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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.74 Uberlândia maio/ago 2021  Epub 15-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n74a2021-63277 

Dossiê Colóquio Medieval

Lógica, formação escolar e filosofia entre os jesuítas

Logic, school education and philosophy among the Jesuits

Logica, educazione scolastica e filosofia tra i gesuiti

Fábio Baltazar Nascimento Júnior* 
lattes: 8482022086920207; http://orcid.org/0000-0002-6398-6394

*Doutorado em Filosofia pela Università del Salento. Professor efetivo da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: fabiobnj@hotmail.com


Resumo

O interesse mais direto deste artigo é a relação entre a Lógica e a formação filosófica na educação jesuíta. Para compor uma imagem da importância e da concreção da Lógica na formação proposta pelos inacianos, nós nos concentraremos na Ratio Studiorum e na obra do jesuíta português Pedro da Fonseca (1526-1599). A razão do recorte proposto é que as reflexões de Fonseca sobre o tema parecem, por um lado, orientar outros jesuítas, como é o caso de Sebastião do Couto, que é o autor da dialética do Curso Conimbricense; por outro, elas são mais completas, sobretudo pela atenção dada por Fonseca ao método e às disputationes. De posse do conceito de Lógica de Fonseca, concluímos com a indicação de caminhos contemporâneos de revisitação de lógicas do passado.

Palavras-chave: Lógica; Método; Educação; Jesuítas

Abstract

The most direct interest of this article is the relationship between Logic and philosophical formation in Jesuit education. In order to produce an image of the importance and concretion of Logic in the formation proposed by the Ignatians, we will focus on the Ratio Studiorum and on the work of the Portuguese Jesuit Pedro da Fonseca (1526-1599). The reason for the proposed approach is that Fonseca's reflections on the subject seem, on the one hand, to guide other Jesuits, such as Sebastião do Couto, who is the author of the dialectic of Curso Conimbricense; on the other hand, Fonseca’s conception of logic is more complete regarding the other Jesuits, especially due to the attention given by our author to the method and the disputationes. In possession of Fonseca's Logic concept, we conclude with an indication of contemporary paths for revisiting the logics of the past.

Key-words: Logic; Method; Education; Jesuits

Abstract

L’interesse più diretto di questo articolo è il rapporto tra Logica e la formazione filosofica nell’educazione dei gesuiti. Per produrre un’immagine dell’importanza e della concretezza della Logica nella formazione proposta dagli inaziani, ci concentreremo nella Ratio Studiorum e nell’opera del gesuita portoghese Pedro da Fonseca (1526-1599). Il motivo di questa scelta è che le riflessioni di Fonseca sull’argomento sembrano, da un lato, guidare gli altri gesuiti, come Sebastião do Couto, cioè, l’autore della dialettica del Curso Conimbricense; da l’altro, la concezione di logica di Fonseca è più completa riguardo ad’altri gesuiti, soprattutto per l’attenzione data dall’autore al metodo e alle disputationes. Possedendo il concetto di logica di Fonseca, concludiamo con l’indicazione di modi contemporanei di rivisitare le logiche del passato.

Parole chiave: Logica; Metodo; Educazione; Gesuiti

Introdução

A partir de um pequeno grupo formado em Paris em torno de Inácio de Loyola, nos anos 30 do século XVI, a Companhia de Jesus veio a tornar-se uma grande ordem de missionários católicos, cuja influência é sentida até hoje, inclusive no Brasil, iniciada pelas figuras de Manuel da Nóbrega e de José de Anchieta. A ideia de ampliar o domínio da Igreja Católica por meio de missões em terras distantes - e de culturas tão diversas quanto as do extremo oriente ou as dos indígenas brasileiros - foi uma razão importante pela qual os jesuítas transformaram-se em fundadores de colégios e educadores.

Com relação aos princípios que possam inspirar concepções educacionais, alguns traços distinguem a Societas Iesu de outras ordens relevantes, como os dominicanos e os franciscanos. Em primeiro lugar, os jesuítas são pós-humanistas, pelo que absorvem elementos da cultura clássica, o estudo do grego e do hebraico, o teatro e o balé. Além disso, são missionários obrigados a dialogar com as culturas dos locais habitados e, até certo ponto, fazer concessões. Não obstante, os inacianos formam uma ordem católica destinada combater o protestantismo, de modo que a ortodoxia estava, sem dúvida, presente no espírito jesuíta.

Esses elementos aparentemente difíceis de concertar - pagãos ou estritamente católicos - aparecem no documento orientador da educação jesuíta - a Ratio atque institutio studiorum Societas Iesu, cuja versão definitiva é de 1599. Por um lado, planeja-se o estudo do grego, do hebraico, de Cícero, Virgílio, Ovídio, Catulo, Tibulo, Propércio, Crisóstomo ou Esopo, todos mencionados na Ratio; por outro, encontram-se advertências para que o professor de teologia não se distancie com frequência das posições de Tomás de Aquino, com relação à Teologia, e para que seja estritamente aristotélico em matéria de Filosofia. Ademais, Averróis deveria ter imagem negativa, quando mencionado.

Meu interesse mais direto neste artigo é, porém, a relação entre a Lógica e a formação filosófica. Para compor uma imagem da importância e da concreção da Lógica na educação jesuíta, é preciso dirigir-se tanto para a mencionada Ratio quanto para os mestres da disciplina entre os inacianos, dos quais destacaríamos Pedro da Fonseca (1526-1599) e Francisco de Toledo (1515-1584), recomendados na Ratio e autores, respectivamente, das Instituições dialéticas em oito livros (1564) e da Introdução à dialética de Aristóteles (1561), bem como Antônio Rubio (1548-1615), autor da Logica mexicana (1603), e Sebastião do Couto (1567-1639), que escreveu os Comentários à dialética (1606) do Curso Conimbricense. Nós nos concentraremos, porém, apenas na Ratio e em Pedro da Fonseca, a fim de esboçar um quadro da Lógica no período. A razão do recorte proposto é que as reflexões de Fonseca sobre o tema parecem, por um lado, orientar outros jesuítas, como é o caso de Sebastião do Couto; por outro, elas são mais completas, sobretudo pela atenção dada por Fonseca ao método e às disputationes.

