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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.70 Uberlândia ene./apr 2020  Epub 06-Feb-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n70a2020-51259 

Artigos

Filosofia e Educação como “Modo de vida”: o cuidado de si, do outro e o agradecimento a Asclépio

Philosophy and Education as “Way of life”: care for the self, care for the others and gratitude to Asclepius

Filosofía y Educación como “Modo de vida”: cuidarse a sí mismo, al otro y agradecer a Asclepio

Carlos Roberto da Silveira* 
http://orcid.org/0000-0002-1003-0014

Márcia Aparecida Amador Mascia** 
http://orcid.org/0000-0001-5305-7332

Luciana Aparecida Silva de Azeredo*** 
http://orcid.org/0000-0003-3709-2597

*Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Curso de Pós-graduação Stricto Sensu, em Educação Pela Universidade São Francisco (USF). E-mail: carlosilveir@yahoo.com.br

**Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora do Curso de Pós-graduação Stricto Sensu, em Educação pela Universidade São Francisco (USF). E-mail: marciaaam@uol.com.br

***Doutora em Educação pela Universidade São Francisco (USF). Professora efetiva no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). E-mail: luazeredo@gmail.com


Resumo

Este artigo é parte dos resultados de pesquisas empreendidas no Grupo de Pesquisa GPEFE - Grupo de Pesquisa Estudos Foucaultianos e Educação da Universidade São Francisco. As análises partem de referenciais teóricos filosóficos da Antiguidade grega, em especial Platão e avança por entre os contemporâneos como Nietzsche, Foucault, dentre outros, com intuito de perscrutar o enigmático pedido de Sócrates a Críton, quando Sócrates pediu que sacrificasse um galo a Asclépio. O que Sócrates queria dizer com este “enigma”? “- Devemos um galo a Asclépio”. Então perguntamos: Sócrates foi curado? Curado de que doença? Doenças? Qual ou quais livros de Platão poderiam esclarecer (quem sabe) o enigma? Quem era o deus Asclépio? Em que momento Asclépio se tornou importante para os helenos? Qual a simbólica do galo para os atenienses? Existe algum legado através desse enigma que possa nos ajudar de alguma forma a nos educar e educarmos? Tais leituras podem ser importantes para a esfera da Educação?

Palavras-chave: Filosofia e Educação; Parrhesía; Epimeléia heautou

Abstract

This article is part of the results of a research undertaken in the Research Group GPEFE - Grupo de Pesquisa Estudos Foucaultianos e Educação at the University São Francisco. The analyzes depart from philosophical theoretical references from the Greek Antiquity, especially Plato, and advance with contemporary authors such as Nietzsche, Foucault, among others, in order to examine Socrates' cryptic request to Crito, when Socrates asked that he sacrificed a cock to Asclepius. What did Socrates mean by this “enigma”? “-We owe a cock to Asclepius”. So we ask: was Socrates healed? Healed of what disease? Diseases? Which book or books of Plato could enlighten (who knows) the riddle? Who was the god Asclepius? When did Asclepius become important to the Hellenes? What is the symbol of the cock for the Athenians? Is there a legacy through this puzzle that can somehow help us to educate and educate ourselves? Can such readings be important to the sphere of Education?

Keywords: Philosophy and education; Parrhesía; Epimeléia heautou

Resumen

Este artículo es parte de los resultados de investigaciones realizadas en el Grupo de Investigación GPEFE - Grupo de Pesquisa Estudos Foucaultianos e Educação de la Universidad São Francisco. Los análisis parten de referenciales teóricos filosóficos de la Antigüedad Griega, en particular Platón, y avanzan entre los contemporáneos como Nietzsche, Foucault, entre otros, con el fin de escrutar el enigmático pedido de Sócrates a Críton, cuando Sócrates le rogó que sacrificara un gallo a Asclepio. ¿Qué Sócrates quería decir con este “enigma”? “-Debemos un gallo a Asclepio”. Entonces nos preguntamos: ¿Sócrates fue sanado? ¿Curado de qué enfermedad? ¿Enfermedades? ¿Cuál o cuáles libros de Platón podría(n) aclarar (quizás) el enigma? ¿Quién era el dios Asclepio? ¿En qué momento Asclepio se hizo importante para los helenos? ¿Cuál es la simbología del gallo para los atenienses? ¿Hay algún legado a través de ese enigma que pueda ayudarnos de algún modo a educarnos y a educar? ¿Tales lecturas pueden ser importantes para la esfera de la Educación?

Palabras clave: Filosofía y educación; Parrhesía; Epimeléia heautou

Considerações iniciais

Críton, exclamou [Sócrates], devemos um galo a Asclépio. Não te esqueça de saldar a dívida! (PLATÃO, Fédon, 118a).

As análises têm por aportes referenciais teóricos filosóficos da Antiguidade Grega, em especial Platão, através das obras Críton, Fédon e Fedro (em resposta a nossa pergunta, acima). Avança por entre os contemporâneos como Nietzsche, em o Crepúsculo dos ídolos ou a filosofia a golpes de martelo (O problema de Sócrates) e Gaia a Ciência (Aforismo 34 - Sócrates Moribundo). Em Foucault, importa-nos uma das Aulas do Curso no Collège de France (1983-1984), cujo referencial consta na obra A coragem da verdade. O governo de si e dos outros II, sendo o material de nossa pesquisa a “Aula de 15 de fevereiro de 1984 - Segunda hora”, na qual Foucault trabalha a parte II da obra de Georges Dumézil intitulado Le moyne noir en gris dedans Varennes (O monge negro vestido de cinza em Varennes) dedicada a Platão, em especial às últimas palavras de Sócrates, o tão enigmático pedido a Críton (Fédon).

Foucault no início do curso, em fevereiro de 1984, revela que não pôde começar o seu curso no começo de janeiro, pois estava “doente, doente mesmo”. Nesse livro, Foucault parece refletir muito o seu momento presente, a doença, a cura. Cura da alma? Do corpo? Ele analisa o discurso de Sócrates sobre a moral, a ética, a parrhesía, a existência, a imortalidade da alma, exatamente quando esta trata a temática que envolve a morte. Como sabemos, meses depois dessa referida aula, Foucault falece no dia 25 de junho de 1984. Enfim, uma coisa é certa, todos aqueles que leem a obra Fédon ficam depois a repensá-la. Em particular, desde de que tivemos um novo contato com esta obra de Platão, indagávamos sobre o que Sócrates queria dizer com este “enigma” - “Devemos um galo a Asclépio”. Inesperadamente surgem perguntas, como: o porquê da dívida com Asclépio. Seria mesmo, “devemos” (Sócrates, Críton, demais, ...), ou “devo” (Sócrates)? No entanto, a cada nova leitura, as perguntas se renovam e outras surgem aos poucos: Sócrates foi curado? Curado de que doença? Doenças? Além de Sócrates, quem mais foi curado? Qual ou quais livros de Platão poderiam, quem sabe, esclarecer o enigma? Quem era o deus Asclépio? Em que momento Asclépio se tornou importante para os helenos? Qual a simbólica do galo para os atenienses? Existe algum legado através desse enigma, que possa nos ajudar de alguma forma a nos educarmos e a educar? Tais leituras podem ser importantes para a esfera da educação?

