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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.74 Uberlândia mayo/aug 2021  Epub 15-Ene-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n74a2021-58568 

Artigos

Nietzsche e seu olhar sobre os estabelecimentos de ensino alemães como reflexo da cultura moderna

Nietzsche and his point of view on Germany educational system as a reflection of modern culture

Nietzsche et son regard sur les établissements d’enseignement allemands comme reflet de la culture moderne

Abraão Lincoln Ferreira Costa* 
lattes: 2945815863220636; http://orcid.org/0000-0002-2963-8943

*Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Professor no Centro Universitário Planalto do Distrito Federal (UNIPLAN). E-mail: abraaofilosofia@gmail.com


Resumo

O artigo desenvolve um panorama no que tange às instituições de ensino alemãs sob a visão de Friedrich Nietzsche. Para tanto, inicialmente é realizado o balanço crítico dos estabelecimentos ginasial, técnico e universitário de modo a atribuí-los ao problema da degenerescência cultural sofrida a partir do processo das reformas econômica e política na Alemanha do século XIX. Em complemento a essa investigação, serão tratados os assuntos do filisteu da cultura e das considerações do jovem pensador acerca do Estado e da cultura grega, segundo ele, entendida como o melhor meio de ilustrar o sentido de força [Kraft] e vitalidade [Vitalität]. Por fim, a pesquisa apresenta, na postura de Arthur Schopenhauer, a referência de combate ao filisteísmo e de resistência contra os valores do estilo de vida moderna.

Palavras-chave: Cultura; Estado; Filisteus; Nietzsche; Schopenhauer

Abstract

The article develops an overview of German educational institutions under the vision of Friedrich Nietzsche. To this end, the critical assessment of junior high, technical and university establishments is initially carried out in order to attribute them to the problem of cultural degeneration suffered from the process of economic and political reforms in 19th century Germany. In addition to this investigation, the subjects of the Philistine culture and young thinker’s considerations about the state and the Greek culture will be treated, according to him, understood as the best way to illustrate the sense of strength [Kraft] and vitality [Vitalität]. Ultimately, the research presents, in Arthur Schopenhauer's stance, the reference to combat philistineism and resistance to the values of the modern lifestyle.

Keyword: Culture; State; Philistines; Nietzsche; Schopenhauer

Resumé

L'article développe une vue d'ensemble des institutions éducatives allemandes selon la vision de Friedrich Nietzsche. À ce titre, un bilan critique est d'abord fait des établissements du secondaire, des établissements techniques et universitaires afin de les rattacher au problème de la dégénérescence culturelle subie par le processus de réformes économiques et politiques dans l'Allemagne du XIXe siècle. En complément de cette recherche, seront traités les sujets du philistin de la culture et les considérations du jeune penseur sur l'Etat et la culture grecque, qui selon lui, est comprise comme la meilleure façon d'illustrer le sens de la force [Kraft] et de la vitalité [Vitalität]. Enfin, la recherche présente, dans la posture d'Arthur Schopenhauer, la référence de la lutte contre le philistinisme et la résistance aux valeurs du mode de vie moderne.

Mots Clé: Culture; État; Philistin; Nietzsche; Schopenhauer

Introdução

A educação e o ensino dos jovens para aquisição de uma formação [Bildung] e o florescimento da cultura superior [(C) Kultur]1 foram o tema das conferências proferidas por Nietzsche em 1872 no Akademisches Kunstmuseum da Basileia. Ao examinar os estabelecimentos de ensino primário, técnico, ginasial e superior, o filósofo chegou à conclusão de que a cultura compreende uma determinação da natureza e, por isso, jamais poderia estar fora dela. Diante dessa conclusão, o filósofo verificou, nos diferentes níveis de ensino, uma contrariedade aos princípios pedagógicos que tanto acreditava. Isso o levou então a elaboração da tese sobre a existência de duas correntes complementares e antinaturais que, ao se manifestarem no mundo moderno, traziam consequências nocivas e deletérias aos jovens estudantes alemães.

Duas correntes aparentemente opostas, ambas nefastas nos seus efeitos e finalmente unidas nos seus resultados, dominam hoje os nossos estabelecimentos de ensino, originariamente fundada em bases totalmente diferentes: por um lado, a tendência de estender o quanto possível a cultura, por outro lado, a tendência de reduzi-la e enfraquecê-la (NIETZSCHE, 2012, p. 53).

As consequências da extensão e do enfraquecimento da cultura opor-se-iam à antiga noção de fortalecimento e de concentração da mesma. Nietzsche compreende que essa mudança teve como motivação a crença numa economia política cujo interesse maior fora a produção de “homens comuns”. Pessoas cada vez mais afetadas pelo ideal da felicidade, dispostas a alcançar o ganho de dinheiro e predestinadas ao cumprimento das tarefas sociais. Na busca pela realização desse propósito, era preciso constituir outra mentalidade à mercê da lucratividade, da obediência e do consumo. O interesse das massas urbanas, juntamente com a intervenção do Estado sobre a cultura moderna, trouxera o que o filósofo alemão denominou por “barbárie cultivada”. A sua compreensão é de que nenhuma cultura elevada [höher Kultur] deve submeter-se a qualquer processo de alargamento, pelo contrário, deve concentrar e restringir suas criações a um pequeno e seleto número de pessoas especiais - algo que, conforme veremos a partir de agora, tornou-se incompatível com o projeto de massificação cultural realizado pelo Estado alemão.