Lógica na Ratio Studiorum

Nesta seção, procurarei identificar, no corpo da Ratio, as várias orientações de algum modo ligadas à formação dialética.

Nas regras para todos os professores das faculdades superiores, podemos encontrar um plano mais geral para as disputationes: disputas semanais, aos sábados, por duas horas, a menos que fosse dia de festa; mensais - ou bimestrais, caso os alunos fossem poucos -, que seriam sessões mais longas. Os discentes discutiriam questões propostas pelos mestres. Os debates eram públicos e só os alunos mais preparados deveriam participar, de modo que os outros deveriam exercitar-se nas lições antes de assumirem o risco da exposição. O preparo era feito, claro, por meio das lições de lógica. Nas disputas, os mestres atuavam como juízes: observavam se a questão já teria sido resolvida, cuidavam para que o tema não fosse abandonado, ajudavam brevemente no caso de dificuldades, faziam correções etc1.

Há mais detalhes adiante, nas regras para os professores de filosofia. Disputas mensais são estendidas ao longo do dia (manhã e tarde), de modo que, em cada turno, uma primeira disputa teria duração de uma hora, enquanto outras duas teriam quinze minutos. Na sessão matinal, o debate era interdisciplinar; p.ex., lógicos contra metafísicos ou teólogos contra físicos. Na sessão vespertina, a disputatio seria entre conhecedores da mesma disciplina. Porém, essas disputas mensais eram previstas para discentes avançados. Não haveria disputas mensais entre os estudantes de Lógica, os primeiranistas, que deveriam apenas ouvir as lições e, em algumas semanas, talvez estivessem prontos para as disputas semanais, que aconteceriam aos sábados. Além das disputas mensais e semanais, menciona-se uma terceira classe, de disputas solenes, das quais até mesmo doutores poderiam participar. Estas últimas disputas aconteceriam três ou quatro vezes no ano.

Nas próprias regras para os professores de filosofia, encontramos o que seria de ensinar e o que de omitir no ensino da Lógica. A partir dos textos de Francisco de Toledo ou de Pedro da Fonseca:

  1. Nos prolegômenos, isto é, nas questões de proêmio e introdutórias, seriam discutidas apenas os problemas de saber se a Lógica seria ciência ou não, qual o seu objeto, e algo das segundas intenções (basicamente, o estudo de conceitos de intentio secunda, como gênero e espécie), de modo que discussões como o problema dos universais deveriam ser deixadas para a Metafísica;

  2. Que se ensinassem as coisas mais fáceis das Categorias; também deveria ser dada atenção especial à analogia e à relação segundo a Lógica, já que esses conceitos básicos aparecem em questões metafísicas mais complicadas, como a do debate entre analogia entis e univocatio entis;

  3. Sobre o tratado Da Interpretação, que se falasse um pouco do conceito de verdade; a questão dos futuros contingentes poderia ser mencionada, mas seriam deixados de lado problemas como o do livre-arbítrio;

  4. Como introdução geral à ciência, sobretudo à Física, a Ratio propõe que se exponha preferencialmente as divisões das ciências, as subalternações etc, sobretudo a partir do livro II da Física; sobre a definição, o que se encontra no livro II do De anima. Não há menção aos Analíticos em toda a Ratio;

  5. Dos Tópicos e das Refutações sofísticas, dever-se-ia falar em resumo.

Para os autores da Ratio, os mestres deveriam ter cuidado para que nada envergonhasse mais um aluno que cometer um erro lógico, uma falta formal em seu raciocínio. O ensino das leis da disputatio, bem como das funções determinadas (respondedor e argumentador), deveria ser severo. Aliás, o estudo da Lógica sustenta o estudo do restante da Filosofia, como podemos depreender das recomendações acima (embora não só nelas): os conceitos de intentio secunda como porta de entrada para o problema dos universais; observações semânticas como equivocatio - portanto, analogia - e univocatio para discussões metafísicas como a do significado do ens; os futuros contingentes e suas implicações para o livre-arbítrio e para o problema da onisciência divina etc.

Conceito geral de Lógica entre os jesuítas

Entre os lógicos jesuítas mencionados - Toledo, Rubio, Do Couto e Fonseca -, o único que, de fato, dedica-se com mais detalhes ao método - seja de prova, seja de disputa - é Pedro da Fonseca, em suas Instituições dialéticas. Há algo sobre a tópica nas lógicas de Toledo ou de Rubio; quase nada sobre o assunto nos Comentários de Do Couto. Embora vários escrevam sobre Lógica à época, seja na forma de suma ou na forma de comentários e questões ao Organon, poucos demonstram ter um conceito capaz de integrar os vários temas da disciplina como Pedro da Fonseca. A ideia de argumentação envolve, para Fonseca, várias práticas e temas, entre as quais as suas considerações de método. Vejamos um esquema que, esperamos, dê-nos uma noção geral da Lógica para Fonseca.

A primeira questão importante talvez seja a de circunscrever o assunto da disciplina, isto é, seu subjectum: são os modos de dissertar (modi disserendi). Disserere remonta, para Fonseca, a dialéghestai, mas não significa algo tão restrito quanto debater e nem algo tão amplo quanto dizer. Disserere tem sentido técnico, “incomum, mas filosófico”, de tornar patente o conhecido por meio do que não era conhecido. O centro a partir do qual tudo na Lógica orbita é a ideia de disserere, que se diversifica nos três modos de dissertar: divisão, definição e argumentação.

Divisão

Na divisio, o que temos é uma mereologia2 medieval, ancorada nas intuições de todo-parte segundo a metafísica de Aristóteles. Não se trata, portanto, apenas da diérese platônica3, embora o eidos apareça como uma totalidade possível e, logo, a diérese também tenha seu lugar nessa seção da Lógica. Não há qualquer problema que o método da diérese de Platão apareça em uma Lógica de inspiração aristotélica se suspendermos a questão de saber o estatuto ontológico dos universais. De qualquer modo, a intuição fundamental que dá início ao desenvolvimento de divisões destinadas a eliminar a confusão do ente é metafísica: o todo extenso, o todo universal e o todo essencial, que pode ser dividido fisicamente (enquanto ens reale) ou metafisicamente (como ens rationis)4.

