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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia mayo/agosto 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p695a726 

Artigos

Catarse e educação dos sentidos: A contribuição da filosofia estética de Theodor Adorno

Catharsis and education of senses: The contribution of aesthetic philosophy of Theodor Adorno

Catharsis et éducation des sens: La contribution de la philosophie esthétique de Theodor Adorno

Robson Loureiro* 

Sandra Soares Della Fonte** 

Tamiris Souza de Oliveira*** 

*Doutor em Educação: História e Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Filosofia da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Pósdoutorado em Filosofia pela School of Philosophy da University College Dublin. E-mail: robbsonn@uol.com.br

**Doutora em Educação: História e Política (UFSC). Professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: sdellafonte@uol.com.br

***Mestre em Educação: Educação e Linguagens (UFES). Professora da Rede Pública da Serra (ES). E-mail: tamyrys1706@yahoo.com.br


Resumo

Este artigo indaga a potencialidade da categoria catarse presente na teoria estética do filósofo Theodor Adorno. O objetivo é dimensionar o debate sobre formação estético-cultural e apropriação crítica dos produtos da indústria cultural no espaço escolar. Em Adorno, o tratamento dado à catarse sofre pelo menos um duplo deslocamento: a) em relação à psicanálise, reata o vínculo com a objetividade da história; b) em relação a Aristóteles, deixa de ser uma experiência do sujeito e é tratado como traço da obra de arte. Sugerem-se dois eixos de análise: 1) um vínculo mais direto entre a concepção de catarse em Adorno e a experiência estética de ensino de artes na escola e 2) a extensão dos traços da obra artística autêntica para os conhecimentos a serem tratados pedagogicamente pela instituição escolar.

Palavras-chave: Catarse; Theodor Adorno; Teoria educacional crítica

Abstract

This article investigates the potential of catharsis as an important concept present in Theodor Adorno´s Aesthetic Theory. It aims to scale the debate on aesthetic-cultural training and critical appropriation of culture industry products at school. In Adorno, the treatment given to catharsis suffers at least a double shift: a) in relation to psychoanalysis, reattaches the link to the objectivity of history; b) in relation to Aristotle, no longer an experience of the subject and is treated as a trait of the artwork. It proposes two lines of analysis: 1) a more direct link between the concept of catharsis in Adorno and aesthetic experience of arts education in school; 2) the extent of the authentic artistic work traces for knowledge to be treated pedagogically by the academic institution.

Keywords: Catharsis; Theodor Adorno; Critical educational theory

Résumé

Cet article pose des questions sur la potentialité de la catégorie catharsis présente dans la théorie esthétique du philosophe Theodor Adorno. L'objectif est de dimensionner le débat sur la formation esthétique-culturelle et l'appropriation critique des produits de l'industrie culturelle dans l'espace scolaire. A Adorno, le traitement accordé à la catharsis subit au moins un double déplacement: a) par rapport à la psychanalyse, ele reprend le lien avec l'objectivité de l'histoire; b) par rapport à Aristote, elle cesse d'être une expérience du sujet et est traitée comme un trait de l'œuvre d'art. Nous proposons deux axes d’analyse: 1) un lien plus direct entre la conception de la catharsis à Adorno et l& #39;expérience esthétique de l'enseignement des arts à l'école; 2) l'extension des traces de l'œuvre artistique authentique aux savoirs à traiter pédagogiquement par l'institution scolaire.

Mots-clés: Catharsis; Theodor Adorno; Théorie de l'éducation critique

Introdução

Esta pesquisa indaga a potencialidade que possui a categoria catarse presente na teoria estética do filósofo alemão Theodor Adorno para dimensionar a discussão sobre formação estético cultural e apropriação crítica dos produtos da indústria cultural no espaço escolar.

Mas por que a preocupação com a formação estético-cultural? Entendemos que a educação para a sensibilidade não se reduz à formação para fruição no campo das artes, mas faz par com a apropriação crítica da cultura. Portanto, educação para a sensibilidade e formação cultural são demandas que perfazem o processo de humanização e que, em tese, devem ser garantidas pela formação educacional. Talvez tratar dessa dimensão formativa no âmbito da escola carregue uma dose de desafio, uma vez que essa temática nem sempre é abordada de forma crítica fora dos cânones estabelecidos e tornados lugar-comum.

Cabe registrar que já existem estudos (SAVIANI, 1991, 2013; DUARTE, 2008; FERREIRA, 2012; CHISTÉ, 2007; BARROCO; SUPERTI, 2014) que tematizam a relação entre educação escolar e a catarse, tendo em vista o horizonte de uma teoria educacional crítica. Quando esse conceito é abordado, recorre-a à elaboração de Gramsci (como o faz Saviani) ou a Lukács e Vigotski (como o fazem os demais). Em Saviani (2013), a catarse se transforma em uma categoria pedagógica que expressa o ápice do processo educativo, momento no qual o aluno, pela mediação do trabalho educativo, incorpora efetivamente os instrumentos culturais e passa por um deslocamento sugerido por Gramsci em termos políticos: de uma compreensão egoístico-passional para momento ético-político, isto é, para um grau elevado da consciência. Nas palavras de Saviani (2013, p. 74),

É, enfim, pela catarse que tudo aquilo que era objeto de aprendizagem se incorpora no próprio modo de ser dos homens, operando uma espécie de segunda natureza que transforma qualitativamente sua vida integralmente, isto é, no plano das concepções e no plano da ação.

A partir de Lukács, a catarse tem o sentido de “sacudida na subjetividade” (CHISTÉ, 2007, p. 22) do receptor da obra de arte. Já Vigotski usa esse termo para designar a reação estética de transformação dos sentimentos do sujeito (BARROCO; SUPERTI, 2014).

A experiência estética catártica tal como concebida por Lukács ou Vigotski é defendida no ensino da arte e é também estendida para o campo educacional em geral; desse modo, há uma convergência com a defesa de Saviani de que a catarse, no trabalho educativo, ocorre uma relação mais consciente do indivíduo com o gênero humano; portanto, quando o sujeito vivencia mudanças em termos de compreensão e ações concretas.

Em linhas gerais, o presente ensaio dá continuidade à discussão sobre esse conceito, na área educacional, já iniciada por esses pesquisadores. Não obstante, recorre ao tratamento dado por Theodor Adorno ao conceito de catarse, ainda inexistente na produção acadêmica da área.1 Para tanto, recorre-se, em especial, às reflexões presentes no livro Teoria Estética (ADORNO, 2011), com o significativo suporte de importantes comentadores e estudiosos desse filósofo.

Obra de arte e catarse na teoria estética de Adorno

Por se tratar de um conceito estético, a catarse pressupõe a aproximação com a concepção adorniana de arte. Em linhas gerais, Adorno entende que a arte é o “[...] refúgio do comportamento mimético” (ADORNO, 2011, p. 88), e é na obra artística que reside a possibilidade de manifestação sensível da mímese do movimento dialético entre natureza e processo civilizatório. Em outros termos, a arte é o espaço-tempo privilegiado para o processo de mímese intencional e consciente de elaboração do sensível e da realidade.

Apesar de defender a tese da autonomia da arte em relação à realidade, ele não a considera totalmente isenta de funcionalidade. A autonomia da arte, para Adorno, está relacionada com o distanciamento que a mesma deve conter para não ser mera representação da realidade. Em outros termos, a arte é capaz de carregar uma totalidade desveladora do real, e não a simples reprodução. Portanto, a arte é um fato social e, como tal, insere-se nos emaranhados complexos do viver societário, mas, ao mesmo tempo, é antítese da estrutura social.