Sabemos que, na história do pensamento filosófico ocidental, muitas perguntas já foram feitas e respostas foram tecidas. No entanto, se nos aproximamos novamente da referida obra, novas perguntas se vertem e ficam a jorrar insistentemente, cobrando-nos novos exames. Somos exigidos a isso e o fazemos, pois, de alguma forma, pensamos que tal desfecho nos implica, nos incomoda diante das nossas “verdades estabelecidas”. Assim, somos perturbados, incomodados por um zumbido advindo do tavão que nos cobra o dinamismo do viver e agir, pois como dizia Sócrates, “A vida que não é examinada não vale a pena ser vivida”.

Das últimas palavras...

Na chamada “Era Péricles” entre 446 a 431 a. C., Atenas viveu momentos de glória e supremacia, devido aos seus desenvolvimentos interno e externo. Internamente, voltou-se para as questões político-administrativas e culturais. Externamente, avançou o seu domínio sobre os mares e sistema de colônias (cleruquia) como prolongamento da cidade. Um intenso comércio promoveu a prosperidade de Atenas, o centro da Grécia Antiga e, com isso, a inveja se alastrou entre os seus concorrentes. Esparta, a maior rival, junto aos seus aliados peloponesianos sentiram que este imperialismo poderia ser perigoso e não tardou para que a “Guerra do Peloponeso” (431-404 a. C.) tivesse início. Com tantas desavenças e guerras, Esparta vencedora criou uma comissão administrativa em Atenas, intitulada “os trinta tiranos” para governar a cidade até que entrasse em vigor uma nova constituição. Hegemônica, Esparta produziu uma oligarquia de muito terror em Atenas. Contudo, os exilados atenienses sob a chefia do general Trasíbulo conseguiram depor os tiranos. Já a rivalidade entre o rei Pausânias da cidade-Estado grega de Esparta e o almirante espartano Lisandro favoreceu a restauração da democracia ateniense em 403 a.C. (GIORDANI, 1984).

Desse modo, a história de Atenas no século IV viveu os ares da prudência e da moderação, não somente devido à vigilância espartana, mas era preciso repensar os fracassos, as alianças, as liberdades, a democracia, a educação, os valores morais e éticos, isso através dos filósofos, em especial, Sócrates (469-399 a.C.) que, no entanto, fora condenado e morto.

Era de madrugada em Atenas, primavera do ano de 399 a.C., Críton (ou Critão) em visita a Sócrates em sua cela (ou quem sabe, em um ábaton), pensativo fitava o amigo de infância ainda a dormir. Nisso, Sócrates acordou e o interpelou sobre por que motivos havia chegado àquelas horas? Por que não o havia acordado? Críton respondeu que chegara a um bom tempo e não o acordara, pois estava admirando a placidez de seu sono, a tranquilidade, a brandura de um homem que suportava a desgraça mesmo estando prestes a morrer (PLATÃO, Critão, 43a-b).

Era sabido que o retorno do navio ateniense, advindo das festividades sagradas de Delos, anunciaria que a execução de Sócrates estava próxima e Críton, aflito, foi visitá-lo na prisão, um dia antes da sua morte. Foi nessa “madrugada” que ele declarou que possuía um plano e que compraria os guardas e burlaria os juízes para empreender a fuga do amigo. Tentou convencê-lo, mas Sócrates não tardou a expor que não poderia agir dessa forma.

No Fédon, Platão (428/427 - 348/347 a.C.) inicia sua obra com a seguinte pergunta de Equécrates: “- Estiveste tu mesmo, Fédon, junto de Sócrates no dia em que ele tomou o veneno na prisão, ou o ouviste de alguém? - Não, eu mesmo, Equécrates” (PLATÃO, Fédon, 57a). Então, Equécrates pronunciou: “-O que disse o homem antes de morrer? E como foi a sua morte? Gostaria de saber tudo o que passou” (PLATÃO, Fédon, 57b).

Acredita-se que a obra Fédon de Platão dedicada aos últimos dias de vida de Sócrates, tenha sido composta próximo das obras O Banquete e A República, compreendidas entre o decênio 377 a 367 a.C., ou seja, entre as duas primeiras visitas de Platão à Siracusa, quando o filósofo vivia a sua fase média, período dos cinquenta anos de vida. A obra trata da imortalidade da alma, do ideal de vida filosófica, do conhecimento e da morte que se aproximava. “Preso”, Sócrates teve que esperar trinta dias para beber a cicuta, isso ao “entardecer”. A infusão matava por asfixia, no entanto, o efeito poderia levar horas. O “sol já estava desaparecendo”, o crepúsculo anunciava a “noite” e, Sócrates atento a tudo “já de banho tomado”1, perguntou ao encarregado da bebida, o que ele deveria fazer: “- E agora meu caro: já que entendes destas coisas, que precisarei fazer? - ‘Nada mais’, respondeu, ‘do que andar depois de beber, até sentires o peso nas pernas, e em seguida deitar-te. Assim o veneno atuará’” (PLATÃO, Fédon, 117b). Em seguida, Sócrates pegou o cálice com naturalidade, bebeu-o por completo e começou a caminhar. Os que estavam presentes verteram-se em lágrimas, mas logo o mestre pediu que se acalmassem. Em determinado momento, com as pernas pesadas, parou sua caminhada pela cela, deitou-se e começou a sentir que o frio dos pés e das pernas já subira e enrijecia o baixo-ventre. Cobriu a cabeça, e num determinado momento, retirou o véu e exclamou a Críton: “Devemos um galo a Asclépio. Não te esqueça de saldar esta dívida!” (PLATÃO, Fédon, 118a). Estas foram as suas últimas palavras. E, Fédon encerra o diálogo: “Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem podemos afirmá-lo, que, entre todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais sábio e o mais justo” (PLATÃO, Fédon, 118a).

O enigma da dívida e um legado

Em 2019, em nossos estudos (Grupo de Pesquisa GPEFE), ao refletirmos sobre a “Aula de 15 de fevereiro de 1984, Segunda hora” de Michel Foucault (1926-1984), a socrática dívida a Asclépio veio à lume e reacendeu-nos a necessidade e o atrevimento de perscrutar o tão enigmático assunto. Diante disso, surge este estudo que tem por proposta, investigar, “examinar”, “examinar-nos” e, quem sabe, talvez promover outros questionamentos sobre tal enigma.

