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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia maio/ago 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p833a863 

Artigos

Escrita de si e trabalho ético no estágio supervisionado na formação inicial de professores

Self writing and ethical work of a Supervised Practice in initial teacher education

L’ecriture de soi et le travail ethique au stage supervise dans la formation initiale des enseignants

Vanessa Caldeira Leite* 

Maria Manuela Alves Garcia** 

*Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Professora no Curso de Teatro, Centro de Artes, da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). E-mail: leite. vanessa@hotmail.com

**Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). Professora do Departamento de Ensino, Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 CNPQ. E-mail: garciamariamanuela@gmail.com


Resumo

O artigo trata da constituição do si docente através das disciplinas de Estágio Supervisionado, em um curso de licenciatura em Teatro, problematizando o trabalho ético experimentado por sete alunos ao escreveram seus relatórios de estágio. Do ponto de vista teórico-metodológico, o estudo inspira-se nas últimas investigações de Michel Foucault sobre o domínio da ética, analisando a constituição de uma forma de profissionalidade autorreflexiva através do universo dos significados e das relações estabelecidas em um conjunto de vinte e um relatórios de estágios que os alunos escreveram ao longo de três semestres do componente do Estágio. Argumenta que o Estágio e a escrita dos relatórios são dispositivos pedagógicos no interior dos quais certas formas de experiência de si dos futuros docentes são elaboradas e reelaboradas frente às contingências do currículo, de suas histórias pessoais e das normas e relações de poder das instituições em que atuam.

Palavras-chave: Formação inicial de professores; Estágio supervisionado; Experiência de si; Escrita de si

Abstract

This paper focuses on self teaching formation through Supervised Practice courses in a Drama Bachelor Program by discussing the subjectivizing methods of seven students upon writing their practice reports. From a theoretical and methodological point of view, the study draws on Michel Foucault’s research on the field of ethics, analyzing the creation of a self reflexive professionalism through a universe of meanings and the relationships established within a set of twenty-one supervised practice reports that students wrote along three Supervised Practice semesters. The study ponders that both Practice and report writing are teaching devices within which certain self experiences of will-be teachers are produced and reproduced in the face of curriculum contingencies, their personal stories as well as rules and power relations at the institutions where they work.

Keywords: Initial teacher education; Supervised practice; Self experience; Self writing

Résumé

L’article traite de la constitution du soi-enseignant à travers les disciplines de Stage Supervisé d’une licence en Théâtre en problématisant le travail éthique expérimenté par sept étudiants lors de l’écriture de leurs rapports de stage. Du point de vue théorique et méthodologique, l’étude s’inspire des dernières recherches de Michel Foucault sur le domaine de l’éthique pour analyser la constitution d’une professionnalité auto-réflexive, ayant comme matériel l’univers des significations et des relations établies dans un ensemble de vingt et un rapports de stage que les étudiants ont écrit pendant trois semestres du Stage. Il soutient que le Stage et l’écriture des rapports sont des dispositifs pédagogiques à l’intérieur desquels certaines formes d’expérience de soi des futurs enseignants sont élaborées et réélaborées - face aux contingences du curriculum, de leurs histoires personnelles et des normes et des relations de pouvoir dans les établissements où ils travaillent.

Mots-clés: Formation initiale des enseignants; Stage supervise; Expérience de soi; Écriture de soi

Este artigo1 trata da constituição do si docente em um curso de licenciatura, tendo como objeto de discussão o trabalho ético experimentado por alunos ao escreverem seus relatórios de estágio no curso de licenciatura em Teatro, quando cursavam o componente curricular de Estágio Supervisionado.

O componente curricular do Estágio Supervisionado é tomado neste estudo como parte de um dispositivo pedagógico (o currículo de formação inicial) em que a subjetividade e a conduta dos futuros professores é elaborada e re(elaborada) em meio a determinadas práticas e experiências de conhecimento, na contingência de suas histórias pessoais e das normas e relações de poder das instituições em que atuam. Os relatórios de estágio enquanto formas particulares de escrita de si atuam como meios dessa produção. Um olhar mais atento sobre esse material é uma possibilidade privilegiada de analisar os movimentos de subjetivação através das quais os sujeitos vão se constituindo enquanto pessoas e professores e professoras de certo tipo em meio a práticas pedagógicas, normas, disciplinas, rituais e relações de poder nas instituições escolares e organizações em que se inserem e atuam.

O dispositivo para Foucault (1990, p. 244) é um conjunto de elementos heterogêneos que reúne “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”, que responde a uma função estratégica dominante e a uma urgência. O dispositivo está sempre inserido em um jogo de poder e ligado a certas configurações de saber. Ao longo dos seus estudos, Foucault fala em dispositivos disciplinares, dispositivo carcerário, dispositivos de poder, dispositivos de saber, dispositivo de sexualidade, etc. Neste estudo, trabalhamos com a noção de dispositivo pedagógico, em que elementos heterogêneos articulados e em rede compõem um modo de lidar com o conhecimento, pensar e fazer a educação e o currículo, tendo como estratégia possibilitar a produção de certas formas de pessoalidade e profissionalidade.

Ao tomar o Estágio Supervisionado como parte do dispositivo pedagógico em que atuam diferentes tecnologias do si docente, do si que se produz docente em meio a práticas de sujeição e liberdade, defende-se, neste artigo, a ideia de que o sujeito em formação é envolvido em técnicas e exercícios em que toma a si próprio como material de reflexão e trabalho a fim de tornar-se professor e professora. Desse modo, estabelecem relações consigo mesmos e com os outros, tendo o relatório de estágio como um dos instrumentos provocadores da escrita de si, em prol da constituição e da transformação de sua subjetividade e ação como alunos futuros professores.

A metodologia caracterizou-se por trabalhar com o universo dos significados e das relações estabelecidas nas narrativas escritas dos sujeitos sobre si mesmos e sobre as experiências de conhecimento que vivenciaram no contexto indicado. Para isso, foram analisados um total de vinte e um relatórios de estágio de três semestres da disciplina de Estágio Supervisionado do curso, escritos por sete alunos de uma mesma turma que ingressou no curso em 2008. Esses alunos realizaram seus estágios nos três últimos semestres da sua formação inicial, nos anos de 2010 (Estágio I) e de 2011 (Estágios II e III) e escreveram individualmente um relatório ao final de cada disciplina de Estágio, a partir de um roteiro que orienta a escrita.