Na tentativa de problematizar a noção de funcionalidade, Adorno dialoga com a teoria psicanalítica da arte para a qual o processo criativo e a produção do artista estariam diretamente relacionados à sublimação subjetiva do criador da obra, como forma de uma compensação libidinal. Em sua crítica à teoria psicanalítica da arte, Adorno desconsidera que as obras de arte sejam “[...] essencialmente como projeções do inconsciente daqueles que a produziram” (ADORNO, 2011, p. 21 - 22), pois essa análise as reduziriam a critérios de psiquismos que não abarcariam sua objetividade.

A tese psicanalítica de que, por exemplo, a música seria o meio de defesa de uma paranoia ameaçadora talvez seja válida no plano clínico, mas nada diz sobre a categoria e o conteúdo de uma única composição estruturada (ADORNO, 2011, p. 22). Em síntese, para Adorno, a concepção freudiana da arte, apesar de mediar o fazer artístico tanto na contextualidade do social como na penumbra dos desejos libidinais, rouba-lhe a possibilidade de confrontar-se com o não eu desencadeado no processo mimético. A teoria psicanalítica da arte nega a negatividade que a constitui e “[...] joga todo peso negativo para os conflitos pulsionais. Unifica-a em vez de estilhaçar” (SCHAEFER, 2012, p. 35). Enfatiza-se o sujeito psicológico, ao passo que se reduz a dimensão do não eu, ou seja, a objetividade que constitui o sujeito artista e sua obra.

Se a arte tem raízes psicanalíticas, são as da fantasia na fantasia da omnipotência. Na arte, porém, atua também o desejo de construir um mundo melhor, libertando assim a dialética total, ao passo que a concepção da obra de arte como linguagem puramente subjetiva do inconsciente não consegue apreendê-la (ADORNO, 2011, p. 24).

Como é possível perceber, Adorno critica a concepção psicanalítica de arte que, ao acentuar o caráter subjetivo da obra artística, não a apreende enquanto prática também objetiva.

A imanência da sociedade na obra é a relação social essencial da arte, não a imanência da obra na sociedade. Porque o conteúdo social da arte não está estabelecido fora do seu principium individuationis, mas é inerente à individuação, ela própria um elemento social, é que à arte está velada a sua própria essência social e só pela sua interpretação pode ser apreendida (ADORNO, 2011, p. 350).

Como desejo e praxis do artista, a obra de arte também é capaz de gerar efeitos em seus fruidores. Isso só é possível pela mediação da obra de arte autêntica, ou seja, aquela capaz de trazer em seu mimetismo a dialeticidade de ser representação social e da natureza (ADORNO, 2011). Enquanto mímese, a arte pode figurar uma possível reconciliação do ser humano com sua natureza reprimida. O que não significa reconciliação autoconservadora, um tornar-se semelhante à natureza, pois não se trata de um retorno, de uma unificação, mas de uma reconciliação intencional e consciente de reelaboração do gênero humano (ADORNO, 2011, p. 88).

A arte autêntica, de acordo com Adorno (2011, p. 288), difere das obras artísticas produzidas pela indústria cultural que visam unicamente o prolongamento congruente da visão hegemônica de produção de lucro, e a arte nessa lógica é reduzida a mercadoria. Uma obra de arte autêntica, escreve Adorno (2011, p. 88), é aquela capaz de promover uma experiência estética de fato dialética, na qual o fruidor se percebe enquanto natureza e não-natureza. Ela é a comunicação dialética da realidade e não realidade, da natureza e da não natureza. Pois, enquanto ser humano, a consciência da racionalidade (a não natureza) que me constitui deve estar ao lado da consciência do que dela é anterior, o lado natural. Ela é representação da realidade, mas, ao mesmo tempo, é antítese dessas situações reais; ela também é negação (ADORNO, 2011, p. 89).

Uma obra de arte na qual o criador preocupa-se com a complexidade e dialeticidade que envolvem seu fazer estético pode se apresentar como autêntica e como possibilidade do novo. O zelo na produção artística é importante não só em seu conteúdo. O mesmo cuidado é necessário para a forma estética na qual ela (a obra) se apresenta. Para se desencadear a catarse, em suas reflexões sobre a arte Adorno preserva o movimento dialético entre conteúdo e forma.

Em consideração à experiência catártica tal como apresentada por Aristóteles (1997), Adorno (2011, p. 359) afirma que “[...] a catarse (aristotélica) é uma ação purgativa das emoções que se harmoniza com a repressão”. De acordo com Schaefer (2012), Adorno leva em consideração a relevância da catarse aristotélica como conhecimento importante, inerente à história da arte e da estética. Contudo, ele afirma que Adorno critica essa perspectiva justamente por ela focar a fruição e consequente sublimação apenas no conteúdo, o que a faz revelar sua faceta ideologicamente repressora, no sentido de “[...] fazer esquecer o presente em favor do passado” (SCHAEFER, 2012, p. 429). Em outros termos, no sentido de focar apenas no conteúdo e no fruidor e não na obra artística em sua forma é que, de acordo com Schaefer, Adorno considera a catarse aristotélica obsoleta:

A catarse aristotélica é arcaica enquanto parcela da mitologia da arte, inadequada aos efeitos reais. Eis porque, mediante a espiritualização, as obras de arte realizaram em si o que os gregos projectavam no seu efeito exterior: no processo entre a lei formal e o conteúdo material, elas são a sua própria catarse (ADORNO, 2011, p. 359).

Nesse ponto, a teoria estética de Adorno diferencia-se da concepção aristotélica, uma vez que, para ele, no avanço histórico-social da arte e no seu gradual movimento de interiorização, as obras passaram a realizar, “[...] no processo entre a lei formal e o conteúdo material [...] a sua própria catarse” (ADORNO, 2011, p. 359).

Adorno mantém distância desse tipo de catarse puramente emocional, porque esta busca cooptar o âmbito afetivo do indivíduo (ROSA, 2007). Ele pensa que, no intuito de se tomar consciência-de-si e da trama social e política que o envolve, “[...] o espectador deve se manter distanciado e acionar o processo de associação de ideias para melhor reconhecer e julgar o que vê-ouve-sente diante de si” (ROSA, 2007, p. 52).

Na teoria estética de Adorno, a obra de arte é que recebe a purificação, não o receptor. Purificação estética, e não moral. No momento que os conteúdos materiais artísticos passam por reconfigurações internas, esses processos, que ocorrem entre forma e material, são a própria catarse (SCHAEFER, 2012, p. 429).

Adorno não desconsidera a importância do conteúdo para a obra de arte e muito menos da emoção proporcionada pela fruição, mas, para ele, a catarse autêntica na arte não se restringe à mera identificação subjetiva do fruidor, condição que a faria semelhante ao sentido aristotélico de catarse, mas, sim, aquela em cujo potencial está na expressão capaz de revelar uma tensão entre conteúdo e forma, particular e geral. A expressão que diz “[...] com um gesto sem palavras” que abre possibilidades para a imagem do novo ou do não-idêntico (ADORNO, 2011, p. 358).