Foucault, no início da referida aula, pergunta ao público se havia lido o livro de Georges Dumézil (1898-1986) intitulado Le moyne noir en gris dedans Varennes (O monge negro vestido de cinza em Varennes) de 1984 que possui duas partes, a primeira dedicada a Nostradamus e a segunda a Platão, em especial sobre as últimas palavras de Sócrates, o tão enigmático pedido (Fédon). Para Foucault, Dumézil se diverte e indigna com os versos do poeta, político e escritor Alphonse de Lamartine (1790-1869) que declara que Sócrates havia sido curado da doença que consistia em viver. De certa forma, tal interpretação de Lamartine advém da visão tradicional da história da filosofia. Então, Foucault cita Léon Robin (1866-1947) ao apontar que a gratidão de Sócrates é devida à alma curada por estar unida ao corpo, daí, o deus lhe restabelece a saúde da alma. Para John Burnet (1863-1928) a morte é como um sono na qual a alma pode acordar curada, por isso, o agradecimento a Asclépio. Em seguida, em A gaia ciência (Aforismo 340- Sócrates Moribundo), tem-se Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) de que a “vida é uma doença” e que Sócrates fraquejara, pois ele se vinga da vida e nega sua filosofia no momento de sua morte. Da Antiguidade Tardia, Olimpiodoro2 declara que para curar a alma, pelo que esta sofreu no devir, a morte é o acesso à eternidade, é a sua cura (FOUCAULT, 2014). No entanto, Foucault (2014, p. 89) no rastro de Dumézil, vê que não é aceitável as interpretações de que “a vida é uma doença”, de que a vida é um mal, pois

Sócrates levou uma vida tão sábia, tão destacada do corpo, para a qual não pode haver mal neste mundo. Assim, no momento em que ele vai morrer, em que ele aceita morrer, em que está feliz com morrer, Sócrates nunca diz, nem pensa, não disse e não pensou que a vida é uma doença. Logo as últimas palavras de Sócrates são singularmente enigmáticas, porque é preciso admitir que, de um lado, a oferenda a Asclépio nos põe muito precisamente no interior de um ritual que se refere à doença e que, por outro lado, para Sócrates a morte não pode ser, em si, considerada uma cura, porque a vida não pode, em si, ser considerada uma doença. Qual é então essa doença de que pessoas foram efetivamente libertadas, é preciso um sacrifício?

Enno Friedrich Wichard Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff (1848-1931), contrário a Nietzsche, acreditava que não se tratava da “vida como doença”, mas de uma doença da qual Sócrates havia lembrado de ter se curado. Frantz Cumont (1868-1947) em um relatório de 1943, declara que era evidente que se tratava de um ritual de cura, mas não se deve esquecer que o galo é de origem persa (guia das almas para o inferno). Dessa forma, Foucault (2014) salienta que esta foi uma maneira de Cumont pedir que a mitologia persa resolvesse o problema. Porém, Foucault (2014, p.89) faz uma pergunta: “O que faz Dumézil diante de tudo isso?”. Ele não admite que se trata de uma doença, de uma doença passageira da qual Sócrates lembrou que havia sido curado e nem de que ele fraquejara. Assim sendo, a dívida seria endereçada a Críton, quando este tentou convencer Sócrates para que fugisse.

A falta pode deteriorar a alma, quando “posta em mau estado por opiniões [opinião falsa = nósos = doença] que não terão sido examinadas, testadas e experimentadas em termos de verdade” (FOUCAULT, 2014, p. 91). Atento, contudo, Foucault (2014) levanta uma objeção, a de que não se encontra claramente no texto de Platão a relação de corrupção da alma como doença, mas a de nósos. A opinião falsa, o raciocínio falso pode abalar a saúde, já o lógos, o raciocínio bom, cura a alma. Quanto ao “nós devemos”, Dumézil avalia que Sócrates poderia momentaneamente estar convencido por Críton, além disso, devido ao vínculo de amizade, quando um adoece, os outros adoecem juntos. Assim sendo, Foucault (2014) sugere que Cebes e Símias também estavam doentes por acreditarem na falsa opinião de que, ao morrer não se tem certeza se a alma imortal será libertada.

No texto, há um momento em que Foucault diz ao público que certamente seus ouvintes estariam se perguntando sobre o porquê dele se deter na interpretação de Dumézil, o que aparentemente parecia fugir da linha de estudo, ou seja, a das aulas anteriores e posteriores. No entanto, para ele a temática recairia sobre a epiméleia, “o cuidado”. Dirá Foucault (2014, p. 96):

É preciso lembrar que todo o ciclo de morte de Sócrates que procurei evocar na hora precedente [Primeira hora], esse grande ciclo que começa com a Apologia, continua com Críton e termina com o Fédon, todo esse ciclo é precisamente perpassado por este tema da epiméleia.

Dessa forma, Foucault (2014) ao referir-se à Apologia, aponta que Sócrates com a sua parrhesía tinha por preocupação última ensinar os homens a conhecer-se, a cuidar de si mesmos e, assim como Sócrates, estes cuidariam dos outros. No Críton, a epiméleia está presente, sendo fortemente marcada no Fédon quando da morte de Sócrates. “Foi essa missão, relativa ao cuidado consigo mesmo, que levou Sócrates à morte. É o princípio do ‘cuidar de si mesmo’ que ele lega aos demais, para lá de sua morte” (FOUCAULT, 2014, p. 99). E eis aqui, o legado de Sócrates, os princípios da educação socrática, o conhecimento de si, o cuidado de si e o cuidado do outro.

Na Hermenêutica do Sujeito, Foucault (2006) ao tratar da noção do cuidado de si (Epimeléia heautoû), declara que esta é complexa e rica e que longamente avançou pela cultura grega e com os latinos, estes a traduziram como “Cura sui”, ou seja, a “Cura de Si”. Afirmou também que, “entre os estoicos, inútil dizer a importância desta noção de epiméleia heautoû: em Sêneca, junto com a de cura sui, ela é central; em Epicteto, ela percorre toda a extensão dos Diálogos” (FOUCAULT, 2006, p.12). Fica claro, explícito que a noção de cuidado de si, tem por principal personagem, Sócrates, o tavão (im)pertinente, o mestre do cuidado e da cura.

Na obra de Platão, Primeiro Alcibíades (2007, 128a), Sócrates em diálogo com Alcibíades, pergunta: “Quando é que o homem cuida de si mesmo?” [...] Poderíamos conhecer a arte que nos deixa melhores, se não soubéssemos quem somos?”. Sócrates continua e pergunta se seria fácil conhecer-se a si mesmo. Dirá Alcibíades que parece estar ao alcance de qualquer um, no entanto, seria por demais difícil. Então, Sócrates afirma que sendo fácil ou difícil, o certo é que, ao se conhecer, terá a seu dispor o saber de como cuidar de si, ao contrário, será um desconhecido de si (PLATÃO, Primeiro Alcibíades, 2007).

