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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.75 Uberlândia set./dez 2021  Epub 16-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n75a2021-59998 

Artigos

Outrem como desafio à diferença. Por uma nova ética dos afetos no mundo contemporâneo.

Others as a challenge to difference. For a new ethics of affections in the contemporary world.

Outrem como un desafío a la diferencia. Por una nueva ética de los afectos en el mundo contemporâneo.

*Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista de Doutorado do CNPq. E-mail: larissafrezino@gmail.com

**Doutor em História Social na Universidade de São Paulo (USP). E-mail: pierodetoni@gmail.com


Resumo

O artigo apresenta o conceito de Outrem através das perspectivas histórica e filosófica em conexão com o plano estético. O foco do trabalho consiste em apresentar as dinâmicas de Outrem a partir da obra Sexta-feira ou os limbos do pacífico, de Michel Tournier, precisamente por meio das novas versões dos personagens Robinson Crusoé e Sexta-feira em comparação com a proposta inicial de Daniel Defoe. Para tanto, pensamos com Gilles Deleuze e Félix Guattari a apreensão de uma ética a partir de Outrem capaz de contribuir com a criação de outros mundos possíveis na passagem da literatura colonial para a literatura decolonial. Na relação entre os personagens observamos uma experiência de mundo mediada por uma troca horizontal. Sexta-feira e Robinson compõem outra existência ética a ser experienciada. O que desnaturaliza todo o ethos cultural europeu (de matriz colonizadora) responsável por estabelecer aquilo que é, ou não, civilizado.

Palavras-chave: Outrem; Ética: Diferença; Colonial; Decolonial

Abstract

The article presents the concept of Others through the historical and philosophical perspectives in connection with the aesthetic plane. The focus of this article is to present the dynamics of Others from Friday or the other Island, by Michel Tournier, precisely through the new versions of the characters Robinson Crusoé and Friday in comparison with the initial proposal of Daniel Defoe. For that, we examine Gilles Deleuze and Félix Guattari’s apprehension of the ethics from Others, capable of contributing to the creation of other possible worlds in the passage from colonial literature to decolonial literature. In the relationship between the characters, we observe an experience of the world mediated by a horizontal exchange. Friday and Robinson make up another ethical existence that would be experienced, which denaturalizes the whole European cultural ethos (of a colonizing matrix) responsible for establishing what is, or not, civilized.

Keywords: Others; Ethics: Difference; Colonial; Decolonial

Resumen

El artículo presenta el concepto de Outrem a través de las perspectivas históricas y filosóficas en conexión con el plan estético. El foco del trabajo es presentar la dinámica de Outrem desde la obra Sexta-feira ou os limbos do pacífico, de Michel Tournier, precisamente a través de las nuevas versiones de los personajes Robinson Crusoé y Sexta-feira en comparación con la propuesta inicial de Daniel Defoe. Para ello, pensamos con Gilles Deleuze y Félix Guattari la aprehensión de una ética de Outrem capaz de contribuir a la creación de otros mundos posibles en la transición de la literatura colonial a la decolonial. En la relación entre los personajes, observamos una experiencia del mundo mediada por un intercambio horizontal. Sexta-feira e Robinson conforman otra existencia ética aún por vivir. Lo que desnaturaliza todo el ethos cultural europeo (de matriz colonizadora) responsable de establecer lo que es, o no, civilizado.

Palabras llave: Otro; Ética: Diferencia; Colonial; Decolonial

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desposaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços ­tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos.

Gilles Deleuze

Pela primeira vez perguntou-se se as suas exigências de delicadeza, as suas repugnâncias, as suas náuseas, todo esse nervosismo de homem branco seriam um último e precioso testemunho de civilização ou, pelo contrário, um balastro morto, que seria necessário um dia rejeitar para entrar numa vida nova.

Michel Tournier

Descolonizar Robinson Crusoé

Uma das características marcantes do pensamento da diferença é a transversalidade dos saberes. Para o nosso estudo de caso nos ocupamos com as apropriações que o filósofo Gilles Deleuze faz da literatura. O plano do filósofo é o de se apoderar da pulsão diferencial presente nas obras literárias compondo em conceitos filosóficos. Um dos casos mais emblemáticos desse procedimento é a modulação do conceito de Outrem. Ele é resultado de um contraponto de pensamento entre a obra Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, e a releitura feita Michel Tournier denominada Sexta-feira ou os limbos do pacífico, escrita em 1967. Para tanto, o recorte que traçamos sobre a performance do conceito em questão se opera, primeiramente, a partir de Lógica do sentido (1969), no apêndice Michel Tournier e o mundo sem Outrem, e, posteriormente, por intermédio de O que é Filosofia?, escrita com Félix Guattari em 1991. A leitura de Outrem vai em direção ao projeto filosófico assumido por Deleuze: a filosofia como ponto singular em que o conceito e a criação se remetem mutuamente.

Segundo Gilles Deleuze, Outrem não pode ser delimitado como um sujeito, um outro que me percebe, tampouco como um objeto próprio da nossa percepção, um outro para mim. O maior equívoco das teorias sobre a diferença é justamente fazê-las oscilar entre um pólo e outro. Outrem apresenta-se como uma disposição perceptiva que possui a capacidade de desorganizar o campo da experienciação. Nem sentido, Outrem não é nem eu e nem você, dado que os outros reais, eu para você e você para mim, são termos plásticos que registram Outrem como uma estrutura. Que estrutura é essa? Segundo Deleuze, a do “possível-responde” (Rotenberg, 2015). O que as linhas a seguir apontam é para o desafio que o conceito de Outrem invoca junto ao pensamento da diferença, na medida em que ele atua por intermédio da dialética ética da experiência. Outrem é, então, fato e indicador de que a experimentação com, para e do mundo se opera através da afetação, ou melhor, do contato com o diferente. O contato com a diferença, entre o eu com o mundo, o genuíno encontro, possibilita o eu a diferenciar-se como construção atravessada por horizontes virtuais junto aos possíveis e imagináveis mundos da imanência.