Sobre a diferença entre a catarse produzida pela obra de arte autêntica e a tutelada e administrada pela indústria cultural, Adorno (2011) considera que a arte autêntica não pode ser considerada vulgar (kitsch), pois a possível imagem do novo não é um produto ou um sentimento que pode ser vendido sob o arrimo da indústria cultural. A arte autêntica não pode ser mera reprodução de uma forma social, ela se configura na mimesis consciente e dialética da realidade: “Do ponto de vista social, o vulgar é, na arte, a identificação subjectiva com o envilecimento objectivamente reproduzido” (ADORNO, 2011, p. 361). Em outros termos, a arte enquanto expressão estética também não pode deturpar a realidade: negá-la não é escondê-la. Nesse sentido, pode-se afirmar, a partir de Adorno, que a indústria cultural é a operadora da semiformação presente e consistentemente produzida em nossa sociedade pautada na exploração. A arte e a produção artística, por serem fatos sociais, não escapam a essas relações. A arte enquanto kitsch torna-se uma mercadoria útil apenas para a manutenção do sistema (ADORNO, 2011, p. 360).

A “catarse regressiva” da indústria cultural

Enquanto mecanismo de fruição crítica de obras artísticas, Adorno aborda o conceito de catarse como aspecto importante na função da arte para uma formação plena. Para ele, “[...] a obra de arte em si, como algo de espiritual, torna-se o que outrora lhe era atribuído enquanto efeito sobre outro espírito, como catarse, sublimação da natureza” (ADORNO, 2011, p. 298). Ou seja, o efeito catártico que, em especial na filosofia estética de tradição aristotélica, estava diretamente relacionado com o fruidor, na teoria estética de Adorno há um deslocamento para a obra em si: é o seu o elemento crítico dialético que desempenha o papel de catarse. No entanto, em um contexto de massificação cultural e do que ele chama de semiformação, o que se percebe é a despotencialização da catarse.

A purificação das emoções na Poética de Aristóteles já não professa interesses tão nítidos pela dominação, mas, no entanto, ainda os conserva, na medida em que o seu ideal de sublimação encarrega a arte de instaurar a aparência estética como satisfação de substituição em vez de uma satisfação física dos instintos e das necessidades do público visado: a catarse é uma acção purgativa das emoções que se harmoniza com a repressão (ADORNO, 2011, p. 359).

A utilização da catarse enquanto puro efeito emocional pautado apenas no fruidor foi apropriada pela indústria cultural como forma de dominação e anestesiamento diante dos problemas sociais. Essa é a denúncia que Adorno (2011) faz ao analisar todos os artifícios que o sistema capitalista promove para ludibriar os sentidos do fruidor e lhes dar muito do mesmo. Adorno (2011, p. 359) considera que a indústria cultural não realiza uma catarse autêntica, capaz de promover uma experiência estética dialética, consciente e mediadora para uma formação plena. Ao contrário, ela promove uma descarga emocional, em um primeiro momento desprovida de qualquer relação educativa, apenas vista enquanto finalidade do entretenimento, arte como valor de troca que serve apenas à lógica mercantil. Nesse sentido, “[...] a doutrina da catarse imputa [...] à arte o princípio que, finalmente, toma a indústria cultural sob a sua tutela e a administra” (ADORNO, 2011, p. 359).

Os agentes e operadores da indústria cultural administram, de forma quase sempre eficaz, as porções de libido que devem ser sublimadas por seus espectadores (DUARTE, 2010a, p. 58). Na relação de dar sem dar, a indústria cultural apenas fornece um alívio instintivo e emocional sem qualquer vínculo de prolongamento, o que torna ainda mais latente a explosão desses mesmos instintos reprimidos. Por essa razão, para Adorno (2011, p. 361), “[...] na época da administração total, a cultura já não precisa começar a rebaixar os bárbaros que criou; basta lhe reforçar por meio dos seus rituais a barbárie, que se sedimentou subjetivamente, desde há séculos”.

Esse procedimento de controle libidinal tem por objetivo “[...] servir de válvula de escape para abortar eventuais desejos individuais de enxergar por trás dos mecanismos que movem as coisas” (ROSA, 2007, p. 54). Essa seria, de acordo com Rosa (2007), uma catarse regressiva que cotidianamente reproduz dominação e impossibilita aos indivíduos manterem o distanciamento necessário com fins à elevação, ao nível da consciência, das complexas relações sociais reprimidas pelos produtos daquela indústria, vendidos como obra de arte.

Nas palavras de Adorno (2007), “[...] o segredo da sublimação estética: [é] representar a satisfação na sua própria negação. A indústria cultural não sublima, mas reprime e sufoca” (ADORNO, 2007, p. 35). Essa indústria do divertimento somente excita seus espectadores. A nudez da celebridade ascendente serve apenas como suporte para se alcançar “ibope”; por trás do seio aparente existe o conservadorismo inerente da classe que quer se manter no poder.

Antecipa-se o prazer, mas não o sublima. Com relação à administração da catarse promovida pela indústria cultural, Adorno argumenta que a insatisfação dos instintos, mediada por ela, pode retornar em forma de barbárie (DUARTE, 2010a, p. 56). Uma vez que as pulsões libidinais recalcadas de forma não elaborada podem gerar em nossa consciência um sentimento de incompletude enquanto sujeitos genéricos, Duarte observa que essa incompletude ocorre porque a cultura de massas “[...] não apenas desqualifica o sujeito, como também mina as condições para seu aparecimento e desenvolvimento” (DUARTE, 2010a, p. 57). Esse ser genérico, que se constitui a partir do indivíduo em suas complexas dimensões e relações socionaturais, submerge em uma massa social que manifesta seus recalques no vulgar. Nas palavras de Adorno (2011, p. 361):

O modelo do esteticamente vulgar é a criança que, na publicidade, fecha a meio os olhos quando saboreia o pedaço de chocolate, como se fosse pecado. No vulgar, regressa o recalcado com as marcas do recalcamento; expressão subjectiva do fracasso justamente daquela sublimação que a arte apregoa zelosamente como catarse e que a si atribui como mérito porque sente que, até hoje, - e como toda a cultura - pouco conseguiu.

É diante desse cenário de catarse regressiva que Adorno traça a diferença entre a catarse autêntica, promovida pela arte, e o kitsch. Para Adorno (2011), o kitsch é o “brega” na cultura, aquilo que parodia a catarse com sua identificação e sentimentalismo exacerbado, isto é, mera pilhagem sentimental. Nos produtos da indústria cultural, vê-se que o kitsch “[...] está misturado em toda a arte como um veneno; separar-se dele constitui hoje uma das suas tentativas mais desesperadas” (ADORNO, 2011, p. 360).

A funcionalidade da arte concebida pela indústria cultural apenas como entretenimento de forte caráter subjetivo perde no seu processo de fruição toda objetividade (síntese de complexas relações) e se torna coisa limitada ao estigma subjetivo do fetiche (ADORNO, 2011, p. 361). Em outros termos, a arte vista apenas como entretenimento é a evidente legitimidade da ideologia; onipresença da repressão.

O consenso da arte com as reacções individuais mais fugitivas associou-se à sua reificação, e a sua semelhança crescente com o elemento físico subjectivo afastou-se consideravelmente da produção da sua subjectividade, recomendando-se ao público; nesta medida, o slogan l'art pour l’art foi a máscara do seu contrário (ADORNO, 2011, p. 360).

Pucci (2006) observa que o apelo exagerado ao subjetivismo artístico, fato que agrega mais valor ao produto, na realidade enfraquece ainda mais a subjetividade. Essa catarse às avessas, com sua “[...] arte sem sonho e destinada ao consumo” (PUCCI, 2006, p. 100), conduz o público fruidor à identificação integral com o todo, à fusão impessoal com o real, acorrentando-o na incapacidade de imaginar algo de fato novo, diferente do real vivido e que pode ser mudado, uma vez que até o novo nos é usurpado (PUCCI, 2006, p. 100).