O problema da cultura moderna

Opondo-se ao ideário moderno, Nietzsche, na primeira Consideração extemporânea, define “cultura” como algo que deva ser essencialmente pensado como “unidade de estilo artístico que atravessa todas as manifestações da vida de um povo (NIETZSCHE, 2013, p. 29).” Diferente do termo “civilização” (WOTLING, 2011, p. 28-29), a cultura não está estritamente destinada à busca do saber e, tampouco está preocupada com a formação dos homens em geral, já que simplesmente pretende o envolvimento de todas as criações e atividades num instante específico da sua história, como a moral, a política, a arte, a ciência, a filosofia e a religião. Por isso, a importância de encontrar uma unidade de estilo que, pelo viés artístico, consiga simultaneamente orientar e harmonizar as diferentes expressões da vida de um povo. Esse alcance dar-se-ia mediante o trabalho sobre a estrutura pulsional dos indivíduos, ou seja, uma educação em condições de operar diretamente nas pulsões humanas com o objetivo de espiritualizar os instintos. Nietzsche, entretanto, denuncia as dificuldades da correta apreensão da cultura - segundo ele, a modernidade equivocou-se quando remeteu o termo “cultura” ao propósito de chegar ao maior número possível de pessoas felizes. Contrário a isso, a cultura caracteriza-se pela “disciplina homogênea imposta a seus instintos” (NIETZSCHE, Fragmentos Póstumos, 19 [41] verão de 1872) na intenção de conquistar os prodígios que só podem florescer através de extenuantes esforços e da disciplina.

As técnicas aplicadas nas escolas alemãs comprometiam o processo de formação natural [Bildung] dos jovens estudantes, interferindo no autêntico desenvolvimento de suas potencialidades. A exemplo do ensino ginasial, embora devesse ser tratado como a base de todo o processo pedagógico propiciando o verdadeiro cultivo [Züchtung], Nietzsche via-se, no entanto, incapaz de realizar tamanha função devido ao desvio de finalidade que sofrera com as mudanças no currículo escolar. Vê-se ainda sua condenação ao ginásio por incentivar nos estudantes uma liberdade de escolhas que sequer estavam preparados para assumir. O mesmo problema se estende até as universidades, lugar onde o apoio a essa “liberdade acadêmica” acabaria provocando o distanciamento entre professores e alunos.

Noéli Sobrinho explica que Nietzche avaliou os estabelecimentos de ensino como espaços institucionais responsáveis pela mera educação “uniformizada e medíocre, utilitária e integradora” (2012, p. 16). A ideia incentivada da liberdade de escolhas durante a vida acadêmica prestava-se apenas em conservar a imaturidade e a ignorância. Tratava-se de uma pedagogia que reunia de forma incoerente aspectos que envolviam o erudito e o fútil, assim como a ciência e a cultura jornalística. Enfim, a educação alemã do século XIX passou a destinar-se quase que exclusivamente a geração de servidores públicos, sem interessar-se com a formação [Bildung] de homens superiores que pudessem retomar o projeto de uma cultura superior.

Vale salientar que Nietzsche jamais esteve preso a nenhum projeto de disseminação de uma cultura elevada. Conforme dissemos, o alargamento da cultura, bem como a perigosa redução de seus conteúdos originais, fatalmente a levariam à depauperação. Pensar na superioridade desta cultura é também compreendê-la como um privilégio concebido a um seleto grupo de homens excepcionais. Isto posto, jamais faria sentido estendê-la às massas, não por conta do preconceito ou de qualquer elitismo tipicamente erudito, mas por considerá-la como algo cuja força far-se-ia incapaz de ser assimilada. Portanto, desejar o acesso dessa força aos vários indivíduos é desconhecer a hierarquização natural vigente no campo do intelecto. Isso faz menção a uma aristocracia do espírito, ou seja, homens devidamente capazes de seguir os passos daqueles que fizeram grandes feitos no passado, garantindo, desse modo, selarem seus nomes na história.

A tese de uma escolha e combinação natural, responsável pelo encaminhamento de certos homens ao talento e à superioridade pode, em certa medida, esclarecer a necessidade da pedagogia tecnicista para fins de gerar a mão de obra qualificada. Ora, é inegável que a Alemanha já havia perdido suas bases culturais outrora valorizadas por Nietzsche e outros pensadores, a exemplo de Schiller e de Goethe2, porém isso jamais significou a completa oposição ao ensino técnico que garantiria a sustentação da cultura moderna. Na verdade, o desejo maior seria o de apenas assegurar entre as várias tendências de ensino aquela que melhor fosse destinada ao melhoramento e à elevação dos homens excepcionais. Como o próprio filósofo acrescenta:

Não vão com isso crer, meus amigos, que eu quero mitigar os elogios às nossas escolas técnicas e às nossas escolas primárias importantes: eu honro os lugares onde se aprende a calcular adequadamente, onde se domina a língua, onde se leva a sério a geografia, onde se é instruído pelos conhecimentos admiráveis que nos dão as ciências naturais. Estou também inclinado a concordar de bom grado com o fato de que os estudantes que se instruem nas melhores escolas técnicas da nossa época estão perfeitamente autorizados a ter os mesmos direitos que se tem o costume de atribuir aos alunos do ginásio no final dos seus estudos; e não está longe o dia em que se abrirão, para as pessoas que receberam este ensino, as portas das Universidades e da administração pública, com a mesma largueza com a qual se beneficiou exclusivamente até agora os alunos do ginásio - bem entendido, o ginásio atual! No entanto, não me posso furtar de acrescentar este codicilo: se é verdade que a escola técnica e o ginásio, nos seus fins atuais, são em tudo tão semelhantes e não se distinguem senão por detalhes mínimos, de modo que podem contar com um tratamento igual diante do fórum do Estado - isto ocorre assim porque nos falta completamente um tipo de estabelecimento de ensino: o estabelecimento da cultura. (NIETZSCHE, 2012, p. 123-124).