A primeira versão de Robinson Crusoé é de 1719. Ela narra o drama que envolve a vida deste personagem. Em meio a uma das suas viagens por mares desconhecidos, Crusoé acaba naufragando. Sozinho em uma ilha paradisíaca durante cerca de 20 anos, o protagonista do romance de Defoe se empenha na construção de uma estrutura que lhe ofereça conforto e segurança para que, assim, possa erguer um pequeno império construído com as próprias mãos. Deleuze considera que a primeira parte do romance é atravessada por um plano assexuado com as espessuras da ilha. O que de fato significa isso em termos de uma filosofia da diferença? Compreende uma relação indiferente para com as nuances que um mundo possível e desconhecido pode proporcionar (Rezino, 2017). Aqui, na primeira versão do romance, o que está em jogo, pensando na transformação do relato literário em conceituação filosófica, é a preservação da identidade, isto é, um horizonte do devir que mantém o si-mesmo apartado de Outrem. Um regime no qual impera a noção de conformidade: um domínio em que o igual a si-mesmo, o portador de identidade, é elevado ao âmbito de padrão social, podendo falar até mesmo em identidade nacional. A indiferença é a postura daquele que não possui o desejo de se relacionar com o fora. Na segunda parte do romance, a trama ganha um novo personagem. Durante uma cerimônia ritualística Crusoé intervém e salva a vida de um nativo da ilha. A partir desse momento o protagonista do livro passa a conviver com o “selvagem”, quer dizer, na presença do outro. Ele ensina ao ilhéu, chamado de Sexta-feira, todo um mundo organizado nos moldes eurocêntricos de acordo com os ideais da ordem, de moral e de polimento dos costumes. A diferença entre Crusoé e Sexta-feira se opera no plano da temporalidade, enquanto o primeiro é moderno e atual, contemporâneo, o nativo é um primitivo extemporâneo à civilização. Segundo Norbert Elias (2011, p. 23), o conceito de civilização “resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’”. De todo modo, Robinson Crusoé transmite ao habitante daquela ilha os preceitos do progresso civilizatório de matriz europeia. Há, como se pode perceber, um flagrante processo de aculturação.

Ao longo de anos o náufrago europeu “educa” e “civiliza” o “selvagem” Sexta-feira, “polindo” as suas ações, bem como a sua relação com o ambiente-ilha. O romance termina com a inesperada, mas desejada, chegada de uma embarcação que leva ambos os personagens rumo à civilização europeia. Nessa primeira versão do romance, o enredo gira em torno das questões e das dificuldades que acometem um sujeito sozinho, sem a presença de Outrem, em um lugar desconhecido onde supera todas as desventuras da experiência do naufrágio e do exílio acidental. Porém, no plano filosófico, Deleuze percebe que o romance direciona a história para uma única questão: “o que pode ocorrer a um homem só, sem Outrem, em uma ilha deserta?” (Deleuze, 1974, p. 313). Essa questão é mal colocada para o filósofo, dado que o escritor não consegue conduzir o personagem a outro fim que não seja o regresso ao mundo que lhe é habitual. Mesmo quando Crusoé encontra-se só no território-ilha ele repete o que lhe é conhecido enquanto realidade (Rezino, 2017). Deleuze é preciso quanto a isso, segundo ele:

(...) o problema estava mal colocado. Pois, ao invés de levar um Robinson assexuado uma origem que reproduz um mundo econômico análogo ao nosso, arquétipo do nosso, seria preciso conduzir um Robinson assexuado a fins completamente diferentes e divergentes dos nossos, em um mundo fantástico tendo ele próprio desviado (Deleuze, 1974, p. 313).

Somente na versão contemporânea do romance de Tournier é visto a intersecção dos saberes junto à elaboração do conceito de Outrem. É por meio dela que o pensamento da diferença se manifesta. A própria materialidade da nova versão do romance de Defoe implica procedimentos de desvios. Na versão ressignificada, Tournier mantém o enredo original, mas opera modificações substanciais que o atualizam por intermédio de uma particular poética da apropriação. A nova aventura é ambientada no século XVIII, na ilha Speranza situada no Oceano Pacífico. Como na primeira versão, em meio a uma viagem aventureira e a um naufrágio, Crusoé encontra-se só em uma ilha deserta. Para garantir a sua sobrevivência o protagonista territorializa a ilha a partir da estrutura de vida orientada pelo eurocentrismo civilizador. A mudança significativa na versão de Tournier acontece na segunda parte da obra, quando, por fim, o protagonista solitário encontra-se com Sexta-feira. Entra em ação o pensamento decolonial: não é mais Crusoé que estabelece o estilo de vida da dupla, mas ele e o nativo que o acompanha criam um novo território ilha. É a vez do devir compor a desterritorialização, o que implica no abalo da identidade civil ocidental de Crusoé.

Sexta-feira traz consigo todo um mundo possível e uma nova estrutura de vida que afeta Robinson Crusoé e a sua percepção sobre si e seu entorno. Através do fomento de uma potência sexuada, advinda do contato com o nativo, a relação de interação entre a ilha e os personagens se transforma, sendo possível vivê-la com outra intensidade. A presença de Outrem ressignifica a relação do protagonista com a ilha que se movimenta por novos devires: devir-animal, devir-selvagem, devir-natureza. Tudo aquilo que havia sido construído por ele e todas as suas referências ocidentais de vida são gradualmente abandonadas: “a ilha muda de figura no curso de uma série de desdobramentos, não menos do que Robinson que muda de forma no curso da uma série de metamorfoses” (Deleuze, 1974, p. 161). É um deixar se afetar que abre o campo do possível para tudo aquilo que é diferente. Todo movimento transformador da percepção e da relação de Crusoé com o território-ilha se opera no encontro com Outrem, o qual suscita nele um novo desejo por uma disposição sem o eu, composta com Outrem, em suma, com a diferença.

