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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.70 Uberlândia ene./apr 2020  Epub 06-Feb-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n70a2020-51904 

Artigos

Do passeio pela filosofia Deleuze-Guattariana ao encontro com o possível conceito de programa de vida

The stroll of Deleuze-Guattarian philosophy and meeting with the possible concept of life programs

Le promenade par la philosophie Deleuze-Guattarien à la rencontre avec la possible notion de programme de vie

Bruno Gonçalves Borges* 
http://orcid.org/0000-0002-3200-4909

*Doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor na Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: brunogoncalvesborges@hotmail.com


Resumo

De todas as maneiras de incursionar uma filosofia, o passeio pareceu ser a abordagem possível diante do emaranhado pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ainda que alguns se dediquem a localizar onde começa e onde termina a contribuição de cada um nas obras que os dois filósofos escreveram juntos, é nesse entre, no encontro de dois pensadores, que enfrentavam questões específicas em cada campo de ação, mas que foram capazes, por meio da troca, ou melhor do roubo recíproco, como gostava de dizer Deleuze, que se produziu um pensamento que não se acomoda ou se ajusta à tradição. Desse passeio, destaca-se o encontro com um possível conceito presente em diferentes obras desses filósofos que é o programa de vida. Não se trata de um conceito efetivo, pois ele não é alçado a esse status pelos seus autores, ou pelo menos de forma objetiva. Cabe a este artigo, enfim, apresentar um plano sobre o qual esse protoconceito possa ser desenvolvido.

Palavras-chave: Programa de vida; Deleuze; Guattari; intersecção

Abstract

Of all the ways of studying philosophy, the stroll seemed to be the possible approach to the tangled intersected thinking of Gilles Deleuze and Felix Guattari. Although some are dedicated to locating where each one's contribution begins and ends in the works that the two philosophers wrote together, it is in this between, at the meeting of two contemporary thinkers, that they generally faced questions specific to each field of action. That finally, they were able, through an exchange, or rather reciprocal theft, as Deleuze liked to say, that philosophy has been produced which does not fit but is not excluding from what tradition has conventionally called philosophy - reason. This tour highlights the encounter with a possible concept present in different works of these philosophers, which is the program of life. This is not an effective concept, as it is, they not raised to this status by its authors, or at least objectively. It is up to this article, finally, to present a plan on which this developing of concept.

Key Works: life program; Deleuze; Guattari; intersection

ABSTRACT

De toutes les manières de connaitre une philosophie, le promenade semblait être l’approche possible devant l’enchevêtrement de pensée intersecté de Gilles Deleuze et Félix Guattari. Encore que certain se consacrent a localiser où commence et termine la contribution de chacun dans les oeuvres que les deux philosophes ont écrit ensemble, c’est dans ce entre, la rencontre de deux penseurs contemporains, qui ont généralement confronté les questions spécifiques a chaque champs d’actions, mais qui à la fin, ont été capable, grâce a l’échange, ou mieux du vol réciproque, comme aimait dire Deleuze, que s’est produite une philosophie que ne s’ajustait pas, mais aussi qui ne s’est exclue pas de ce que la tradition convenu a appelé philosophie- la raison. De ce chemin, ce démarque la rencontre avec une possible notion présente dans différentes oeuvres de ces philosophes qui est le programme de la vie. Il ne s’agit pas d’une notion efficace car il n’est élevé pas à ce statut par ses auteurs, ou au moins de forme objectif. Incombe a cet article, enfin, de présenter un plan sur lequel ce ‘proto-notion’ peut être développé.

Mots clés : programme de vie; Deleuze; Guattari; intersection

Interseccionando planos

Gilles Deleuze e Félix Guattari não operam o conceito de ideologia, ou mesmo de estrutura (infra e super). Para eles, esses conceitos e uma série de outros comuns às abordagens estruturalistas ou materialistas, não podem exercer função senão em um plano de organização, conceito capaz de abranger o poder ideológico, que é multidirecional, e a estrutura que se compõe e decompõe a partir dos estratos também de sedimentação diversa, atravessados pelo investimento do desejo no campo social. Para cada plano de organização é possível traçar um plano de consistência/imanência. Diante disso, não é possível afirmar a existência de UM plano, seja sob o fluxo que for, mas planos continuamente sendo efetuados, pois, além de não serem unitários, não se deve incorrer no risco de simplesmente polariza-los.

De modo geral, há planos de organização. São por eles que se percorre a viagem da vida. Por onde quer que se passe, estar-se-á envolvido pela trama que impele e ao mesmo tempo convida a fazer parte dela, como na sedução de Calipso. Essa organização remete ao organismo, que não é a mera reunião dos órgãos, mas a sinergia, a convergência que arrasta o princípio organizador aos órgãos impondo-lhe o funcionamento particular, segundo o fundamento da “manutenção” (Deleuze; Guattari 2011a, 2011b, 2012a, 2012b, 2012c).

Os planos de organização não cessam em projetar nos planos de consistência os seus elementos estruturantes e formadores e, é preciso reconhecer que eles também são a fonte de códigos irregulares, tornados objetos parciais, extraídos e colocados sobre o processo de composição dos planos de consistência/imanência. Não é possível, portanto, desconsiderar a sua força, nem mesmo dá-la por superada quando emergem planos de consistência, pelo contrário, a tarefa de confronta-los continuamente às máquinas abstratas se impõe, pois eles não param de investir na multiplicidade a fim de reproduzir o interesse molar e, não cessam quando alcançam esse objetivo, pois, sobre o corpo do capital-dinheiro - última formação do socius - não esgotam os processos de validação do desejo representado.

Nesse sentido,

[...] o plano de organização não para de trabalhar sobre o plano de consistência, tentando sempre tapar as linhas de fuga, parar ou interromper os movimentos de desterritorialização, lastreá-los, reestratificá-los, reconstituir formas e sujeitos em profundidade. Inversamente, o plano de consistência não para de se extrair do plano de organização, de levar partículas a fugirem para fora dos estratos, de embaralhar as formas a golpe de velocidade ou lentidão, de quebrar as funções à força de agenciamentos, de microagenciamentos (Deleuze; Guattari, 2012b, p. 63).