Alcibíades não buscou conhecer-se, portanto não cuidou de si, contudo queria cuidar dos outros. Para Sócrates seria um erro Alcibíades querer governar a cidade, cuidar dos outros, visto que em sua educação ocorrera déficits pedagógicos, pois este fora bajulado (devido ao seu poder, a sua família, por ser sobrinho de Péricles), assediado e entregue às suas próprias vontades. Diante disso, não fora educado para o conhecimento de si (gnôthi s'autón), para o cuidado de si (Epimeléia heautoû) e para vida política (Bíos Politikós). Escreve Tucídides (2001, p. 363-364):

Desfrutando até então de grande prestígio entre os habitantes da cidade, ele sempre cuidou de satisfazer os seus próprios caprichos muito além do que lhe permitiam as suas posses, tanto na criação de cavalos quanto em outros gastos, e não foi pequena a influência desses desmandos na ruína de Atenas. O povo, preocupado na época com a enormidade de sua depravação na vida diária e também com seus desígnios, revelados em cada uma das muitas intrigas em que se envolvia, passou a hostilizá-lo, considerando-o um aspirante à tirania; de fato, embora na vida pública ele tratasse dos assuntos relativos à guerra da melhor maneira possível, na vida privada ele ofendia todos os cidadãos com sua conduta, levando-os a confiar a cidade a outras mãos e a arruiná-la por isto ao fim de não muito tempo.

Para Foucault (2006), é na relação mestre/discípulo que se define a posição do mestre, quanto ao cuidado de si, pois o Epimeléia heautoû está imbricado na passagem de um mestre, que deve cuidar do cuidado por quem este guia. “O mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem pelo seu discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio” (FOUCAULT, 2006, p.74,75). Em suas análises sobre o mestre, Foucault (2006) declara reconhecer três tipos de mestria nos diálogos platônicos para a formação do jovem. Uma voltada para a mestria do exemplo, modelo de comportamento, de virtuosidades, embasada na tradição, nas epopeias, nos heróis. O segundo modelo é a da competência, da transmissão dos saberes, das habilidades, dos princípios e aptidões. O terceiro é a mestria socrática realizada através do diálogo, em que pretendia que o discípulo descobrisse a sua ignorância e buscasse sair desta, até certo ponto, pois este descobriria a sua ignorância. Diante disso, a necessidade do outro e do diálogo são elementos essenciais para se promover o movimento da busca do conhecimento de si, do cuidado de si, que mutualmente envolve o cuidado com o outro.

O galo e o despertar

Na mitologia grega, conta-se que Afrodite (deusa do amor) era casada com Hefesto (deus do fogo). Nas ausências deste para o Monte Etna na Sicília, onde trabalhava em suas forjas, Ares (deus da guerra) partilhava às escondidas o leito com Afrodite. Para não ser descoberto, Ares deixava um jovem soldado de vigia próximo à porta dos aposentos, para avisá-lo da aproximação de alguém e de Hélio (deus sol) que anunciaria o dia. No entanto, certa vez, o soldado sentinela dormiu, vítima do deus Hipnos (Sono, filho de Nix, deusa da Noite). Nisso, Hélio que tudo vê, lançou seus primeiros raios e estes adentraram o quarto do casal. Ele imediatamente alertou Hefesto. Este enfurecido por tamanha afronta, com maestria confeccionou uma rede de ouro invisível para prender o casal, ainda no leito. Feito isso, chamou todos os deuses para testemunharem o adultério. Envergonhados, Afrodite fugiu para Chipre e Ares foi para a Trácia. Dessa relação nasceram Deimos (o terror), Fobos (o medo) e Harmonia, que mais tarde, tornou-se esposa do rei de Tebas, Cadmo. Na obra de Homero a Ilíada, os irmãos gêmeos Deimos e Fobos e a deusa Ênio (Horror - conhecida como Destruidora de Cidades), com frequência são retratados acompanhando Ares nas guerras

Como Ares, homicida, quando entra em combate,

Seguido pelo filho, Fóibos, ou Fobos o Terror,

Potente e sem temor, que aterra mesmo aqueles

De flâmeo coração (HOMERO, Canto XIII, v.295).

Sobre o vigia, este também não escapou da punição, pois para Ares, ele fora o culpado de toda desgraça, por entregar-se ao sono. Punido pelo próprio Ares, o jovem foi transformado em um galo (Alektryón em grego), e então, obrigado a cantar todos os dias, antes que o sol irradiasse os seus primeiros raios. Assim, tornou-se para sempre, um vigilante do tempo que deve anunciar, em alto tom, que o sol iluminará tudo.

Da mitologia persa (isso, para lembrarmos da advertência feita por Foucault à Cumont), tem-se Mitra (deus sol) que foi incorporado na Mitologia Hindu e Romana. Harold Bayley (2005) fornece dados importantes para nossa pesquisa, sobre esta divindade solar e o símbolo do galo. Mitra corresponde em muitos aspectos ao Indra hindu, comandante celestial, deus protetor dos guerreiros, inimigo da impureza, do vício, do sofrimento, fecundador da natureza e outros tantos atributos. Sempre em vigília, luta contra os males das trevas, mediador entre a luz e a escuridão. Sabe-se que o Cristianismo apresentou tantos pontos comuns com os ritos sagrados para Mitra que os Padres da Igreja (Patrística) concluíram que os pagãos estavam imitando os ritos sagrados cristãos. O clero, tendo dificuldades de afastar os mitraístas de suas crenças, discretamente foi-se inserindo em certas festas “pagãs”, isso para honrar o Deus cristão. Por exemplo, no dia de 25 de dezembro, festas eram realizadas para comemorar o dia do nascimento de Mitra e os crentes obstinados não aceitavam desistir de suas comemorações. Somente em 400 d.C., “os Padres da Igreja aceitaram o inevitável, e diplomaticamente adotaram o dia Nascimento de Mitra como aniversário oficial do Cristianismo” (BAYLEY, 2005, p. 141). De acordo com Bayley (2005, p. 141), São João Crisóstomo, no início do século V, refere-se às festas do “deus sol” dos pagãos, da seguinte forma:

Nesse dia, também o aniversário de Cristo foi há pouco fixado em Roma a fim de que, enquanto estivessem os gentios ocupados com as cerimônias profanas, os cristãos pudessem realizar os seus ritos sagrados sem serem perturbados. Eles chamam este dia (25 de dezembro) de aniversário do Invencível (Mitra); mas quem é tão invencível como o Senhor? Chamam-no o Dia do Nascimento do Disco Solar; Cristo, porém é o Sol da Retidão” [inserções e grifos do autor].

Convém lembrar, que no vigésimo quinto dia, do último mês do ano, comemorava-se os aniversários de Zas (Sol Salvador da China Antiga), os dos deuses egípcios Hórus e Osíris, o do deus grego Dionísio, o do deus hindu Vishnu e do deus sírio Tammuz. Quanto ao galo, este cantava para anunciar a vinda de Zas, a consagração à Mitra, à Febo (Apolo) e todas as divindades do Sol, isso praticamente em muitas nações (BAYLEY, 2005).

Para os gregos, Hermes (deus mensageiro) aparece com alguns animais, dentre eles, o galo, como sendo o “mensageiro do dia”.

Já nas oferendas a Asclépio, o galo normalmente estava ligado ao restabelecimento da saúde física e psíquica. Tinha por insígnias, “a serpente ao redor do bastão, as pinhas, a coroa de loureiro, uma cabra, um cão e um galo” (KOCH, 2012, p.25).