A descolonização de Robinson Crusoé o leva a desmascarar as violências implícitas na noção de civilização. Se a civilização implica formas de aprender algo ideologicamente, aqui entra a ideia de moldar o sujeito, enquanto que o pensamento da diferença de Sexta-feira é desconstrutor e aberto ao diferente. No final da segunda versão do romance, Robinson opta por permanecer na ilha, pois não se reconhece mais como homem branco, civilizado, europeu, cristão. As suas percepções sobre o mundo se modificam e “o alvo final de Robinson é a ‘desumanização’, o encontro da libido com os elementos livres, a descoberta de uma energia cósmica ou de uma grande saúde elementar” (Deleuze, 1974, p. 313). A atenção de Tournier direciona-se ao movimento traçado sobre o território-ilha por parte do protagonista, após a aculturação às avessas de Sexta-feira, e as modificações que ressoam a partir desse encontro. Nesse sentido:

O Robinson de Tournier se opõe ao de Defoe por três traços que se encadeiam com rigor: ele é relacionado a fins, a alvos, ao invés se sê-lo a uma origem; ele é sexuado; estes fins representam um desvio fantástico de nosso mundo, sob a influência de uma sexualidade transformada, ao invés de uma reprodução econômica de nosso mundo sob a ação de um trabalho continuado. (...) Em Defoe, referir Robinson à origem e fazê-lo produzir um mundo conforme ao nosso; é a mesma coisa em Tournier referi-lo a fins e fazê-lo desviar, divergir quanto aos fins (Deleuze, 1974, p. 313).

Isso pode ser percebido no período em que Sexta-feira passa a habitar a ilha com Robinson que, então, deixa de estar totalmente isolado. No seu log-book o náufrago toma nota das diversas situações que o atravessa como, por exemplo, o seu encontro com o ilhéu, e enfatiza a importância dele em seu processo de transformação. A narrativa de Tournier nos revela esse argumento:

Mas é certo que, flutuando numa solidão intolerável que só me dava a escolha entre a loucura e o suicídio, procurei instintivamente o ponto de apoio que o corpo social já não me fornecia. Ao mesmo tempo, as estruturas construídas e mantidas em mim pelo comércio dos meus semelhantes caíam em ruínas e desapareciam. Assim, por tentativas sucessivas, era levado a procurar a minha salvação na comunhão com os elementos, tornando-me eu próprio elementar. A terra de Speranza trouxe-me uma primeira solução durável e viável, ainda que imperfeita e perigosa. Depois surgiu inesperadamente Sexta-Feira e, subjugando-se na aparência ao meu reinado telúrico, destruiu-o com todas as suas forças. Havia, no entanto, um caminho de salvação, pois se Sexta-Feira tinha uma aversão absoluta à Terra, ele era, por nascença, tão elementar quanto eu o era por acaso. Sob sua influência, sob os golpes sucessivos que me desferiu, avancei na estrada de uma longa e lenta metamorfose (Tournier, 1991, p. 197).

De todo modo, o conceito de Outrem, da forma pensada por Deleuze, se faz como um horizonte de ação em direção a mundos possíveis. Assim, “um tal saber ou sentimento de existência marginal não é possível a não ser por intermédio de Outrem” (Deleuze, 1974, p. 315). Esse horizonte virtual aberto por Outrem reitera a necessidade do ser humano se reinventar e se autocriar em uma perspectiva diferencial, em uma perspectiva Outrem, havendo aí uma potência latente que torna essa disposição um acontecimento. É a interferência ativa do outro que abre um leque de novas possibilidades e percepções de toda a ação social humana e das formas como ela interage com o plano de imanência. É o outro, o diferente, que faz emergir os contornos daquilo que proponho conhecer, as minhas formas de percepção dos objetos de toda ordem. Isso pode ser visto a partir do romance de Defoe, em que o solitário protagonista Robinson Crusoé não expande a sua experiência sobre si, sobre o mundo a sua volta e sobre o outro, deixando passar despercebidos os detalhes que circunscrevem o devir-ação naquela ilha. Dessa forma, toda uma disposição experiencial movida pelos agentes está condicionada a um olhar que difere-se em direção aos que se deseja conhecer, o que faz visível Outrem a partir dos seus detalhes marginais. Daí que “os objetos que não vejo ou as partes de um objeto que percebo, mas que não vejo no momento presente, são definidos como visíveis por Outrem” (Silva & Kasper, 2014, p. 721).

Outrem e a política dos afectos

A dinâmica Outrem afeta a partir da sua expressão diferencial. Eu me diferencio no processo dialético em que o si-mesmo se torna o si-mesmo como o outro, para dialogarmos com Paul Ricoeur, sendo que o outro se movimenta no mesmo sentido. Por meio dessa disposição não se eleva a registro central da ação social a identidade, mas a diferença. O conceito de Outrem relativiza o não-percebido,

pois Outrem para mim, introduz o signo do não-percebido no que eu percebo, determinando-me a apreender o que não percebo como perceptível para Outrem. Em todos estes sentidos é sempre por Outrem que passa meu desejo e que meu desejo recebe um objeto. Eu não desejo nada que não seja visto, pensado, possuído por um Outrem possível. Está aí o fundamento de meu desejo. É sempre Outrem que faz meu desejo baixar sobre o objeto (Deleuze, 1974, p. 32).