Em alusão ao conceito adorniano de catarse, Rosa observa:

Uma consciência que possibilite ao indivíduo reprimido pela racionalidade [...] o lampejo que lhe faça compreender o processo “civilizatório” por meio do qual o mundo está sendo administrado e a esperança de encetar uma revisão desse processo. Um evento, então, não de cegueira e de entrega, mas de ampla abertura dos olhos e da consciência (ROSA, 2007, p. 65).

Para Adorno, esse casamento do reprimido com a esperança só é possível quando se sai do sempre semelhante promovido da indústria cultural, seja com as músicas, literatura ou filmes. O que se vê são produtos culturais sob um véu de sempre novo. Aí está a contradição, pois “[...] a consciência, até hoje acorrentada, não é, sem dúvida, senhora do novo, mesmo em imagem: sonha com o novo, mas não é capaz de sonhar o próprio novo” (ADORNO, 2011, p. 359). Só se pode sonhar o novo quando distanciado do real, quando se tem a consciência do não-idêntico. O novo surge a partir da dialética que nos constitui, de ser e não ser natureza e como essa relação nos constituiu historicamente (ADORNO, 2011).

Em síntese, percebe-se que, para Adorno, catarse envolve tanto aspectos internos da obra de arte quanto aspectos externos da relação da mesma com a sociedade/realidade. A potência da catarse acontece como “[...] efeito emocional-emotivo desencadeado pela mimese, com toda a carga dialética de que essa se alimenta” (ROSA, 2007, p. 184).

Não obstante, para que o processo mimético ocorra, de forma reflexiva, Rosa argumenta que, para Adorno, na tensão entre conteúdo e forma, esta “[...] é imanente ao princípio identificador da mimesis, mas é também nela (na forma) que o princípio de diferenciação pode ocorrer. E assim o processo catártico pode sinalizar seu aspecto de resistência frente ao real” (ROSA, 2007, p. 187).

Schaefer também afirma que “[...] os processos que ocorrem entre forma e material são a própria catarse” (SCHAEFER, 2012, p. 430) e, nesse sentido, ambos os comentadores afirmam que, em Adorno, catarse está diretamente relacionada com a tensão dialética que constitui a obra de arte. É nessa tensão que, na técnica formuladora da forma, pode-se captar toda gênese histórica e dialética que constitui a arte e pode projetar a arte como vanguarda (ROSA, 2007, p. 188). Aí se encontra o princípio para a possibilidade do novo na arte e, consequentemente, a origem para o processo catártico desencadeado a partir da racionalidade estética mediadora entre sujeito e mundo (ROSA, 2007).

Catarse e formação estética crítica

Nesse item, o objetivo é refletir sobre possíveis desdobramentos educacionais da categoria catarse, tal como desenvolvida na filosofia estética de Adorno. Para tanto, a opção, aqui, é manter um diálogo com as teorias educacionais críticas. Essa escolha se justifica em função do entendimento de que, no atual contexto de vida, a educação tem condições de compreender os processos de fetichização que ela própria reproduz e de contribuir para a superação das desigualdades sociais que fundamentam a sociedade capitalista:

[...] contra uma educação centrada na cultura presente no cotidiano imediato dos alunos que se constitui, na maioria dos casos, em resultado da alienante cultura de massas, devemos lutar por uma educação que amplie os horizontes culturais desses alunos; contra uma educação voltada para a satisfação das necessidades imediatas e pragmáticas impostas pelo cotidiano alienado dos alunos, devemos lutar por uma educação que produza nesses alunos necessidades de nível superior, necessidades que apontem para um efetivo desenvolvimento da individualidade como um todo; contra uma educação apoiada em concepções do conhecimento humano como algo particularizado, fragmentado, subjetivo, relativo e parcial que, no limite, negam a possibilidade de um conhecimento objetivo e eliminam de seu vocabulário a palavra verdade, devemos lutar por uma educação que transmita aqueles conhecimentos que, tendo sido produzidos por seres humanos concretos em momentos históricos específicos, alcançaram validade universal e, dessa forma, tornam-se mediadores indispensáveis na compreensão da realidade social e natural o mais objetivamente que for possível no estágio histórico no qual encontra-se atualmente o gênero humano (DUARTE, 2001, p. 31).

Por essa razão, decidimos dialogar com uma vertente das teorias educacionais críticas que defende que o espaço escolar é lócus privilegiado de acesso e socialização do conhecimento historicamente elaborado, lugar de mediação entre saber espontâneo e sistematizado. Diante da precarização do trabalho docente em todos os níveis e do enfraquecimento da escola enquanto espaço e tempo de formação, alguns autores (DUARTE, 2010b; DELLA FONTE, 2010) apontam para a importância do fortalecimento dessa instituição no sentido de promover a ampliação da formação cultural e política dos diversos segmentos da classe trabalhadora.

Como já mencionado na introdução deste artigo, a apropriação do conceito de catarse não é estranha a essa perspectiva de educação que tem recorrido a autores como Gramsci, Vigotski ou de Lukács. Cada um desses autores elabora uma compreensão de catarse a partir de um contexto específico de preocupação e com sentidos também específicos. Na apropriação para o campo da educação, recuperam-se traços fundamentais desse conceito a partir de cada teórico, mas para extrair daí uma inspiração para se pensar algo diferente do que elaborado. Nesse sentido, por exemplo, esse termo tem inspirado propostas de métodos de ensino (SAVIANI, 2001; GASPARIN, 2009) e a defesa do ensino da arte como possibilidade de se desenvolver uma relação mais consciente com o gênero humano (FERREIRA, 2012).

Ao levantar as possíveis contribuições que o conceito adorniano de catarse pode oferecer para a teoria educacional crítica, segue-se essa indicação de buscar inspiração em um filósofo não apenas para repeti-lo, mas para pensar algo que ele próprio não pensou. Para tanto, indicam-se dois possíveis eixos de análise. No primeiro eixo, elege-se um vínculo mais direto entre a concepção de catarse em Adorno e a experiência estética de ensino de artes na escola. No segundo, apropria-se da compreensão adorniana de catarse para se ampliar seu sentido: isso que Adorno trata em termos de traços da obra artística autêntica é estendido para a definição dos conhecimentos a serem tratados pedagogicamente pela instituição escolar. Foquemos no primeiro eixo analítico.

Em seu ensaio Teoria da semiformação, Adorno observa que formação devia ser aquela que dissesse respeito - de uma maneira pura como seu próprio espírito - ao indivíduo livre e radicado em sua própria consciência, ainda que não tivesse deixado de atuar na sociedade e sublimasse seus impulsos. A formação era tida como condição implícita a uma sociedade autônoma: quanto mais lúcido o singular, mais lúcido o todo (ADORNO, 2010, p. 8).

A tendência, no atual contexto social, é que a formação estética e cultural se converta em uma semiformação socializada pelo simples fato de os produtos culturais já não mais se expressarem como valor de uso e se tornarem valores de troca integrados à lógica do mercado. Em outros termos, a subjetividade é paulatinamente formada pelas “mercadorias culturais”.

A ideologia dominante - indústria cultural - tende a substituir a consciência pelo conformismo, pois dificilmente essa ordem social é confrontada. Os mais bem adaptados são premiados. O processo formativo é congelado em categorias fixas, reduzido ao consumo de bens culturais, além de promover e favorecer a regressão sensível e valorizar o individualismo (ADORNO, 2010).