Outro aspecto político do qual chamamos atenção como parte daquilo que levou o mundo moderno à depauperação da cultura refere-se à ocupação dos burocratas em assuntos estritamente pedagógicos. Nietzsche certamente compreendeu a interferência da burocracia nos estabelecimentos de ensino como um grave erro, por considerar que os parâmetros e as diretrizes curriculares da educação deveriam somente pertencer aos domínios daqueles a quem ele acreditava legislar a serviço de educação rotineira. Esses legisladores se constituiriam de inquestionável preparo, proveniente de uma cultura superior, sendo, portanto, experientes e maduros o bastante para contraporem-se a uma política de conformidade com os interesses utilitários.

A influência da cultura grega

Diante do quadro apresentado, a solução seria a criação de uma nova concepção de ensino sob o viés de uma nova orientação pedagógica capaz de dar aos estudantes outras perspectivas para além da utilidade e da rentabilidade. Para tanto, Nietzsche pensou na reformulação dos currículos escolares, os quais tomariam de exemplo a cultura clássica. A razão disso tem a ver com o desejo de afirmar a importância dos ensinos da filosofia e da arte, e também pela necessidade de cultivar homens cultos e experientes para enfrentar os diferentes desafios da vida.

Ora, ao tratarmos de uma referência sobre a educação empenhada no preparo de seres humanos para os incontáveis desafios da vida, podemos nos permitir ir além do exemplo da cultura clássica, uma vez que o jovem Nietzsche encontrou na tragédia grega o conteúdo que versa acerca da questão existencial do sentido da vida: a arte como necessidade da vida, justificada enquanto fenômeno estético, permitindo-nos inferir a respeito da importância na aquisição de uma formação [Bildung] que vislumbre o constante movimento na busca do próprio vir a ser. Sem dúvida, algo que para a filosofia nietzschiana representou enorme valor pedagógico ao demonstrar em seu bojo uma concepção da condição humana para além do idealismo clássico ou de uma orientação cristã que atravessou os séculos na tradição ocidental.

Embora reconheçamos que O Nascimento da Tragédia jamais venha a insinuar qualquer plano político-pedagógico, não seria demais crermos que as considerações de Nietzsche sugeririam no conceito da Bildung algo comum à noção de Paideia do antigo mundo grego. Cabe inclusive destacar que o significado de “arte” na filosofia nietzschiana durante essa fase refere-se sempre à música (NIETZSCHE, 2015, p. 139). Daí a importância do trágico, pois arte e vida, assim como “música” e “palavra”, foram pensadas pelos gregos dentro dessa perspectiva, passando a ser chamadas de “impulsos artísticos da natureza” [Kunsttriebe] ou as pulsões “apolínea” e “dionisíaca”. Em linhas específicas, o jovem filósofo deteve sua atenção em duas divindades gregas: os deuses Apolo e Dionísio. Para o pensador alemão, tratar-se-iam da evidência de dois diferentes mundos da arte: o apolíneo expresso pelas artes da pintura e da escultura; enquanto o dionisíaco, pela música ditirâmbica.

Diferentemente da era moderna, o trágico apresentado pelo discípulo de Dionísio demonstra o elo entre a arte e o Estado. Na obra Cinco prefácios para cinco livros não escritos (Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Bücher), vemos pela reflexão nietzschiana aquilo que concerne o papel da arte grega em conexão com os horrores das guerras, típico daquela sociedade guerreira. Nisso percebemos a capacidade do homem grego de recorrer à arte, capaz então de transformar os sofrimentos e os horrores da existência. Um poder que os gregos nos tempos homéricos possuíam de dar ao sofrimento humano novas configurações, fruto de uma consciência da própria condição de finitude. Assim, permitiram-se criar sentidos artísticos, em condição de servirem como remédio para defenderem-se das atrocidades e dos horrores que muitas vezes se viam submersos. Nas palavras de Nietzsche:

Mas o que se encontra por trás do mundo homérico, como local de nascimento de tudo o que é helênico? Nesse mundo, somos elevados pela extraordinária precisão artística, pela tranquilidade e pureza das linhas, muito acima da mera confusão material: suas cores apareceram mais claras, suaves, acolhedoras, por meio de uma ilusão artística, seus homens, nesta iluminação colorida e acolhedora, melhores e mais simpáticos; mas para onde olharíamos, se nos encaminhássemos para trás, para o mundo pré-homérico, sem a condução e a proteção da mão de Homero? Olharíamos apenas para a noite e o terror, para o produto de uma fantasia acostumada ao horrível. (NIETZSCHE, 2019, p. 26-27).

Frente ao horror e à finitude da vida, os gregos encontraram saída no poder de criação, manifesto conforme dissemos na força artística. Algo que pudesse ressignificar a imagem sombria e aterradora da existência. Como visto na Ilíada, os cantos são o exemplo da realização de grandes feitos dos heróis, o que incluía quase sempre as mortes gloriosas. Somente assim seus nomes estariam imortalizados nas canções dos poetas. Somente assim os homens se colocariam acima das vicissitudes de uma realidade tão perversa e inconstante. Uma cultura superior composta de deuses, semideuses e heróis que serviam de referência para a formação de novos grandes homens. Segundo Nietzsche, “o grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplandecente criação onírica dos deuses olímpicos” (NIETZSCHE, 2015, p. 33).

Avesso à maneira da qual os homens da sua época se apoderavam dos elementos da cultura, Nietzsche vê os antigos gregos como um povo admirável. Acerca disso, depreendemos que os gregos eram aqueles que de costume “aprendiam e logo queriam viver”. Essa era a capacidade para a sua ambiciosa disposição de conhecimento: a “consideração pela vida” e a “necessidade de vida ideal” (NIETZSCHE, 1996, p. 253).