Nas tradições religiosas de várias culturas da Antiguidade, o símbolo arquetípico do galo estava ligado aos cultos solares e aos elementos rituais. O nascer o sol significava de uma forma geral, uma espécie de renovação espiritual, renovação para a vida, despertar do sono, símbolo de luz, um novo despertar, a verdade. Possivelmente, Sócrates viveu e se inseriu nesse mundus, num despertar para a verdade e que estava ligada às questões político/religiosas, aos ritos de passagem vida-morte-vida, dia-noite-dia, além do conhecimento de si, exame de si, cuidado de si e cuidado com o outro.

Asclépio, um deus da cura

Para os helenos, antes do culto ao deus Asclépio, Apolo era considerado o deus de múltiplos atributos (juventude, profecia, inspiração, harmonia da natureza, música, medicina, dentre outros), em especial era cultuado como o deus da cura. No entanto, em alguns lugares o culto era compartilhado com Asclépio. Este era considerado um deus menor na religiosidade da Grécia Antiga, mas em fins do sec. V a.C., santuários foram construídos em seu nome em diversas regiões e, posteriormente, os templos de cura dedicados a Apolo foram transferidos para o deus Asclépio.

Acredita-se que Asclépio tenha vivido por volta de 1200 a.C. durante a Guerra de Troia e se tornado herói. Por isso, depois, com o passar dos séculos, tornou-se um herói/divinizado, um deus da medicina. Na versão de Píndaro, Asclépio era filho do deus Apolo e da bela Corônis, filha do rei da Tessália, Flégias (GRIMAL, 1992). Sendo infiel a Apolo, Corônis embora grávida, uniu-se com um mortal. Apolo apaixonado, sabendo da traição, puniu-a com a morte e Ártemis, a pedido do irmão, alvejou-a com as suas flechas. Corônis antes de morrer disse a Apolo que ela certamente merecia o castigo, no entanto, ele devia ao menos ter esperado que o seu filho nascesse. Arrependido e, mesmo sendo um deus, nada pôde fazer à amada e, quando ia cremá-la na pira, não suportando a dor, talvez para amenizá-la, ele abriu o ventre da amada (espécie de cesariana) e retirou a criança que ainda estava viva e confiou esta a Quíron. O Centauro educou a criança e ensinou-lhe a medicina. Com extrema habilidade, o jovem logo aprendeu a arte médica. O jovem Asclépio curava muitas pessoas e inclusive ressuscitava os mortos. Hades (deus dos mortos), irritado com tudo isso, exigiu que Zeus o punisse. Zeus, preocupado com a ordem natural das coisas, com um raio tirou-lhe a vida. No entanto, compadecido com Apolo, Zeus ascende Asclépio ao céu e o transforma na constelação de Ofiúco. A partir de então, Asclépio visitava os necessitados através dos “sonhos” e as curas aconteciam, pois ele havia se tornado um herói divino. Conta-se que Asclépio era casado com Epione (Personificação da calma e suavidade da dor), tiveram dois filhos Macáon e Podalírio (citados na Ilíada por Homero, como médicos dos Aqueus na Guerra de Troia) e cinco filhas, Áceso (Personificação do cuidado), Egleia (P. da beleza), Higeia (P. da Higiene e saúde), Íaso (P. da cura) e Panaceia (P. da cura universal).

Para Junito de Souza Brandão (1993, p. 91), “Historicamente, Asclépio ‘residiu’ em Epidauro, dos fins do século VI a.C. até os fins do século V d.C. Onze Séculos de glórias e de curas incríveis!”. Feitosa (2014, p. 11) em seus estudos, declara que o culto a Asclépio se tornou popular como deus das curas milagrosas, em especial no século IV e aponta que: “Folkert van Straten observou que, dos relevos votivos que chegaram até nós, os de Asclépio são mais numerosos do que os de qualquer outra divindade grega”.

Um fato importante convém ser mencionado. No século V a.C., com a Guerra do Peloponeso (como vimos no início do texto), houve um grande recrutamento de homens para o exército e, muitos aterrorizados, deixaram suas terras e se refugiaram nas cidades, em especial, Atenas. Com isso, imensos aglomerados com parcas condições de higiene e de alimentação promoveram uma população enfraquecida, à mercê de doenças e pestes. Daí, entende-se os motivos da popularidade de Asclépio, um deus médico entre os necessitados. Diante do contexto, as curas seriam milagrosas, divinas e então era comum que o devoto oferecesse oferendas (comidas, moedas, animais, inscrições, vasos etc.) ao deus curador em agradecimento, isso de acordo com sua posse. Feitosa (2011, p. 131) declara que uma inscrição em Epidauro que data de 400 a.C., recomendava o sacrifício de um boi para as divindades masculinas e uma vaca para as femininas. Já no altar, o sacrifício seria um galo, além de bolo de cevada e certas medidas de trigo e vinho. Obviamente nem todas as pessoas teriam condições para tanto e, uma inscrição retirada da obra HÉRONDAS - Mime IV, segundo Feitosa, um devoto de Asclépio escreve: “Recebe favoravelmente este galo [...] se pudéssemos, nós ofereceríamos, invés de um galo, um gordo novilho”.

Muitas das curas ocorriam nos Ábatons (santuários de cura, próximos ao templo de Asclépio), mas antes de adentrar o santuário, o enfermo passava por práticas de higiene, rituais, jejuns, purificações, o que poderia levar vários dias. Após, entrava no processo de incubação (enkatheúdon) e, em seguida, lhe era permitido pernoitar no espaço sagrado do Ábaton. De noite, o deus visitava os enfermos através dos sonhos, tocava as enfermidades, indicava a cura e, se necessário, estes eram relatados aos sacerdotes do templo que faziam as interpretações e prescreviam remédios homeopáticos que, em sua maioria, eram inofensivos.

Segundo Milena Melfi (2007, p. 408), o culto a Asclépio em Atenas, advindo de Epidauro, pôde ser inserido entre o Século IV a.C. e meados do século III d.C. Em Epidauro surgiu uma “escola” de medicina que mais tarde tornou-se mais científica com os Asclepíades (descendentes de Asclépio), cujo personagem mais ilustre foi o médico Hipócrates de Cós (460 - 377 a.C.).

Sócrates fraquejara!?

Críton culpou Sócrates, lembrando-o que ele seria injusto se se sacrificasse e além do mais, trairia a sua esposa e rebentos. Seus filhos ficariam lançados à própria sorte, pois ele não poderia criá-los e educá-los. Para Críton, Sócrates escolhera o caminho mais cômodo, ao passo que deveria proceder como um homem honesto e corajoso, principalmente porque passou a vida toda pregando atitudes virtuosas (PLATÃO, Critão, 45d-e). Disse ainda que, se sentia envergonhado, não somente pelo mestre, mas por todos os amigos

[...] de medo que pareça que tudo o que aconteceu contigo [Sócrates] seja imputado à covardia de nossa parte: a apresentação da queixa, teu comparecimento perante o tribunal, quando poderias não ter comparecido, a própria maneira por que foi conduzido o processo, o remate da história, ridículo a mais não ser, tudo isso poderá dar a impressão de ter exclusivamente, como causa de cobardia e baixeza de nossa parte, por nada havermos feito para salvar-te, nem por nós, nem por ti, quando fora possível fazê-lo, se tivéssemos revelado um pouquinho de préstimo (PLATÃO, Critão, 45e-46a).