Com relação ao todo extenso, embora a partição correspondente toque à quantitas, a res extensa considerada é semi-geométrica: a) o todo considerado é um ente integrado; b) as partes podem ser heterogêneas, isto é, ontologicamente descontínuas, como as partes do corpo humano, ou homogêneas, contínuas, como as partes da água. Além disso, é possível pensar em partições de extensões impróprias, como ocorreria no caso da alma, que seria, nos termos de Tomás, um todo potestativo5, que tem certa extensão de poder no interior da mesma essência, isto é, a mesma alma pode, por exemplo, querer ou entender6. Obviamente, essa extensio quaedam aplicável às potências da alma já não tem mais ponto de contato com qualquer extensão geométrica.

Uma aplicação interessante das consequências dessa primeira observação mereológica sobre o todo extenso ocorre no De sphaera, de João de Sacrobosco, que convém lembrar, sobretudo porque vivemos um tempo de ascensão do chamado terraplanismo. O De sphaera mundi - também conhecido como Tratado da esfera - foi escrito em 1230 e era uma introdução ao Almagesto, de Ptolomeu. Foi muito utilizado nas escolas pelo menos até o século XVII. Aliás, o próprio Fonseca recomendava o uso do Tratado para escrever a parte de astronomia do Curso Conimbricense, quando ele enviou a Jerônimo Nadal, em 1562, o plano para a concepção do Curso, que não veio a se concretizar nas mãos do grupo de Fonseca. Em todo caso, no primeiro capítulo do Tratado, Sacrobosco propõe um experimento para mostrar a curvatura da água, mas também argumenta por meio da continuidade ontológica entre todo e parte, isto é, pela natureza homogênea das partes da água: uma vez que as gotas observáveis assumem a forma curva, o todo da água que circunda a Terra e forma os oceanos seria, também ele, abaulado.

Ao todo universal correspondem as partes sujeitas, isto é, os indivíduos e as espécies de menor universalidade funcionam como sujeitos para o gênero a ser dividido7. A diérese platônica tem lugar nesse tipo de divisão, de modo que todas as demais parecem depender muito mais das observações até certo ponto truncadas encontradas no Δ26-27 da Metafísica, de passagens dos Analíticos, do De divisione de Boécio ou mesmo de observações da Summa de Tomás. A matriz aristotélica fica ainda mais clara quando olhamos para a divisão do todo essencial: a) a divisão física do ente real, como a do composto de matéria e forma, isto é, a divisão de um homem enquanto corpo e alma; b) a divisão metafísica do ente de razão, que reconhece as partes da definição (gênero e diferença específica), ou seja, a divisão de homem em animal e racional.

Se retomarmos o tema central da Lógica - isto é, tornar patente o que não era conhecido a partir do que é conhecido (disserere) - fica claro por que motivo as várias possibilidades de divisões são temas de Lógica: embora sempre estejamos diante de um todo conhecido, cada totalidade admite divisões diversas e, portanto, a possibilidade de erros no procedimento discursivo (logo, próprio da ratio) de explicitar ou de reunir as partes. Essa articulação mais geral entre todo e parte permite que alguns princípios mereológicos sejam elencados, de modo a orientar o procedimento de divisão. Não é o momento de listar esses preceitos aqui. De todo modo, pela divisio fica explícita uma relação clara entre metafísica e lógica8, que é a de subalternação parcial. A Metafísica não é uma ciência generalíssima, à qual todas as outras estão subordinadas; no caso da Lógica, em específico, há uma subalternação parcial, na medida em que certos pontos de partida de procedimentos lógicos são metafísicos, embora a Lógica também tenha assuntos próprios e independentes da Metafísica, como as formas silogísticas ou as regras das disputationes.

Definição

Outro modus disserendi é a definição. O termo ‘definição’ engloba também o próprio (idíon) ou a causa, que são chamados, preferencialmente, de descrições. Por exemplo, o animal que ri como próprio para o homem ou animal de carne e osso como explicitação da causa material. Em sentido próprio, porém, a definitio é um discurso sobre a essência, sobre o quid. É o discurso que delimita o conceito, o limite, é a finitio, para usar um termo de Quintiliano. Como Fonseca concebe dois tipos essenciais, aqueles correspondentes à divisão física e à divisão metafísica, também as definições essenciais admitirão dois tipos. Não se trata de falar em essências distintas da mesma coisa, o que seria contraditório, mas de dois modos de pensar uma só essência, seja com intenção para o ens reale (física), seja para o ens rationis (metafísica). Em outros termos, definições, mesmo entendidas como próprio ou como causa, articulam um conceito de extensão ampla (genus) e outros menos extensos (differentia), mas a monotonia dessa consideração mais abstrata é apenas aparente. Por exemplo, podemos dizer que homem é animal de corpo ereto e de alma intelectiva (definição que remete à divisão física) ou que é animal racional (definição relacionada à divisão metafísica) para declararmos a essência do mesmo ente, mas, embora ambas sejam, em última análise, definições por gênero e diferença, o modo de apresentar as diferenças evidentemente altera o entendimento do conceito.

Argumentação

O terceiro modo de dissertar é a argumentação. A primeira observação a ser feita é que a argumentatio é um complexo do qual a silogística é apenas um elemento. Argumentação é, em linhas gerais, o ato de apresentar razões (argumenta) capazes de resolver um problema (quaestio). Portanto, a argumentatio envolverá: a) a busca pelas razões (estudo dos loci); b) a organização dessas razões de modo conclusivo (dedução, silogística, analytica); c) a ordem ou a disposição dessas razões segundo as exigências da prova ou da disputa (táxis, ordo, collocatio, methodus).

O interior da argumentação é, portanto, dividido entre inventio (heurésis), isto é, a descoberta dos argumenta capazes de conectar o sujeito e o predicado da conclusão de modo a responder à questão proposta, e iudicium (krísis), a estruturação do raciocínio e a maneira de expô-lo. Isso nos leva a duas outras observações que julgamos importantes, uma conceitual e outra histórica: a) inventio e iudicium não repartem a Lógica de Fonseca inteira, mas apenas a argumentatio; b) inventio e iudicium não são introduções humanistas, próprias de lógicas de colorações retóricas9, mas já orientavam a organização do catálogo das obras de Aristóteles feito por Diógenes Laércio10, estavam na compreensão de Tomás de Aquino sobre a Lógica11 e nem mesmo Pierre de La Ramée dizia, na diatribe cheia de adjetivos dasAristotelicae animadversiones, que essas divisões estivessem ausentes no Organon, mas que eram apresentadas ali de modo confuso12.