No processo de fruição do espectador, a funcionalidade da arte como mera mercadoria e entretenimento de forte caráter subjetivo tende, de acordo com Adorno, a perder toda a objetividade que a constitui, que incorpora a síntese de complexas relações (ADORNO, 2011).

Necessidades artificiais e satisfações superficiais: pode-se afirmar que esse seria o lema da indústria cultural e aqui se encontra a crítica de Adorno à catarse realizada por essa indústria do entretenimento.

A autonomia, condição primordial da formação, não teve tempo de se constituir em todos os homens e mulheres (muito em função dos próprios interesses da burguesia) e a consciência passou de uma heteronomia (feudalista, comandada pela religião) para outra, agora ditada pelos valores da razão instrumental do modo de produção capitalista. Se considerarmos ser uma das funções da escola a mediação entre o saber espontâneo e o saber elaborado, parece-nos inevitável que os produtos da indústria cultural adentrem o espaço escolar e se imponham como ponto de partida do processo educativo.

A preocupação, aqui, diz respeito à falta de vínculo com o passado ou mesmo de prolongamento do eterno presente que a utilização de alguns desses artefatos da indústria cultural pode provocar no ambiente escolar. O mero alívio instintivo e emocional da catarse regressiva tende a dificultar o distanciamento crítico necessário com fins à elevação, ao nível da consciência, das complexas relações sociais reprimidas pelos produtos daquela indústria, vendidos como obra de arte (ADORNO, 2007). Nesse sentido, a escola e os professores acabam por oferecer muito do mesmo.

Esse é o desafio da educação. Como sair do sempre semelhante? A tese que se defende, a partir de Adorno e da teoria crítica da sociedade, é de que só é possível projetar o novo quando distanciado da realidade, quando se tem a consciência do não idêntico. A escola também lida com uma tensão, mas, de outra ordem: ela se constitui como espaço e tempo no qual a vida cotidiana também precisa ser negada (DUARTE, 2001).

Na lógica da semiformação, o mediato tende a se transformar rapidamente em imediato. Assim, uma perspectiva educacional vinculada a um projeto social de emancipação recusa o imperativo categórico da aplicabilidade, da imediaticidade de tendência barbaramente antiintelectual. Em contrapartida, ela valoriza aquilo que Adorno (2010) chama de esforço de compreender a conexão de um viver em si relativamente uníssono.

Dessa forma, prolongar a esfera cotidiana da vida significa contribuir para a reprodução da alienação. No que se refere à escola, o processo educativo tem como ponto de partida as atividades típicas da vida cotidiana. Ou seja, parte-se da prática social imediata, da vida cotidiana; pela mediação do não cotidiano, com e no acesso às objetivações humanas mais complexas (ciência, artes, moral, política, ética, filosofia), retorna-se ao cotidiano de forma mais enriquecida. Nesse sentido, pode-se concordar com Snyders, para quem a escola se efetiva pela dialética de continuidade e descontinuidade do viver cotidiano.

Por um lado, o processo educativo parte da “[...] valorização da vida, da pessoa, da cultura dos alunos” (SNYDERS, 1993, p. 161); por outro, é preciso romper com essa continuidade, isto é, “[...] abrir a cultura do estudante para a vida, não somente em nível corrente, cotidiano [...] mas também na altura do mais elaborado, do que há de mais importante nas realizações e esperanças dos homens” (SNYDERS, 1993, p. 88).

Theodor Adorno sempre se preocupou com a dimensão cultural e da formação humana. Contudo, ele não formulou nenhum sistema pedagógico, ou sequer uma pedagogia educacional. Não obstante, em sua ampla contribuição para o campo da crítica cultural, é possível perceber sua defesa em busca de uma formação (Bildung) a contrapelo da desigualdade reinante no sistema político-econômico hegemônico. Em Educação e emancipação (1995), por exemplo, fica evidente sua preocupação com o esfacelamento e brutal concorrência que a escola, já em sua época, na Alemanha, enfrentava no início da propagação dos meios de comunicação de massa: “[...] a sociedade forma as pessoas mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de um modo tal que tudo absorvem e aceitam nos termos desta configuração heterônoma que se desviou de si mesma em sua consciência” (ADORNO, 1995, p. 181).

Na reflexão adorniana, a crise que hoje se observa na formação cultural, de fato, é índice de uma crise geral da cultura que em hipótese nenhuma deriva da insuficiência do sistema e dos métodos educacionais. Ela se vincula ao modo historicamente datado da existência humana.

Nessa direção, o problema da formação não se limita a uma questão da pedagogia/sistema educacional. Em outros termos, reformas educacionais são importantes, mas não são garantia de solução; em alguns casos, até pioram a crise e contribuem para a ocultação do poder extrapedagógico sobre ela:

O que hoje se manifesta como crise da formação cultural não é um simples objeto da pedagogia, que teria que se ocupar diretamente desse fato, mas também não pode se restringir a uma sociologia que apenas justaponha conhecimentos a respeito da formação. Os sintomas de colapso da formação cultural que se fazem observar por toda parte, mesmo no estrato das pessoas cultas, não se esgotam com as insuficiências do sistema e dos métodos da educação, sob a crítica de sucessivas gerações. Reformas pedagógicas isoladas, indispensáveis, não trazem contribuições substanciais. Poderiam até, em certas ocasiões, reforçar a crise, porque abrandam as necessárias exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam uma inocente despreocupação frente ao poder que a realidade extrapedagógica exerce sobre eles (ADORNO, 2010, p. 7 - 8).

Por conseguinte, a posição de Adorno desautoriza qualquer interpretação ingênua que porventura considere que ele vincula a atividade educativa, e a educação escolar como um todo, a uma suposta perspectiva redentora ou salvacionista. Contudo, se o problema da formação não pode ser reduzido às reformas pedagógico-educacionais, isto não pode ser entendido como mais uma expressão de um suposto pessimismo de Adorno? É possível. Mas, quando se trata de formação, ele insiste no resgate da tensão entre autonomia e adaptação presente no processo de construção cultural, na constituição da Bildung. Sobre essa tensão, Pucci (1998, p. 90) faz a seguinte consideração:

Ser autônomo sem deixar de se submeter; submeter-se sem perder a autonomia. Aceitar o mundo objetivo, negando-o continuamente; afirmar o espírito, contrapondo-lhe a natureza. É essa tensão constitutiva da cultura enquanto instrumental negativo e emancipador do sujeito que Adorno quer reavivar em pleno capitalismo tardio.

A educação, portanto, é mediação sine qua non nesse processo formativo para a autonomia, em que os indivíduos formam, sempre a partir dos ditames de outrem, uma imagem (Bild) de si mesmos. Concomitante, a educação e a apropriação da cultura se constituem como possibilidade de se ir além do que está posto, preestabelecido. Por meio da cultura, podemos alargar nossos horizontes, conhecer outras realidades, outras visões de mundo, nos constituir de forma única e original. Podemos, principalmente, ampliar nossos referenciais estéticos, permitindo uma fruição rigorosa e fundante de outras lógicas possíveis (NOGUEIRA, 2012, p. 622).

O trabalho educativo que carrega o potencial do esclarecimento constitui-se como um momento subjetivo e objetivo no processo de apropriação do conhecimento e, também, como dimensão criativa da razão conceitual e sensível. Ele é a formação que ocorre em processo de contraposição à semiformação, pois é uma “[...] busca que atinge o homem e a sociedade enquanto um todo, em sua capacidade subjetiva/objetiva, nas condições ideais e materiais de reagir, de se contrapor e de direcionar a perspectiva da emancipação” (PUCCI, 1998, p. 112).