Um plano de consistência, ao contrário de um plano de organização, não é regido por uma finalidade, tampouco parametrizado por um conjunto de princípios. “Com efeito, procedendo por consolidação, a consistência necessariamente age no meio, pelo meio” (Deleuze; Guattari, 2012c, p. 236) e, isso, nada tem a ver com a média, mas com a efetuação no trajeto, valorizando uma relação entre os elementos que só pode ser medida pelas intensidades e não pela posição ocupada, seja de um sujeito, seja de um objeto.

No plano de consistência

[...] não há mais absolutamente formas e desenvolvimentos de formas; nem sujeitos e formações de sujeitos. Não há nem estrutura nem gênese. Há apenas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão entre elementos não formados, ao menos relativamente não formados, moléculas e partículas de toda espécie. Há somente hecceidades, afectos, individuações sem sujeito, que constituem agenciamentos coletivos (Deleuze; Guattari, 2012b, pp. 57-58).

Há um plano que é propriamente filosófico, não porque ele assim se identifica, ao contrário, por não ser dogmático é que ele se abre ao exercício do pensar. Este plano é construído e não constatado e, portanto, cabe ao filósofo diagrama-lo diante os agenciamentos múltiplos que o atravessam e, estabelecido em função de linhas, superfícies ou outros planos que se entrecruzam, transpondo-se aos limites originais dos planos de organização.

No caso de uma intersecção o que se tem é a produção de uma zona experiencial. Uma zona experiencial é aqui entendida como a superfície em que são registradas as intensidades, expressas como amplitudes, como é definido pela física, em que não a natureza da ação, mas as frequências da energia potencializada nela podem distinguir os componentes de composição de um plano. Essa zona pode também ser compreendida como um fluxo cambiante entre o plano de organização a que a multiplicidade está continuamente investida e o plano de consistência que ela pode produzir como movimento desviante ou intensificador. Em todo o caso, não se trata de abstração lógica, mas da circulação e interação de afetos, perceptos e conceitos que se propagam pelo socius em processos bipolares de imanência-transcendência das condições de existência, revelados pelos diferentes agenciamentos e máquinas.

Acredita-se que uma zona experiencial é sempre uma zona maleável, o que a torna ao mesmo tempo potente e vulnerável. Como já dito, ela parece estar localizada entre os dois planos e surge da interação deles com o sujeito da experiência, o que não significa uma atividade simples, pois, cada um desses três elementos encontra-se em estágio diferente de disposição e, com isso, suas posições não podem ser reveladas por completo. O que é possível localizar são as tendências segundo a previsibilidade de ação em cada um dos campos, como, por exemplo, o investimento repressivo molar que frequentemente domina o plano de organização, a volatilidade do sujeito que configura o elemento desestabilizador do esquema e, a possibilidade de ruptura ou não da repressão na multiplicidade molecular que pode produzir um plano de consistência.

Uma zona, um pré-plano de consistência, também é uma região de influência, marcada pela presença dos diferentes agenciamentos pelos quais a experimentação é tomada, bem como, factível à produção, registro e consumo das sínteses que a atravessam e dos fluxos oriundos das máquinas distribuídas pelo socius. Não obstante, essa influência é percebida segundo o entendimento de que ela ocorre em dois tipos complementares de instâncias da experiência, uma compreendida como movimento de aproximação - intensidade e, outra, por movimento de domínio - extensão. É que no âmbito da chamada zona experiencial é possível perceber que existem inúmeras outras zonas responsáveis pela experimentação. As três zonas próprias de qualquer centro de poder: potência, indiscernibilidade e impotência; as zonas de vizinhança ou intensidade (que também é um modo de indiscernibilidade); zonas de frequência ou probabilidade; zona estacionária das representações (Deleuze; Guattari, 2012a); zona de variação contínua (Deleuze, 2011a).

Do plano de consistência aos programas de vida

De antemão, alerta-se para o fato de que não se trata de um movimento de correspondência, nem mesmo de progressão. São duas coisas, cada uma com sua particularidade, sendo o plano de consistência, o que o filósofo desenha para si e, os programas de vida, a ação que visa a constituição de um corpo sem órgãos (CsO)1, por meio da experimentação, mas que não pode se comprometer em resultar em um plano do tipo anunciado.

Um programa, como disseram Deleuze e Guattari, 2012a, é um “motor da experimentação” e pode-se dizer que ele objetiva a produção de um CsO. Não é por ele mesmo uma tarefa positiva no sentido de que não pode ser considerado exclusivamente responsável pela liberação da experiência. É, portanto, parte do processo de sua liberação diante da dependência dos regimes significantes, da organização social e dos padrões de subjetividade dominantes. O programa tem um começo e um fim e é uma ação e não um efeito, portanto, está no meio do processo de individuação. Ele é o plano prático de ação que se instala segundo a maquinação desejante operada em um e para um CsO, criado pelas máquinas abstratas na medida em que a libido investe o campo social. É composto por programação (enunciados), programador (indivíduo ou grupo em uma zona experiencial) e o devir (condição e potência objetiva), sendo operado por intensificação, proliferação ou desestratificação, conforme investimentos econômicos, políticos e, sobretudo, libidinais. Por fim, não há um modelo de programa, ainda que seja possível encontrar a maiorias dessas condições em grande parte deles.

Nos Diálogos entre Deleuze e Claire Parnet (1998), por exemplo, o filósofo francês, localiza, brevemente, a ocorrência do programa de vida no campo da literatura ao falar das escrituras de Bernd Heinrich W. von Kleist (1777-1811) e de Franz Kafka (1883-1924).

Kleist e Kafka passavam seu tempo fazendo programas de vida: os programas não são manifestos, e menos ainda fantasias, mas meios de orientação para conduzir uma experimentação que ultrapassa nossas capacidades de prever (do mesmo modo o que chamamos de música programada) (Deleuze; Parnet, 1998, p. 61).

Ao ser relacionado à literatura, o programa de vida pode ser entendido como um conjunto de elementos experienciais, forte o suficiente para provocar uma ruptura na linha perene que perpassa o socius, através das fissuras que encontra no território que percorre e na multiplicidade molecular que atravessa, ainda que ela seja uma realidade circunscrita à narrativa literária ou à experiência do próprio autor. Em síntese, sobre essa matéria pode-se observar que “[...] só pode haver uma coisa, a experimentação-vida. Nunca se sabe de antemão, pois já não se tem nem futuro nem passado. ‘Eu sou assim’, acabou tudo isso” (Deleuze; Parnet, 1998, p. 61).