A opção de trabalhar com os relatórios de apenas um grupo de alunos possibilitou acompanhar os movimentos da escrita de cada um ao longo de três semestres, frente aos desafios com que iam se defrontando no processo de se prepararem e assumirem a regência de uma classe no contexto escolar e em trabalhos de educação comunitária. Essa sistemática permitiu-nos elaborar algumas problematizações acerca do movimento de constituição desses sujeitos, partindo da observação, nesses relatórios, de algumas características dos processos de reflexão e autorreflexão que os alunos iam fazendo acerca das experiências vividas.

Apesar do estágio ser matéria de significativo interesse no campo da formação de professores (PIMENTA, 2011), neste estudo lança-se uma perspectiva pouco ainda explorada sobre esse tema. Busca-se inspiração, sobretudo, nas investigações de Michel Foucault sobre as práticas do cuidado de si e em outros autores que, também com essa inspiração, problematizam aspectos da pedagogia e das práticas educacionais, como Larrosa (1994, 1998). Trata-se, assim, a pedagogia e a didática nos cursos de formação de professores como dispositivos e tecnologias humanas que possibilitam trabalho ético, e certas formas de experiência de si na produção da docência.

As práticas de si, que tiveram grande importância na Antiguidade Clássica ou tardia, foram tema de estudo de Michel Foucault no Collège de France em 1981 - 1982; A hermenêutica do sujeito (FOUCAULT, 2006), e para os dois últimos volumes da História da sexualidade (FOUCAULT, 1984, 1985). Nesses cursos e investigações buscou compreender a história dos modos de subjetivação ou das formas e modalidades da relação consigo, uma história da “ética” ocidental e da “ascética”, das regras éticas que possibilitaram a nossa existência como sujeitos de conduta moral. Com inspiração nesses estudos, realizam-se aproximações para estudar o que aqui se chama a constituição do si docente através do Estágio Supervisionado e da escrita do relatório de estágio, partes dos currículos e da pedagogia dos cursos de licenciatura.

As práticas de si e a ética da existência: uma perspectiva foucaultiana

A relação do sujeito consigo mesmo foi o foco principal da História da sexualidade de Michel Foucault: analisar as práticas de si, através das quais os indivíduos são levados a prestar atenção a si mesmos, “a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo, uma certa relação que lhes permite descobrir a verdade de seu ser” (FOUCAULT, 1984, p. 11).

Ao pesquisar as formas e as modalidades da relação consigo, através das quais os indivíduos se constituem e se reconhecem como sujeitos, o autor realiza uma história do cuidado e das técnicas de si, uma história dos modos de subjetivação, através do estudo da lenta formação de uma “hermenêutica” de si, desde a Antiguidade até o cristianismo. Essas práticas diziam respeito ao princípio de “ocupar-se de si”, ou de “cuidar de si mesmo”, frequentemente chamado em grego de epimeléia heautoû; em latim, cura sui. Associado a esse princípio estava o tema do “conhecimento de si”, gnôthi seautón (FOUCAULT, 1997c).

A arte da existência na cultura grega antiga é dominada pelo princípio de que é preciso “ter cuidados consigo”, o cuidado é o princípio que fundamenta e organiza a prática de si, que adquiriu um alcance bastante geral, que circulou entre diferentes doutrinas filosóficas. Ou, ainda, as “artes da existência” podem ser entendidas como:

[...] práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo (FOUCAULT, 1984, p. 15).

São procedimentos existentes em toda civilização prescritos aos indivíduos para “fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si” (FOUCAULT, 1997b, p. 109). Em seu estudo sobre o cuidado de si, o autor isola três momentos históricos: o momento socrático-platônico do surgimento da epiméleia heautoû (cuidado de si) na reflexão filosófica; o período da idade de ouro da cultura de si mesmo, nos séculos I e II da nossa era e, por fim, o momento da passagem aos séculos III, IV e V, da ascese filosófica ou pagã para o ascetismo cristão.

O tema do cuidado de si (epiméleia heautoû), consagrado por Sócrates, acabou sendo o núcleo da arte da existência e foi retomado por outras filosofias, adquirindo progressivamente a dimensão e a forma de uma “cultura de si”: um modo de se comportar, uma forma de viver, desenvolvida, aperfeiçoada e ensinada através de procedimentos, práticas e receitas, constituindo uma prática social, um modo de conhecimento e a elaboração de um saber.

A cultura de si vive a idade de ouro nos séculos I e II, embora caiba destacar que este modo de vida era para poucos, somente para grupos sociais portadores de uma cultura para a qual tivesse sentido um cuidado de si. O cuidado de si implicava sempre uma escolha de modo de vida, jamais foi percebido como uma lei universal válida para todo indivíduo. “Ocupar-se de si é um privilégio, é a marca de uma superioridade social, por oposição àqueles que devem se ocupar dos outros para servi-los ou ainda se ocupar de um ofício para poder viver” (FOUCAULT, 1997c, p. 121).

A prática de si como fórmula geral da arte de viver, nos séculos iniciais da nossa era, passa a ser um tipo de exigência que devia acompanhar toda a extensão da existência, não apenas na juventude, como era com Alcibíades. O cuidado de si deixa de possuir o caráter de uma transição entre o período de educação e a fase adulta, para se tornar uma preocupação constante durante toda a vida e concentrar-se na vida adulta. Com isso, a prática de si assume uma função mais nitidamente crítica que formadora, pois se tratava de corrigir mais que de instruir (desaprender os maus hábitos); uma função de luta, um combate permanente para lutar durante toda a vida contra os males do corpo e da alma; uma função curativa e terapêutica contra as paixões da alma e as doenças do corpo (pathos). Daí o parentesco com a medicina. Torna-se uma preparação para a velhice, como momento de plenitude do sujeito, momento privilegiado.

O cuidado de si converteu-se em um princípio incondicionado, universal (regra aplicável a todos), que se dirigia a todos, independente de sua origem e condição social. O cuidado de si tornou-se um princípio geral, um imperativo que se impunha a todos, durante todo o tempo e sem condição de status.

O cuidado de si não designa apenas uma preocupação, mas um conjunto de ocupações, enfim, “a epiméleia implica um labor” (FOUCAULT, 1985, p. 56). Para tanto, é preciso tempo: seja no final do dia, seja no início da manhã, é necessário que se tenha um tempo para consagrarse a si mesmo, voltar-se a si mesmo. Pode, ainda, acontecer de tempos em tempos, uma espécie de retiro, com uma interrupção das atividades diárias, para um recolhimento de si para consigo.

Este tempo era repleto de tarefas práticas, atividades e exercícios diversos (askesis), desde os cuidados com o corpo (regimes, exercícios físicos) até as práticas de meditação, leituras, anotações das leituras e conversações, rememoração das verdades. Existiam, ainda, as conversas com um confidente, um amigo, um guia ou diretor de alma, para o qual eram solicitados conselhos e, por vezes, também se forneciam conselhos, que podiam ser em forma de correspondência, efetuando-se uma atividade de palavra e escrita no trabalho de si para consigo e com outrem.