Assim, a dinâmica Outrem, enquanto uma abertura aos processos de mutação por meio de uma dinâmica relacional, sublinha a assimilação daquilo que eu deixo de naturalizar em meu olhar sobre o outro. Ademais, há a troca do outro comigo, que sou o seu outro. Sendo que aquilo que eu assimilo é a forma de percepção de Outrem. Por meio de uma relação diferencial emerge os desejos mediados por uma nova ética dos afectos.

O conceito de Outrem é elaborado a partir da posição relacional entre um sujeito com o outro, com o fora. Há uma tradição filosófica que considera o sujeito como o centro do mundo; nela o indivíduo categoriza e assimila a realidade por meio da disposição “a partir de”. Podemos exemplificar: é “a partir da” minha cultura que eu interajo com o estrangeiro; é “a partir dos” princípios morais de uma religião que eu julgo as ações do outro; é “a partir da” minha posição financeira social que eu me considero cidadão, e etc. Já na perspectiva da diferença é Outrem quem traça a linha de fuga no campo da experiência a concebendo como uma estrutura do campo perceptivo que traz consigo um “possível” como um “simples há...” (Rezino, 2017). Essa dinâmica relacional pode, ou não, se concretizar dependendo do movimento de atualização dos seus componentes, porém existe enquanto virtualidade. Outrem apresenta-se como um mundo possível que tem como condição o mundo sensível.

A virtualidade do mundo possível de Outrem é capaz agenciar as formas sociais que atravessam as relações humanas por ser uma instância com materialidade, para Deleuze. Afirma o filósofo que, “em suma, Outrem como estrutura, é a expressão de um mundo possível, é o expresso apreendido como não existindo ainda fora do que exprime” (Deleuze, 1974, p. 317). A virtualidade além de ser uma janela para o novo, apresenta-se como uma realidade outra pelo simples fato de existir como virtualidade. O virtual, dessa maneira, prefigura o real ordinario. Aqui a expressão traça os caminhos dos devires. “Assim sendo, Deleuze enfrenta um duplo trabalho, primeiro extrair o virtual da sombra de certa irrealidade ou não-ser, isto é, do lastro da negatividade; e segundo definir, de um modo ético e positivo o próprio virtual enquanto tal” (Craia, 2009, p. 114).

Vamos explicar a dinâmica diferencial novamente esperando que x leitorx a projete junto a seu campo de experiência individual e social. Outrem apresenta-se como uma segunda posição com relação a um sujeito, quer dizer, o outro é Outrem em relação à posição espacial que o outro está de mim. Modificando as conjunturas da relação espacial eu me torno Outrem em decorrência da perspectiva que o outro sujeito tem sobre mim. Esse conceito desconstrói o posicionamento “eu-outro” e instaura uma relação ramificada entre “Outrem-eu, outro, sujeito, objeto, etc”. Ou seja, Outrem se torna “a condição sob a qual se redistribuem, não somente o objeto e o sujeito, mas a figura e o fundo, as margens e o centro, o móvel e o ponto de referência, o transitivo e o substancial, o comprimento e a profundidade” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 26). Não havendo sujeito/objeto pré-definidos, essas categorias tornam-se derivações que partem de Outrem (Rezino, 2017). Sujeito/objeto estão imersos em uma gama de relações nas quais Outrem é uma espécie de respaldo para os encontros que traçamos com aquilo que não somos. Encontros com os quais se afeta e é afetado, derivando uma ética dos afetos diferencial. Um outro mundo em que haja o convívio potente dos diferentes. Esse registro potencializa os significados das formas de ser no mundo, do ser a partir do mundo, do ser na imanência.

É necessário x leitorx perceber que Deleuze, e também Guattari, apontam para a virtualidade material de Outrem. Os autores comentam sobre a realidade virtual própria em si mesma como algo possível, fabulado, desejado. Para ele:

Outrem é, antes de mais nada, esta existência de um mundo possível. E este mundo do possível tem também uma realidade própria em si mesmo, enquanto possível: basta que aquele que exprime fale e diga “tenho medo”, para dar uma realidade ao possível enquanto tal (mesmo se suas palavras são mentirosas). (...) Eis, pois, um conceito de Outrem que não pressupõe nada além da determinação de um mundo sensível como condição. Outrem surge neste caso como a expressão de um possível. Outrem é um mundo possível, tal como existe um rosto que o exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá uma realidade. Neste sentido, é um conceito com três componentes inseparáveis: mundo possível, rosto existente, linguagem real ou fala (Deleuze & Guattari, 2010, p. 25).

Parece-nos ser necessário colocar ainda mais em evidência a forma pela qual Outrem, entendido como uma espécie de virtualidade do possível de modo geral, configura as percepções dos agentes sociais em interação. Esse movimento de pensamento torna-se relevante por intermédio de uma precisa conceituação realizada por Deleuze e por Guattari:

No caso do conceito de Outrem, como expressão de um mundo possível num campo perceptivo, somos levados a considerar de uma nova maneira os componentes deste campo por si mesmo: Outrem, não mais sendo um sujeito de campo, nem um objeto no campo, vai ser a condição sob a qual se redistribuem, não somente o objeto e o sujeito, mas a figura e o fundo, as margens e o centro, o móvel e o ponto de referência o transitivo e o substancial, o comprimento e a profundidade... Outrem é sempre percebido como um outro, mas, em seu conceito, ele é a condição de toda percepção, para os outros como para nós. É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro. Outrem faz o mundo passar, e o ‘eu’ nada designa senão um mundo passado (‘eu estava tranquilo...’). Por exemplo, Outrem basta para fazer, de todo comprimento, uma profundidade possível no espaço e inversamente, a tal ponto que, se este conceito não funcionasse no campo perceptivo, as transições e as inversões se tornariam incompreensíveis, e não cessaríamos de nos chocar contra as coisas, o possível tendo desaparecido. (Deleuze & Guattari, 1992, p. 30-1)