Para Deleuze e Parnet, “Kleist e Kafka passavam seu tempo fazendo programas de vida” (1998, p. 61). Essa produção pode ser apreendida em duas direções, ainda que elas não sejam duas coisas totalmente distintas. Em uma via, está a feitura de um programa para a vida do autor e, em outra, o trasbordamento desse programa nos personagens e nas histórias produzidas pelo autor, ou vice e versa. Assim, ao passar o tempo fazendo programas de vida, o autor está, de fato, elaborando programas que incidem diretamente em sua existência, que pode se realizar tanto nas escolhas ordinárias da vida cotidiana quanto na projeção de escolhas virtuais através das suas escrituras, que também configuram programações.

Nessa direção, o que diferencia uma postura programadora de outra, contemplativa ou paranoica, é a abertura ao não instituído, ou seja, ao considerar que “os programas não são manifestos, e menos ainda fantasias, mas meios de orientação para conduzir uma experimentação que ultrapassa nossas capacidades de prever” (Deleuze; Parnet, 1998, p. 61), o indivíduo que se expõe a realizar um programa de vida se comporta tal como um viajante, que desenha o destino que quer chegar, que tem meios de se orientar no percurso, mas conta apenas com o devir-viajante como condutor da viagem, não há fantasia do que encontrar, nem o dever de encontrar algo, apenas o fluxo da experimentação que perpassa todo o conjunto viajante - a viagem, o explorador, a realidade. Nas palavras de Kleist (2001, p. 472), “um viajante que conhece o destino de sua viagem e o caminho para seu destino tem um plano de viagem. Qual é o itinerário para o viajante é o plano de vida para o homem”.

Kleist foi, talvez, quem empregou o termo de forma mais próxima a pretendida nesta investigação, levando em conta a esparsa referência presente na obra deleuzeana. O escritor alemão recorre ao Lebensplan, ao plano de vida, como condição vital de qualquer indivíduo. Sem um plano de vida, acreditava o escritor, é impossível que qualquer ser humano pudesse conviver com a agonia do futuro e a melancolia do passado. De acordo com Luke e Reeves, 1978, que prepararam a versão americana da reunião de novelas e ensaios de Kleist, o escritor perseguiu a partir do Lebensplan uma espécie de segurança colossal diante dos desafios perenes da existência. O plano de vida era um olhar constante ao futuro, ao mesmo tempo em que configurava confiança e conforto à ação presente.

Em carta ao amigo Christian Ernst Martini, de 18 e 19 de março de 1799, dizia o escritor:

[...] estava começando a duvidar de que a execução do meu plano era aconselhável. Eles disseram que eu era muito velho para estudar. Eu sorri por dentro, porque eu previ meu destino de morrer uma vez como um aluno, mesmo indo para o túmulo como um velho. Eles me apresentaram minha pequena fortuna; Eles me mostraram a perspectiva duvidosa no meu novo modo de vida. Era meu destino iminente estudar uma ciência dura por vários anos, me torturar durante anos, sem pão, como funcionário, com ocupações secas, para finalmente adquirir um pão miserável, com cores barrocas tão simples para mim em meus sonhos, poderia ter imaginado que minha situação atual, em muitos aspectos, favorável, seja trocada com este plano de vida, Portões absurdos que já me apareceram (Kleist, 2001, p. 482, trad. nossa).

Contudo, o Lebensplan tem uma função primordial em Kleist (2001), que é revelada na força de confiança que ela comporta. É graças a esse exagero de confiança que seu plano pode ser movido sem ser capturado nos agenciamentos coletivos de enunciação ou ser formatado pelos padrões de subjetividade que volta e meia os atravessa. Em carta a sua irmã, Ulrike, em maio de 1799, ele afirma que

Um homem livre e pensativo não fica onde a chance o leva; ou se ele permanece, ele permanece por razões, da escolha do melhor. Ele sente que se pode ascender acima do destino, na verdade, que é possível, no sentido próprio, dirigir o destino. Ele determina de acordo com sua razão, que a felicidade é a mais alta para ele, ele projeta seu plano de vida e se esforça para todos os seus poderes com seus princípios, que certamente são estabelecidos. Pois a Bíblia diz que se você quiser adquirir o reino dos céus, coloque sua própria mão (Kleist, 2001, p. 488, trad. nossa).

Se aqui coincidem os termos plano de vida - Lebensplan - e programa de vida, é porque, especialmente, Deleuze; Guattari (2003) assim operam em Kafka, para uma literatura menor2. Nesta obra, os filósofos indicam que os dois termos se associam ou mesmo se fundem com se sinônimos fossem. Assim como no caso de Kleist, em que o programa de vida é anunciado pelas cartas que operam “listas de condições”, o programa de vida coincide com o programa político kafkiano e sua função depuradora dos conflitos potencializando-os em debate (Deleuze; Guattari, 2003)

Quanto ao programa de vida, segundo Kleist, 2001,

Enquanto um homem ainda não conseguir formar um plano de vida para si mesmo, ele é tão imaturo quanto criança, sob a tutela de seus pais, ou como um homem sob a tutela do destino. A primeira ação da independência de um homem é o design de tal plano de vida. Quão necessário é fazê-lo o mais cedo possível, a perda de sete anos preciosos, que devo dedicar à posição do soldado, me fez pensar em sete anos irremediavelmente perdidos, que eu teria podido aplicar ao meu plano de vida se eu fosse forma-lo mais cedo entendido (Kleist, 2001, p. 489, trad. nossa).

É preciso salientar que Kleist esteve às voltas com a filosofia kantiana, o que foi, ao mesmo tempo, um movimento de ligeira identificação que, depois, se voltou contra ele e contra si mesmo. Em carta endereçada a Wilhelmine von Zenge ele se coloca em uma posição que poderia ser entendida tanto como descrença quanto como prenúncio de oposição. Diz ele:

Bildung [formação] parecia-me a única meta que valia a pena; Warhreit [verdade], a única riqueza digna de posse. Não sei, querida Wilhelmine, se podes imaginar essas duas ideias, Verdade e Formação, com tal importância. Elas eram tão sagradas para mim, que esses dois objetivos, reunir a verdade e adquirir formação, custaram-me fazer os sacrifícios mais preciosos. [...] Meu único e maior objetivo caiu por terra, e agora não tenho nenhum (Kleist, 2001, 633-634, trad. nossa).