Na interpretação de Antonio Edmilson Paschoal (2008, p. 163) é simplesmente a vivência de um conhecimento numa correspondência entre um tipo de teoria que se estuda e uma prática operada diariamente, enquanto uma técnica que, uma vez assimilada, só alcançaria seu propósito quando empregada. A consciência do alinhamento entre Filosofia e vida, tal como a ideia de se apreender a Filosofia no aspecto da vida, exige uma interpretação no tocante a acepção da palavra “vida”, algo que perpassou toda filosofia nietzschiana. É percebível, já nas obras iniciais de Nietzsche, uma intensa vitalidade no seu pensamento. Um reconhecimento da vida contrapondo-se a tudo aquilo que, em nome da debilidade e do medo, propõe um enfraquecimento do caráter expansivo, embora irracional da vida. Para o filósofo, a afirmação de uma vida saudável encontra-se caracterizada pelo conflito, tal como entre os gregos, que defendiam na ideia da disputa (agon) o estímulo da sua existência (JANZ, 2016, p. 498).

Em suma, a educação grega esteve pautava na “disputa”, termo que vem do grego agon, muitas vezes apresentado na Ilíada para relatar a competição entre dois atletas durante os jogos olímpicos ou numa disputa mortal entre dois guerreiros no campo de batalha. Nietzsche aponta para a importância desta tradução ao tratar de uma Paideia de tipo “agônica” no mundo grego. Semelhante aos heróis homéricos, o homem grego, devidamente orientado dentro dessa educação agônica, tendia de costume ao desejo de alcançar a glória. Pelo constante impulso de superação, tal indivíduo era motivado a dar o melhor de si, aprendendo, dessa maneira, a se conhecer cada vez mais. As obras de Homero e Hesíodo alimentavam esse impulso artístico, orientando ao mesmo tempo a vida do homem e da cidade grega.

A compreensão do agon enquanto base de formação no mundo grego remete às pulsões apolínea e dionisíaca, pois representam impulsos antagônicos oriundos do estilo de vida peculiar da Grécia homérica. Podemos inferi-las como faculdades fundamentais para o surgimento do homem e da cultura superior. Teriam a ver com forças que, mediante estados fisiológicos, manifestavam-se nos sonhos e na embriaguez. No sonho, vemos o poder artístico projetado em imagens para criar as formas e as figuras. Sonhar está diretamente relacionado a Apolo, símbolo da aparência, da energia plástica, da ordem e do controle das cegas paixões existentes no plano natural. O deus que traz o sentido da individuação, oposto à embriaguez que destrói e aniquila o princípio desta individuação. No estado de embriaguez se desalinha a organização para integrar no homem aquilo que Schopenhauer descreve como uno primordial da natureza. Vemos com isso o deus Dionísio, responsável pelo caos, deformidade, paixões desenfreadas; e também o deus da fecundidade, da música e da arte universal. Aquele renascido a cada primavera, que gera e derrama prazer sobre o mundo.

O momento decadent denunciado por Nietzsche em suas conferências na Basileia deveria ser combatido com uma educação [Erziehung] transformadora semelhante à Paideia grega. Diante disso, cabe salientar que o termo Erziehung na filosofia nietzschiana encontra-se dissociado da ideia de instrução [Schulung] e também distante do sentido da erudição livresca [Gelehrsamkeit]. Na obra “A Fisiologia de Nietzsche: superação da dualidade”, Wilson Frezzatti Jr. (2006, p. 58) interpreta o significado da palavra Erziehung, como aquilo que esteja indissociável da vida. Nesse sentido, a educação jamais pode ser confundida com

[...] habilidades técnico-científicas de resolução de problemas, com o conhecimento enciclopédico dos livros, com a falsa erudição dos escritos de artigos jornalísticos, com Filosofia que repete o pensamento dos outros, com saberes não criativos. (FREZZATTI JR., 2006, p. 159).

Erziehung no sentido correto da palavra tem em seu bojo o desejo de maturação, manifesto numa cultura dominante que, através de sua produção contínua, permite o florescimento de homens e de uma cultura superior.

As instituições de ensino alemãs do século XIX estiveram presos aos interesses da formação profissional, preparando técnicos e diversos especialistas para o mercado de trabalho. Contudo, a cultura reivindicada pelo filósofo alemão é a cultura de tipo aristocrática, incondizente com as pretensões políticas daquele tempo. Para Nietzsche, era preciso educar de maneira correlata aos interesses da cultura superior. Mas como? Primeiramente (SOBRINHO, 2012, p. 19), romper com a mentalidade imediatista e ingênua que os jovens tinham da natureza. Isso significaria desencantá-la de modo a descobrir os problemas realmente existentes entre homem e natureza. Outro passo rumo à conquista da cultura elevada refere-se à aproximação dos estudantes com os homens e os seus grandes feitos do passado. Vê-los pelo olhar dos estudantes como exemplos de experiência existencial e intelectual, a fim de que, na inspiração desses feitos, seus espíritos estivessem alimentados de coragem para enfrentar e superar os desafios da vida.

A modernidade se opôs ao ideário da formação correlata aos interesses da cultura superior. Conforme veremos na sequência, Nietzsche via como personagem principal da cultura moderna o filisteu da cultura, aquele a quem o autor considerou “a gentalha do poder, do escrever e do prazer” (NIETZSCHE, 2011, p. 93). Para combatê-los, além do uso de uma concepção de cultura superior analisada até aqui, veremos a contribuição de Arthur Schopenhauer, filósofo que não somente corroborou o panorama levantado por Nietzsche no tocante ao processo instrutivo e educacional da Alemanha no século XIX, mas ainda demonstrou, por meio do seu pensamento intempestivo, referências que pudessem auxiliar os estudantes a seguirem novos caminhos no campo do conhecimento.