A epiméleia não se constituía em um exercício de solidão, mas uma verdadeira prática social, ao assumir formas mais ou menos institucionalizadas. Era o caso de Epicteto, que ensinava sua filosofia numa espécie de escola, ou ainda, principalmente nas famílias aristocráticas, onde se encontrava a figura de um conselheiro da existência, um consultor privado ou inspirador político.

Enfim, diferentes funções, como a de professor, a de guia, a de conselheiro, a de confidente vão demonstrar que a ligação intrínseca de uma atividade da alma, com a possibilidade de trocas com o outro, “o cuidado de si - ou os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos - aparece como uma intensificação das relações sociais” (FOUCAULT, 1985, p. 58). O cuidado de si está intrinsecamente ligado a uma ação consigo ao mesmo tempo em que comporta intercâmbios de conselhos de consciência com o outro, seja através de organizações escolares, ou com conselheiros privados ou mesmo nas relações de família e de amizade entre duas pessoas, o “serviço de alma” se realiza através de múltiplas relações sociais (FOUCAULT, 1997c, p. 126).

Com a prática de si, foi desenvolvida uma arte de conhecimento de si, com receitas precisas, formas particulares de exame e exercícios, apresentadas por Foucault (1985; 1997c; 2006) em três tipos de procedimentos: os procedimentos de provação; o exame de consciência; o pensamento sobre ele mesmo.

Os procedimentos de provação tinham o objetivo de avançar no desenvolvimento da virtude e medir cada avanço alcançado, ou seja, era uma maneira de regulação e confirmação do grau de independência de que se era capaz a respeito de tudo aquilo que era considerado supérfluo e dispensável. (FOUCAULT, 1985, p. 63-65)

O exame de consciência tratava-se de um momento de exame pela manhã para preparar-se para as tarefas e obrigações do dia e, pela noite, o exame servia tanto para memorização do que tinha sido feito durante o dia como, ao mesmo tempo, um balanço dos avanços conquistados para si. O erro e/ou a falta encontrados a partir do exame de consciência não servem para fixar culpa ou remorso de si, mas para lembrar a sua razão e assegurar-lhe uma conduta sábia. (FOUCAULT, 1985, p. 65-67)

Era necessário, ainda, um trabalho do pensamento sobre ele mesmo, de modo a ser uma espécie de filtro permanente das representações: examinar, controlar e realizar triagem. Um vigia de si, que realiza uma verificação de si mesmo e, ao mesmo tempo, distingue aquilo que depende do que não depende de nós (cânone estoico). Tudo aquilo que não depende de nosso domínio, que está fora do nosso alcance, deve ficar em segundo plano, a fim de só aceitar na relação consigo mesmo aquilo que pode depender da livre escolha do sujeito. (FOUCAULT, 1985, p. 67-69)

O objetivo das práticas de si pode ser analisado pelo princípio geral da conversão a si. O movimento de conversão a si e todas as práticas de si dizem respeito a uma ética do domínio, “uma relação concreta que permite gozar de si como que de uma coisa que ao mesmo tempo se mantém em posse e sob as vistas”. (FOUCAULT, 1985, p. 70)

A ascese, para os gregos antigos, não era um caminho de renúncia a si mesmo. Antes, tratava-se do trabalho de constituição de si mesmo, de uma relação plena consigo mesmo, autossuficiente e capaz de produzir a felicidade de estar consigo mesmo ou o domínio de si mesmo. E, portanto, diferencia-se conceitualmente da ascese cristã em três eixos: primeiro, não está dirigida à renúncia de si, mas à constituição e exaltação de si mesmo; segundo, não se regula pelos sacrifícios, mas pelo dotar-se de algo que não se tem; e, finalmente, a terceira diferença está na não ligação do indivíduo à lei, mas à verdade (FOUCAULT, 1990; 2006).

Com o cristianismo, as práticas de si foram integradas ao exercício do poder pastoral, formando um modelo cristão do cuidado de si mesmo, um modelo ascético-monástico. O conhecimento de si é praticado através de técnicas cuja função essencial consiste em dissipar as ilusões interiores, reconhecer as tentações e frustrar as seduções de que se pode ser vítima. Este modelo cristão será em seguida transmitido para toda a história da cultura ocidental (FOUCAULT, 2006, p. 312).

Na Antiguidade clássica, o cuidado de si não se opõe ao cuidado dos outros, pois, ao contrário, implica relações complexas com os outros. Conforme comenta Revel (2005, p. 34), referindo-se ao cuidado de si na cultura pagã grega: “O ethos do cuidado de si é, portanto, igualmente uma arte de governar os outros e, por isso, é essencial saber tomar cuidado de si para poder bem governar a cidade”.

O modelo helenístico, centrado em torno da conversão a si, foi um modelo de moral que o cristianismo recebeu, herdou, repatriou e elaborou o que hoje chamamos de moral cristã. Esta, com suas práticas de exegese do sujeito e da renúncia de si, conhecimento de um eu profundo, anterior à própria existência, mais tarde será objeto de estudos das ciências humanas, da psicologia, da psiquiatria, da pedagogia, que reatualizam estas práticas de si, de modo a subjetivar e constituir os sujeitos modernos.

As técnicas de si, na era moderna e com o cristianismo, perderam sua importância e sua autonomia, enquanto objetivo de voltar-se a si mesmo, ao serem integradas no exercício do poder pastoral, e também aos saberes médico, educativo e psicológico, que concentraram atenção, não no cuidado de si, mas no preceito do conhece-te a ti mesmo.

A escrita como exercício de cuidado de si

A noção socrática do ‘cuidado de si’ converteu-se em um tema filosófico universal, durante os períodos helenísticos e imperiais, cheio de obrigações e tarefas para o desenvolvimento do eu, considerado um momento de ócio ativo, por compreender atividades como: estudar, ler, escrever, preparar-se para os contratempos e para a morte.

Na atividade dedicada a si mesmo, ou na cultura de si, Foucault (1985; 1997c; 2006; 2012) destaca que se desenvolveu uma atividade centrada na leitura e na escrita (ética da palavra), ligando o trabalho de si para consigo e a comunicação com o outro, através de conversas com amigo, confidente, diretor ou guia, ou mesmo através de correspondência, meios pelos quais se expunha o estado da própria alma e se faziam pedidos ou eram fornecidos conselhos ao destinatário.