É justamente a partir do conflito com o pensamento kantiano, destaca Cavalcanti, 1992, p. 243, que Kleist se “transformaria num dos maiores dramaturgos e poetas de sua língua”. Eis que uma crise sem proporções domina o escritor alemão por completo, fazendo com que ele volte “à estaca zero” (Cavalcanti, 1992, p. 242), diante da inadmissibilidade do sistema kantiano fechado na Crítica do Juízo. A saída, ele procura estabelecê-la por meio de um plano ante as grandes resoluções ideológicas ou doutrinárias, escolhe definir um plano de vida, “uma expressão simples um sentido simples” como viajar e, “viajar sem um plano de viagem é esperar que a chance nos leve ao objetivo que não conhecemos. Viver sem um plano de vida é esperar do acaso, quer ele nos torne tão felizes quanto não o concebemos” (Kleist, 2001, p. 490, trad. nossa).

No relato feito a Ulrike, o escritor alemão argumenta:

É tão incompreensível para mim como um homem poderia viver sem um plano de vida, e eu me sinto tão feliz, uma felicidade inestimável, na segurança com que estou usando o presente. Sem plano de vida, sem determinação fixa, sempre flutuando entre desejos inseguros, sempre em contradição com meus deveres, um jogo de azar, uma boneca no fio do destino, essa condição indigna me parece tão desprezível; me deixaria tão infeliz que a morte seria muito mais desejável para mim (Kleist, 2001, p. 490, trad. nossa).

Na recomendação que faz a sua irmã, Kleist dá pistas de como proceder para compor um programa de vida. De acordo com o autor de Michael Kohlhaas e Sobre o teatro de marionetes entre outros títulos, é necessário, antes de tudo, que se mobilize a vontade de traçar um plano. Essa vontade deve ser interior e movida pelo desejo que pulsa na possibilidade de realização do programa. Não é possível, portanto, a prescrição de um Lebensplan, cabe, segundo ele, a razão de cada um provocar a sua necessidade e com ela os primeiros traços de elaboração.

Kleist então escreve a Ulrike:

Eu também gostaria de pedir-lhe que decida, a qualquer momento, a adoção de qualquer plano de vida, porque gostaria de felicitá-la pelo conhecimento do nosso destino, pelo bom gozo do presente e pela paz do futuro. Não gostaria de influenciar um determinado plano de vida. Que este seja o trabalho da sua razão. Verifique sua natureza, avalie que felicidade moral é mais apropriada para você. Em uma palavra, realize um plano de vida e, em seguida, se esforce para sua execução. Então, nunca mais irá acontecer de se culpar. Seus desejos e seus deveres, suas palavras e suas ações nunca se contradir-se-ão (Kleist, 2001, p. 491, trad. nossa).

Também é possível perceber o que pesa na elaboração de um programa de vida, segundo as recomendações do escritor alemão ao passo que sobre elas é investida uma leitura deleuze-guattariana: i) verificação das suas condições mais íntimas e, no entanto, mais gerais, ou seja, as máquinas desejantes que fazem com que a libido seja investida socialmente e, que assim, possa produzir fluxos que atravessam a multiplicidade molecular se livrando dos regimes de significação; ii) Avaliação, a partir da descoberta das verdadeiras máquinas e dos agenciamentos necessários, de quais objetivos e a que preço consegui-los; iii) diante disso, é necessário pô-lo em funcionamento. Será necessário esforço para enfrentar o mundo das representações mórbidas, dos regimes significantes asfixiantes, da organização imobilizadora, enfim, conseguir atravessar tudo isso e, ainda, de posse de um pouco de cada um desses territórios poder produzir um novo plano, de imanência.

Contudo, Kleist, faz uma colocação intrigante na mesma carta destinada à irmã. Sugere ele na correspondência, que, supondo que Ulrike não tenha criado um programa de vida para si, afirma que ela se negou a cumprir outro, ao qual não poderia ter se furtado a não ser se tivesse criado para si um programa autêntico.

[...] muito mais do que eu temo que você ainda não tenha formado um plano de vida, devo temer que você acabou de rejeitar o único plano de vida digno de você. Deixe-me falar sinceramente, sem restrições, sem toda vergonha imposta. Parece-me que é possível que eu esteja enganado, e ficarei feliz se você puder me convencer do contrário, mas parece-me que você se decidiu nunca se casar. Como? Você nunca quis ser esposa e mãe; Você teria decidido não cumprir o seu maior destino, não para cumprir seu dever mais sagrado? E você estava determinada sobre isso? Estou realmente ansioso para ouvir os motivos que você pode ter para essa decisão mais criminosa e criminal (Kleist, 2001, p. 491, trad. nossa).

Haveria um programa de vida que não fosse elaborado por quem de fato o colocasse em prática? Havendo tal distinção, que tipo de programa seria este que é provisoriamente externo ao executor? E, em que medida teria esse indivíduo condições de avaliar se está a executar o seu programa ou o de outros? Deixadas em suspenso, essas e outras questões congêneres, que até poderiam suscitar uma análise ontológica, precisam ser refletidas à luz de uma pragmática e, segundo um procedimento rizomático, pois, acredita-se, assim, ser possível compreender o movimento performático, o único perceptível, fora da idealização e, que enseja o fundo recorrente em todas elas.

Kleist, 2001 oferece uma resposta provisória às questões, mais uma vez, utilizando-se de outras questões, o que favorece o entendimento de que não há resposta definitiva ou pontual, mas apenas a proliferação de indagações que objetivam a mobilização em torno da elaboração de um Lebensplan.

Diante das inquirições finais presentes na carta de maio de 1799, não seria difícil perceber o quão complexa é a percepção kleistiana acerca dos programas de vida. Não obstante, é também possível perceber que, na lógica do escritor alemão, esses programas não estariam imunes às questões de julgamento moral, por exemplo, quanto à sua irmã, indiretamente, o escritor alemão sugere o cumprimento de um plano destinado primeiro às mulheres e, depois, à espécie.