Nietzsche e Schopenhauer versus o filisteísmo da cultura alemã

Até aqui acompanhamos a crítica contundente à cultura alemã do século XIX, justificada, segundo Nietzsche, por um tipo de formação decadente, decretando um novo sentido de vida, vinculado aos interesses cômodos conquistados pela economia e as demais ocorrências da cultura moderna. A investigação científica e o estudo aprofundado da língua materna diminuíam seus espaços para dar lugar à opinião pública expressada na cultura jornalística. Fortaleceu-se ainda o conhecimento histórico, preso ao passado, porém sem nenhuma articulação com o presente. Via-se, de acordo com as considerações do filósofo, uma vida limitada em conhecimento e potência, fazendo com que os alemães passassem a ser conhecidos como “verdadeiros filisteus virtuosos”. Segundo ele:

Talvez esse conforto filisteu seja apenas a degeneração de uma autêntica virtude alemã - de uma íntima submersão no singular, no pequeno, no próximo e nos mistérios do indivíduo -, mas agora essa virtude mofada é pior do que o vício mais evidente, ainda desde que a consciência dessa qualidade se tornou uma alegria de coração, que chega à glorificação literária ((NIETZSCHE, 2019, p. 24).

Mesmo considerado por muitos como alguém da cultura, o filisteu em razão da comodidade e do conformismo era incapaz de promover profundas mudanças em benefício da cultura elevada. Esses filisteus significam bem o oposto daquilo que denominamos por autenticidade e originalidade da cultura (NIETZSCHE, 2013, p. 39). Logo, a qualquer sociedade à mercê desses pseudo eruditos, não haveria mais o que se esperar a não ser um mundo superficial no qual a arte estaria restrita somente a duas coisas: “seja uma imitação da realidade que chegue até o simiesco, em idílios ou em sátiras docemente humorísticas, seja cópias livres das obras mais célebres e mais incontestes dos clássicos, mediante algumas tímidas concessões ao gosto do dia” (NIETZSCHE, 2013, p. 45). Essa maneira imprópria de se envolver com a arte ou com a filosofia e a cultura desconhece a vida e a insensatez que costuma ser intrínseca a ela. Deixa à margem aquilo que transforma o ser humano num “animal interessante” (PASCHOAL, 2008, p. 162), dando maior importância às tarefas práticas, substanciais, decerto, nada obstante aos quais jamais conseguiria reduzir o homem.

A partir desse levantamento, percebemos a importância daquilo que Nietzsche apresenta sobre Schopenhauer em um dos seus prefácios (A relação da filosofia de Schopenhauer com uma cultura alemã). Disposto em estilo literário, no qual propõe um método de aconselhamento aos seus leitores, o texto nos alerta sobre o desvirtuamento da palavra “cultura” [Kultur]. Se antes a aguardada cultura alemã pressupôs salvaguardar a criação e a liberdade de espírito, já naquele instante, tal propósito parecia ter perdido completamente esse significado. Daí a necessidade da constante busca do resgate original da palavra “cultura”, devido ao seu intuito de preservar-se consonante com os interesses do homem superior. Certamente, ninguém melhor do que Schopenhauer, o “único filósofo neste século”, conseguiria mostrar o caminho para se chegar numa cultura autêntica: “Eu estou entre os leitores de Schopenhauer que, depois de terem lido a primeira de suas páginas, sabem com convicção que lerão todas as outras e que escutarão cada palavra dita por ele” (NIETZSCHE, 2018, p. 24).

Podemos suspeitar que o Prefácio escrito em dezembro de 1872 seja fruto de um projeto inicial que alcançou amplitude a partir de 1874, na terceira das quatro Considerações extemporâneas. Nela, encontramos a figura de Schopenhauer como pensador ideal, disposto a confrontar a cultura e o Estado alemães no fim do século XIX. Embora sejam produções escritas em anos diferentes, preservam estreita relação de conteúdos entre elas, ao passo que promovem uma crítica voraz à cultura uniformizada do Estado alemão, compreendendo, na figura de Schopenhauer, uma oposição resistente às seduções do progresso do mundo moderno. Época em que a consciência da gravidade do embrutecimento e do nivelamento da educação passou despercebida por conta do entusiasmo em torno da ciência, das especializações e da fragmentação do saber.

Nesse seguimento, Schopenhauer como educador possui seguramente uma extensão política, no instante ao qual se mostra como oposição frente aos interesses e valores dominantes das instituições educacionais e políticas do seu tempo. Mas não somente isso, tendo em vista também inaugurar uma nova concepção acerca da imagem de princípios que o fez executar uma “revolução do espírito”, algo que Nietzsche jamais abandonou ao longo da sua vida (Cf. ANDLER, op. cit., I, p. 518). “Portanto, é ridículo imaginá-lo (Schopenhauer) ensinando numa universidade atual”. Possuidor de um princípio eudemonista, Schopenhauer destinava seu saber aos homens mais vividos, bem como sua filosofia pessimista jamais fora dirigida aos homens do presente: “estes só fariam introduzir aí as suas insatisfações, para retirá-las logo em seguida, acreditando ter refutado o filósofo (NIETZSCHE. Fragmentos Póstumos, 28 [6] primavera-outono 1873)”.

Nessas condições, o futuro da humanidade jamais conseguiria ser revelado pela pesquisa histórica das civilizações, tal como apresentado na doutrina hegeliana, mas somente pela natureza manifesta através dos grandes feitos dos homens superiores. Razão pela qual fez o jovem Nietzsche acreditar que Schopenhauer era um desses homens extraordinários; alguém de superioridade, cuja filosofia representa uma ação sempre acima da visão conformista dos filisteus da cultura. Num sentido estrito, Schopenhauer era um daqueles grandes mestres a ter transmitido não apenas a sua enorme riqueza interior, mas, principalmente, realizado com valor para as nobres ações:

Não descrevo nada além da primeira impressão fisiológica, por assim dizer, que Schopenhauer despertou em mim, aquele fluxo mágico de forças íntimas que passa de um espécime natural a outro, e que ocorre ao primeiro e mais leve contato: e quando analiso retrospectivamente aquela impressão, percebo-a composta de três elementos: da impressão causada por sua honestidade, por usa alegria e por sua constância (NIETZSCHE, 2018, p. 28).