O exercício da leitura na cultura de si da Antiguidade tem como objetivo principal proporcionar uma ocasião de meditação (meditatio - palavra latina; meléte - substantivo grego); trata-se primeiramente, de apropriar-se de um pensamento lido, de convencer-se dele de modo a acreditar que ele seja verdadeiro (e que a verdade seja gravada no espírito) e, ainda, que se possa redizê-lo quando necessário. O efeito desta leitura é a constituição para si de uma trama sólida de proposições verdadeiras, que valham por prescrições e princípios de comportamento.

A escrita, associada ao exercício do pensamento, assume uma forma linear, que vai da meditação, passando pela escrita, pelas práticas até a experiência e o trabalho na realidade; e a outra forma que a escrita assume, segundo Foucault (2012), é circular: vai da meditação para a escrita, que, por sua vez, ao ser relida, restaura a meditação.

A relação constante com a atividade literária, seja a leitura seja a escrita, é uma importante característica do cuidado de si. Dentre todas as maneiras tomadas para o exercício da cultura de si (abstinências, memorizações, exames de consciência, meditações, silêncio e escuta do outro), a escrita (escrever para si mesmo e para outro) desempenhou um papel consideravelmente importante por muito tempo.

O “si mesmo” é algo sobre o qual se deve escrever; é tema ou objeto da atividade literária. Tomar notas sobre si mesmo, das leituras, das conversas, das reflexões, para serem relidas posteriormente, tinha o objetivo de reatualizar o que contêm estas anotações e de reativar para si mesmo as verdades necessárias para uma vida de cuidados. Desenvolvia-se uma relação entre a escrita e a vigilância, pois era necessário que se prestasse atenção aos detalhes da vida, ao estado de ânimo, à experiência de si, cada vez mais intensa e ampla em função da própria escrita, localizada em duas formas: os hypomnêmata e a correspondência.

Os hypomnêmata eram suportes de lembranças, livros de vida, guias de conduta para o sujeito que quer ter cuidado consigo mesmo (FOUCAULT, 2006; 2012). Ali se anotavam fragmentos de leituras, citações, conversas com amigos, aulas assistidas, exemplos e ações testemunhadas, reflexões ou pensamentos que viessem à mente. Por constituírem anotações de lembranças, ou seja, uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas, era possível rememorar as coisas escritas, e servia para posterior releitura e meditação. Tratava-se de captar o já dito ou de reunir o que se ouviu ou leu, com a finalidade de constituir-se a si mesmo.

Já a correspondência era um texto destinado a outro para ajudá-lo, aconselhá-lo, consolá-lo, mas também para dar, um ao outro, notícias de si mesmo. Fazem parte da correspondência as notícias sobre a saúde, sobre o dia, as ações corretas ou não, a vida cotidiana, a dieta, o exame de consciência, os exercícios físicos ou mentais. A correspondência era formulada como um relato escrito de si mesmo. Ao mesmo tempo em que se pode dizer alguma coisa ao outro, ouve-se o que se diz, ou seja, também permite o exercício pessoal daquele que escreve e, eventualmente, a terceiros que a leiam. A carta enviada também age sobre aquele que a escreve, através do gesto da escrita (FOUCAULT, 2006; 2012).

Escrever é, portanto, ‘se mostrar’, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro. E isso significa que a carta é ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário (pela missiva que ele recebe, se sente olhando) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe dito sobre si mesmo. A carta prepara de certa forma um face a face (FOUCAULT, 2012, p. 152).

Analisar os exercícios relacionados à palavra na filosofia antiga ajuda a pensar sobre a escrita nos dias de hoje, especificamente, na formação de professores, de modo que a escrita dos relatórios de Estágios é tomada por circunstâncias semelhantes àquelas vivenciadas pelos antigos. Encontramos, por um lado, algumas características dos hypomnêmata, por conterem anotações de lembranças vividas e testemunhadas nas escolas e comunidades, citações de teóricos e fragmentos de leituras realizadas pelos escreventes, que colaboram para refletirem sobre suas ações. Encontramos, ainda, relatos das aulas ministradas, destaques de momentos que foram significativos positiva ou negativamente, exemplos de atitudes, gestos marcantes, fragmentos das conversas com alunos e professores das escolas, com os agentes comunitários. São textos de múltiplas vozes.

Por outro lado, os relatórios cumprem uma função de dizer algo a alguém. Não servem apenas como suporte material de lembranças para eles mesmos lerem posteriormente, pois são escritos que têm um endereçamento particular: o professor orientador do Estágio, que, ao ler o relatório, deverá avaliar e aferir uma nota, um valor, por se tratar de um artefato curricular, exigido na disciplina de Estágio como prerrogativa para aprovação. Aquele que escreve acaba por aprender sobre si mesmo ao refletir sobre sua ação docente. Ao mesmo tempo, quem lê também reatualiza os sentidos da atividade docente e o devolve para o escrevente (estagiário) com as suas impressões, reflexões a partir do texto lido.

Na escrita dos relatórios, os licenciandos seguem um roteiro para orientá-los. Porém, as especificidades e subjetividades dos escreventes vêm à tona quando são incentivados a falar sobre as experiências vividas nas escolas e nas comunidades, que são únicas e exclusivas de cada um deles, não possibilitando, deste modo, que encontremos escritas padronizadas ou repetitivas. Na seção a seguir, apresentamos as análises feitas dos vinte e um relatórios de Estágio, dos alunos da primeira turma do Curso de Teatro-Licenciatura, ano 2008.

A escrita do relatório de Estágio: a constituição de uma profissionalidade autorreflexiva

Entendendo o relatório como uma narrativa de si e das experiências que viviam, apresentam-se movimentos gerais do que se pode perceber da relação que os estudantes mantinham com a própria formação, a escola, com as questões e desafios que se colocaram no período dos três semestres em que se prepararam e viveram períodos de regência de classe, em contexto escolar e em educação comunitária.

Os Estágios Supervisionados acontecem no 6º, 7º e 8º semestres do Curso, sendo três disciplinas: Estágio I e II, com 119 horas cada, totalizando 238 horas; e Estágio III, com 170 horas. Essa carga horária resulta em 408 horas. No primeiro semestre, os alunos atuam em escolas de educação infantil e/ou ensino fundamental. No segundo semestre, realizam o estágio no ensino médio. E, no terceiro semestre, realizam o estágio em comunidades. Quando chegam a esse ponto, os estudantes já passaram pelas áreas de Teatro e Educação e pelos conteúdos das disciplinas das ciências básicas da educação, na Faculdade de Educação e no Centro de Letras e Comunicação.