Se é possível uma primeira consideração acerca das inúmeras questões apresentadas, esta pode ser delineada a partir do entendimento de que há tão somente programas de vida, no plural, daí a pertinência de Kleist em averiguar a inexistência de um plano de vida estrito para sua irmã, em meio a existência de outros, gerais. Dessa importância, pode-se chegar ao problema que engloba a questão da interação molecular com os diferentes programas: ao que tudo indica, todo programa é um programa de vida, o que por ora, aproxima-se de uma solução preliminar à questão apresentada de saber se o programa de vida é uma especialidade do programa e, se caberia a tarefa de classificar ou selecionar tipos específicos. É por ser um programa de vida, que todo programa pode ser realizado e não apenas idealizado. É também por esta condição, que um programa pode cumprir sua função de criar um CsO. Ademais, ele tende ao fracasso, a não reprodução, pois é finalístico e não transcendente. Até então, sendo regulares essas manifestações a todo tipo de programa parece ser prematuro falar de uma programalogia ou programástica, capazes de teorizar, hierarquizar e distinguir os variados programas.

Mesmo o programa nazista foi um programa de vida. Sua face cruel era completada com a face dissimulada do rosto ariano que não via obstáculo para cumprir a rostificação necessária a todos os povos, pois, como é de se esperar, não basta apenas elevar-se à condição de supremacia, é preciso produzir a ameaça constante, ou seja, a rostificação deve ser um processo em curso, nunca alcançado por completo. O programa de vida nazista foi, indiscutivelmente, uma realização, uma prática programada em movimento. Ele difere, contudo, na criação de um CsO, porque importava, na ocasião, criar um grande corpo, a nação-corpo, baseado em um organismo supraindividual que, só não chegou ao fim e, portanto, não fracassou (o que em parte explica o registro reincidente de movimentos simpatizantes a este programa) devido ao limite externo que antes era expansivo ter se tornado contrativo: a antiprodução dos Aliados.

Na construção do problema que envolve a criação e a viabilidade do conceito de programa de vida como saída à formação, soma-se às questões kleistianas, como já anunciado, o entendimento apreendido a partir dos elementos de composição do termo em Franz Kafka que circulam não apenas na obra do escritor tcheco, mas também na sua vida. Com isso, espera-se, no entrecruzamento de ambas as fontes conceituais, que seja possível visualizar ao menos um protótipo programático.

Diferentemente de Kleist, Kafka não emprega um termo tão próximo ao programa de vida, como Lebensplan, contudo, sugere uma apropriação intensa de forças similares ao conceito, o que é registrado por Deleuze e Parnet, 1998, que o coloca no mesmo patamar do escritor alemão quando citada a função constante de produção de um programa de vida: “Kleist e Kafka passavam seu tempo fazendo programas de vida” (p. 61)3. Em nota, Deleuze e Guattari, 2003, p. 132 destacam que Max Brod (1962) reproduziu nas páginas de Franz Kafka - eine biographie, um programa de vida do autor tcheco4.

Uma função, ressalta Deleuze (2016, p. 334), existe “desde que sejam regradamente postos em correspondência dois conjuntos, pelo menos. [...] Um conjunto nada tem a ver com um conceito. Desde que se ponha conjuntos em correção regrada, você obtém funções [...]”. Tal consideração, de fato, está estritamente vinculada à linguagem matemática e extrapola a comumente atribuição de utilidade de determinada ação que o termo também inspira, ainda que não seja nula essa aplicação em diversas passagens da escrita deleuzeana. Uma função, em que seja X um conjunto com elementos de x e Y um conjunto dos elementos de y, temos a seguinte formalização f: x → y. Desse modo, cada elemento do conjunto x é levado a um único elemento do conjunto y. Tal ocorrência é determinada por uma lei de formação.

Mas, será na análise que Deleuze desenvolve junto a Guattari em Kafka: para uma literatura menor, que o termo será empenhado de forma mais persistente. A função será o modus que perpassará a língua e a literatura, na medida que sobre “os coeficientes de territorialidade e de desterritorialização relativos” (Deleuze; Guattari, 2003, p. 55) operam as máquinas abstratas, os devires, os agenciamentos de enunciação, reunidos sob a inscrição menor, ou seja, movimentos contra o instituído, seja da língua ou a própria linguagem ou da literatura com seus procedimentos e relações filiais.

Deleuze e Parnet (1998) descrevem, brevemente, a função K a partir da observação de dois conjuntos distintos de composição presentes na obra kafkiana, um sendo reconhecido na formalização jurídica dos enunciados e, o outro, pertencendo à produção maquínica. Não por acaso, as questões e respostas ou o veridicto de O Processo, por exemplo, quando transpostos do primeiro (x) ao segundo conjunto (y), mantêm componíveis esses signos, ainda que interditados, pois passam a ser analisados segundo a condição da maquinação desejante: xy= f(x). Caberá a função K operar, simultaneamente, esses dois conjuntos a fim de que a máquina de escrita kafkiana seja preservada, só assim ela pode “ter inventado um novo modo de produção de subjetividade” (Guattari, 2011, p. 27).

Assim,

Se há um mundo kafkiano, não é, com certeza, o do estranho e do absurdo, e sim um mundo onde a mais extrema formalização jurídica dos enunciados (questões e respostas, objeções, pleito, considerandos, entrega de conclusões, veredicto) coexiste com a mais intensa formalização maquínica, a maquinação dos estados de coisas e de corpos (máquina-barco, máquina-hotel, máquina-circo, máquina-castelo, máquina-processo). Uma única e mesma função-K, com seus agentes coletivos e suas paixões de corpos, Desejo (Deleuze; Parnet, 1998, p. 85).

A função k parece ser uma invenção de um período específico da vida e da obra de Kafka. O seu surgimento parece coincidir, ou melhor, ser depreendido, de uma mudança profunda na estilística do escritor tcheco, que ocorre em meio a um fluxo de mudanças afetivas decorrentes de sua relação com Felícia Bauer. Segundo Guattari (2011a), essa mudança será marcada pela “afirmação de uma nova máquina escritural analítica sobre um velho ideal identitário” (p. 31), revelando um deslocamento do procedimento ao processo.

Com isso,

A letra K já não designa um narrador nem uma personagem, mas um agenciamento muito mais maquínico, um agente muito mais coletivo porque um indivíduo se lhe encontra ligado na sua solidão (só em relação a um sujeito é que o individual estaria separado do coletivo e cuidaria dos seus próprios interesses) (Deleuze; Guattari, 2003, p. 41).