No entanto, a não-presença de Outrem despotencializa a virtualidade capaz de engendrar o mundo que vivemos ou o acontecimento-por-vir. Sem o contato com o outro, sem a abertura identitária mútua, desaparece o âmbito do possível em si mesmo como realidade, não havendo um caminho aberto para a emergência de realidades outras. A ausência da relação com Outrem torna os sujeitos assexuados em suas formas de interação com o “além dele”. Não há, então, a possibilidade do novo, sendo que as relações humanas se recrudescem em direção à identidade. Ela, a identidade, é instância que implica recognição, ou seja, processos de identificação por imagens que condicionam a ação individual, dado que estabelecem a verdade como adequação das formas. A imagem do pensamento torna o sujeito refém de uma (auto)identificação que constrói uma síntese unitária do eu, desabilitando todos os devires ao humano. Em contrapartida, por meio de Outrem as imagens do pensamento direcionam-se para a presença, para a materialidade virtual do pensamento, incidindo, inclusive, sobre o corpo. Há certa imagem do pensamento que predomina na cultura ocidental, uma imagem que Deleuze concebe como moral. Ela é formada pelo pensamento representacional ou modelo da representação. O que se deseja é suspender a representação moral acerca da ação humana que se fundamenta através do reconhecimento de essências, restituindo às imagens do pensamento as suas potências criadoras (Maurício; Mangueira, 2011). O intuito é a libertação das imagens do pensamento da moral ordinária, mais próximas do imperativo categórico do que da ética da responsabilidade construída por via da experimentação prudente.

Deleuze e Guattari ressaltam que o mundo possível não modula-se como uma abstração ou como uma irrealidade, na medida em que sobrevive por meio da expressão. Mundo possível é uma expressão com materialidade. Cabe ao sujeito criar e experimentar esse mundo possível expresso por Outrem, seja para se abrir ou interagir com ele; seja para recusá-lo e desmenti-lo (Rotenberg, 2015). Outrem é produto/produtor da virtualidade enquanto expressão.

A impossibilidade da relação com Outrem encontra-se no registro sócio-relacional no qual o sujeito constrói conjuntamente com o outro “um tribunal de toda realidade, para discutir, informar ou verificar o que [acredita-se] ver” (Deleuze, 1974, p. 320). Assim, é equivocada a redução da despotencialização de Outrem em razão somente da ausência de outro ser humano disposto em modo relacional “eu-outro”. Deleuze considera Outrem enquanto uma estrutura a priori da percepção que justapõe sujeito e objeto, sendo impossível distingui-los nesse processo. De todo modo, “faltando [um Outrem] em sua estrutura, ele deixa a consciência colar ou coincidir com o objeto num eterno presente” (Deleuze, 1974, p. 320). O desaparecimento de Outrem causa a confusão da consciência do personagem no romance, na medida em que a consciência “deixa de ser uma luz sobre os objetos para se tornar uma pura fosforescência das coisas em si” (Deleuze, 1974, p. 321).

Deleuze assinala que a estrutura relacional Outrem sublinha cada objeto que percebo, que assimilo, ou cada pensamento que crio. Falamos, pois, de um mundo em que novos objetos e novas ideias passam a ser possíveis. Quando o objeto é percebido projeto a sua expressão fora do meu alcance como algo visível para Outrem, sendo que dessa maneira observo em volta dele o âmbito experiencial de outros objetos, em um espaço no qual as virtualidades e as potencialidades podem ser atualizadas tornando-se acontecimento. Outrem, nesse sentido, torna crível a noção do ponto de vista em sentido maximizado, dado que dispõe o registro do não-saber junto ao meu espaço de experiência, sendo que aquilo que não é percebido pelo si mesmo passa a ser assimilado por outros. “Qualquer relação, com pessoas ou com coisas, possui o potencial de mobilizar em nós um aprendizado, ainda que ele seja obscuro, isso é, algo de que não temos consciência durante o processo” (Gallo, 2012, p. 3).

De todo modo, o filósofo francês assevera que Outrem não instala-se como mais uma estrutura de percepção, mas modula-se como o próprio arcabouço pensante que condiciona o conjunto do campo experiencial e o seu imediato funcionamento. Outrem é o grande desafio da diferença junto ao mundo social. O que está em jogo não é apenas a orientação do espaço, mas do tempo. Como discorre Gilles Deleuze, Outrem apresenta-se como uma estrutura que torna possível a passagem do tempo, na medida em que intercede na transformação de um universo a outro junto ao espaço de experiência. Ao adentrar em um mundo possível, Outrem inventa um eu como um estado passado, a forma como “eu era” antes do encontro com o outro. Assim, Outrem instala no outro a percepção da passadidade do passado. Não é o eu que permite e autoriza a elaboração de um campo perceptivo. É o espaço de experiência do outro que torna factível as transformações no tempo e no espaço junto à experiência. Tendo explicado isso, argumenta-se que o encontro entre o eu e o outro não se manifesta necessariamente através da fórmula o outro torna-se um outro eu, visto que o eu atravessa transmutações, não permanecendo enquanto um reflexo de si mesmo, bem como não se adequa consigo mesmo a partir da fórmula da identidade. A certa altura da sua obra, Deleuze afirma que o eu é “rachado”. Isso posto, juntamente ao outro enquanto presença virtual, como mundo possível e perspectivado, parece razoável percebermos o horizonte do Outrem inscrito no âmbito do próprio campo experiencial.