Seguindo os passos de Schopenhauer, Nietzsche buscou assumir o mesmo compromisso de tornar-se um autêntico educador. Alguém consciente de que o processo de educar os outros depende invariavelmente da árdua tarefa de educar inicialmente a si mesmo: autodescobrir-se, a fim de revelar sua verdadeira capacidade e resistência, enfrentando as vicissitudes de uma existência marcada pelo sofrimento. Doravante, o filósofo reintroduz a solidão, semelhante à postura schopenhauriana, alimentando em seu espírito o inconformismo diante da filosofia filisteia, que acabou sendo vulgarizada graças à rendição dos seus compromissos políticos com o Estado e concomitantemente com os estabelecimentos de ensino da época.

O jovem filósofo chama atenção para esse controle exacerbado do Estado que almeja dissipar e generalizar a cultura ao dispor de mecanismos altamente eficientes para cumprir esta tarefa. Não obstante, a posição de Nietzsche jamais se manteve passiva, pois soubera oportunamente denunciar esse acontecimento ao revelar que o Estado, tendo certeza de sua própria força, pretende ampliar seu domínio interferindo diretamente em toda estrutura de formação de ensino do país. O propósito disso, conforme exposto, fora a difusão da cultura entre o máximo de pessoas, o que, dessa maneira, favoreceria tão somente o Estado. Inusitadamente, quando tratado dos estímulos e desestímulos de forças que soubera recorrer o Estado para atingir seus interesses, Nietzsche também lembra que o cristianismo, de início considerado “uma das mais puras revelações da cultura”, acabou como muitas outras manifestações sendo utilizado de muitas maneiras para movimentar o poder estatal. Ao subverter-se, por conseguinte, a religião cristã passou a decair paulatinamente em valor, por conta das mentiras e hipocrisias que a fizeram se degenerar até ultrapassar o limite de contradições com seu propósito original.

Os mecanismos utilizados pelo Estado possuem sutilezas e dissimulações, que ainda que aparentemente notada em suas determinações políticas a disposição para atender aos interesses da cultura de forma suntuosa e vigorante, seria improvável atingirmos o reconhecimento genuíno dos seus interesses. Pois o Estado, declara Nietzsche, mesmo divulgando “em alto e bom som” seu empenho para servir de melhor grado à cultura, jamais pretenderia conquistar outra finalidade senão àquela de atender somente a seus próprios intentos.

Nietzsche, na Terceira Extemporânea, assume a tarefa de denunciar os riscos do caminho percorrido pela humanidade que, para ele, estava sujeita aos mais horrendos perigos em razão da conjuntura do mundo moderno. Mas que perigos seriam esses? Na visão do pensador alemão, predominava o embrutecimento humano, a idolatria ao Estado, sempre tratado como uma espécie de fim último da humanidade. Ademais, predominava a ideia de domínio estatal como sinônimo de felicidade, por meio dos estabelecimentos de ensino, e a disseminação da cultura jornalística, ocupando o lugar da cultura elevada. Diante desse momento tão delicado, fazemos outra pergunta: como pensar no florescimento de homens superiores através desse tipo de ensino? A resposta sempre esteve na extemporaneidade da filosofia schopenhaueriana, da qual Nietzsche tornou-se a chave para responder a essa questão.

Será no reconhecimento da dimensão trágica do homem, na sua existência, que o filósofo extrairá do pessimismo schopenhauriano os elementos essenciais que permitiram mostrar uma solução à barbárie da modernidade e à crise moral na qual os alemães enfrentavam (SOBRINHO, 2012, p. 21). Solução que se oporia ao comodismo das costumeiras crenças, dando apoio à intempestividade de uma filosofia autêntica, que jamais consentiria espaço para a conveniência e a submissão. Um pensamento verdadeiramente contrário ao predomínio do “animal de rebanho”, erguendo-se na força da solidão: que manteria independência diante dos poderes estabelecidos; contra a exiguidade da cultura jornalística, agitando-se no hermetismo de uma compreensão filosófica que transfigura a natureza e, destarte, afirmaria a vida em seu maior nível.

Nietzsche cada vez mais circunscrevia a filosofia de Schopenhauer, referente ao tema sobre a negação da vontade. Não somente em SE, mas conforme vimos em o Nascimento da Tragédia, o autor de O mundo como vontade e representação ressalta sua posição pessimista e solitária, colocando-se à margem da política estadista e dos interesses da economia burguesa. Vemos nisso o motivo pelo qual Nietzsche censurava qualquer um que buscasse responder à pergunta sobre o significado de vir a ser um filósofo educador. Era preciso daquele que intencionasse chegar nesse status, primeiro suspeitar das atitudes que estivessem disseminadas e veementemente defendidas pelos estabelecimentos de ensino e, especialmente, pelas Universidades daquele tempo. Desse modo, Nietzsche não poderia entender de outra forma senão tratar-se de um vexame saber que homens de reputação intelectual e prestígio acadêmico pudessem se prestar a um comportamento tão submisso e bajulante, a ponto de terem suas ideias confundidas até mesmo com a insubstancialidade da cultura jornalística.

Dentre os mais importantes ensinamentos de Schopenhauer vemos sua ideia de que o mal é condição essencial do mundo, sendo o horror e a injustiça o “inferno no mundo” (SOBRINHO, 2012, p. 24), produto da vontade desmedida da natureza. Outro caro ensinamento foi a afirmação de que o sofrimento pode nos educar. Isso significa que a dor causada pelas intempéries da vida teria uma importante função pedagógica que, portanto, jamais poderia ser negada. Porém, guardadas as devidas aproximações entre esses pensadores, cabe salientarmos aquilo que condiz com a posição de Nietzsche, alguém que jamais apresentou, para a condição trágica da existência humana, um paraíso nirvânico acessível pela negação da vontade, diferentemente da tese de Schopenhauer. Na verdade, Nietzsche quis, utilizando-se parcialmente das ideias schopenhaurianas se apoiar na defesa da possibilidade de a cultura dar ao homem condição de elaborar novas configurações através da arte e, dessa maneira, compensando-o da condição irrecusável do sofrimento, tal como fizeram os antigos gregos. Em linhas gerais, apenas a cultura consegue reconciliar o homem com a natureza, transfigurando-a em produto da sua própria criação.