Em que sentido, portanto, a argumentatio é um modo de tornar patente o que era desconhecido a partir do conhecido, ou seja, de disserere? No sentido de que é um esforço complexo de tornar patente, por meio de razões, isto é, da parte conhecida, a solução de uma quaestio, que é a expressão do desconhecido. O problema de saber se a conclusão de um silogismo é realmente desconhecida ou não diante da apresentação das premissas erra completamente o alvo. A silogística é, no contexto da argumentatio, o estudo de como organizar os argumenta para que eles possam embasar a solução da quaestio (que é a conclusão). Que a conclusão era anteriormente desconhecida fica evidente pela formulação da quaestio, não pela analiticidade ou mesmo por alguma sensação de obviedade da conclusão, uma vez conhecidas as premissas.

Vemos o quanto essa breve apresentação dos elementos da Lógica ensinada nas Instituições dialéticas distancia-nos da ideia de uma lógica formal estrita. Por outro lado, aproxima-nos de uma noção específica de razão, de inteligência, de modo que a Lógica forneça ferramentas para dirigi-la. O que é tornar-se inteligente no final do século XVI e início do XVII? Por que modernos como Bacon ou Descartes pensaram ser necessário um novo organon ou novas regras para a direção da inteligência na busca da verdade?

É na educação lógica que devemos buscar respostas para essas questões, já que não se trata apenas de ensino da silogística e muito menos de formalismos, mas de instrumentos para incrementar a inteligência natural, também chamada à época de logica naturalis. Pensar em que sentido a inteligência natural será orientada - ou seja, que possa atuar de modo facilitado, correto, breve e ordenado (facile, et absque errore, itemque breviter, et ordinate, nos termos de Fonseca) - sem que as potencialidades da ratio sejam sufocadas é o problema fundamental para o papel da Lógica na formação de um filósofo.

Para um jesuíta como Fonseca, talvez possamos sintetizar os vários caminhos de directio ingenii fornecidos pela Lógica. In abstracto, podemos dividir esses caminhos ao partirmos do centro da Lógica - os próprios modos de dissertar - ou da periferia - ou seja, os temas que orbitam esses modi, seja como elementos para possibilitá-los, seja para auxiliá-los. In concreto, indiquemos alguns desses caminhos, mesmo que não exaustivamente, mas pelo menos o bastante para que a ideia de orientação e aumento da inteligência ganhe mais corpo:

Do centro: a) escapar de qualquer confusio entis por meio do método da divisão, isto é, habilitar-se para as distinções capazes de esclarecer os conceitos; b) calibrar a percepção das essências pela definição; c) organizar a própria erudição pelo estudo dos lugares comuns (os loci); d) articular o próprio pensamento de modo consequente pelo estudo das consequências e da silogística; e) expressar-se de modo claro, a partir das várias ordens possíveis (síntese, análise, in docendo, in disputando); f) exercitar a argúcia e a honestidade intelectual ao respeitar as regras das disputas;

Da periferia: g) construir proposições e operar com as oposições e conversões; h) reconhecer as falácias mais comuns (Refutações sofísticas); i) estar atento às denotações dos termos utilizados (suppositio terminorum).

Diante dessa ideia geral, talvez fiquem mais evidentes as razões das propostas de reforma do intelecto por Bacon ou Descartes, das quais não trataremos em específico aqui: a formação de um lógico dos séculos XVI e início do XVII nas escolas jesuítas - ou mesmo da escolástica, por meio de sumas como a de Pedro Hispano - orientava os intelectos em direção a uma ampla metodologia que envolvia análise conceitual, erudição e disputas honestas, que, embora não servisse para a ciência moderna, não estava tão distante de princípios formativos que, até hoje, dirigem formações em humanidades e, pelo menos em parte, continuam desejáveis. Em todo caso, ao listar esses caminhos de incremento da inteligência, fica mais claro que entender reformadores modernos da Lógica como críticos da silogística tradicional é infrutífero. Em geral, entender os modernos como “anti-silogísticos” parte do preconceito de que Lógica tradicional resume-se ao estudo da silogística, em suma, à Lógica formal, o que é, na verdade, sem sentido para um lógico do século XVI. Os estudos da história da Lógica formal são circunscritos pelos desenvolvimentos que a disciplina conheceu depois de Frege. Estudar histórias da Lógica formal como as de Bochenski, dos Kneale ou de Blanché com o objetivo de entender o conceito de Lógica em outros tempos é um erro que já se anuncia na partida: Lógica formal é uma disciplina fundamentalmente contemporânea, no sentido de que estudos formais feitos por lógicos escolásticos, humanistas ou jesuítas são, invariavelmente, partes auxiliares de uma concepção metodologista da Lógica. E isto não vale apenas para autores da modernidade ou da sua antecâmara, mas também para o Organon. A extração de elementos formalistas de obras do passado é, ainda que possível, a depender do interesse teórico, uma mutilação, não apenas como se a pureza da Lógica fosse explicitada e destacada da Metafísica ou, em geral, da Filosofia, mas uma mutilação da própria noção de Lógica de outrora, cindida a partir de um abandono do seu papel de ars ad emendanda propria rationis vitia para restringi-la ao estudo das formas argumentativas.

A natureza das disputas

Considerando a importância formativa das disputas no ambiente escolar, talvez convenha fornecer algumas observações sobre o tema.

No final do livro VII das Instituições dialéticas, logo após o término da apresentação dos loci e, portanto, da inventio dos argumentos, Fonseca passa às observações acerca da ordem destes argumentos, com o objetivo de organizá-los do melhor modo tendo em vista a persuasão.

A primeira observação a ser feita é que, ao falar de ‘argumento’ no interior da dispositio, Fonseca expande o alcance semântico do termo de modo a englobar não só o termo médio ou ratio de uma argumentação, mas também a definitio e a divisio13. Em outras palavras, a dispositio - ou collocatio, ou methodus - aplica-se a todos os modi disserendi, não apenas à argumentatio.