A função K opera, portanto, conjuntos distintos que, a partir de uma lei própria da formação dos enunciados5 em Kafka, é atravessada pelos dois eixos do agenciamento, conforme destacam Deleuze e Guattari (2011b). No eixo horizontal, ocupa-se do conteúdo e da expressão, em duas direções, sendo uma delas a do “agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros” interagindo o conteúdo, dando-lhe e extraindo-lhe formas diversas segundo a velocidade das ocupações por intensidade da máquina de escrita kafkiana que vão ser comunicadas por outra direção, o “agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas sendo atribuídas aos corpos”. No eixo vertical, a função K é realizada em duas partes ou lados do agenciamento, “de uma parte, lados territoriais ou reterritorializados que o estabilizam e, de outra parte, picos de desterritorialização que o arrebatam” (Deleuze; Guatarri, 2011b, p. 31). Não obstante, a função K é ela mesma a operacionalização desses dois eixos que se apresentam como conjunto do agenciamento.

É na medida em que a função K apaga a distinção entre conteúdo e expressão, em que desmonta a organização por estruturas desse conteúdo e, em que interdita a expressão significante assinalada em sujeitos e pessoas, que é possível apreender a viabilidade de um programa de vida em sua obra. A função K é o disparador do processo, do inacabado levado ao último grau que passa a ser a característica de sua literatura a partir da obra homônima O Processo. A função K, portanto, funciona como “o motor da experimentação” na criação de um CsO de Deleuze e Guattari.

Logo, pode-se dizer que a função K está para o programa de vida como o plano Kleist igualmente está. Cada um à sua maneira, o programa de vida é revelado em ambos a partir de uma realidade vivida e não meramente projetada - imanente e não finalista. Ao que tudo indica, Kafka parece ter ido mais longe quando elabora um programa político, extrapolando as condições ainda subjetivas em Kleist. Quando o escritor tcheco, de acordo com Deleuze e Guattari (2003, p.39), aborda o problema familial fora da restrita triangulação edipiana, ou seja, tornando-o aberto, maleável e colocando-o fora da representação psicanalítica, possibilitando o debate, ele faz o triângulo familiar se conectar “com outros triângulos, comerciais, económicos, burocráticos, jurídicos, que lhes determinam os valores”.

Eis que, às condições programáticas kleistianas de verificação, avaliação e esforço podem ser avizinhados os critérios também programáticos encontrados em Kafka e reunidos sob a função K. Dentre eles, destacam-se a dispensação, o fracasso, a intensificação/ desestratificação e, o devir-menor. Esses quatro critérios6 dizem respeito ao propósito de identificar a função K como meio possível para “quantificar a obra de Kafka” (Deleuze; Guattari, 2003, p. 148). Aos quatro critérios de quantidades intensivas, caberia a tarefa de “produzir todas as intensidades correspondentes, das mais baixas às mais altas: a função K. Mas foi precisamente o que ele fez, foi precisamente a sua obra contínua”.

Primeiro critério - dispensação. Esse critério exige, advertidamente, o conhecimento dos dois sentidos apreendidos por Deleuze; Guattari (2003) que incidem na escritura kafkiana e que dizem respeito à interação entre os agenciamentos maquínicos de corpos e agenciamentos coletivos de enunciação. Essa interação é percebida ao longo de um movimento que parte de uma oposição aparente entre máquina abstrata e agenciamento real, como ocorre Na Colônia Penal, e chega à congruência desses dois elementos na obra O Processo. Em todo caso, parece pesar a constatação ou aplicação de uma “Lei transcendente7”, tal qual apresentam Deleuze e Guattari.

A divergência entre máquinas e agenciamentos ocorre quando aos segundos cabe a função de produzir representação dos primeiros a fim que de possam ser localizados, ainda que por meio de uma ilusão discursiva sobre o campo social. Não obstante, essa atribuição tende, ao contrário de simplesmente reproduzir a máquina no real, a produzir uma ideia da máquina que possa ser apreendida até que a própria máquina exista tão somente na virtualização.

No sentido combinatório, entretanto, em que as máquinas medem o modo de existência dos agenciamentos e não o contrário, quando os agenciamentos atribuem existência real às máquinas, pode-se dizer que

[...] os agenciamentos concretos já não são o que atribui uma existência real à máquina abstrata, destituindo-a da sua dissimulação transcendente; é o contrário, é a máquina abstrata que mede em teor o modo de existência e de realidade dos agenciamentos através da capacidade que eles comprovam ao anular os seus próprios segmentos, ao impelir as suas pontas de desterritorialização, ao correr sobre a linha de fuga, ao encher o campo de imanência (Deleuze; Guattari, 2003, p. 146).

Ao que indicam Deleuze e Guattari (2003, p. 105), a lei transcendente compõe um dos dois polos do desejo, que corresponde, igualmente, a um dos estados da lei encontrados na obra de Kakfa. O outro polo, a lei imanente, ou a lei-esquizo, que aliás, se releva não no veredicto, mas no procedimento é a responsável “por demonstrar a Lei paranoica em todos os seus agenciamentos”. Trata-se, conforme destacam os filósofos franceses, de descobrir, desmontar e demonstrar um agenciamento a fim de que ele possa cumprir sua tarefa de agenciar entre os diferentes investimentos libidinais do campo social a multiplicidade molecular que dele apreende índices maquínicos, mas também produz seus próprios movimentos territoriais, sempre coletivamente.

Assim,

É necessário insistir nesses dois estados coexistentes. Porque, precisamente, não se pode dizer de antemão que aqui temos um mau desejo e, ali, um bom. O desejo é uma destas sopas, uma tal papa segmentar, que os bocados burocráticos, fascistas, etc., ainda ou já estão numa agitação revolucionária. Só no movimento é que se pode distinguir o “diabolismo” do desejo e a sua “inocência”, porque está um nas profundezas do outro. Nada preexiste. É pela força da sua não-crítica que Kafka é tão perigoso. Pode-se apenas dizer que há dois movimentos coexistentes, apanhados um no outro, um que capta o desejo em grandes agenciamentos diabólicos, arrastando quase do mesmo passo os criados e as vítimas, os chefes e os subalternos, produzindo apenas uma desterritorialização maciça do homem ao reterritorializa-lo também, nem que seja num gabinete, numa prisão, num cemitério (a lei paranoica). O outro movimento que faz fugir o desejo através de todos os agenciamentos, roça todos os segmentos sem se deixar agarrar por nenhum deles, e leva sempre mais longe a inocência de uma força de desterritorialização que faz corpo com a saída (a lei-esquize) (Deleuze; Guattari, 2011a, p. 106).