Logo depois, Críton pediu a Sócrates que refletisse e concordasse com a fuga, pois se executado prejudicaria a todos, o que traria uma imensa desgraça: “Assim Sócrates, por tudo o que há, segue o meu conselho e não procedas de outra forma” (PLATÃO, Critão, 46a).

Sócrates não concordou com o conselho de Críton, pois realmente não poderia contrariar os seus argumentos do passado por causa de sua execução e, para ele, não se podia retribuir injustiça com a injustiça e um mal com outro mal. Sua fuga seria injusta se saísse sem obter o consentimento da Polis, pois destruiria sim, os valores da cidade, das leis, bem como, seus familiares, amigos e a sua própria “palavra”3 (PLATÃO, Critão, 50a-b). Assim, não poderia jamais trair suas convicções, “renegar seus argumentos”. Este era o seu “Modo de vida”, sua “filosofia de vida”, pois mesmo morto “viveria”, pois era preciso saber morrer para estar de acordo com a sua parrhesía. Assim, declara a sua verdade ao amigo:

Meu caro Critão [Críton], tua dedicação é inestimável, no caso de afinar com o dever; não sendo assim, quanto mais extremada, mais condenável será. De início o que devemos considerar é se podemos ou não agir dessa maneira. Porque sempre tive por norma nas minhas deliberações, não agora somente, deixar-me apenas convencer do princípio que ao exame se me afigure o melhor. Não me é possível renegar meus argumentos no passado, somente por causa do que me aconteceu; ainda se me afiguram sensivelmente idêntico; continuo a tê-los na mesma conta de antes (PLATÃO, Critão, 46b). [...] Fica, pois, sabendo que no que respeita às minhas convicções, tudo que disseres em contrário será baldado. [...] Procedamos, então dessa maneira, porque esse é o caminho indicado pela divindade (PLATÃO, Critão, 54d-e).

Segundo Diógenes Laércio (Século III d.C.), Xantipa (esposa de Sócrates), injuriada com a condenação dele, disse: “‘Morrerás injustamente’, o filósofo retrucou: ‘Querias que eu morresse justamente?’” (LAÊRTIOS, 2008, p. 56).

Sobre o texto de Dumézil e a aula de Foucault, relacionado ao abalo da alma devido à corrupção através do nósos, ou seja, Sócrates convencido por Críton (portanto, uma falha), de nossa parte, relembramos o que disse Sócrates a Críton: “Não me é possível renegar meus argumentos no passado [...]” (PLATÃO, Critão, 46b). “[...] Fica, pois, sabendo que no que respeita às minhas convicções, tudo que disseres em contrário será baldado” (PLATÃO, Critão, 54d). Ora, aqui parece que Sócrates não se deixou convencer por Críton. Pode-se notar isso, também no Fédon (PLATÃO, Fédon, 58e), até mesmo antes do debate com Símias e Cebes, dirá Fédon: “O homem [Sócrates] parecia-me felicíssimo, Equécrates, tanto nos gestos como nas palavras, reflexo exato da intrepidez e da nobreza com que se despedia da vida”. Sendo assim, acreditamos que a dívida de Sócrates talvez não seja nenhuma das referidas acima no texto de Dumézil/Foucault, mesmo tendo este pronunciado “devemos”.

Sobre o vínculo da amizade na Antiguidade, concordamos, pois quando um indivíduo falhava, seus consortes também falhavam. Contudo, como escrevemos acima, Sócrates fez com que Críton percebesse o erro, mesmo que fosse duro aceitá-lo. Assim, pensamos que Críton não sucumbiu efetivamente ao erro e, certamente, a alma não estaria lesada, pois fora despertada. Ora, o que é o método da ironia e da maiêutica socrática senão examinar a vida? Transitar entre as opiniões falsas (nósos) para parir o lógos refletido? Diante desta nossa hipótese, pensamos que Cebes e Símias também não façam parte da referida dívida a Asclépio, pois participaram do jogo dialético e parhesiástico no qual se buscou parir outras ideias e, assim, Sócrates não fraquejara.

Sobre os que concluíram que para Sócrates a “vida é uma doença”, em especial Nietzsche (2001) que, em o Crepúsculo dos ídolos - O problema de Sócrates, chama Sócrates e Platão de decadentes, cambaleantes, antigregos e alega que eles não foram sequer sábios. Declara que Sócrates estava enfastiado com a vida e “estava há muito doente”. Já no Aforismo 340 lê-se:

Sócrates moribundo - Eu admiro a bravura e a sabedoria de Sócrates em tudo o que ele fez, disse - e não disse. Esse zombeteiro e enamorado monstro e aliciador ateniense, que fazia os mais arrogantes jovens tremerem e soluçarem, foi não apenas o mais sábio tagarela que já houve: ele foi igualmente grande no silêncio. Quisera que também no último instante da vida ele tivesse guardado silêncio - nesse caso, ele pertenceria talvez a uma ordem de espíritos ainda mais elevada. Terá sido a morte, ou o veneno, ou a piedade, ou a malícia - alguma coisa lhe desatou naquele instante a língua, e ele falou: “Oh, Críton, devo um galo a Asclépio”. Essa ridícula e terrível “última palavra” quer dizer, para aqueles que têm ouvidos: “Oh, Críton, a vida é uma doença!” Será possível? Um homem como ele, que viveu jovialmente e como um soldado à vista de todos - era um pessimista? Ele havia feito uma cara boa para a vida, o tempo inteiro ocultando o seu último juízo, seu íntimo sentimento! Sócrates, Sócrates sofreu da vida! E ainda se vingou disso - com essas palavras veladas, horríveis, piedosas e blasfemas! Também Sócrates necessitou de vingança? Faltou um grão de generosidade à sua tão rica virtude? - Ah, meus amigos, nós temos que superar também os gregos!

Acima, Nietzsche elogia e também aponta que Sócrates era um pessimista e devido à proximidade com a morte, não conseguiu ficar calado porque a vida era uma doença, daí: “Oh Críton, eu devo um galo a Asclépio”4.

Escrevemos há pouco que talvez a dívida a Asclépio seja somente de Sócrates, mesmo devido ao “devemos”. Em Nietzsche, lemos o verbo no singular “devo”, ao invés de “devemos” da obra Fédon. Assim, acreditamos também no “devo”5. Entretanto, uma dívida não no sentido de doença, mas de agradecimento por ter conseguido ao longo de sua existência, através de seu “Modo de vida”, filosofia de vida e exercícios espirituais, não se deixar adoecer, corromper-se, pois

[...] a alma do verdadeiro filósofo abstém dos prazeres, das paixões e dos temores, tanto quanto possível, certa de que sempre que alguém se alegra em extremo, ou teme, ou deseja, ou sofre, o mal daí resultante não é o que se poderia imaginar, como seria o caso, por exemplo, de adoecer ou vir a arruinar-se por causa das paixões: o maior e o pior dos males é o que não se deixa perceber (PLATÃO, Fédon, 83c).

