ele inicialmente estava ainda submetido às determinações biológicas, ou seja, as modificações eram traduzidas por alterações de ordem anatômicas, transmitidas de geração a geração, regidas pela hereditariedade (LEONTIEV, 2004).

É oportuno ressaltar que a barreira natural pode ser afastada, não suprimida, tendo em vista que o ser humano vem da natureza e não vive sem ela. Em outras palavras, ainda que persista uma distinção ontológica entre essas três esferas, estas se encontram ineliminavelmente articuladas, pois traduzem o envolver histórico da processualidade humana (GONÇALVES; JIMENEZ, 2013).

Assim, para Vigotski (2009), uma forma de desenvolvimento não pode ser vista como a simples continuação direta de outro, muito pelo contrário, ocorre uma mudança no próprio tipo de desenvolvimento da conduta regida por princípios biológicos, para a lei histórico-social, uma vez que a utilização dos instrumentos proporciona aos seres humanos um aumento significativo do seu raio de atividades (JIMENEZ; CARMO; LIMA, 2010). Os instrumentos ocupam, portanto, uma dupla função, ao evidenciarem aquilo que os objetos querem dizer em si e ao apontarem para as novas conexões, ou possibilidades impostas pelo desenvolvimento histórico.

Esse aspecto defendido por Vigotski, em muito lembra as proposições de Lukács, uma vez que este afirma que a transição de um nível de ser a outro ocorre na maneira de um salto, o qual corresponde a uma mudança qualitativa e estrutural do ser. Assim, mesmo que a fase inicial contenha determinadas condições e possibilidades superiores, elas não podem se desenvolver de forma direta. Para Lukács (2013, p. 46), “a essência do salto é constituída por essa ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento e não pelo nascimento, de forma súbita ou gradativa, no tempo, da nova forma do ser”, o qual foi engendrado pelo trabalho.

Apropriando-se dos estudos de Marx com vistas a uma Psicologia de base marxista, Vigotski (2012, p. 21) se contrapõe às correntes vigentes em sua época, considerando que:

[...] se analisarmos o aspecto cultural, a base da psicologia pressupunha leis de caráter puramente natural ou puramente espiritual, metafísico, mas em qualquer caso, não há leis históricas. Repetimos novamente: as leis eternas da natureza e as leis eternas do espírito, mas não leis históricas1 (Tradução do autor).

Com efeito, tais delineamentos teórico-práticos tratavam de perspectivas a-históricas, as quais, muito embora versassem acerca da História, negavam-se a reconhecê-la enquanto força motriz para o desenvolvimento do espírito (VIGOTSKI, 2012). Não coube, para efeito de nosso objeto de estudo, e particularmente para este artigo, analisar de forma pormenorizada as ditas correntes, no entanto, convém destacar que: a primeira teoria, baseada no materialismo biologicista, concebia a atividade consciente do homem como fruto direto de sua evolução do mundo animal. Assim, como se as funções psíquicas no processo de desenvolvimento histórico da humanidade permanecessem imutáveis, as modificações figuravam apenas no conteúdo psíquico, “já se podendo observar nos animais todos os fundamentos da consciência humana” (LURIA, 1991, p. 74).

Em contraposição a tais propostas, Vigotski (2012) advoga que o desenvolvimento do gênero humano não se esgota na simples complexificação da relação estímulo-resposta, como nos estudos pertinentes à psicologia animal, tampouco pelo progressivo incremento qualitativo das relações. Para o autor, o conhecimento das estruturas das funções rudimentares, presentes no comportamento animal, nunca poderá nos fazer conhecer nem a estrutura, nem a atividade das funções, nem seu processo de desenvolvimento, uma vez que há, no centro desse processo, um salto dialético, o qual modifica qualitativamente a própria relação entre estímulo e resposta. Em virtude disso, tais funções podem ser consideradas como um indício, não um quadro coerente de todo o processo. Em outros termos,

[...] poderíamos formular a nossa dedução, dizendo que o comportamento humano é caracterizado pela mesma peculiaridade qualitativa - em comparação com o comportamento animal - que diferencia o caráter da adaptação e do desenvolvimento histórico do homem comparando à adaptação e desenvolvimento dos animais, já que o processo de desenvolvimento psíquico do homem é uma parte do processo geral do desenvolvimento histórico da humanidade2 (VIGOTSKI, 2012, p. 62, tradução do autor).