Narrar uma história é enumerar, colocar em ordem os rastros que guardamos do que vimos ou, ainda, um modo de apresentar de novo o que ficou na memória, conforme Larrosa (1994), então, o sujeito em formação, ao narrar-se, produz um sentido para sua experiência, produz uma história coerente sobre si. A narrativa de si implica uma ordenação temporal, uma temporalidade da sua história a partir de descontinuidades reunificadas, rastros de uma memória que vão constituir sua autonarrativa, de modo que se assume como um sujeito calculável, pronto para fazer uma valoração de si mesmo, uma contabilidade de si mesmo.

A narrativa de si é uma modalidade discursiva encontrada com facilidade nos textos dos relatórios de Estágio, em que está estabelecida a posição daquele que fala/escreve: o narrador é o futuro professor e, ao mesmo tempo, é o personagem da própria narrativa. Este processo de escrever sobre si é uma fabricação ou invenção, que se constrói e se reconstrói na própria operação narrativa e no manejo com outros textos já existentes, que vão proporcionar ao sujeito um conjunto de procedimentos discursivos com os quais será possível narrar a si mesmo. Toda a escrita de si contém vestígios ou rastros de outras palavras e de outras histórias recebidas, diz Larrosa (2006, p. 25), assim como num pergaminho, onde se apagavam os textos para novas escritas, porém, ainda ficavam legíveis os restos dos antigos textos.

As práticas discursivas são também atravessadas pelo poder, são práticas sociais constituídas e organizadas numa relação desigual de poder e de controle, conforme Foucault (1997a). As racionalidades que orientam os discursos dos escreventes são como dobras do lado de fora, estão inscritas nos currículos e nos sistemas sociais que os produziram. Não são escritas autônomas, mas compõem o dispositivo pedagógico do currículo e das disciplinas de Estágio para a formação de professores, em que o sujeito é induzido a decifrar a si mesmo e colocar-se como personagem da narrativa.

Há um roteiro repassado para os alunos escreverem seus relatórios, com algumas seções básicas minuciosamente indicadas para a escrita: detalham-se os Elementos pré-textuais que devem compor o texto (capa, folha de rosto, etc.), indica-se o que deve constar na Introdução, na Caracterização da realidade do estágio, nas Atividades desenvolvidas. Indica-se que deve ser escolhido um tema para reflexões suscitadas pela prática de ensino e que a conclusão deve constar de apreciação crítica e encaminhamentos. Sugere-se que constem ainda elementos que se denominam de “pós-textuais” (referências, apêndices, etc).

Os alunos são ainda colocados diante de perguntas para serem respondidas, a fim de suscitar a reflexão e a escrita. São questões amplas com a intenção de problematizar as experiências que vivenciaram e incentivar o exercício da escrita crítica e reflexiva, para além de um mero relato de fatos: têm como foco a experiência de docência vivida e os significados por eles atribuídos a essas experiências, na relação com eles mesmos, com a escola e com a sociedade.

As questões induzem ao exame de consciência. São práticas de direção da consciência, na medida em que refletem sobre si mesmos, se olham a si mesmos para bem compreender e avaliar as suas práticas e sobre elas escrever. As questões não possuem intenção de ensinar alguma coisa objetivamente, porém, com elas os acadêmicos aprendem muitas coisas. O si (esse outro que não é senão eu mesmo) se torna objeto de atenção para o trabalho pedagógico a ser desenvolvido consigo e com os outros - os alunos.

Este exercício de interrogar-se é um exercício de constituição da subjetividade em relação a seu trabalho. A disciplina de Estágio, por meio dessas práticas de si, torna-se um espaço de produção e mediação da experiência de si. “Entre o sujeito e seu duplo que se tornou visível como imagem no espelho, entre o sujeito e aquilo de si mesmo que se tornou visível ao dar-se ao olhar, se intercala um critério”, diz Larrosa (1994, p. 74). Esses critérios são em grande parte atribuídos por esses roteiros orientadores do relatório, e, portanto, da escrita, e servem de parâmetro para o autojulgamento e para o que vai ser selecionado e incluído no texto.

Os sujeitos falantes (ou escreventes) são também sujeitos confessantes, através dos seus textos. Lembrando Deleuze (1990), os estágios e os relatórios são “como máquinas de fazer ver e de fazer falar”, por justamente estimularem os sujeitos em formação às práticas de ver e de falar sobre si mesmo.

Um primeiro movimento de constituição dos estagiários que suas escritas visibilizam é o que talvez pudesse ser aqui caracterizado como a passagem ao longo de três semestres de uma relação com a escola ou comunidade que se caracteriza pela surpresa da novidade e o choque com a realidade, para uma situação mais confiante e de maior racionalização da experiência vivida, acompanhada da reafirmação do acerto da escolha do futuro profissional.

A seção intitulada “Reflexões acerca de uma temática”, presente no roteiro do relatório, mostra esse movimento dos alunos. Nos relatórios do Estágio I, a temática que mais foi trabalhada foi a indisciplina (quatro relatórios), denunciando o desassossego dos alunos diante da realidade encontrada. O foco na indisciplina dos alunos das escolas, indica a intensidade da experiência para os acadêmicos, seja por ser a primeira experiência como professores em escola; seja ainda por terem como público-alvo crianças das séries iniciais do ensino fundamental. Estas não estão acostumadas com aulas mais livres e fora das classes tradicionalmente enfileiradas. A aula de Teatro dá margem para dispersões, confusões, agitações e muito movimento das crianças pela sala ou pátio da escola. Essas situações são lidas como indisciplina e potencializaram nos acadêmicos uma explosão de sentimentos, angústias, incertezas, que aparecem repetidamente nas suas narrativas.

As escritas são bastante descritivas, relatam os fatos de modo literal, aparecem muitos detalhes e alguns diálogos entre eles e os alunos, de tal forma que se pode praticamente “visualizar” as aulas de Teatro ministradas por eles. Muitas são as descrições de momentos de “bagunça” generalizada da turma, de conflitos entre as crianças, de atitudes de desrespeito e desatenção, de reações negativas e indesejadas que tiveram de tomar para controlar a turma e seguir com a aula, e também muitas alterações nos planejamentos para conseguir desenvolver algum conteúdo do Teatro previsto.