A não-identidade de Outrem

Outrem procede como estrutura que sugestiona uma abertura para as condições de possibilidade no âmbito da experiência. Essa dinâmica torna a virtualidade atualizada. Outrem é objeto de estudos na área da antropologia. O antropólogo brasileiro Viveiros de Castro assegura a sua potência para o seu espaço de trabalho. Segundo o estudioso, Outrem não é uma perspectiva particular, o ponto de vista de um ou de outro, mas, sim, a condição de existência do ponto de vista, isto é, a própria noção de ponto de vista (Rotenberg, 2015). Ele não deseja a mera assimilação do ponto de vista indígena em suas cosmovisões, pois reproduzi-lo é uma forma de reificar um universo social dado, quer dizer, da perspectiva do índio sobre a própria perspectiva. Isso não significa, pois, a acolhida, a aceitação, a assimilação do conjunto de crenças dos indígenas sobre os agentes sociais, sobre os animais, sobre a natureza, enfim, sobre a cosmovisão (Castro, 2011). De acordo com essa antropologia diferencial, ou perspectivismo ameríndio, não se deseja a explicação e a compreensão do mundo da vida da forma como é expressa por Outrem, porém, dispô-lo em suspensão, através da materialidade virtual das condições de possibilidade, diante do campo de experiência que nos circunscreve. Isso instiga uma realidade em perspectiva folheada. É como olhar e movimentar uma espécie de caleidoscópio de devires virtuais.

Deleuze concebe os efeitos de Outrem por meio dos efeitos resultantes da sua ausência. Outrem se constitui, desse modo, como condição para o campo perceptivo: “o mundo fora do alcance da percepção atual tem sua possibilidade de existência garantida pela presença virtual de um outrem por quem ele é percebido; o invisível para mim subsiste como real por sua visibilidade para outrem” (Castro, 2001 p. 13). Viveiros de Castro deixa claro que a ausência dessa instância leva à desaparição da categoria do possível. Podemos assinalar, dessa maneira, que Outrem não é uma entidade, nem sujeito e tampouco objeto; porém é uma estrutura, uma relação, uma dinâmica; “a relação absoluta que determina a ocupação das posições relativas de sujeito e de objeto por personagens concretos, bem como sua alternância: outrem designa a mim para o outro Eu e o outro eu para mim” (Castro, 2001, p. 13). Quer dizer, Outrem não tem desempenho como um elemento próprio do campo perceptivo, mas é o princípio que o conforma, tanto ele quanto os seus conteúdos. Outrem não apresenta-se, ressaltamos, como um ponto de vista singular e relativo ao sujeito, ou seja, o “ponto de vista de outro” diante do “meu ponto de vista” e vice-versa. Ele mostra-se como o próprio conceito de ponto de vista. Outrem, assim sendo, é o ponto de vista que possibilita que o Eu e o Outro conformem um ponto de vista.

Podemos aproximar o conceito de Outrem daquilo que Deleuze denomina de “grande saúde”. Ele deixa entrever que o filósofo, entre outras atribuições, tem um trabalho clínico. Sabemos da importância da clínica em seu pensamento e no de Guattari. Da mesma maneira que o antropólogo, o filósofo-clínico apreende o mundo possível articulado por Outrem como uma virtualidade, distante de uma ideia de realidade positiva ou negativa. Por outro lado, divergindo dos procedimentos dos antropólogos, que não buscam alterar o campo experiencial dos indígenas, o filósofo-clínico ambiciona a produção de diferenças na experiência junto daquele que é assistido, e que deseja o “diagnóstico” exatamente pelo fato do seu mundo ter caminhado pelas veredas do impossível. Se o antropólogo de Viveiros de Castro quer trazer para o Ocidente outros mundos possíveis, o filósofo-clínico de Deleuze e Guattari busca habitar o outro que está “doente” com outros mundos possíveis.

Desse modo, a “grande saúde” deixa disponível um viver junto à “imanência do desejo”, bem como requer o conhecimento das afecções e de seus afetos, que corresponde a uma postura do eu que não deixa de refletir sobre o que se passa consigo mesmo. O caminho para a “grande saúde” implica na descoberta do “bom caminho” para o desejo, que em última instância é o mesmo que alcançar a alegria imanente do desejo e experimentar o aumento das potências que conduzem ao conhecimento adequado das afecções e dos afectos (Teixeira, 2004). A estrutura Outrem depende, nesse sentido, do autoconhecimento do eu que se materializa no vai-e-vem do eu como o outro. É por essa razão que Espinoza argumenta na proposição do livro 5 que o esforço ou o desejo de conhecer as coisas segundo o terceiro gênero de conhecimento não pode surgir do primeiro, mas sim do segundo (ESPINOZA, 1988 apud TEIXEIRA, 2014, p. 36).

Em razão disso tudo, o filósofo-clínico necessita em uma primeira abordagem fazer do outro um possível novamente, sendo preciso, ainda, perscrutar, na tensão com o outro, novos e outros mundos, escondidos quase que imperceptivelmente no que o outro relata. É um processo que cria esperança. Nesse âmbito, argumentamos que a forma como se opera o posicionamento ante o diferente se faz fundamental para a determinação da experiência, dado que os outros manifestam-se enquanto presenças tangíveis em nossos “espíritos”; uma virtualidade que faz morada em nosso mundo sensível mesmo ausente; um acontecimento que torna possível o diferencial em nossa existência. Esse movimento busca devolver a potência sexuada aos indivíduos.