Em decorrência desse processo, compreendemos que a produção e apropriação do produto do trabalho vão ditar a forma como o sujeito se relaciona com os meios de produção ou, em outros termos, a natureza humanizada.

Com efeito, a importância metodológica de se considerar o instrumento, fruto do processo de trabalho, reside em considerar que este é tido como uma materialização da influência humana sobre a natureza, o qual possibilita um novo vetor para a compreensão do mundo e a maneira como o gênero humano se relaciona com a realidade objetiva (VIGOTSKI, 2012). Assim, a raiz de toda a atividade instrumental consiste na mediação. Observa-se que o objeto é criado pelo homem, o qual determina as ações para as quais esse objeto vai servir. Em contrapartida, tal objeto se transforma em estímulos que o auxiliarão no domínio de sua própria conduta. Em outros termos, o homem passa a determinar a sua forma de ação em virtude dos meios artificialmente criados por ele, quer em um aspecto material, quer espiritual.

A esse respeito, Marx (2014) defende que o papel do instrumento para a compreensão das estruturas sociais extintas adquire importância semelhante a que as estruturas fósseis exercem para o estudo das espécies animais já extintas, tendo em vista que “o que distingue as diferentes épocas econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz.” (MARX, 2014, p. 214). Nesse entendimento, os meios de trabalho se convertem em formas de se medir o desenvolvimento da força de trabalho, como explicitam as condições sociais no qual é realizado.

Com vistas a aclarar as transformações subjetivas decorrentes das reverberações da realidade objetiva, e vice-versa, sinalizamos que a transformação do mundo material, mediante a utilização dos instrumentos, estabeleceu as condições necessárias para as transformações na própria atividade reflexa do homem, e a sua posterior transformação em atividade consciente (RIVIÈRE, 2002).

Nesse sentido, para continuar o traçado do papel do trabalho no processo de humanização, é preciso nos deter um pouco mais sobre a atividade instrumental, tendo em vista que a fabricação das ferramentas por si só já mudava radicalmente a atividade do homem primitivo, visto que o trabalho desempenhado com a preparação destas não se configurava como uma atividade radicada na natureza biológica do indivíduo, mas sim, na social. Destacamos que o uso de ferramentas difere essencialmente da adaptação orgânica, ocasionando o surgimento de novas funções ou novos comportamentos, os quais Vigotski (2012) denomina como conduta superior.

Trabalho, instrumento e funções psicológicas superiores

Ao se apropriar da compreensão marxiana sobre a atividade instrumental, os autores da Escola de Vigotski apontam que a démarche histórica, a produção e apropriação dos instrumentos culturais, deveria tornar-se o princípio condutor de todo o estudo referente das particularidades da atividade consciente do homem. Ancorados nessa perspectiva, Lopes Júnior, Moraes e Gonçalves (2017) reconhecem que nos estudos de Vigotski, os instrumentos atuam como médium da atividade humana, podendo ter implicações tanto na natureza externa quanto na interna.

Para entendermos como a atividade instrumental modifica a natureza interna, voltamo-nos para o estudo do signo, que é tido como um estímulo artificialmente criado pelo homem, através do qual este é capaz de dominar a própria conduta ou a de outrem. Esta possibilidade inaugura um fator fundamental para o desenvolvimento do ser humano, a saber, “a interiorização dos instrumentos e dos signos por meio da conversão dos sistemas de regulação externa (instrumento e signo), em meios de regulação interna.” (RIVIÈRE, 2002, p. 42). Tal processo tem como consequência a ampliação das capacidades de memorização, percepção, atenção, entre outras funções psicológicas. Assim, afirmamos que a significação consiste na atividade mais importante, fundada pelo trabalho, para o ser humano. Tal atividade diferencia sobremaneira o homem do animal sob um aspecto psicológico, quer dizer, a criação e o emprego dos signos e o seu posterior processo de interiorização os quais modificam dialeticamente a própria estrutura da atividade da conduta externa.