Há, basicamente, três ordens dos argumentos (ordines argumentorum): da natureza, da doutrina e do tempo. Convém explicitar que a ordem que interessa é, no caso, a ordem discursiva, a ordem dos argumentos e os princípios que podem orientar a organização desses argumentos (natura, doctrina, tempus), não exatamente a busca pelo sentido fundamental de anterior e posterior (πρότερος e ὕστερος), como encontramos, por exemplo, no capítulo 11 do livro Δ da Metafísica, de Aristóteles.

Após a exclusão da ordem do tempo, pois a narração dos acontecimentos não estabelece nenhuma relação lógica entre eles (p.ex.; ‘os soldados avançaram e, então, o Sol se pôs’), e da ordem da doutrina, porque o fácil ou o difícil são, nesse caso, dados em função das pessoas a ensinar, não das coisas, ficamos apenas com a ordem natural dos argumentos, que é de interesse para a prova e a disputa.

Cabe, no caso, uma observação: a exclusão da ordem da doutrina, ligada à pedagogia, não implica abandono de certo entrelaçamento entre ordens de prova ou de disputa e as exigências pedagógicas explicitadas na Ratio. Além de sua importância do ponto de vista pedagógico, contudo, essas ordens têm, também, um papel organizador e diretivo da atividade intelectual, como veremos. Evidentemente, a forma mentis produzida é parte considerável da formação pretendida.

A ordo naturae divide-se em ordem de geração e ordem de perfeição - ou de intenção. A ordo naturae respeita uma relação de anterioridade e posterioridade do ponto de vista, fundamentalmente, do aperfeiçoamento. A ordem dos argumentos relativa à natureza é, por isso, dupla: pode caminhar tanto do menos perfeito para o mais perfeito ou da causa para o efeito (ordo generationis sive executionis) quanto do mais perfeito para o menos perfeito ou do efeito para a causa (ordo perfectionis sive intentionis)14.

A ordem da geração subdivide-se em duas novas ordens, aplicáveis a domínios bem determinados: a ordem da síntese e a ordem da divisão - ou da diérese15.

A ordem da síntese é, em geral, aquela que começa pelas partes integrantes e compõem o todo e, neste sentido, ela parte das causas para os efeitos. Outro nome para essa ordem da síntese é ordem da composição: seja na descrição do processo de formação de um objeto como uma casa, seja na composição de uma argumentação, a ordem de composição procede dos elementos (alicerces, teto, axiomas) e compõem, a partir deles, o todo (uma casa, um teorema).

À primeira vista, parece estranho que o outro modo de progredir das causas para os efeitos seja chamado de ordem de divisão, já que a ordem da síntese parece proceder do modo inverso, isto é, das partes para o todo, enquanto as divisiones, como vimos, procedem do todo para a parte. O termo ‘divisão’ refere-se, no caso, exclusivamente ao modo de divisão considerado “principal”, que seria a diérese platônica, de proceder dos universais (causas) até os particulares (efeitos). Neste sentido, uma vez que o universal atua como causa ou explicação dos particulares, o princípio comum que dirige a ordem da síntese e a ordem da diérese fica evidente: tanto uma quanto a outra procedem no mesmo sentido, isto é, das causas para os efeitos. O que está em jogo aqui é, como dissemos, uma ordem discursiva, que, no caso da ordem de geração, parte do fundante para o fundado. Tanto a ordem da síntese (da parte integrante para o todo) quanto a ordem da divisão (do universal para o particular) caminham da causa para o efeito.

Evidentemente, o discurso pode proceder de modo inverso - do fundado ao fundante, do efeito à causa, do mais perfeito ao menos perfeito -, isto é, segundo a chamada ordem de perfeição ou de intenção, que por sua vez subdivide-se, também, em duas, a ordem da análise e a ordem da coleção16.

A ordem da análise é, aqui, a ordem da resolutio, isto é, o processo de desfazer o que aparece feito ou composto, portanto, é o inverso da compositio, já que a ordem da análise procede do todo para as partes que o integram. Nesse sentido, a ordem analítica é uma ordem que procede, por exemplo, de uma conclusão para identificar as premissas que a embasam, logo, do efeito para a causa. Também do efeito para a causa é a ordem da synagogé, ou ordem da coleção, que procede dos particulares para ascender aos universais.

No capítulo seguinte, isto é, no capítulo 40 do livro VII das Instituições dialéticas, Fonseca divide as ordens de argumentação a partir da finalidade, diferentemente do que havia feito no capítulo 39, em que se dividia as ordens de argumentação a partir da natureza de cada uma delas. Em outras palavras, a ordem da argumentação pode ser usada in docendo ou in disputando. A ordem in docendo é novamente dividida em ordem de confirmar e ordem de refutar, de modo que temos três finalidades a partir das quais dispomos os argumentos: confirmar, refutar e disputar.

Fonseca faz algumas observações sobre ordens de prova, como a importância de seguir mais ou menos a mesma ordem dos loci apresentados (isto é, começar pelas definições, descrições, passar pelas causas, mostrar os efeitos etc), bem como faz considerações sobre a ordem de apresentação de uma coisa (que ela existe, o que ela é, quais suas qualidades e por que ela é como é). Quando se trata de coisas que podem ser dispostas da causa para o efeito, do menos perfeito para o mais perfeito, ou seja, coisas mais universais, totalidades, particulares ou partes, o autor observa duas vias no interior da prova: a via da audição e a via da invenção.

É importante fazer algumas observações sobre essas duas vias. Se a finalidade do discurso for aprender, ouvir uma lição, é preferível a via auscultationis, e Fonseca recomenda a ordem da geração, que respeita a ordem real da natureza, isto é, a ordem da síntese e a ordem da divisão. Assim, é mais adequado partir das causas, dos princípios, e mostrar o que se pode inferir deles, de modo que as conclusões se revelem aos poucos.