Souza Brandão (1993) aponta um dado importante para nosso estudo e que merece muita atenção, sendo Asclépio um herói deificado, este participa das naturezas humana e divina, o que simboliza uma unidade indissolúvel entre ambas. Na entrada do Hierón (recinto sagrado), estava gravada uma mensagem da medicina de Asclépio, “Puro deve ser aquele que entra no templo perfumado. E pureza significa ter pensamentos sadios” e Souza Brandão (1993, p. 91-92) declara:

A conclusão é simples: certamente em épocas mais recuadas só havia cura total do corpo em Epidauro, quando primeiro se curava a mente. Em outros termos, só existia cura, quando havia metánoia, ou seja, transformação de sentimentos. Será que os Sacerdotes de Epidauro julgavam que as hamartíai (as faltas, os erros, as démesures) provocavam problemas que levavam ao “encucamento” e este agente mórbido, esta incubação “detonava” as doenças? De qualquer forma, a missão de cura em Epidauro era uma das missões, porque, basicamente, a cidade do deus-herói-Asclépio era um Centro espiritual e cultural. Dado que as causas das doenças eram principalmente mentais, o método terapêutico era essencialmente espiritual, daí a importância atribuída à nooterapia, que purifica e reforma psíquica e fisicamente o homem inteiro. Procurava-se, a todo custo, através do gnôthi s'autón (conhece-te a ti mesmo) que o homem “acordasse” para sua identidade real [inserções do autor].

Assim sendo, tendo por provas as estelas no Museu de Epidauro (colunas com inscrições) sobre o auge do período das curas do Santuário de Asclépio, isso até o fim do século IV a.C., estas não eram realizadas com medicamentos, mas com juízo, intervenção divina e metánoia. Segundo Souza Brandão (1993, p. 92) “Essas técnicas, os Sacerdotes de Asclépio, muito mais pensadores profundos que médicos, as conheciam muito bem, porque haviam feito um grande progresso no que tange à psicossomática e à nooterapia”. Assim, Harmonia e Ordem divina restabeleceria a saúde psíquica e corporal. Por recomendação, era solicitado aos enfermos que “pensassem santamente” e buscassem o equilíbrio biopsíquico.

De uma forma geral, Epidauro era um centro cultural, religioso e de lazer. Com competições esportivas, teatro, biblioteca, poesia, música, dança, artes, tudo isto aliava-se ao efeito terapêutico sobre o corpo e a alma, aumentado a espiritualidade e purificado a alma das paixões. A contemplação artística e da beleza das “obras de artes, que ornamentavam o Ábaton, tinham por escopo a elevação, a espiritualização e humanização do pensamento. Todo esse conjunto, espiritual e cultural, visava, em última análise, à catarse” (SOUZA BRANDÃO, 1993, p. 93). O referido autor atesta que mesmo no séc. II a.C. (Período Romano) quando se generalizou o uso de medicamentos e os “meios mais modernos de higiene, dietética, cirurgia, hidroterapia, purgantes… Asclépio e sua nooterapia jamais desapareceram: purifica tua mente e teu corpo estará curado” (SOUZA BRANDÃO,1993, p. 93).

Lembramos que Fédon, diante de seus ouvintes, declara que era por demais estranho o que sentia junto a Sócrates, pois este parecia felicíssimo, quer nos gestos ou nas palavras, mesmo próximo a despedir-se da vida. Dirá Fédon (PLATÃO, Fédon, 59a): “Por isso mesmo, não me dominou nenhum sentimento de piedade, o que seria natural na presença de um moribundo. Também não me sentia alegre, como costumava ficar em nossas práticas sobre filosofia”. Para Sócrates, filosofar é um “exercício de morte” (meléthe thánatou), ascese filosófica, exercícios de cuidado para com alma (Phrónesis), no sentido de que os prazeres exigidos pelo corpo, não dominem a razão, o verdadeiro, o divino6. Assim, aqueles que habitam a filosofia e a tem como “Modo de vida”, devem seguir sempre vigilantes para não se perderem pelo caminho da vida. Deste modo, Platão através das palavras de Sócrates declarou:

[...]a alma pensa melhor quando nada disso tem a perturbá-la, nem a vista, nem o ouvido, nem dor, nem prazer de espécie alguma, e, concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade” (PLATÃO, Fédon, 65c).

Preocupado com as questões morais, iniciado nos cultos de mistério, conhecedor dos mitos, dos exercícios espirituais e saúde somática, Sócrates, ao beber o cálice de cicuta ao pôr do sol, consagrou a sua vida que fora toda dedicada à verdade racional na construção de uma ética. Dessa forma, pensamos que sua existência, os longos dias no cárcere (ou melhor, no ábaton), o sono e os sonhos7, os ritos, o banho, os diálogos, a tranquilidade de Sócrates diante da morte, jamais poderia ser um “lamento”, tampouco a vida uma doença, mas festividade de um homem que se esforçou para ser um amante da sabedoria, caçador das verdades, daí um “agradecimento” a Asclépio pela vida sã, pois purificada a mente, o corpo estava sadio, cuidado. Sócrates acreditava que o exercício filosófico na busca pela verdade purificava a alma imortal e imperecível (PLATÃO, Fédon, 106e), e esta permaneceria ao lado dos deuses e dos homens sábios. Para tanto, “se a alma for imortal, exigirá cuidados de nossa parte não apenas nessa porção de tempo que denominamos vida, senão o tempo todo em universal [...].” (PLATÃO, Fédon, 107c), pois se a morte significasse o fim de tudo, inclusive o da alma, Sócrates declara que haveria uma imensa vantagem para os desonestos. No entanto, por ter admitido ser a alma imortal e indestrutível, o cuidado de si é imprescindível, pois ela nada mais leva consigo em sua viagem a não ser a instrução e a educação. Para Pierre Hadot (2014, p. 263), “A sabedoria era um Modo de vida que trazia a tranquilidade da alma (ataraxia), a liberdade interior (autarkeia), a consciência cósmica”. Aqui, filosofia se mistura à educação, pois cuidar de si é educar-se. Educar é cuidar do outro. Trata-se de uma consciência cósmica de responsabilidade ética por tudo que nos cerca. Silveira (2014), ao citar Hadot (1994, p.47,49) sobre os seus estudos, aponta que Sócrates

[...] produziu marcas indeléveis por toda a história da Filosofia. Xenofonte, Platão, dentre outros, escreveram sobre ele. Discípulos fundaram escolas animados por seu mestre. Antístenes fundou a Escola Cínica e preconizou a austeridade e a tensão, o que influenciaria o Estoicismo. Aristipo funda a Escola de Cirene, baseada numa “Arte de Viver” que influenciará o Epicurismo. Euclides funda a Escola de Megara, famosa pela arte da dialética. Platão funda a Academia, acompanha o seu mestre e cria o seu pensamento filosófico (SILVEIRA, 2014, p. 115).