Segundo Furtado (2011b), o processo de significação está intimamente relacionado não apenas à confecção dos instrumentos, mas principalmente à sua manutenção enquanto um instrumento de trabalho, uma vez que este possibilitou a internalização deste na consciência, modificando a relação do homem com a natureza, uma vez que este , ao se libertar dos ditames da natureza, passa a ter consciência das alterações que impele a esta em benefício próprio.

A esse respeito, Vigotski (2012) aborda a relação entre os instrumentos e os signos, destacando a similaridade e diferenciação entre ambos. A similaridade se baseia em sua função mediadora, posto que ambos são entendidos como vetores da atividade humana. Do ponto de vista psicológico, ambos podem ser alocados na mesma categoria, uma vez que por meio do signo o homem interfere na conduta de outro, sendo que, tanto em um caso quanto em outro, a função mediadora aparece em primeiro plano. Já a diferenciação se encontra no objeto com o qual cada uma dessas estruturas irá atuar, isto é, enquanto a ferramenta está orientada para o controle da natureza, o signo se orienta para o objeto psicológico. Nos termos de Vigotski (2012, p. 94):

Através da ferramenta o homem influi sobre o objeto de sua atividade, a ferramenta está dirigida para fora: deve causar umas ou outras alterações para o objeto. É o meio da atividade exterior do homem dirigido para modificar a natureza. O signo não muda nada no objeto da operação psicológica: é o meio que o homem usa para influenciar psicologicamente, seja em sua própria conduta, bem na dos outros; é um meio para a atividade interna, visando dominar o próprio ser humano: o signo é orientado para dentro3 (Tradução do autor).

Esse processo gesta uma diferenciação das vias colaterais: quanto aos instrumentos, deparamo-nos com estruturas objetivas, os objetos e corpos materiais, enquanto que, em relação ao signo, lidamos com vias compostas por operações psíquicas.

Como um desdobramento dessa analogia entre signo e instrumento, conseguimos inferir que, de maneira semelhante, a forma como os instrumentos determinam todo o mecanismo da operação do trabalho, o que nos possibilita refazer muitos aspectos históricos a respeito de como os povos antigos viveram; assim também ocorre em relação ao signo, porém, internamente (VIGOTSKI, 2012).

Destarte, o emprego funcional dos signos possibilitou que o homem saísse dos limites impostos a ele enquanto ser biológico, havendo uma complexificação na esfera de suas atividades ou, conforme Vigotski (2012, p. 95):

A aplicação dos meios auxiliares, e a maneira como a atividade mediadora reconstrói a raiz de toda a operação psíquica, semelhante de como a aplicação das ferramentas altera a atividade natural dos órgãos e amplia infinitamente o sistema de atividade das funções psíquicas. Tanto um como para o outro, podemos chamá-lo em seu conjunto, com o termo de função psíquica superior ou conduta superior4 (Tradução do autor grifo no original).

Sinalizamos, assim, que as funções psicológicas superiores não se caracterizam como um desenvolvimento direto das funções psicológicas inferiores (dadas pelo desenvolvimento biológico), mas a partir de características próprias, inerentes à nova esfera do ser que ela ocupa. Com efeito, para Vigotski (2012) e Molon (2010), ao analisar as diferenças entre tais funções, podemos perceber um processo de superação, cujas funções psicológicas inferiores não são liquidadas, no sentido de deixarem de existir, mas passam por um processo de negação dialética: alguns aspectos da antiga estrutura são negados, enquanto outros são desenvolvidos, mesmo que de uma maneira oculta algumas das particularidades das funções elementares ainda existam na nova estrutura da atividade.