Os relatórios do primeiro Estágio caracterizam-se ainda por muitas críticas em relação à escola, aos professores, aos alunos, às famílias, resultando um discurso desestimulado, desesperançado em relação aos rumos da educação no país. Baseados num modelo imaginário e idealizado de escola, restam aos licenciandos a angústia, a insegurança e muitas dúvidas em torno da escolarização. Observa-se o desassossego dos sujeitos em formação, uma perda de ingenuidade em relação ao processo educativo das instituições escolares

Não que tenha sido um fracasso, mas não é este o teatro que ainda gostaria de fazer, não seria esta aula que gostaria de dar hoje, mas é este que achei que eles deveriam ter, pois trabalhar os jogos é o início de tudo, mas não percebi que se trata de pessoas diferentes, outros alunos, outras idades, outros interesses, outras ideias e expectativas. Confesso que tanto o plano de ensino como as expectativas que gerei para o estágio não aconteceram na sua totalidade, mas isso foi por falta minha de conhecimento, tanto prático quanto teórico e porque não dizer, falta de sensibilidade minha também!? (EaI, 2010, p. 17).

As críticas são muitas. Por exemplo, é a indignação diante da atitude da professora na escola que subestima a possibilidade de seus alunos:

O dia em que fui conhecer a turma foi, ao mesmo tempo, estimulador − adoro crianças, achei eles lindos e estava muito entusiasmada com a ideia de conhecê-los e trabalhar com eles - e preocupante. Não gostei do tom irônico com que a professora titular falava com eles, enfatizando que seria um privilégio para eles ter aulas de teatro, que ela nunca tinha tido a oportunidade de ter quando estava na escola, mas, simultaneamente ela já insinuava que eles não saberiam aproveitar o “presente” dado. Saí de lá incomodada. Pareceu-me um despropósito, agressivo demais falar com sarcasmo para crianças de, na maioria, nove ou dez anos de idade. Entendo que eles estão em idade de formação, tudo o que fizermos ou o modo como agirmos certamente terá uma forte influência na pessoa que eles virão a ser, no futuro (EfI, 2010, p. 6).

E o dar-se conta de que a formação e o curso de licenciatura não suprem todas as ferramentas e necessidades para lidar com a complexidade e a precariedade da escola:

Quanto ao espaço físico, por ser pequeno, dificultou bastante o trabalho, pois as classes eram sobrepostas e colocadas em forma de “U”, ficando um espaço mínimo para efetuarmos os exercícios. Quanto aos alunos, eles possuem uma boa receptividade em relação ao professor, sempre abraçando, tanto na chegada quanto na saída. Entretanto, referente à disciplina e à concentração, deixam muito a desejar, a atenção sempre dispersada, eu me transportava da aula de teatro para a corda bamba, às vezes com dificuldade de dominar a turma, e sem saber como agir para cativar a atenção da turma, que não se mostrava interessada em participar dos exercícios. (EgI, 2010, p. 2).

Os relatórios do segundo Estágio são mais analíticos e menos descritivos, indicando uma capacidade dos estudantes de tomarem distância dos acontecimentos e desenvolverem uma reflexão mais aprofundada da experiência vivida. Os relatórios trazem referências teóricas e conseguem chegar a ponderações mais sistemáticas, demonstrando autoria e autorreflexão. Há indícios de uma reflexão de si mesmo a partir da resignificação dos fatos vivenciados durante os Estágios. A desesperança e a falta de estímulo dá lugar a escritas mais confiantes e motivadas em relação à escolha profissional:

Sei que nem tudo ficou tão claro para todos meus alunos, mas alguma coisa da aula ficou clara para todos, o que me satisfaz e me garante que a tarefa da disciplina e a minha foram cumpridas. [...] Não encontrei dificuldades em trabalhar com esta turma, sempre se mostraram dispostos ao trabalho e depois que conheceram as aulas práticas, ficaram além de dispostos, também interessados, a partir daí foi uma troca e novas experiências. [...] Não consegui seguir os planos de aula, mas desta vez não só por falta de tempo (minha visão do semestre passado), pois fui moldando e avaliando minhas aulas, uma conforme a outra e conforme o que eles gostavam e se identificavam. Assim este semestre serviu para me certificar e me dar forças para continuar lecionando, seguir minha carreira com esta disciplina, o teatro. [...] Obtive o maior número de respostas satisfatórias possíveis neste período de estágio, tanto minhas como dos meus alunos, fiquei orgulhosa deles, reconheci meu trabalho e os objetivos e diferenças da educação (EaII, 2011, p. 8-16).

Finalizo esta experiência com o segundo estágio de uma forma muito otimista. [...] Relacionando a prática deste estágio com a prática do estagio anterior, posso avaliar que possuí uma evolução considerável. Acho que neste estágio eu estava mais calmo, mais disposto a escutar os meus alunos, a conversar com eles (EbII, 2011, p. 13).

O tema da ausência de disciplina e ordem nas salas de aula praticamente desaparece dos relatórios. Os estagiários elegem discussões acerca do Teatro como disciplina e suas interlocuções com as questões curriculares, como, por exemplo, a avaliação, a interdisciplinaridade e os objetivos educacionais do Teatro na escola como disciplina para a formação humana e não apenas para a montagem de espetáculos (as “pecinhas” − termo pejorativo utilizado para definir as montagens teatrais muito recorrentes em festividades e datas comemorativas nas escolas). Aparece também o tema da própria formação docente em dois relatórios do Estágio II e em um relatório do Estágio III: o sujeito em formação através do Estágio, o si docente, é o objeto da própria reflexão, reconhecendo-se como professor, suas conquistas, avanços e dificuldades. Já nos relatórios do Estágio III, encontramos seis discussões acerca do Teatro em comunidades, sua relação com diferentes públicos e realidades sociais.

A centralidade da escrita de narrativas, como espaço de diálogo e rememoração, ou mesmo como Benjamim (1994) apresenta, como uma forma artesanal de comunicação, em que o narrador deixa a sua marca na narrativa contada, também é um aspecto a ser considerado na escrita do relatório de Estágio. Mesmo sendo este uma obrigatoriedade, os alunos encontram espaços para suas subjetividades e autonarrativas.

A escrita do relatório de Estágio permite sistematizar e compreender melhor o processo vivido nas escolas e comunidades, percebendo suas contradições, dificuldades e incoerências e racionalizando a dureza da própria prática. A escrita como experiência formativa acontece quando, tanto quem escreve, quanto quem lê, aprende com ela. Por isso, a escrita desempenha um importante papel na formação. Como diz Larrosa (2006, p. 49), “uma escrita silenciosa produz uma atenção concentrada e algo assim como um estar voltado para si mesmo. Mas tem também outra qualidade não menos importante: fazer com que o mundo apareça aberto”. A escrita escapa do controle totalizante. A dimensão solitária e silenciosa de quem escreve, permite realizar exercícios de (auto) reflexão e avaliação.