Entretanto, o ponto de partida do trabalho educativo escolar reside no fenômeno da “catarse regressiva”. Submetê-la à crítica parece ser momento fundamental para que esse ponto de partida não se projete como ponto de chegada. Contudo, não cabe fazer um escrutínio moral, mas propriamente estético de modo a evidenciar os traços empobrecidos da mercadoria cultural. Considerando que “A crítica não se acrescenta de fora à experiência estética, mas é-lhe imanente” (ADORNO, 1982, p. 382), a formação sensível envolve, ao mesmo tempo, a educação da capacidade reflexiva. Por outro lado, percebe-se que o exercício reflexivo mobiliza a existência sensível do humano. Eis porque, na arte autêntica, diferente dos produtos da indústria cultural, a mimese refere-se ao que é não-idêntico. No contato com uma obra de arte autêntica, o indivíduo é impelido a imitar o inesperado. Tarefa nada fácil, visto que depende “[...] de um conjunto de forças subjetivas que normalmente não são colocadas em jogo na atitude passiva no cotidiano, e que são virtualmente abandonadas na indústria cultural” (FREITAS, 2003, p. 36).

Nesse ponto, Adorno dá indícios de uma preocupação com a educação estética. Para ele, indivíduos carentes de formação cultural dificilmente percebem o caráter enigmático das obras de arte. A tendência, nesse caso, é que o indivíduo com baixa sensibilidade estética em geral realize uma crítica externa à arte (ADORNO, 1982, p. 140 - 141). Ao não perceber o caráter enigmático para além de níveis elementares, o indivíduo amúsico concebe a obra de arte como uma grande confusão. O elemento diferenciador entre o iniciado e o indivíduo desprovido de formação estética ou semiformado está, conforme Adorno, na possibilidade de percepção do caráter enigmático da arte:

Quem é totalmente privado de “ouvido musical”, quem não compreende a “linguagem da música”, percebendo aí apenas a confusão e interrogando-se o que pode significar tais ruídos, só elementarmente se dá conta do caráter enigmático. A diferença entre o que ele ouve e o que ouve o iniciado circunscreve o caráter enigmático (ADORNO, 1982, p. 141).

Por sua vez, é bastante complexo por em evidência o empobrecimento das mercadorias culturais, pois o critério de empobrecimento da arte reduzida a produto vendável só pode ser exposto e analisado diante de obras de arte autênticas. São essas que oferecem o critério estético para desvelar o nível de complexidade, objetividade, antítese social e desafio materializado nas formas das manifestações estético-artísticas. A partir de Adorno (2002), pode-se afirmar que é o efeito catártico da obra de arte autêntica que pode despertar e conduzir uma formação deslocada dos protocolos do clichê da indústria cultural. Tal efeito ajuda a quebrar a faceta de identificação/empatia exacerbada que prejudica o distanciamento crítico que no processo de semiformação se faz ausente.

É nesse sentido que se defende o estudo da imanência da arte como um dos focos do ensino das artes e experiências estéticas na escola, inclusive articulados com o incentivo às próprias experimentações artísticas.

Antônio Cândido (2006) oferece indicações muito próximas das inspirações adornianas ao focar no romance Senhora, de José de Alencar. Além das referências sociais mais evidentes, ele sugere um caminho “[...] nas camadas mais fundas da análise, - o que só ocorre quando este traço social constatado é visto funcionando para formar a estrutura do livro” (CÂNDIDO, 2006, p. 16). Em outros termos, “[...] o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica” (CÂNDIDO, 2006, p. 17). Estimulados por essa proposta, ousamos destacar alguns aspectos estéticos de Vidas secas de Graciliano Ramos que ilustram o caráter catártico que esse romance porta.

A linguagem do narrador é comedida. Tal frugalidade é arranhada pela delicadeza do relato da morte da cachorra Baleia, quando o narrador introduz na escrita, por exemplo, diminutivos: “Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha” (RAMOS, 2007, p. 50). Mais à frente: “Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinha Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo” (RAMOS, 2007, p. 50).

Por sua vez, a linguagem das personagens é movida por interjeições, murmúrios, gestos; suas conversas são entrecortadas, incongruentes e monossilábicas. No capítulo “Inverno”, há a menção a uma conversa dos pais:

Não era propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. As vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediamse, deformavam-se, não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto (RAMOS, 2007, p. 34).

Vê-se, portanto, que a secura não é apenas atmosférica; o sertão é o lugar da terra ressequida, da vida árida e da linguagem enxuta/murcha. Essa aspereza se expressa na composição de Vidas secas.

Também chama atenção que os filhos de Fabiano e Sinha Vitória não recebam um nome no romance. Sua identidade se dá pela sequência de parição: o menino mais velho e o menino mais novo. Eles estão em situação de anonimato, ou seja, possuem nomes, mas o narrador impede que essas designações apareçam nas linhas de Vidas secas? Nesse caso, por qual motivo faria isso? O narrador estaria os protegendo? Ou os meninos são crianças inomináveis, cujas vidas e identidades são tão absurdas e descomunais que não se deixam captar por qualquer palavra?

Independente de quais respostas se possam esboçar, essa condição dos filhos provoca algumas tensões. Por um lado, traz desconforto, pois todos da família possuem seus próprios nomes, inclusive a cadela, por mais que receba, de modo paradoxal, o nome de um outro bicho (Baleia). Por outro, essa ausência de nome das crianças permite que a elas sejam dados muitos nomes, o nome de todos os filhos de família de retirantes que, em várias partes do mundo, fogem da aridez da vida: da seca do sertão nordestino, dos conflitos de guerra na Síria e na

Eritreia, do genocídio de Ruanda ou do “deserto de lama” que resultou do desastre ecológico do rompimento das barragens da Samarco na cidade de Mariana.

Por fim, ainda no espírito de mostrar como a catarse é imanente à própria obra artística, percebe-se que Vidas secas é um romance que se desenrola entre duas secas. Comparece, então, a questão: o romance termina como começa? A coincidência da seca narrada no capítulo inicial

“Mudança” e a ausência de chuva que prenuncia um novo ciclo de seca no capítulo “Fuga” parece sugerir que sim. Contudo, a fuga final da família de retirantes é diferente, pois aponta para um lugar específico: o Sul.

Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles. [...] Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de Sinha Vitória, as palavras que Sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos (RAMOS, 2007, p. 71).

O traço diferenciado desse novo êxodo traz novas questões. O que se repete no romance Vidas secas: a seca? A fuga da seca? O desejo de uma terra prometida que acolha essa família?

O poderio do sertão ao desterrar mais uma família de homens fortes e brutos? O desejo de Fabiano e Sinha Vitória por aquilo que não se repetiu: uma terra civilizada onde filhos estudem e sejam diferentes deles? Como se observa, a tensão cíclico e não cíclico aparece, assim, como um dos enigmas do romance cuja decifração não é fácil e está longe de se resolver na identidade imediata entre o capítulo de início e fim da obra.

Considerando essa breve e ilustrativa análise, de alguns elementos catárticos condensados em Vidas secas, cabe-nos atentar: “O acesso à obra-prima não é fácil, e não pode se tornar fácil. O desnivelamento em relação ao cotidiano é grande demais, e este acesso não será jamais um jogo a se desenrolar pacificamente. Os alunos ficarão surpreendidos, pasmados, irão opor resistência” (SNYDERS, 2008, p. 20). Um processo educativo assim exige esforço, sistemática, acompanhamento; por vezes, recurso a “obras intermediárias” (SNYDERS, 2008, p. 40) é um recurso para favorecer o desenvolvimento estético dos estudantes e a apropriação de graus diferenciados de complexidade das manifestações artísticas.