Em sua relação com o mundo natural, a princípio o signo se caracteriza sempre como um meio de relação social, uma forma que o ser social tem de influenciar os outros, e só depois a si mesmo. Para Vigotski (2012, p. 147):

[...] as funções psíquicas superiores eram antigamente externas. Se for verdade que o signo era originalmente um meio de comunicação e só mais tarde se tornou um meio de conduta da personalidade, é completamente evidente que o desenvolvimento cultural é baseado no uso de signos e que sua inclusão no sistema geral do comportamento transcorreu inicialmente de forma social, externa5 (Tradução do autor).

Nesse processo de transição, Leontiev (2004) defende que a linguagem ocupa papel central, sendo a principal responsável pela mediação nas relações sociais. Sua função se caracteriza como a comunicação social, por meio da qual as descobertas feitas por cada indivíduo em um determinado período histórico não ficavam restritas a ele, mas socializadas com o grupo do qual faziam parte. Para Furtado (2011a), essa espécie de consciência coletiva é fruto da vivência humana, enquanto um ser em sociedade. Posteriormente, o repertório linguístico acumulado possibilitou a retenção na memória desses conteúdos, objetivando sua transmissão a gerações subsequentes. Por meio da linguagem os instrumentos de trabalho passam pelo processo de significação, criando-se as condições necessárias para o estabelecimento da cultura humana.

Esse processo dialético, entre o que pode ser considerado como externo ou interno, é sinalizado a partir da lei de dupla formação, apresentada por Vigotski. Segundo Lima, Jimenez e Carmo (2008), toda função do desenvolvimento cultural do indivíduo aparece sempre em dois momentos: primeiro como categoria interpsicológica, entre as pessoas, da relação; e, depois. como categoria intrapsicológica, dentro do próprio indivíduo.

Dessa forma, de acordo com Molon (2010), tudo aquilo que é intrapsicológico no sujeito, ou seja, as funções psíquicas superiores, foi antes de tudo interpsicológico, o signo sendo o exemplo mais evidente dessa lei, caracterizando-se inicialmente como sendo um meio para a comunicação, que depois se converte em uma forma para se regular o próprio comportamento. Vigotski (2012, p. 150) conceitua essa lei nos seguintes termos:

[...] toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois planos; primeiro no plano social e depois no psicológico, inicialmente entre os homens como categoria interpsíquica e depois no interior da criança como uma categoria intrapsíquica. O dito se refere igualmente à atenção voluntária, à memória lógica e formação de conceitos e ao desenvolvimento da vontade. Temos pleno direito de considerar a tese exposta como uma lei, mas, naturalmente, a partir do exterior para o interior, que altera o próprio processo, transforma sua estrutura e funções. Por trás de todas as funções superiores e suas relações se encontram geneticamente as relações sociais, as autênticas relações humanas6 (Tradução do autor).

Com efeito, reiteramos que a hominização é um fator natural, próprio da espécie humana, sendo transmitida hereditariamente. Para que a humanidade do homem ocorra, situamo-la no processo histórico, uma vez que esta não se acumula nos genes, mas sim no contato com o outro, que o auxilia no processo de internalização da riqueza produzida pela humanidade, a qual fará parte de sua personalidade. Consoante ao apresentado por Jimenez, Carmo e Lima (2010), todo indivíduo singular necessita se apropriar das objetivações genéricas produzidas pela humanidade ao longo da sua história para poder constituir-se enquanto ser humano. A formação do homem vem a ser o que é em si somente por meio daquilo que ela significa para o outro.

Assim, Vigotski (1930), no texto A transformação socialista no homem, aponta que o indivíduo só pode existir enquanto um ser social como membro de algum grupo social em cujo contexto ele segue o curso de seu desenvolvimento histórico. A composição de sua personalidade, de seu ser, e a estrutura de seu comportamento estão intimamente relacionadas à evolução social, cujos aspectos principais são determinados pelo grupo no qual está inserido. A completa constituição psicológica dos indivíduos só pode ser vista como diretamente dependente do desenvolvimento tecnológico, do grau de desenvolvimento das forças de produção e da estrutura daquele grupo, sendo a lei fundamental do desenvolvimento histórico humano. Ele aponta ainda que os seres humanos são criados pela sociedade na qual vivem, e esta representa um fator determinante na formação daqueles.