A superação do pessimismo schopenhauriano

Diante da constatação da existência alicerçada ao sofrimento, Nietzsche propõe a tese do homem enquanto “unidade produtiva”, ou seja, uma concepção na qual o indivíduo assumiria o papel fundamental de todo processo pedagógico e, destarte, de toda a cultura. Ora, não seria correto entender o ser humano como simples receptáculo dos princípios e ideias vigentes de uma determinada época; mais do que isso, o seu valor se definiria na capacidade de poder verdadeiramente pensar sobre a própria experiência e, a partir disso, produzir novas interpretações e externar novos pensamentos.

O objeto de resistência do homem diante do seu tempo oferece de início a ideia de que a educação deve irremediavelmente tratar de questões pertinentes à moral sem nunca vir a distanciar-se dessa concepção de valores. Na verdade, é certo concordar que, nesse aspecto, Nietzsche jamais se identificou completamente com os elementos teóricos constitutivos da filosofia schopenhauriana. Seu interesse, acima de qualquer outra coisa, foi na maneira como Schopenhauer enfrentou a época em que viveu, o seu afastamento proposital e seguro do ambiente acadêmico, a sua indiferença no tocante aos interesses do Estado e da Igreja, o seu julgamento aos filisteus da cultura, a sua lisura, a sua autenticidade e o seu heroísmo. Com efeito, a importância que Nietzsche expõe acerca do tema das questões morais é precisamente proporcional ao interesse que se dedica ao tema da cultura.

O pessimismo de Schopenhauer, que ratificou a falta de sentido metafísico da existência, infinitamente reclusa no domínio da vontade e, consequentemente, sujeita à carência e à dor, jamais levou Nietzsche ao desestímulo e, tampouco à desistência. Em verdade, depreendemos que esta concepção schopenhauriana o teria levado a admitir exatamente a real tragicidade da vida, e dessa forma, conseguido ultrapassar a visão cética e conformista que pudesse surgir da constatação do absurdo da vida. Ao confessar o caráter múltiplo e variável da “unidade produtiva” em cada ser humano; ao decifrar a chance de transfigurarmos de maneira inesgotável a natureza; ao preservar uma compreensão de conjunto do mundo frente ao entendimento parcial e desiludido das ciências, nosso filósofo reconhece, no mesmo instante, a necessidade de dar significado à vida por meio da cultura, que é, vista disso, inconformidade e transfiguração: posição sem dúvida contrária à confiança do Estado e contra o utilitarismo que pretendia fazer da cultura algo rentável quando à mercê dos interesses de uma mentalidade burguesa.

Outro aspecto fundamental a ser avaliado das especificidades envolvendo Nietzsche e Schopenhauer, estaria ligado ao tema da formação [Bildung]. A filosofia nietzschiana destaca tanto a formação quanto a educação como coisas impossíveis no interior da vontade pessimista descrita pela filosofia schopenhauriana. A partir disso, é certo admitirmos que, de acordo com o jovem Nietzsche, a educação e a formação podem assumir um caráter transformador; enquanto que, para Schopenhauer, esses conceitos, apesar de inseridos no autêntico propósito do vir a ser, jamais conseguiriam alterar o que se é e jamais interfeririam na legítima apreensão intuitiva do mundo: o distanciamento entre as duas visões é condizente à singularidade dos dois projetos filosóficos.

Ao constatarmos os perigos que Schopenhauer enfrentou e habilmente se defendeu, como o isolamento, o desalento da verdade e o abatimento, percebemos sua firmeza e destreza (NIETZSCHE, 2018, p. 28). Unidade essa que revela a força e a resistência do seu ser, permitindo-lhe exibir-se como uma aspiração que educa. Inferimos desse exemplo a importância da presença de mestres que auxiliem na condução rumo ao fortalecimento da cultura, alcançando a realização da natureza do homem. Os jovens discípulos de natureza ainda tola e perdida devem, então, serem orientados e educados para somente este propósito: realizar a natureza que há dentro deles, movendo-se na direção do homem superior através do “amor”, sem jamais sucumbir-se à moral ou às instituições que se oponham à cultura superior.

Schopenhauer é a personagem que melhor representa o modelo de educador. Alguém que de maneira pertinente cobra as obrigações que cada jovem deve cumprir no propósito de acharem o verdadeiro sentido em suas vidas. Entretanto, como aponta Nietzsche, o trabalho desses grandes mestres da educação estaria sujeito aos riscos impostos pela “cultura utilitária”. Um novo tipo cultural da vida moderna que entendera como essencial desempenhar um papel de satisfação ao Estado, juntamente com o ganho fácil e rápido de dinheiro. Essa nova cultura só faria sentido quando cumpridas suas devidas obrigações políticas e atendidos os interesses da economia, incluindo a necessidade de satisfazer o egoísmo de pessoas enfastiadas e sórdidas, que procuravam na beleza das formas uma maneira de acalentar o problema da aversão que tinham delas próprias.