É paradoxal a relação e o encontro com o outro: ele é um registo que se posiciona como o mais recuado e o mais próximo de mim. Distante em razão de não termos acesso à integralidade, inclusive corpórea, da sua experiência. Em outra direção, o outro localiza-se extremamente próximo de nós, pois se faz participativo em nossa duração. A nossa duração em específico apresenta-se receptiva à presença-virtual do outro, quer dizer, ela é uma parte material constitutiva daquela enquanto plasticidade e variabilidade, o que implica que a reconstrução mnemônica, ou experiencial, de cada sujeito é singular. Esse movimento depende de Outrem para ser deflagrado. A duração é o resultado dos encontros com a presença-virtual de Outrem através de uma plano de temporalidade em que não há relação de linearidade, nem de sucessão, posto que o passado e o presente coexistem. A “duração se define pela coexistência virtual de tempos heterogêneos (...)” (Hur, 2003, p. 183). A duração constitui-se como o campo de experiência. Instala-se no campo transcendental e do agenciamento, pois a duração ao atravessar a estrutura Outrem eleva o tempo a um acervo de fluxos dos planos temporais, do fluxo do sensível, do hábito e dos distintos estratos constituídos (Hur, 2003). Outrem no plano da temporalidade admite que o passado não segue o presente e que o presente não necessita se efetuar para que se constitua como um passado, pois ambos se atualizam ao mesmo tempo. O plano experiencial, atravessado por Outrem, institui memória, dando as histórias dos atores sociais conectividade e dinamicidade, endossando, pois, a “grande saúde”.

O outro percorre, então, o caminho da coexistência do infinitamente distante e do infinitamente próximo. Isso ocorre em razão do outro agir nas fronteiras do nosso campo de experiência. Dessa forma, o outro marginal incita, pois, a nossa experiência, porém, não na condição de centro-solar, mas, sim, pelas “beiradas”, pela periferia. Lugar onde se encontram as zonas dos limiares e dos limites. Isso é possível porque a própria margem situa-se à margem, além, muito além, do eu, da nossa identidade, do nosso horizonte de perspectivação (Rotenberg, 2015). Assim, se faz premente não caracterizar o outro em uma síntese-unitária, não perquirir exageradamente a sua posição no mundo, posto que o outro não é uma identidade totalizada. Outrem, desse modo, não se modula como um mundo possível senão atravessar o crivo do mundo impossível. É preciso reter, em nossa relação com os outros, uma margem, um lugar próprio para o não-saber, em que o possível pode florir.

Conclusão: a ética de Outrem

A análise de uma obra literária pode ser feita a partir de diversas perspectivas, a depender do interesse e dos pares conceituais que sobrevoam a ótica daqueles que realizam o trabalho. As possibilidades são inúmeras. Entretanto, mesmo em uma análise crítica é comum cair em clichês de leituras que seguem caminhos já percorridos e que, por isso, oferecem uma vasta bibliografia de pesquisa. Pode-se, por outro turno, seguir um caminho ainda não percorrido pelos demais e considerar que no encontro com a própria obra algo surgirá e nos dará o que pensar. Parece-nos que o último caso é o mais delicado, uma vez que promove o autoengano e/ou serve como um limitador que marca até onde podemos chegar. O problema se torna ainda mais complicado uma vez que, para superá-lo, exige-se a ruptura com as premissas da recognição, muitas vezes disfarçada de intuição, para que seja possível pensar a obra por novas direções. Empreendemos, diante desse duplo desafio, a tarefa da consecução deste artigo alocado nas rachaduras que invocam o conhecimento histórico e o filosófico.

Desejamos pensar uma ética de Outrem em uma perspectiva estética-histórica-filosófica. A perspectiva estética coloca-se objetivamente devido as obras mobilizadas ao longo de todo o trabalho. Temos em mãos duas obras com larga repercussão nos cânones da história literária com os seus múltiplos elementos constituintes. O estilo, a escrita, a narrativa, as figuras de linguagem, os personagens são componentes estéticos que se exibem como fatos e como indicadores que nos encaminham junto aos horizontes da história e da filosofia. Assim, as obras de Defoe e de Tournier trazem elementos de outras ordens que correlacionam a estética com elementos “do fora”. O que nos instiga a pensar os romances compondo com os eixos temáticos da história e da filosofia. Em ambas as áreas encontramos certa bibliografia crítica sobre os romances em questão, mas como é pensá-los a partir dessa tripartição teórica cruzada? Não é uma aproximação forçada. Os escritos aqui trabalhados são romances de profundo caráter sócio-histórico-político-filosófico e demonstram o funcionamento da passagem de uma estética europeia colonial para uma estética europeia pós-colonial. Em meio a todas as suas multiplicidades, os romances reafirmam o dito nulla aesthetica sine ethica ao ponto de propormos uma aproximação por vias do caráter ético das obras, nos fazendo pensar a dimensão decolonial.

Percebemos que o movimento de leitura e de criação de uma segunda versão de uma obra literária não comporta, ao menos em primeiro plano, certa tentativa de superação da qualidade literária da primeira. Como se fosse uma evolução de escrita. Pensamos, de outra maneira, que a relação entre uma versão e outra, e a consequente reescrita, apresenta as perspectivas ímpares de tomadas de compreensão. O que está em jogo são as concepções que formam e fundamentam o entendimento sobre o mundo e sobre os indivíduos para cada um dos autores. Ao ponto da segunda versão ressignificar, ou atualizar, as sensações, os sentidos e os significados dos elementos literários que compõem a versão original de Defoe. Esse aspecto demonstra que a mobilidade sensível e significativa da obra se manifesta por conter elementos sócio-históricos e, logo, capazes de serem modulados de acordo com as novas aspirações políticas, culturais, econômicas e éticas. O que desejamos pontuar é que ao nos voltarmos ao passado através da leitura da primeira versão de Robinson Crusoé mergulhamos em um clima histórico que não abrange a mesma significância emprestada à Sexta-feira ou os limbos do pacífico. E mais: quando retomamos a discussão das duas obras com o olhar atual verificamos um terceiro movimento que nos possibilita pensar o romance por vertentes não desenvolvidas por Tournier. E podemos dar um passo a mais quando nos situamos, pois, de forma política. Vejam: o ethos de Crusoé se assemelha ao de uma sociedade que não é a nossa. Enquanto latino-americanos colonizados, descendente étnico-cultural de indígenas e de africanos, estamos mais próximos de Sexta-feira. Então, qual é a leitura, a sensação, a percepção de Sexta-feira sobre esses romances?