Por outro lado, há também uma inventio no interior da ordo argumentorum, adequada àqueles que querem “filosofar sem professor”17. Entre os exemplos de procedimento de inventio desse tipo, Fonseca fornece o caso dos Analíticos primeiros, em que Aristóteles desdobra o silogismo em proposições e estas em termos (ordo resolutionis), ou o procedimento socrático de indução (ordo collectionis). Essa oposição entre uma via auscultationis e uma via inventionis a partir das ordens de síntese e de análise difere pouco do que se encontrará mais tarde, por exemplo, na Logique de Arnauld e Nicole. A ênfase dada por Fonseca aos sentidos, como se aquele que quisesse “filosofar sem mestre” não tivesse outro caminho senão aquele descrito no início da Metafísica de Aristóteles, parece ser um ponto de distanciamento entre Fonseca e os lógicos de Port-Royal, mas é evidente que aquilo que Fonseca chama de methodus (ordo, collocatio) e todos os seus desdobramentos em várias ordens é algo bem mais elaborado e claro do que se pode encontrar na Dialectique de Pierre de La Ramée. Em todo caso, a ideia de prova envolve tanto a demonstração quanto a pesquisa: síntese (ou coleção) e análise (ou resolução), respectivamente.

Passemos à ordem da refutação. Esta ordem não se refere à refutação que ocorre na ordem da disputa, mas é interna à ordem in docendo que, como dissemos, divide-se em ordem de ensinar (provar) e ordem de refutação. Fonseca argumenta que ela admite três tipos: a) uma refutação confirmatória, que parte da verdade estabelecida pelo próprio refutador e, então, confronta as contraditórias à verdade; b) uma refutação heurística, que parte das opiniões alheias, rejeita as más, estabelece as melhores e expõe o próprio parecer; c) uma refutação exaustiva, que, por ser mais complexa, descreveremos abaixo.

A refutação pelo terceiro modo expõe, em primeiro lugar, as opiniões favoráveis a cada uma das partes opostas do problema (quaestio). Em seguida, apresenta as razões contrárias, mais especificamente, as razões contrárias à parte que parece ser mais plausível. Este passo torna a questão ambígua, conduz a um estado de aporia a ser remediado. O passo final é o da refutação de cada uma das razões contrárias à verdade, que foram expostas anteriormente.

Evidentemente, é esta terceira via de refutação a preferida dos mestres escolásticos. Convém lembrar que essa ordem da refutação não é, todavia, uma disputa, mas uma maneira de expor, um modo de prova. A refutação aparece numa organização destinada à prova, tem a finalidade de evidenciar a verdade, sobretudo porque as teses que possam contradizer a verdade são refutadas diante do ouvinte ou do leitor.

Essas ordens de prova mostram como é possível dirigir a razão de modo linear, dos axiomas aos teoremas, ou de modo que a refutação de teses opostas e objeções possíveis tornem a conclusão desejada ainda mais evidente.

A ordem de disputar (ordo disputandi) é, por outro lado, exposta nos capítulos 42 e 43, que são destinados essencialmente às tarefas do argumentador e do respondedor, já que a ordem de disputar refere-se fundamentalmente aos debates.

Quanto ao ofício do argumentador, Fonseca expõe nove recomendações, que são, por um lado, estratégicas e facilitadoras da tarefa de refutar, que é própria do argumentador, mas também visam, por outro lado, a promoção de um debate honesto e claro. Não exporemos todas as recomendações aqui, mas podemos agrupá-las a partir de quatro princípios: clareza do debate, estratégia para o debate, honestidade intelectual e economia.

Em busca de clareza, recomenda-se: a) que a proposição a ser defendida pelo respondedor e combatida pelo argumentador seja explicitada; b) que o argumentador solucione ambiguidades e obscuridades que possam figurar nas premissas; c) uso de modelos orais (provo a consequência, nego a menor, assim insisto, suponhamos isto ou aquilo etc).

Como estratégia, há a explicitação de duas vias de refutação: a) a via direta, em que é produzida uma argumentação que resulta na contraditória da tese combatida; b) a via hipotética, em que a tese combatida é assumida como hipótese e, então, extrai-se um “incômodo” (deductio ad incommodum) a partir dela, como uma proposição implausível, falsa ou mesmo uma contradição (redução ao absurdo). Além disso, há observações como a de que o argumentador tenha cuidado de não fazer perguntas cuja relação com a tese a ser refutada seja logicamente muito próxima, para que não se torne óbvio para o respondedor o que ele precisaria rejeitar a fim de não ser refutado.

Com relação à honestidade, destacam-se os motivos de disputar (evidenciar a verdade, exercitar a inteligência, não apenas por espírito de erística), as razões justas de rejeitar uma tese (por exemplo, a necessidade de apresentar um contraexemplo caso o respondedor queira recusar uma premissa universal induzida), a “teimosia e insolência” (pervicacia et insolentia) de negar princípios mais evidentes como o de não-contradição, que o argumentador não reponha premissas já rejeitadas antes etc.

Acrescente-se, por fim, certas recomendações de caráter econômico, isto é, uma divisão de tarefas de modo que a disputa possa fluir de modo mais despachado. Por exemplo, Fonseca diz que, salvo nos casos em que a negação parece absurda, não cabe ao respondedor fornecer as razões a partir das quais decide negar ou conceder uma premissa. Outro exemplo: o autor diz que o respondedor deve avaliar a validade da argumentação antes de procurar saber se cada uma das premissas é verdadeira ou falsa (no caso em que o argumentador não tenha pedido o assentimento do respondedor em cada premissa, isto é, o argumentador não fez perguntas).

Em suma, se considerarmos a ordem da disputa em sua totalidade, veremos que ela visa não apenas a boa disposição dos argumentos, mas estratégias e condições de promoção da (ou resistência à) refutação, a abreviação das disputas, a honestidade do debate e a clareza dos discursos dos debatedores.

Em que consiste, então, o conceito de iudicium, se considerarmos tudo o que ele engloba e todas essas possibilidades de ordenamento?

Em primeiro lugar, a própria analítica, no sentido de ramo da Lógica dedicado ao estabelecimento e avaliação das formas das argumentações em geral, é parte do iudicium, já que a inventio é dedicada, essencialmente, aos argumenta, não à disposição destes numa forma válida ou adequada à prova ou à disputa. Assim, a própria silogística, em todos os seus detalhes, isto é, os silogismos categóricos e os hipotéticos, além da indução, do entimema, do exemplo, em suma, toda a teoria exposta no livro VI das Institutionum é parte do iudicium.