O egoísmo da ciência, proveniente dos supostos servidores da verdade, trajados como eruditos e filisteus da cultura, precisaram disfarçar o sofrimento da existência elaborando falsos mecanismos que pudessem alargar a vida e, assim, dando-a a impressão de felicidade. Pseudo intelectuais, cuja pequenez e vulgaridade dos pensamentos os levaram a detestar os verdadeiros ensinamentos filosóficos. Em síntese, nenhum comerciante, funcionário público, erudito e, tampouco, filisteu da cultura poderia compreender os propósitos da cultura superior, pelo motivo de estarem mancomunados com objetivos inteiramente avessos a ela. Outrossim, a superioridade da cultura depende, segundo Nietzsche, da reinvenção do homem, aprendendo a criar novas metas, novas instituições de ensino e revendo as percepções que outrora promoveram a cultura. Em suas palavras:

Como então o filósofo vê a cultura em nosso tempo? De modo muito diferente, é certo, do que aqueles professores de filosofia satisfeitos com seu Estado. Quando ele pensa na pressa geral e na crescente velocidade com que tudo cai, na cessação de toda contemplatividade e simplicidade, é quase como se percebesse os sintomas de um total extermínio e desenraizamento da cultura (NIETZSCHE, 2018, p. 48).

A educação, nesses novos tempos, dava sinais do seu comprometimento com a civilização, orientada pela ciência e o mundo moderno em geral. Processo pelo qual a exigência da rápida maturação dos jovens e seu fiel compromisso à política estadista e ao maior ganho possível de dinheiro pareciam ter se consolidado enquanto ideário de vida moderna. Diante desse quadro, não era nenhuma novidade constatar que os estabelecimentos de ensino deveriam preparar apenas para esta nova realidade de trabalho, perscrutando às novas tecnologias a serviço da economia e do Estado. A solução para ultrapassar estas condições tão hostis dependia da prática constante da reflexão filosófica. Não a história da filosofia ensinada nas escolas e nas universidades, haja vista estarem contaminadas com o cientificismo e com a falta de sentido histórico propagados pelo felisteísmo da cultura. Na verdade, para Nietzsche, havia que se praticar uma filosofia capaz de representar a manifestação direta e rebuscada da natureza, que pretendesse tornar a existência inteligível e, dessa maneira, ela mesma fosse salvaguardada da cegueira e da insensatez nos homens superiores. Nada obstante, a exigência primordial da filosofia é a liberdade: estar livre das manipulações políticas, da Igreja e da economia. Ver-se livre dos valores dominantes, uma conjuntura que, segundo o filósofo, estivesse desprovida da interferência das instituições fadadas à educação moderna, uma liberdade que só poderia ser conquistada no enfrentamento contra o sustento à mediocridade e à pobreza de espírito.

Considerações finais

Ocupamo-nos em analisar o panorama do qual Nietzsche dispôs-se a tratar sobre os efeitos do Estado alemão na educação, na formação e na cultura. Conforme vimos, o filósofo fez duras críticas a esse Estado, naquilo que concerne a seu autoritarismo, à sua idolatria e suas diferentes formas de manipulação. Todavia, considerando as características de qualquer Estado moderno, sinceramente, parece difícil fugirmos da concepção weberiana desta instituição política que, orientada por um governo soberano, reivindica o monopólio do uso legítimo da força física em certo território (WEBER, 1970, p. 56). Afinal, é possível pensarmos numa instituição política de amplo e irrestrito domínio do seu território e de seus cidadãos e que, ao mesmo tempo, permitam-se expressões tão singulares a ponto de descaracterizar-se enquanto Estado? Diante desta improvável contradição, é certo inferirmos que Nietzsche é a favor da extinção do Estado moderno? Respondemos absolutamente. Em diversas passagens, jamais identificamos algum argumento a favor disso e, tampouco, qualquer ataque contra a expansão das escolas técnicas. Porém, a crítica nietzschiana tem como alvo a deficiência da formação, a partir do instante em que os ensinos ginasial e universitário passaram a ser vistos como profissionalizantes. Dessa maneira, não seria a perseguição implacável à política de ensino, bem como o aniquilamento do Estado, que resolveriam o problema da educação daquela época. Nietzsche buscou inspiração na polis grega por considerá-la em condições de realizar no homem o exercício pleno de suas funções, desenvolvendo concomitantemente as virtudes, atingindo a excelência (areté).

É bem certo que o jovem Nietzsche tece vários elogios ao modelo de Estado concebido no período clássico dos gregos. Se nas obras que foram tratadas neste artigo o filósofo não mediu esforços para desqualificar o Estado moderno por conta do seu autoritarismo e ingerência na condução da formação dos educandos, é bem certo que naquilo que compete ao estado grego, ele o enxergou como meio pelo qual a natureza se presta para originar a cultura em seu mais vigoroso aspecto. Os gregos, diferente dos modernos, entenderam a dinâmica desse processo. Foram eles, através do “instinto de direito popular”, que denunciaram a origem da vida social pelo uso da força e da sobreposição dos fortes aos fracos, portanto, algo jamais concebível pelo consentimento ou pela concordância mútua dos cidadãos, conforme defendido pela visão contratualista, provavelmente a mais aceita no mundo moderno.

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1Nietzsche, ao longo de suas diferentes obras, utiliza, em alguns momentos, a palavra “cultura” com a letra “K” e, em outras vezes, com “C”. A explicação para isso se deve ao fato de ter ocorrido a reforma ortográfica alemã bem no período dos seus primeiros escritos. Nesse sentido, optamos pelo uso maior de Kultur, haja vista o maior número de ocorrências, embora seja possível perceber também o uso de Cultur como forma de promover a ambivalência no tocante à superioridade de uma cultura forte ou decadente.

2Para entender a contribuição de Friedrich Schiller no pensamento do jovem Nietzsche, é recomendável o estudo de A educação estética do homem; enquanto que para entender Goethe, torna-se imprescindível a leitura do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Defendo que essas as obras integram a base de apoio da filosofia nietzschiana, principalmente no que tange o olhar crítico sobre a cultura moderna.

Recebido: 19 de Dezembro de 2020; Aceito: 01 de Dezembro de 2021

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