Isso pode ser visto, quando Críton, num dado momento no Fédon, solicita ao mestre para que deixe suas últimas determinações a ele e aos presentes quanto ao cuidado e à educação dos três filhos pequenos de Sócrates. O mestre responde. Aqui, a mestria socrática:

O que sempre vos digo, Critão, foi a sua resposta; nada tenho a acrescentar: se cuidardes de vós mesmos, tudo o que fizerdes será tanto por amor de mim e dos meus como de todos, ainda mesmo que nada me tivésseis prometido neste momento. Porém no caso de vos descuidardes de vós mesmos e de não orientardes a vida como que no rastro do que vos disse agora e no passado, por mais numerosos e solenes que fossem vossos juramentos neste instante, não avançareis um único passo (PLATÃO, Fédon, 115b-c).

O efeito da cicuta já estava avançado, a morte se aproximava, mas, num instante, Sócrates retira o véu de seu rosto e pronuncia a Críton “devemos um galo a Asclépio. Não te esqueça de saldar a dívida!” (PLATÃO, Fédon, 118a). Imediatamente, Críton confirma que cumprirá o pedido e, em seguida, pede a Sócrates se queria dizer algo mais. A pergunta não foi respondida...

Considerações finais

A mudez da sua fala, a pergunta não respondida, se prolongou e se prolonga no silêncio. Um silêncio que provoca e instiga, cobra o conhecimento da vida, o conhecimento de si, o cuidado de si e dos outros. Assim, a mestria socrática do silêncio, despertou seus discípulos que escreveram sobre ele, sobre a sua conduta, a sua areté e, como já vimos, dos seus ensinamentos, Platão fundou a Academia e escolas foram criadas como a Cínica, a Estoica, a Epicurista, a de Cirene, dentre outras. Do seu silêncio, da mestria ficou o exemplo, a filosofia como “Modo de vida”, o falar franco e o risco da fala (parrhesía) que culminou nesse silêncio ecoante.

Já em pleno século XXI, o silêncio de Sócrates ainda produz ecos que reverberam no pensamento filosófico do Ocidente e, ainda de alguma forma, estamos a lembrar da mestria socrática. Neste mundo contemporâneo, também constituído de tantos sábios e “alcibíades”, de falsas opiniões (nósos), a ética socrática, pode conter valores seguidos de ações importantes para a nosso tempo e para a nossa educação. Como aponta Foucault (2006, p.6), “parece claro haver, para nós, alguma coisa um tanto perturbadora no princípio do cuidado de si”, que ao longo da História Ocidental foi sendo reformulada a cada contexto temporal. Assim, como que num devir de descoberta e, um tanto perturbador, somos incomodados pelo silêncio do tavão e cobrados pela vida que carece ser examinada.

Agradecimentos

Agradecimentos especiais ao Professor João Vinícius Gondim Feitosa pela disponibilidade, quanto aos diálogos, pesquisas e informações cedidas sobre os cultos à Asclépio.

Referências

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1Sobre o banho de Sócrates, leia: SILVEIRA, Carlos Roberto da. A Educação Socrática como “Modo de Vida”: a Imagem do “Cuidado de Si” na Beleza Poética do Sátiro. Horizontes, v. 32, n. 2, 30 dez. 2014.

2Importante lembrar que, Olimpiodoro de Alexandria (séc. VI d.C.), filósofo neoplatônico, foi discípulo de Amônio Hérmias, filho de Hérmias e Edésia (filósofos neoplatônicos na Alexandria). Sobre a referida obra Comentário ao Fédon, sua autoria é questionável. Atualmente, esta é atribuida a Damácio de Damasco (séc. VI d.C.), filósofo neoplatônico que estudou com Hérmias, com Amônio e ficou conhecido como o último diádoco da escola de Atenas.

3“Palavra” está intimamente ligada ao “Modo de vida”, o viver verdadeiramente, a parrhesía. “O discurso filosófico de Sócrates era vinculado com a forma de viver e a filosofia um exercício que o preparava para a sabedoria. Exercícios espirituais que o transformavam interiormente, e seus discursos coadunavam com suas ações. Surgia, portanto um imenso movimento diante do ‘Mito Sócrates’. A ideia de filosofia se vincula a este ‘Modo de vida’. ‘Modo de vida’ cujo exemplo mítico está relacionado com as incessantes buscas pela virtude, pelo conhecimento e verdade, pois ele dizia: ‘sei que nada sei’, ‘conhece-te a ti mesmo’, ‘cuida de si’” (SILVEIRA, 2014, p.115).

4Para Nietzsche, Sócrates estava doente, exatamente por disseminar o seu próprio vírus, o seu socratismo moral, dialético, uma doença, signo de declínio, de cansaço e de ressentimento plebeu que dissolveu os instintos anárquicos do mito trágico quando instalou a sua ordem. “E Sócrates se convenceu que todos tinham necessidade dele, de seu remédio, de sua cura, de seu método pessoal de conservação de si mesmo. Em todos os lugares os instintos haviam se declarado em anarquia, estava-se a dois passos do excesso em toda parte; o monstrum in animo constitua o perigo universal. ‘Os instintos querem se erigir tiranos; cumpre inventar um contra tirano que o vença’” (NIETZSCHE, 2001, p. 18). Informamos que neste artigo, não iremos analisar o aforismo 340 e o problema da doença de Sócrates aludido por Nietzsche. Num outro momento, esperamos desenvolver tais estudos com detalhes e cautela, que tal empreitada necessita.

5Aventamos: “devo” um galo a Asclépio, pois Sócrates não era uma pessoa abastada economicamente e a ave lhe seria conveniente. Se o sacrifício incluísse Críton (devemos) que, como se sabe, era considerado uma pessoa de muitas posses, certamente outras oferendas, além do galo, poderiam ser oferecidas como o boi, bolos e cereais.

6O termo divino (tò theîon) relaciona-se à uma fase que se situa além da percepção sensível. Trata-se do intelecto, aquele que possui a capacidade de compreender, conhecer e ajuizar as coisas. A alma do filósofo “alcançando a calmaria das paixões e guiando-se pela razão, sem nunca a abandonar, contempla o que é verdadeiro e divino e que paira acima das opiniões, certa de que precisará viver assim a vida toda [...]” (PLATÃO, Fédon, 84a-b).

7Sócrates na prisão declara a Cebes que durante toda sua vida, ele buscou cumprir os significados dos sonhos. Sob diferentes formas estes diziam a mesma coisa, compor uma música e executá-la. Estava convencido de que sendo a Filosofia a música mais nobre, foi o que fizera e a qual dedicara. No entanto, ele expõe o seguinte: “[...] depois do julgamento e por haver o festival do deus adiado minha morte, perguntei a mim mesmo se a música que com tanta insistência o sonho me mandava compor não seria essa espécie popular, tendo concluído que o que importava não era desobedecer ao sonho, porém fazer o que ele me ordenava. Seria mais seguro cumprir essa obrigação antes de partir, e compor poemas em obediência ao sonho” (PLATÃO, Fédon, 61a-b). Dessa forma, ele compõe um hino em louvor a Apolo, pai de Asclépio.

Recebido: 25 de Outubro de 2019; Aceito: 27 de Maio de 2020

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