A disciplina de Estágio enquanto um dispositivo de subjetivação é ao mesmo tempo instrumento de sujeição e possibilidade de práticas de libertação do aluno futuro professor, perfazendo uma educação moral e ética do estudante em formação. Ao mesmo tempo em que os sujeitos se submetem a diretrizes, normas disciplinares e condições que lhe são impostas, é possível que criem seus próprios códigos de conduta e ação, recriem metodologias de ensino de Teatro, extrapolem barreiras disciplinares, etc.

Escrita de si e trabalho ético na aprendizagem da docência

A partir das análises dos relatórios percebe-se que existem algumas aprendizagens que marcam o sujeito em formação. Os acadêmicos foram narrando suas experiências e apontando, de diferentes maneiras e com múltiplos sentidos, algumas marcas de aprendizagens que os constituíram e possibilitaram novos arranjos e modos de serem professores.

Uma dessas marcas são deixadas pelo o que aqui denominamos das experiências que deseducam. São os erros cometidos, as dificuldades enfrentadas, os aspectos negativos, as duras realidades, as carências, os desencontros, as incertezas, as contradições, os constrangimentos, as injustiças, os problemas, as faltas e o que não dá certo quando ensinam. Essas experiências são resultantes muitas vezes do choque de realidade com que se deparam ao confrontarem seus modelos imaginários e ideais, muitas vezes ingênuos, com as incoerências da escola e dos sujeitos reais da vida escolar e comunitária, que, a maioria das vezes, em situações diversas de vulnerabilidade, pouco se parecem com aqueles descritos em livros de metodologia do ensino de Teatro:

É muito comum andarmos pelo bairro e vermos caminhando pelas suas ruas empoeiradas agentes e assistentes de saúde, equipes de estudantes de nutrição, serviço social, medicina, teatro, dança, educação física e tantos mais. É muito comum chegarmos ao Comitê de Desenvolvimento do Dunas [bairro periférico da cidade] e verificarmos o quanto de tecnologia e cultura está recheada a casa, isso me faz saber que ali existe um grande local, rico em projetos e rico para estudos de casos, mas também rico em pobreza, falta educação, saúde e falta de uma vida digna. Fico me perguntando qual interesse e o quanto estas pessoas, representantes e instituições, estão lá para mudar este panorama, que não seja apenas em seu favorecimento próprio, pois ainda vejo um bairro com poucas mudanças no que diz respeito às necessidades básicas. Ainda vejo escondidas nas suas ruas empoeiradas, as mesmas crianças, idosos e animais em riscos diversos, seja social, na fila do posto de saúde, seja caminhando pelo meio da rua junto com os carros ou expostos à violência do lugar, lugar este que tanta assistência tem, e quanto mais tem, menos se consegue fazer algo, pois mais se enxerga os habitantes (em geral) desestimulados para uma mudança (EaIII, 2011, p. 13).

A escrita destaca aspectos que caracterizam a comunidade e o bairro onde a estagiária desenvolveu seu trabalho. A aluna constata a presença de diversos agentes sociais e organizações comunitárias que pouco conseguem garantir qualidade de vida para a comunidade e que muitas vezes utilizam a própria comunidade para promoverem seus interesses políticos e eleitorais. Constata o desrespeito, a injustiça social, a exploração e a violência dos que sofrem com a miséria, e identifica ainda certa inércia por parte desses sujeitos que, de certo modo, parece já terem se acostumado com a condição em que vivem.

Outro estudante destaca a própria vulnerabilidade quando, durante o seu estágio, vê-se confrontado com outras culturas que, pela miséria e condição social, são marcadas muitas vezes pela falta de civilidade:

Por eu fazer parte de uma instituição de ensino superior estou acostumado com certos “padrões de comportamento”, com as questões de regras sociais e respeito. Estamos nos formando a todo o momento e mantemos nossos instintos “malvados” guardados por respeito a essas convenções sociais. O fato de eu participar deste cotidiano fez com que eu me sentisse vulnerável e indefeso ao chegar na escola e me deparar com o modo que essas crianças se relacionam. O contraste das relações entre pessoas que eu convivo comparado com as relações dos meus alunos entre eles fez com que eu me chocasse. A violência, a discriminação, o preconceito estão tomando conta destas crianças de periferia, manipuladas por um mundo adulto defeituoso que reflete em sua vida “infantil” onde a inocência foi quebrada por uma realidade repleta de agressão e desrespeito. [...] Entrando nesta turma de crianças marcadas por uma vida econômica difícil, onde a maioria dos alunos vive à margem da violência, das drogas, do crime me vi de frente a uma realidade humanamente dolorosa, onde eu não sabia se existia uma saída para uma realidade mais humana e justa para aquelas crianças (EbI, 2011, p. 2-3).

O acadêmico logo a seguir espanta-se com a “realidade humanamente dolorosa”, vê-se sem saída, percebe que a solução desse tipo de dificuldades está além de suas possibilidades como professor, mas reconhece sua contribuição específica através do exercício de uma pedagogia do teatro:

Saio desta experiência com estágio com algumas felicidades e outras tristezas, me entristeceu ter visto os problemas que a escola enfrenta e o quanto aspectos sociais e culturais como violência, desigualdade e desrespeito interferem na educação destas crianças. Considero meu trabalho feito na escola como um trabalho bom, à medida que não podemos resolver esses problemas políticos. Acho que o primeiro passo já foi dado, e espero que na medida em que as próximas turmas de estágio entrarem na escola este quadro preocupante mude. Acho que os estágios do curso de Teatro serão muito úteis na divulgação da arte como forma de vida e como forma de pedagogia. Considero a partir desta experiência que a relação mais válida nesse processo foi conhecer a realidade da escola percebendo seus problemas e o que é mais importante, perceber soluções que podem ser propostas pela linguagem teatral que seria meu meio de contribuição para este grupo (EbI, 2011, p. 9).

Os futuros professores saíram dos Estágios com sentimentos diversos: de tristezas a alegrias e, dentre todo espectro de sensações possíveis entre ambos, foram afetados pelas boas e más realizações, bons e maus momentos, que são os limites do próprio Estágio. Não é possível uma resolução ou modificação de questões tão profundas e complexas que permeiam as escolas e comunidades, no curto espaço de tempo definido para os estágios, mas ao mesmo tempo percebe sua contribuição específica como professor de Teatro nesse contexto. A escola é conservadora ou, nas palavras de uma acadêmica, “esclerosada”, (EcI, 2010, p. 10), mas os estagiários não deixam de depositar certa esperança na divulgação da arte teatral, pelo entendimento de que a aula de Teatro pode sensibilizar e transformar os sujeitos.