Também é parte do iudicium a ordo - ou dispositio, ou collocatio, ou methodus -, que por vezes é tratada como um elemento da pedagogia ou da retórica, mas, a julgar pelo que expusemos acima sobre a teoria em Fonseca, é difícil negar que ela compreenda, também, elementos metodológicos.

Essa ordo argumentorum divide-se, primeiramente, em ordem da natureza ou da doutrina, mas, como vimos, só a ordem da natureza interessa a um dialético como Fonseca. Essa ordem da natureza compreende, na verdade, dois tipos essenciais de ordem discursiva: a) a ordem em que o expositor começa pelos fundamentos e culmina nas conclusões; b) a ordem em que o discurso começa pelas conclusões e, então, revela seus fundamentos. A primeira é de dois tipos, a ordem de síntese ou de divisão. A segunda também compreende dois tipos, a ordem da análise e a ordem da coleção. Fonseca observa que a ordem sintética é preferencial para a exposição de uma doutrina, mas que a ordem analítica é adequada para a invenção, para a filosofia sem mestre, isto é, para a construção da ciência. Evidentemente, o autor imagina um processo de construção do saber a partir dos sentidos, como aquele descrito no início da Metafísica. Isto não muda, porém, o fato de que Fonseca concebe a possibilidade de produzir ciência no interior de uma doutrina do methodus, ou seja, não se trata apenas de expor, de provar o que já se sabe, de organizar os argumentos para ensinar.

Essa ordo argumentorum naturae tem, ainda, duas finalidades, a partir das quais ela se subdivide em ordem in docendo e ordem in disputando. A ordem in docendo compreende o ensino direto de uma doutrina e, também, a exposição de modo a refutar teses contrárias, que é a ordem de exposição usada em textos como a Summa Theologiae ou mesmo os Commentariorum de Fonseca. Esta ordem da refutação não se confunde, como dissemos, com a ordem da disputa, que compreende todas as instituições para o argumentador e o respondedor, que ordenam as disputationes de modo a diferenciá-las de meras contendas erísticas ou sofísticas, a partir de parâmetros como a honestidade intelectual e a clareza discursiva.

Conclusão

Que essa noção de inteligência - de intellectus nostri, de ratio ou, no caso da Lógica, de arte para emendar os vícios da razão - soe antiquada é obra de, primeiramente, certa crença no sucesso de métodos ligados à ciência moderna; posteriormente, da descrença em qualquer conjunto bem delimitado de preceitos e regras que possam identificar o que gostaríamos de chamar de método científico. Se os métodos da ciência moderna impuseram-se contra a metodologia escolástico-jesuíta, ainda podemos nos perguntar se não há, na verdade, certa complementaridade entre direções diversas - e de finalidades diversas - para a inteligência natural. Se, por outro lado, todos os métodos falham, são limitados etc, queremos saber ainda qual é a medida usada para decretar a falha, o limite, e se essa medida pode ser a pedra de toque da concepção de métodos melhores, mais abrangentes, capazes de abordar cada questão da maneira mais inteligente possível.

A oposição entre a inteligência natural e a inteligência dirigida tem várias ocorrências na filosofia. De um modo geral, a inteligência natural é pensada como um diamante bruto, uma potência indomada, que pode levar a bons ou maus resultados (Tales, Hipócrates e outros pensadores pré-dialéticos são exemplos de engenhosidade, mas seus vícios aqui e acolá denunciariam a necessidade de ordem). Caberia à dialética cuidar para que a inteligência natural fosse direcionada sem que perdesse sua potência, sem que fosse degradada em uma imagem reduzida de si mesma, num receituário limitante, numa série de preceitos mal aplicados ou confusos, cujo efeito fosse, em vez de ajudar o intelecto, o seu embotamento. Para usarmos uma metáfora de La Ramée, a Lógica deve ter cuidado para que não se torne uma má pintora, uma arte que nos entregue uma cópia mal feita do intelecto natural.

Essa ideia de directio ingenii parece, todavia, cada vez mais aberta. De um lado, o lado estritamente metodológico, a ideia de método científico parece resistir à unificação em termos de regras simples e universais - observe-se, por exemplo, a discussão entre metodologistas como Popper e Lakatos e “céticos” do método como Kuhn e Feyerabend. Nenhum deles negaria, porém, a existência de maneiras melhores ou piores de resolver problemas (é claro, por exemplo, que o plano inclinado de Galileu é melhor para embasar a discussão da questão da aceleração de corpos em queda do que o simples abandono de objetos do alto do campanário de Pisa, segundo conta a anedota desacreditada). Por outro lado, as várias lógicas não-clássicas parecem oferecer padrões dedutivos diversos e dependentes de contextos de aplicação, de acordo com exigências relacionadas ao objeto de estudo (p.ex., lógicas temporais) ou a padrões de prova diferentes (p.ex., intuicionismo, lógica de relevância).

Essa abertura da ideia de directio ingenii à quase indefinição, em vez de diminuir a vitalidade da Lógica, repõe a cada atividade da inteligência natural a questão do método adequado ao assunto, aos problemas a resolver ou a esmiuçar, portanto, traz a Lógica para o centro da atividade intelectual que pretenda guiar-se por alguma ordem que não seja a mera sucessão temporal de pensamentos desconexos. Seja na filosofia, seja nas ciências, o problema da concepção de uma Lógica em sua relação ampla com a noção de intelecto continua a ser o problema mais fundamental a ser enfrentado. E essas circunstâncias transferem as lógicas do passado da condição de “ultrapassadas” para eventualmente frutíferas, dada a situação de pluralismo metodológico.

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2Embora o termo ‘mereologia’ tenha sido cunhado apenas em 1927, pelo matemático e filósofo polonês Stanisław Leśniewski (1886-1939), é ponto pacífico entre estudiosos do tema que a disciplina remonta à antiguidade, com a diérese de Platão, a Metafísica (p.ex., Δ26-27) e De partibus animalium, de Aristóteles ou o De Divisione de Boécio. Seja em textos de Metafísica ou em textos de Lógica como aqueles dedicados à divisão, o tema da relação todo-parte está sempre presente, de modo que o uso do termo ‘mereologia’ não é problemático. Sobre o assunto entre os medievais, cf. PAUL HENRY, D., 1991.