Em cada versão do romance encontramos determinada narrativa moldada pela concepção histórica e política da sua época. Seja com a consolidação do mundo colonial à época de Defoe no século XVIII, seja através da autocrítica decolonial europeia de Tournier no século XX. É pela perspectiva da transformação histórica que lemos as obras em questão. Sabemos que o passado não é substantivo, mas adjetivo. Nosso intuito não é a tentativa de comparação entre as obras e nem de valoração moral. Desejamos outra chave de leitura. De todo modo, um dos aspectos que mais ressoou em nossa análise repousa no fato da obra literária compor um universo histórico e político que assegura o surgimento de outro tipo de discurso que não aquele de origem majoritária. Assim, a mudança de estatuto do personagem Sexta-feira, que saí da esfera da passividade e da submissão para ocupar um lugar de ação, criação e de apresentador de novos mundos possíveis, demonstra a passagem ética que afirmamos ao longo do texto. Dessa forma, segundo Hutcheon, a tessitura literária presente século XX se coloca como uma aliada, pois se compromete a “[...] transformar o diferente, o off-centro, no veículo para o despertar da consciência estética e até mesmo política” (ApudMORAES, 2017, p. 3). Sendo que no movimento de passagem de uma época para outra, de um romance para o outro, de uma perspectiva para a outra, encontramos nosso eixo histórico.

Por meio da divergência de comportamento entre os personagens diante das suas respectivas épocas e, mais precisamente, na diferença no comportamento de Sexta-feira é que encontramos o aspecto ético, e por isso filosófico, que visamos traçar ao longo do texto. E dentre as teorias da ética compomos com a perspectiva deleuze-guattariana, que por sua vez se apropria da ética de Espinoza. Uma aproximação fluída, pois a própria narrativa indica diversos posicionamentos éticos dos personagens. Não falamos de uma ética do bom senso, ou das boas ações, mas, sim, de uma ética que requer o uso do corpo e a plena mobilização do conatus para perdurar os bons afetos na natureza - expressão máxima do divino. A prática de uma ética spinozista por parte do Crusoé da segunda versão se faz de maneira tão profunda que o personagem não retorna a civilização europeia. O seu corpo/mente se transforma a partir dos novos usos por ele experienciado, de tal forma que a sua antiga civilização se torna uma realidade obsoleta. Sem significante, sem significado. As antigas referências se diluem durante o processo de desterritorialização e reterritorialização no devir ilha. O personagem desnuda-se das condições de ser social europeu, das ideias centrais de cidadão, de sujeito, de indivíduo e parte em direção a um novo significante do tipo inorgânico e inatural (ao que lhe era habitual) ao adquirir e criar novos comportamentos e novas relações que desfazem o binarismo eu - outro em prol do Outrem. Outrem - Outrem. Michel Tournier torna factível a asserção:

(...) descobriu assim que Outrem é para nós um poderoso fator de distração, não apenas porque nos perturba constantemente e nos arranca ao pensamento atual, mas ainda porque a simples possibilidade do seu aparecimento lança um vago luar sobre um universo de objetos situados à margem da nossa atenção, mas capaz

a todo o momento de se lhe tornar o centro. Esta presença marginal e como que fantasmal das coisas com que, de imediato, não se preocupava apagara-se aos poucos no espírito de Robinson, encontrava-se doravante rodeado de objetos submetidos à lei sumária do tudo ou nada (…) (Tournier, 1991, p. 31).

O Robinson Crusoé contemporâneo sofre um intensivo processo de transformação. Há, nisso, o caráter flexível do próprio personagem em comparação ao da primeira versão. Mas, na obra de Tournier, o aspecto central para a mudança de perspectiva de Crusoé é a presença ativa de Sexta-feira. Em outras palavras, é o ilhéu que traz consigo a potência de uma nova experimentação do mundo por via de uma relação de troca absoluta e horizontal. Ele é o agente criador do impossível. Sexta-feira como Outrem afeta Robinson ao apresentar-lhe outra existência. Sexta-feira não repete a imposição de um colonizador ao comandar as ações através da ordem do “veja e repita”, como ocorre na primeira versão da obra em que Robinson indica a direção do correto ao nativo. No século XX, Sexta-feira convida o navegante à troca, pela via do bom encontro, de uma potente experimentação que fala ao ouvido “experimente”, “viva a ilha como um des-território”, “experimente-a por ela mesma”, não busque significado apenas “experimente”. Isso basta, pois é na própria experimentação com prudência, como indicam Deleuze e Guattari em Mil Platôs, que o mundo se abre em novas direções atualizadas. Nos parece estar presente, aí, o lugar da literatura para Deleuze e para Guattari: ela nos arrasta para novos mundos e nos leva a criar novas realidades. Uma literatura é, também, uma máquina de guerra contra toda e qualquer estrutura arcaizante. Um romance, podemos dizer, é um Outrem.

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Recebido: 23 de Março de 2021; Aceito: 15 de Março de 2022

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