A questão, portanto, que mobiliza a compreensão dos dois polos do desejo está em saber como “por exemplo, o agenciamento familiar pode prescindir de uma triangulação, o agenciamento conjugal pode dispensar uma duplicação que constitui hipóstases legais em vez de agenciamentos funcionais” (Deleuze; Guattari, 2003, p. 146). Ou seja, como a dispensação das condições transcendentes pode ser acionada a fim de que a produção desejante seja liberada e, assim, promover a experimentação. Em síntese, a dispensação concentra-se no fato de que, “quanto menos pode prescindir, menos agenciamento real ele é; quanto mais máquina abstrata for no primeiro sentido da palavra [transcendente], mais despótico ele será (p. 146).

Segundo critério - o fracasso. Deleuze e Guattari, 2003 registram que na Metamorfose há um fracasso do devir-animal, o que ocorre a partir do momento em que um movimento reconciliador entra em cena promovendo uma “reconstituição familiar” (p. 147). A questão que motiva esse registro está no fato de o devir-animal comportar um problema original, que é a incapacidade de fazer fugir pela linha de fuga que ele astutamente soube traçar. Conforme os filósofos franceses, sobretudo nas novelas kafkianas, depois do esforço empregado no abando do velho território, no caso, o familial, há a constatação de uma força reterritorializadora, no caso re-edipianizante que domina as personagens.

No caso da Metamorfose

Gregor não só se transforma em inseto para fugir do pai, mas, sobretudo, para encontrar uma saída, precisamente onde o pai não conseguiu encontrar, para escapar ao gerente, ao comércio e às burocracias, para alcançar essa região em que a voz parece apenas um zumbido [...] (Deleuze; Guattari, 2003, p. 34)

No entanto, ao passo em que se avança na desterritorialização, que se vislumbra uma saída, que se traça uma linha de fuga, ocorre algo conhecido ainda que inesperado, a ação da força que ricocheteia o indivíduo no muro branco até então em processo de abandono. Argumentam Deleuze e Guattari, 2003

[...] que o processo de desterritorialização de Gregor, no seu devir-animal, se encontrou bloqueado num certo momento. [...] Gregor recusa que lhe levem o retrato da dama com o casaco de peles. Ele encosta-se ao retrato como se fosse a derradeira imagem territorializada. [...], no entanto, com ciúmes do retrato, ela começa a odiar o Gregor e condena-o. A partir desse momento, a desterritorialização de Gregor fracassa no seu devir-animal: ele obriga- se a re-edipianizar com o arremesso da maçã e deixa-se morrer com a maçã incrustada nas costas (Deleuze; Guattari, 2003, pp. 36-37).

O fracasso, contudo, não pode ser encarado na sua simples frustração. Ademais, esse critério também está presente no romance, ainda que por razões distintas, indicando que ele compõe transversalmente a obra kafkiana. No romance, por exemplo, há fracasso

[...] não só quando o devir-animal continua a predominar, mas também quando a máquina não consegue encarnar-se nos agenciamentos sociais e políticos vivo que formam a matéria animada do romance. A máquina é, então, um esboço que já não consegue desenvolver-se, qualquer que seja a sua força ou beleza (Deleuze; Guattari, 2003, p. 75).

Nesses termos, que quer dizer a afirmação de que os programas tendem ao fracasso? É que o programa não deixa de produzir uma série e nela pôr em vizinhança diversos índices maquínicos que atravessam o plano initerruptamente. Como se sabe, as máquinas se acoplam umas nas outras, seus fluxos são continuados por essa sucessão apesar de nela serem operadas ações de segmentação, fissura e ruptura, o que implica compreender um movimento diacrônico de intensidades na realização da experimentação. O programa deve ser mantido, mas até quando? A que custo? Parece ser aí que o fracasso aparece como peça indispensável.

O fracasso, contudo, não pode ser associado à castração, pois não é o caso de uma ação como essa, não é uma tarefa simbólica, mas concreta, ele deve ser aproximado de uma exaustão8, ou seja, trata-se do programa levado ao último estágio, não deixando herança ou testamento que não simples protocolos do tipo visitação a um museu, internação em um hospital, matrícula em uma escola, ainda que sob a superfície desse registro muito mais possa ser lido - a paranoia coletiva no lazer cult, a massa esquizo do tipo O Alienista, ou o alistamento dos grandes grupos sujeitados.

Quanto mais os segmentos forem duros ou lentos, menos o agenciamento será capaz de fugir seguindo realmente a sua própria linha contínua ou as suas pontas de desterritorialização, ainda que essa linha seja forte e intensas as pontas. Nesse caso, o agenciamento funciona apenas como indício em vez de agenciamento real-concreto: ele não consegue efetuar-se, isto é, não consegue atingir o campo de imanência. E quaisquer que sejam as saídas que ele indique, está condenado ao fracasso e é repescada pelo mecanismo precedente (Deleuze; Guattari, 2003, p. 147).

Terceiro critério - intensificação/ desestratificação. De acordo com Deleuze e Guattari (2003), um agenciamento não pode simplesmente ser declarado opressivo ou transgressor, bom ou mau. Ele não tem um elemento substancial o qual possa determina-lo de uma vez por todas. Um agenciamento precisa ser considerado segundo a “natureza da sua segmentaridade e a velocidade das suas segmentações” (Deleuze; Guattari, 2003, p. 147). Ainda assim, uma exploração das características de composição e de movimento de um agenciamento comportam apenas o primeiro passo para entender como ele funciona. É que

Um agenciamento pode ter uma segmentaridade flexível e proliferante e ser, no entanto, tanto mais opressivo, e exercer um poder tanto maior que deixe de ser despótico, mas realmente maquínico. Em vez de desembocar num campo de imanência, por seu turno, segmentariza-se [...] (Deleuze; Guattari, 2003, p. 147)

Nessa direção, um agenciamento pode ser analisado de acordo com os movimentos de intensificação ou de desestratificação que comportam a sua função agenciadora do desejo tendo em vista remeter-se ao campo de imanência. Intensificar a linha de fuga em direção a uma desterritorialização ou intensificar os segmentos duros até que a paranoia seja reestabelecida; desestratificar as subjetividades confinadas em padrões delineados pelo interesse molar ou desestratificar o desejo reacionário que até outrora não encontrava eco na multiplicidade molecular, são possíveis de acordo com o que produz cada máquina.