Dessa forma, sinalizamos que, se a formação do ser humano ocorre por vias da mediação social, os avanços do capitalismo trouxeram um grande desenvolvimento da produção material, no entanto, na mesma medida, trouxeram consigo a divisão progressiva entre as esferas do trabalho espiritual e material. Assim, de acordo com Leontiev (2004, p. 126), quanto maior for este hiato, “menos capaz é o homem de reconhecer no primeiro, a marca do segundo”, percebendo as duas nuances como parte de um todo, tal processo gesta um desenvolvimento distorcido do potencial humano.

Não importa qual característica particular e definidora do tipo psicológico humano que tomemos, seja nos períodos iniciais ou recentes do desenvolvimento do capitalismo, em todos os casos nós encontraremos sempre um significado e um caráter duplos em cada característica crucial. A fonte da degradação da personalidade na forma capitalista de produção, também contém em si mesma o potencial para um crescimento infinito da personalidade (VYGOTSKY, 1930, p.7).

Com Marx (2010), sinalizamos que essa deformação do desenvolvimento ocorre, pois o homem - o trabalhador - encerra a sua vida no objeto de trabalho, o qual por ele deve ser significado e apropriado, uma vez que o objeto de trabalho pode ser caracterizado como uma objetivação da vida genérica do homem:

Quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele. Consequentemente, quando arranca ( entreisst) do homem o objeto de sua produção, o trabalho estranhado arranca-lhe sua vida genérica , sua efetiva objetividade genérica ( wirkliche Gattungsgegenständli-chkeit ) e transforma a sua vantagem com relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo inorgânico, a natureza (MARX, 2010, p.85, grifo do autor).

Evidencia-se, assim, que as funções psicológicas superiores não são dadas pelo aparato biológico, mas aparecem primeiramente em suas relações sociais para depois serem internalizadas. Desse modo, auxiliam na reconstrução da atividade interna, a qual, a posteriori, servirá como forma de intervir na atividade externa. Junto com Facci (2004), afirmamos que a formação dos processos psicológicos superiores ocorre, em nível ontogenético, quando os seres humanos se apropriam, na coletividade, da cultura já produzida, em um processo não de simples adaptação, mas de transformação da natureza a partir do trabalho, por meio do qual se supera a determinação biológica ao se criar novas necessidades que conduzirão a novas objetivações. Assim, com o auxílio dos signos como ferramenta, o homem passa a controlar voluntariamente sua atividade psicológica, ampliando consideravelmente suas capacidades de memorização, de percepção e de atenção, entre outras funções psicológicas, as quais só são possíveis mediante a apropriação dos bens culturais produzidos ao longo da história da humanidade.

Notas conclusivas

Esta breve exposição teve por objetivo explicitar, a partir da ontologia marxiano-lukacsiana, o sentido ontológico do trabalho e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, evidenciando como tal legado teórico pode auxiliar no entendimento de como nos tornamos humanizados. Assim, reafirmamos que o edifício teórico proposto por Marx gesta um novo paradigma para a compreensão das particularidades da atividade consciente do homem, contrapondo-se de maneira frontal às perspectivas então vigentes, a partir das quais, por um lado, tínhamos indagações que procuravam respostas, ou na natureza biológica, ou nos recônditos da alma e, por outro, com Marx, passamos a ter respostas na natureza social humana.

Assim, esperamos ter evidenciado os delineamentos de Marx quanto à esfera do trabalho, à maneira como este altera o modo com o qual os seres humanos se relacionam com o mundo que o cerca, uma vez que, por meio da criação dos instrumentos, o homem passa a transformar a natureza externa segundo a sua vontade, ao mesmo tempo em que também passa a dominar sua natureza interna.