Por isso, torna-se relevante, nesse processo formativo, atentar-se para os construtos estético-sociais, isto é, “[...] fenômenos de altíssima relevância social, que, por outro lado, apesar de não preencherem os requisitos formais das obras de arte, só podem ser compreendidos se se leva em consideração o seu caráter estético” (DUARTE, 2014, p. 190). Eles portam, segundo Duarte (2014, p. 211), “[...] uma negatividade de caráter misto [...]. Nesse caso, a negatividade, em vez de se traduzir exclusivamente no elemento estético, oscila continuamente entre esse e um posicionamento ético-político de transformação radical do existente”.2

Em termos de formação sensível, em um horizonte crítico, a instituição escolar move-se pela tensão entre a catarse regressiva e a catarse propriamente dita; mais precisamente, a catarse regressiva é continuamente problematizada; isso só pode acontecer quando, pelo cultivo de formas elaboradas e complexas de arte, a escola se transforma em lócus de experiência estética autêntica.

Catarse: uma proposta de apropriação e a ampliação de seu sentido

Como exposto, a catarse, para Adorno, já não mais se encontra no efeito exterior, pois no embate entre a lei formal e o conteúdo material as obras constituem, de forma imanente, a sua própria catarse. Diferente da catarse clássica aristotélica, agora é o próprio objeto e não mais o público que experimenta a suposta purificação já destituída de seu sentido moral (ADORNO, 2011).

Adorno expressa suas concordâncias e discordâncias a respeito do conceito aristotélico de catarse. Ele está de acordo com o fato de que o efeito catártico pode ser uma espécie de emoção purificadora, sublimativa e apaziguadora. Mas discorda de Aristóteles, pois, a seu ver, o efeito catártico acontece intrinsecamente no interior da obra de arte autêntica, e não no sujeito que a contempla (SCHAEFER, 2012, p. 428).

É por isso que, no caso da catarse, tal como proposta por Adorno, a arte autêntica afasta-se de qualquer possibilidade de facilitar a relação do sujeito que frui ou contempla a obra, no sentido de domesticar sua sensibilidade. O fato de a catarse só acontecer em obras de arte autêntica, de imediato nos lança para o âmbito do não cotidiano, portanto não reprodutor dos protocolos estéticos da indústria cultural.

No confronto com a arte autêntica, a objetividade histórica da obra apresenta-se de tal forma que o contemplador/fruidor se sente sensível e cognitivamente abalado, incitado a enfrentar seus enigmas. É nesse contato com a catarse artística que está a possibilidade da constituição da subjetividade autônoma a partir dos enigmas nela contidos.

Indaga-se, contudo, em que medida o processo catártico referente à obra de arte pode ser deslocado do campo artístico e ser emprestado para se referir ao conhecimento em geral tomado como conteúdo escolar: as ciências, a filosofia, as práticas corporais, a política, a ética etc. A proposta aqui é ampliar a catarse para se referir não apenas a obras de arte autênticas, mas também a toda a riqueza cultural produzida pela humanidade, ao longo da história, com elevado nível de sistematização, complexidade e genialidade.

Esse procedimento é altamente arriscado. Afinal, ao apropriar-se de um termo vinculado organicamente ao universo estético e lhe conferir uma nova significação, aspectos do seu sentido original podem se manter ou também se alterar; arestas podem precisar ser aparadas. O exercício que aqui se registra está longe de dar conta dessa problemática. Afinal, se há chance de perscrutar por elementos comuns ou tangenciamentos entre às diversas formas de conhecimento, Adorno não apresenta nenhum indício de diluir essas fronteiras. Essa posição é ratificada na Dialética negativa: uma filosofia com a pretensão de definir-se como obra de arte se eliminaria a si mesma (ADORNO, 2009, p. 21). Para Adorno (1975), não há coincidência entre a forma ou o processo construtivo da arte e da filosofia. Em outros termos:

Arte e filosofia não têm o seu elemento comum na forma ou no procedimento configurador, mas em um modo de comportamento que proíbe a pseudomorfose. As duas permanecem incessantemente fiéis ao seu próprio teor através de sua oposição; a arte na medida em que se enrijece contra as suas significações; a filosofia, na medida em que não se atém a nenhuma imediatidade (ADORNO, 2009, p. 21 - 22).

Talvez a noção de clássico, elaborada por Ítalo Calvino, lance pistas para um tipo de inspiração que a noção adorniana de catarse pode oferecer para sua extensão ao patrimônio da cultura elaborada em geral.

Em Por que ler os clássicos?, Calvino apresenta algumas sugestões de critérios para qualificar um autor ou obra modelar ou exemplar quando define o clássico:

Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los (CALVINO, 1993, p. 10).

Nessa definição, Calvino esclarece sobre a “riqueza” do que significa ler um clássico. A obra clássica possui caráter formativo; nesse sentido, dá forma às experiências, oferece histórias, valores e referências que passam a compor a vida daquele que a leu ou está lendo, seja porque concordamos ou discordamos deles. Portanto, exercem influências inesquecíveis a quem as tenha conhecido:

Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas sobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual (CALVINO, 1993, p. 11).

Cada obra clássica é criada a partir de desafios de um determinado tempo histórico. Porém, o fato de possuir um caráter formativo para quem o lê evidencia que a obra clássica permite diálogos entre as diferentes obras ao longo da história, proporcionando o conhecimento das diferentes culturas, linguagens e costumes dos diferentes povos, no espaço e no tempo. Assim, ao longo dos anos, a obra clássica supera sua temporalidade e carreia junto a si as leituras realizadas por cada geração de leitores. Por isso,

Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes) (CALVINO, 1993, p. 11).

São livros, que já ouvimos dizer, achamos que os conhecemos, mas quando realmente os lemos, de fato, descobrimos o quão são inéditos: “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos” (CALVINO, 1993, p. 11).

É clássico aquilo que passou a ter lugar de impacto na vida de uma sociedade ou de uma geração inteira, coloca em diálogo o nosso tempo (presente) e o tempo passado (tempo de criação da obra clássica), influenciando sujeitos e gerações. Dessa maneira, o contato com o clássico aguça o nosso sentido de humanidade, pois nos permite ter referências da constituição das individualidades e da coletividade; enfim, é clássico aquilo que é mais essencial para a liberdade do ser humano.