Quarto critério - devir-menor. “Qual a vocação de uma máquina literária, de um agenciamento de enunciação ou de expressão, para ele mesmo formar esta máquina abstrata enquanto campo de desejo como condições de uma literatura menor?” perguntam Deleuze e Guattari (2003, p. 148). Na verdade, os filósofos apresentam essa questão depois de já terem delineado os aspectos gerais, ao longo da análise que empreenderam acerca da obra kafkiana, que viabilizaram, não apenas sustentar que o escritor tcheco produziu sua obra nos limites de uma literatura menor, como também é possível identificar essa produção a partir da compreensão de uma função K exclusiva, aqui, sintetizada nos quatro critérios intitulados de dispensação, fracasso, intensificação/desestratificação e, devir-menor.

O último critério é, portanto, o condutor de todos os outros. É o devir-menor que precipita os movimentos de desterritorialização, que, por meio da experimentação pode pôr em agitação as moléculas a fim de que possam enfrentar os agenciamentos, encontrar suas verdadeiras máquinas, percorrer o fluxo até desenhar uma linha de fuga que, prudentemente, faz fugir do grande investimento molar representativo, significante e orgânico.

Ao mesmo tempo, esse devir é corporificado nas minoridades próprias do socius, como o devir-mulher, o devir-criança, passando pelo devir-animal e o devir-molecular, que pode mobilizar as máquinas abstratas segundo o investimento libidinal liberados das contingências a que foi submetido e promover os agenciamentos necessários ao interesse coletivo da multiplicidade. O devir-imperceptível, como último grau dos devires já não faz remissão a qualquer um dos outros três critérios, apesar de carregar consigo parte de cada um deles. Esse estágio apenas monta suas máquinas, libera o desejo do sentimento da falta culpável, da lei castradora ou do prazer residual, para ser energia empregada no campo social a fim de que se experimente, experimente e, experimente... cada vez mais, a realidade vivida.

Por que levar adiante programas de vida?

A questão, por que levar adiante o conceito de programa de vida [?] é mais do que uma questão, é uma pragmática a ser desenvolvida. Não há, minimamente, respostas, mas linhas que emanam da apresentação do programa de vida e que atravessam a multiplicidade, ávidas por serem compreendidas, analisadas, decompostas, abertas para o uso que convir.

Como dito na introdução da investigação que se encerra aqui, o termo programa de vida aparece em poucas obras e em poucos momentos das escrituras de Gilles Deleuze e Félix Guattari, apesar de que o termo programa, sem complemento, é recorrente. Contudo, foi possível apreender, a partir dos registros esporádicos, as forças constituintes desse termo que, aliás, pretende ganhar o status de conceito.

Complementarmente, é importante ressaltar que há uma diversidade de programas, que ele objetiva produzir um CsO e se realiza por relações de agenciamento e interações de desterritorialização. O programa não é por ele mesmo uma tarefa positiva. Ele está no meio do processo, mas tem um começo e um fim, operando por diferenciação e não pelo princípio de identidade, segundo critérios de intensificação, proliferação ou desestratificação. Os programas não são alheios aos investimentos econômicos, políticos e, sobretudo, libidinais. Por fim, não há um modelo de programa, mas experimentações.

Os programas de vida, além de todas essas características compreendem também o aspecto profundamente educativo. O indivíduo que realiza um programa de vida, já foi dito, se comporta como um viajante, que vislumbra o destino que quer chegar, que tem meios de se orientar no percurso, mas conta apenas com o devir-viajante como condutor da viagem; não há fantasia do que encontrar, nem o dever de encontrar algo, apenas o fluxo da experimentação que perpassa todo o conjunto viajante - a viagem, o explorador, a realidade.

Já não há fantasia, mas apenas programas de vida

(Deleuze; Parnet, 1998, p. 61)

Referências

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1Cf. Deleuze In. Lógica do Sentido (2011b, p. 33); Mil Platôs (2012a, pp.8-27); O anti-Édipo (2011, pp. 10-14).

2“Um processo, ou, como dizia Kleist, um programa de vida, uma disciplina, um auto judicial, e, de modo nenhum, um fantasma” (Deleuze; Guattari, 2003, p.121).

3Cf. Deleuze e Parnet, 1998, pp. 8, 222.

4Max Brod não emprega o termo programa de vida. O que é apreensível na obra é a narrativa não apenas memorialística de Kafka, mas uma descrição da experiência do autor tcheco sob a óptica do desenvolvimento intrínseco das personagens e das suas escolhas pessoais. Desse modo, tudo é uma grande programação em Kafka.

5Já não se trata de uma lei da formação da linguagem matemática, mas uma política kafkiana da enformação das personagens e da composição dos cenários.

6“Os critérios de Kafka são inteiramente novos e só valem para ele, com comunicações de um género de texto ao outro, com reinvestimentos, trocas, etc., de modo a constituir um rizoma, uma toca, um mapa de transformações”, o que resta, portanto, é aprender os registros dessa experiência, na forma de protocolos que motivam a compreensão do próprio programa Kafka e da elaborações de programas segundo a sua inspiração. Cf. Deleuze; Guattari (2003, p.74).

7Esse conceito pode ser compreendido a partir de Agamben (2004). Na obra Estado de Exceção, o filósofo italiano favorece a compreensão de que uma ordem ou lei transcendente, é caracteriza pela forma e formalidade, mas não pela força ou eficácia. Daí que a sua representação é, por vezes, pautada pelo “seu cortejo de culpabilidade e de incognoscibilidade”. Cf. Deleuze e Guattari, 2003, p.86. Nessa mesma direção, não por acaso, Kafka, “se apercebe cada vez melhor que a lei transcendente imperial aponta, de facto, para uma justiça imanente, para um agenciamento imanente de justiça” e, tudo aquilo que lança o indivíduo a uma recaptura pelo investimento molar (Deleuze; Guattari, 2003, p. 125).

8A esse propósito, Deleuze publicou em 1992 L'Epuisé (o exausto) como parte introdutória a quatro peças de Samuel Beckett preparadas para a televisão francesa. Cf. a versão publicada em inglês, Deleuze argumenta que o “exausto é muito mais do que cansado. [...] O cansado só esgotou a realização, enquanto o exausto esgota todos os possíveis”. DELEUZE, G. (1995). The exhausted. Trad. Anthony Uhlmann. SubStance, University of Wisconsin, Medison, v. 24, n. 3, Issue 78, 1995, p.03.

Recebido: 06 de Dezembro de 2019; Aceito: 13 de Outubro de 2020

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