Com efeito, a importância do caráter instrumental se configurou de suma importância para evidenciarmos, conforme propõem os estudiosos da Escola de Vigotski, o aspecto social do psiquismo humano, o qual se desenvolveu mediante um processo de reorganização dos mecanismos naturais em decorrência da evolução sócio-histórica do homem, configurando-se como o resultado da apropriação pelo homem dos produtos da cultura no decurso de seu contato direto com outros representantes do gênero humano.

Ao retomarmos a centralidade que o trabalho ocupa no processo de humanização, reconhecemos que, por meio dele o homem cria os instrumentos e signos que o auxiliarão no domínio tanto da natureza quanto do seu próprio comportamento ou de outrem. Assinalamos que toda função psicológica aparece duas vezes no desenvolvimento do gênero humano: primeiro no plano intrapsicológico, mediando as relações sociais; e, depois, no plano interpsicológico, mediando internamente os processos subjetivos inerentes ao ser social. Por fim, esperamos ter demonstrado nessas notas introdutórias que toda função psicológica superior ou as particularidades da atividade humana estão intimamente relacionadas com a riqueza das relações objetivas engendradas na concretude do mundo dos homens.

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1Se la analizarmos bajo su aspecto cultural, la base de la psicología presuponía leyes o bien de carácter puramente natural o puramente espiritual, metafísico, pero em cualquier caso, no leyes históricas. Repetimos de nuevo: las leyes eternas de la naturaliza o las leyes eternas del espíritu, pero no las leyes históricas.

2Podríamos formular nuestra deducción principal, diciendo que la conducta humana se distingue por la misma peculiaridad cualitativa - comparada con la conducta animal - que diferencia el carácter de la adaptación y del desarrollo histórico del hombre comparado con la adaptación y el desarrollo de los animales, ya que el proceso del desarrollo psíquico del hombre es una parte del proceso general del desarrollo histórico de la humanidad.

3Por medio de la herramienta el hombre influye sobre el objeto de su actividad la herramienta está dirigida hacia fuera: debe provocar unos u otros cambios en el objeto. Es el medio de la actividad exterior del hombre, orientado a modificar la naturaleza. El signo no modifica nada en el objeto de la operación psicológica: es el medio de que se vale el hombre para influir psicológicamente, bien en su propria conducta, bien en la de los demás; es un medio para su actividad interior, dirigida a dominar el proprio ser humano: el signo está orientado hacia dentro

4La aplicación de medios auxiliares y el paso a la actividad mediadora reconstruye de raíz toda la operación psíquica a semejanza de cómo la aplicación de las herramientas modifica la actividad natural de los órganos y amplia infinitamente el sistema de atividade de las funciones psíquicas. Tanto a lo uno como a lo outro, lo denominamos, em su conjunto, com el término de función psíquica superior o conducta superior.

5[...] las funciones psíquicas superiores fue antaño externo. Si es cierto que el signo fue al principio un médio de comunicación y tan sólo después pasó a ser um médio de conducta de la personalidade, resulta completamente evicente que el desarrollo cultural se basa em el empleo de los signos y que su inclusión em el sistema general del comportamiento transcurrió inicialmente de forma social, externa.

6[...]Toda función en el desarrollo cultural del niño aparece en escena dos veces, em dos planos; primero em el plano social y después en el psicológico, al principio entre los hombres como categoría interpsíquica y luego em el interior del niño como categoría intrapsíquica. Lo dicho se refiere por igual a la atención voluntaria, a la memoria lógica, a la formación de conceptos y al desarrollo de la voluntad. Tenemos pleno derecho a considerar la tesis expuesta como una ley, pero el paso, naturalmente, de lo externo a lo interno, modifica el propio proceso, transforma su estructura y funciones. Detrás de todas las funciones superiores y sus relaciones se encuentran geneticamente las relaciones sociales, las auténticas relaciones humanas.

Recebido: 09 de Janeiro de 2019; Aceito: 25 de Outubro de 2019

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