O clássico aqui tratado não se confunde com o canônico. Originalmente usado para se referir aos textos sancionados pela Igreja Católica para compor a bíblia por sua suposta fidelidade à inspiração divina, a transferência do termo canônico para o universo literário vinculou-se à definição de obras que mais bem representassem um padrão de excelência, a partir de modelos tidos como oficiais e imutáveis. Por sua vez, abordamos o clássico como expressão literária que mantém sua vitalidade pelo convite permanente que faz ao diálogo, sua abertura a outros tempos que não apenas ao de sua criação. Que essa manifestação artística se mantenha viva não diz respeito apenas ao tempo histórico e/ou ao lugar social de seus leitores, mas também às suas próprias leis estéticas, à tensão forma e conteúdo. Como nos lembra Ginzburg ao discutir o valor estético de uma obra literária em Adorno, “Problemas histórico-sociais não apenas se relacionam com o estético: são constitutivos das obras” (GINZBURG, 2008, p. 106). Na composição da obra clássica nos vemos como humanidade em seu fazer-se. Nesse sentido, uma obra canônica pode coincidir com uma obra clássica; e literaturas “locais”, nacionais ou à margem dos cânones também podem ser clássicos na medida em que evocam a negatividade social da diversidade da humanidade e da humanidade em sua diversidade. Contra tendências meramente universais, o clássico irrompe em sua expressividade local, em sua negatividade peculiar, suas paisagens ímpares, grupos sociais distintos, dramas típicos, sua materialidade formal singular. Contra tendências relativistas, ele dimensiona essa localidade, essa voz particular, essa singularidade formal, na experiência do humano no seu conjunto. Interpelado por essa obra, o leitor a indaga, a relê, reage porque ela é memória do viver humano na interseção existencial e coletiva, universal e particular. De certa maneira, trouxemos à baila essa faceta ao recorrer a Vidas secas. Por isso,

O que deve ser lembrado, o que pode ser esquecido? O campo da memória cultural é ainda um campo pedagógico. Que autores e obras devem ser priorizados em escolas e universidades? Quais podem ser ignorados pelo saber legitimado institucionalmente? Nesse sentido, discutir critérios de avaliação de obras literárias exige discutir política da memória (GINZBURG, 2008, p. 105).

Em consonância com o nosso esforço, Calvino chega a mencionar a relação entre a educação escolar e os livros clássicos. Ao fazer isso, acaba por imputar uma função a essa instituição. Segundo esse autor, é fundamental a escola abordar os clássicos; mas cumprir esse papel implica ferir o caráter desinteressado da leitura de um clássico. Parece haver aí um paradoxo: a leitura do clássico não se guia por nenhuma finalidade, mas, no contexto escolar, essa ausência de finalidade é suspensa e o contato com o clássico é compulsório. Calvino aposta que a liberdade da escolha só pode ser construída a partir do contato obrigatório com os vários clássicos existentes. Portanto, na sua compreensão, o caráter compulsório pode ser condição de liberdade para os leitores, pois apenas tendo contato com vários clássicos, cada um tem condições de escolher seus próprios clássicos; esse é o papel da escola:

[...] a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os “seus” clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola (CALVINO, 1993, p. 11, grifo nosso).

Por mais que tome como referência prioritária o âmbito literário, Calvino coloca no coração do trabalho escolar a apropriação dos clássicos. Por seu turno, ao menos aqui há uma proximidade com o pensamento de Adorno (2010), que foi um crítico de reformas educacionais que descartavam “a antiquada autoridade” e enfraqueciam “[...] a dedicação e o aprofundamento íntimo do espiritual”. É nesse sentido, também, que se afasta qualquer possibilidade de considerá-lo espontaneísta, em termos educacionais:

Quem tendo frequentado escola não terá se emocionado alguma vez com a poesia de Schiller e os poemas de Horácio que devia aprender de cor? E a quem os velhos pais não terão causado arrepios de extrema emoção quando, sem que se lhes pedissem e inesperadamente, recitavam textos de que se recordavam ainda, compartilhados assim numa comunhão com os mais jovens? Com certeza, dificilmente se pediria hoje que alguém aprendesse algo de cor: apenas pessoas muito ingênuas estariam dispostas a apoiar-se na tolice e na mecanicidade desse processo; porém, assim se priva o intelecto e o espírito de uma parte do alimento de que se nutre a formação (ADORNO, 2010, p. 7).

Por ter em sua imanência a catarse, o conhecimento clássico é um dos alimentos da formação e não se restringe apenas a obras de arte autênticas: Machado de Assis com seus contos e personagens; o admirável da Ótica, da Astronomia, da Botânica; No quadro negro, de Wassily Kandinsky; Os retirantes, de Cândido Portinari; as formulações conceituais sobre o amor em Platão; os diversos modos de desvendamento do espaço pela Geografia.

Novamente em uma intenção passível de riscos de relacionar a criação artística e a ação pedagógica, a tensão dialética - forma e conteúdo - que constitui a obra de arte também é inerente ao papel formativo da escola. Pois é nessa tensão que na técnica moduladora da forma pode-se captar toda gênese histórica e dialética que constitui o processo civilizatório e cultural. Aí se encontra o princípio para a possibilidade do novo e, consequentemente, a origem para o processo catártico desencadeado a partir da racionalidade cultural-sensível mediadora entre sujeito e mundo. Sem contar que a prática pedagógica envolve aspectos internos e externos em relação ao contexto social, e é nessa tensão entre ação e realidade que é possível questionar o papel da escola em uma conjuntura de massificação cultural. O conceito adorniano de catarse apresenta uma potência no trato desse desafio, ou seja, catarse entendida como resistência e distanciamento que tensiona o cotidiano e o eleva ao não cotidiano.

O desafio é grande, no entanto vale lembrar Graciliano Ramos e o diálogo entre Sinha Vitória e Fabiano, em Vidas secas: “[...] com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podemos escondê-las? A resposta de Fabiano é simples: não. O mundo é muito grande” (RAMOS, 2007, p. 68).

Apresentar o admirável, o genial, o complexamente elaborado, seja nas artes, na filosofia, nos diversos campos da ciência, faz da escola um espaço que garante o direito à memória coletiva: “[...] mas que seria a arte enquanto historiografia, se ela se desembaraçasse da memória do sofrimento acumulado?” (ADORNO, 1982, p. 291).

O trabalho propriamente escolar se inicia quando indagamos quais conhecimentos se tornaram clássicos, sobreviveram ao tempo e condensaram a atividade humana de gerações a gerações a ponto de se tornar crucial para a compreensão e formação do mundo e do sujeito contemporâneo. Quais os conhecimentos (sejam eles expressivos ou conceituais) que, por valorizarem a objetividade, por serem dissonantes com o viver cotidiano, portarem uma abertura para o devir, serem imanentemente catárticos, abrem faíscas realmente de reconciliação do ser humano com sua própria história?

Jorge Luis Borges, em seu livro La memoria de Shakespeare, descreve muito bem esse ser humano que faz da sua memória sua capacidade de amar: “[...] o destino deu a Shakespeare as triviais coisas terríveis que todo homem recebe e ele soube transmutá-las em fábulas, em caracteres muito mais vívidos que o homem cinzento sonhou” (BORGES, 1998, p. 22). Da memória do homem faz-se uma infinitude de possibilidades.

Referências

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1Ao avaliar a produção acadêmica existente no campo educacional sobre o tema da catarse, Oliveira (2013, p. 53) observa que, mesmo autores que recorrem à Teoria Crítica da Sociedade, em especial a Adorno, citam esse conceito, mas não tem o “escopo tratar conceitualmente a categoria filosófica” e não exploram seu vínculo com o processo educativo.

2Ao elaborar essa “tipificação” de construto social-estético, Rodrigo Duarte afirma não ser necessário abandonar às formulações da Teoria Crítica da Sociedade relativa à distinção entre obra de arte autêntica e mercadorias da indústria cultural. Considera, assim, ser esse um complemento à teorização de Horkheimer e Adorno diante de um fenômeno cujo correlato esses autores não presenciaram. Como exemplo de fenômenos que não possuem o traço de inovação, por vezes, associado à complexidade formal, mas possuem um discurso político e ideológico distante do predominante do capitalismo tardio, Duarte cita o fenômeno do hip hop e, no caso brasileiro, o movimento tropicalista dos anos de 1960.

Recebido: 12 de Julho de 2015; Aceito: 23 de Março de 2016

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