3Sofista, 219a; Fedro, 265d-266b.

4“Porro divisio totius essentialis, duplex est altera realis, sive physica, altera rationis, sive metaphysica. Divisio physica totius essentialis est qua totum essentiale dividitur in materiam et formam. Materia (ut pingui Minerva rem exponamus) est subjectum formae substantialis. Forma vero est perfectio materiae. Hoc modo corpus dicitur materia himinis, et animus forma: Unde fit ur divisio, qua dicimus, hominis alteram partem esse animum, alteram corpus sit divisio physica.” (Institutionum, l.4, c.4, p. 256) E mais adiante: “Divisio metaphysica totius essentialis est ea, quae totum esentiale dividitur in genus et differentiam cuismodi est oratio, qua dicimus, Hominis alteram partem essentialem esse animal, alteram rationale. Dicitur autem haec divisio rationis, et metaphysica, quia non fit in partes re diversas, sed ratione sola” (Idem, c.5, p. 258).

5Na Suma de Teologia, Aquino discute a questão de saber se a essência da alma é sua potência e, ao negar que seja, o autor distingue entre todo universal, todo integral e todo potestativo. No todo universal (por exemplo, o universal cavalo), a essência e as potências próprias do todo são distribuídas em cada cavalo singular. No todo integral, nem a essência e nem as potências do todo estão nas partes, já que a mão de um homem não é um homem e não tem todas as potências de um homem. Há, porém, um todo intermediário a esses dois, o todo potestativo, em que a essência do todo está nas partes, mas não as potências. Este seria o caso da alma, que quando quer, ainda é, essencialmente, a alma, mas não tem, no querer como tal, todas as outras potências, como a de entender. Cf. Summa, I, q.77, a.1, ad.1.

6“[...] quia ut res extensa constat suis partibus integrantibus quo ad totam extensionem, sic res, quae multa potest constat suis viribus, potentiisve quoad totam potestatem [quae extensio quaedam rei merito censeri potest].” (Institutionum, l. 4, c. 3, p. 254)

7“Divisio totius universalis in partes subiectas, seu de quibus dicitur ut de subiectis, complectitur, ut placet Aristoteli, divisionem generis in species, speciei in individua, et differentiae in species, aut individua”. (Idem, c. 6, p. 260)

8Como exemplo, podemos observar que uma opinião paradigmática na literatura sobre mereologia é a que podemos encontrar em Lewis, D. Parts Of Classes. Blackwell Publishers, Oxford. 1991, p. 7: “I accept a principle of Unrestricted Composition: whenever there are some things, no matter how many or how unrelated or how disparate in character they may be, they have a mereological fusion.” Aqui, Lewis apresenta a possibilidade de “fusões mereológicas” irrestritas, feitas a partir de quaisquer objetos dados. A posição de Fonseca inverte esta perspectiva, porque visa as coisas dadas como totalidades com partes a distinguir. Embora a mereologia medieval tenha pressupostos metafísicos claros, por outro lado ela está livre de algumas aporias como, por exemplo, a dificuldade de saber se a “fusão mereológica” das partes produz um novo objeto (o todo), de modo que as entidades tornem-se potencialmente infinitas. Para um autor como Fonseca e outros, este problema não aparece, porque o todo tem precedência lógico-ontológica, não a parte.

9Que a introdução de inventio e iudicium na Lógica é obra de humanistas é uma tese comum (e falsa), encontrada, por exemplo, em Dawson, H. Locke, Language and Early-Modern Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 66.

10DL, Vidas, VI, 28

11Exp. posteriorum, lib. 1, lec. 1, n. 6.

12Ubi sunt brachia? Ubi sinistrum illud inventionis, hoc dextrum iudicii positum, distinctum, conformatumque est? (AA, p. 115)

13Porro argumentorum nomine hoc loco, definitiones quoque, et divisiones (etiam cum nihil probant, sed tantum eam rem, cui adhibentur, declarant) intelligi volumus. (Idem)

14Naturae ordo (hoc est quem in rerum natura observamus) duplex est: unus generationis, alter perfectionis, sive intentionis. Generationis ordo (quem executionis vocant) is est, quo a minus perfectis ad perfectiora progredimur, et omnino a causis ad effecta. [...] Ordo perfectionis [sive intentionis] est, cum a perfectioribus ad minus perfecta, aut omnino ab effectis ad causas progredimur. (Institutionum, l.7, c.39, pp. 600-602)

15Siquidem in natura rebus efficiendis a minus perfectis ad perfectiora contendit, et causarum vi gignit effecta. Sub hoc genere duo potissimum continetur, σύνθεσις, et διαίρεσις, hoc est compositio, et divisio, seu compositionis ordo, et divisionis. (Institutionum, l.7, c.39, p. 602)

16Ordo perfectionis [sive intentionis] est, cum a perfectioribus ad minus perfecta, aut omnino ab effectis ad causas progredimur. Non ideo tamen progressus ab effectis ad causas vocatur ordo perfectionis, quod effecta sint perfectiora omnibus suis causis: sed quia perfectio causae [aut] in effectu continetur aut ab eo, ut ita dicam, supponitur. Sub ordine perfectionis, duo itidem, quemadmodum sub generationis, praecipue comprehenduntur, ἀνάλυσις et συναγωγή, hoc est resolutio et collectio, seu resolutionis ordo, et collectionis, qui quidem duobus ordinibus generationis, iam dictis opponuntur. (Institutionum, l.7, c.39, p. 602)

17In inventione vero oppositi ordines servandi sunt, resolutionis nimirum, et collectionis. Qui enim sine doctore philosophari volunt, et a rebus quae sensibus subiectae sunt, ad reconditiores suo marte penetrare cupiunt, a toto integro ad partes, et a minus universalibus ad universaliora, id est, resolutionis et collectionis ordinibus accommodatissime procedunt. (Institutionum, l.7, c.39, p. 608)

Recebido: 16 de Setembro de 2021; Aceito: 01 de Dezembro de 2021

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