O enfrentamento dos obstáculos que iam aparecendo dia após dia, aula após aula, são motivos de superação e formação. A incerteza quanto ao uso dos recursos e espaços das escolas ou das comunidades, as diferenças entre os alunos, o desconhecimento sobre as regras e normas dos lugares, a falta de aviso prévio sobre aulas mais curtas que precisavam ser readaptadas às pressas ou, até mesmo, os problemas de comportamento dos alunos, e tantos outros imprevistos que implicam alteração de planejamentos. São circunstâncias que, por vezes, mesmo os obrigando a agir em desacordo com o ideal de professor que queriam ser, os levavam à reinvenção e ao entendimento dos limites com que trabalhavam e ao enfrentamento das complexidades que aí vivenciavam:

Em suma, o contato com a escola me fez pensar as relações entre os educadores e os educandos e assim problematizar este vínculo, pensando o que podemos fazer para essa relação se tornar mais frutífera, pois se alunos e professores se entendessem e ouvissem um ao outro, seria um primeiro passo para a mudança no sentindo de socialização dentro da escola. Percebi como é difícil conhecer efetivamente todos os nossos alunos, visto que dentro da escola sabemos uma parte que compõem a vida de cada um, e com essa multiplicidade de comportamentos e formas de pensar, cabe a nós docentes fazer do espaço escolar um momento de diálogo, reflexão e interação (EcII, 2011,p. 13).

Também abaixo trazemos a reflexão do estagiário que confronta o seu entendimento acerca do papel pedagógico do teatro e as normas vigentes no currículo acerca dos conteúdos e da avaliação:

Não acredito em uma prática artística sem prazer, não acredito que para ser um bom professor de arte devemos fazer como nas outras disciplinas que os conteúdos devem ser engolidos “goela abaixo” pelos alunos. Considero que todos tiveram um bom aproveitamento das aulas de acordo com os lugares de fala de cada um. Seria imperativo de mais da minha parte considerar que algum aluno é melhor do que o outro. Prefiro pensar que existem alunos que se interessam por teatro e outros que não. Existem alunos que vão fazer o básico para passar e outros que vão se entregar e tentar aprender ao máximo, como é na escola nas outras áreas de conhecimento. Refiro-me a tudo isso para falar da avaliação, para mim o processo de avaliar um aluno com um numeral é muito equívoco, à medida que a relação desses alunos com suas experiências pessoais valem muito mais do que um dez ou um dois, como eu poderia saber avaliar um aluno numericamente se não sei quais as mudanças que ocorreram dentro dele? (EbII, 2011, p. 8).

As narrativas indicam que as experiências com os Estágios deixam marcas profundas nos acadêmicos, na medida em que confrontam seus ideais e imaginários sobre a sociedade, a justiça social, as escolas, os currículos e suas normas com as situações problemáticas que enfrentam.

Podemos dizer do acontecimento de uma aprendizagem pela deseducação, ou por uma formação que acontece na contramão do ideal que se deseja e que se enfrenta com os limites do possível, do que não deu certo, das falhas, etc. Percebe-se que a formação, conforme diz Larrosa (2006), acontece por um trajeto ou um curso não normatizado. Para aprender a ler e a percorrer o mundo é fundamental primeiro descolar-se dos esquemas prontos e pré-estabelecidos, de tudo o que já foi passado como dado e interpretado. O autor fala em uma desaprendizagem para se conseguir ler o mundo de outras formas possíveis. A ideia de desaprender, instiga-nos a pensar que a formação através do Estágio também se dá através da desaprendizagem de muitos pré-conceitos, modelos ou códigos que parecem ser insubstituíveis no campo da educação ou eternos para o sujeito que aprende.

Pensar no Estágio e no trabalho ético que os alunos futuros mestres vão fazendo, é confrontar-se com seu inacabamento, com as dúvidas não respondidas, com as aulas não ministradas, com os conteúdos não desenvolvidos, com os objetivos planejados mas não alcançados:

O espetáculo esteve longe de alcançar a perfeição. Talvez justamente aí resida a sua beleza. O erro nos leva a reavaliar nossos conceitos, posturas e ações, a refletir e a crescer. [...] O gran finale na verdade não é um gran finale, é apenas um começo. Ou melhor, um re-começo. Mas um recomeço mais positivo. Após o choque inicial, todas as experiências vividas e as reflexões que elas trouxeram, acredito que estarei melhor preparada para o que vem por aí. Tentarei não criar demasiadas expectativas e estar mais atenta às pequenas conquistas. Elas nos dão força para seguir trilhando o caminho. Após refletir sobre todas estas questões, acredito que, se o Estágio começasse hoje, estaria melhor preparada, senão com as respostas prontas, ao menos para sair em busca delas, ao invés de apenas sofrer a angústia das dúvidas e incertezas. Talvez, no fim das contas, isso signifique um passo importante na direção do Estágio II (EfI, 2010, p. 24).

No intricado mundo escolar e nas tentativas de sua interpretação, administração, avaliação, gestão, currículo, carreira docente, são sempre temas emergentes e que vêm à tona durante os encontros semanais com os estagiários. É um processo constante de fazer-se, formar-se, reformar-se, reconfigurar-se, no exercício de uma forma de profissionalidade autorreflexiva que é cada vez menos possível, quando se pensa nas condições atuais de desenvolvimento do trabalho docente e no rumo que as políticas educacionais e docentes vêm tomando nas últimas décadas.

O Estágio é movimento e, ao mesmo tempo, uma experiência de abandono do conforto transmitido pelas teorias pedagógicas ao serem colocadas frente a frente com a escola e com a comunidade, estas sempre imprevisíveis, inquietantes e complexas. A virtude dos Estágios do Curso de Teatro está em sua infinita capacidade de realização ou desrealização, de sua abertura ao desconhecido, como ocorre no Estágio III em comunidades, ou mesmo no caso do estágio em contexto escolar, que, mesmo não sendo um lugar completamente estranho a eles, pois todos por lá já passaram pelo menos enquanto alunos, possibilita fissuras no já conhecido.

As experiências de estágio escapam de formulações prontas ou normatizadas pela intencionalidade do professor orientador ou do currículo de formação, deslizam dos modelos apregoados e compartilhados de “bom professor” e “boa prática”. O futuro professor, muitas vezes, resiste aos códigos de conduta a partir da sua alteridade, anseios, crenças, confrontando-as com as teorias, a pedagogia e o próprio Teatro, criando e sofrendo seus próprios modos de ser professor:

Além de trabalhar com conteúdos próprios da linguagem teatral, como por exemplo, espaço cênico e técnica de interpretação eu queria contribuir em uma modificação da realidade vivida por aquelas crianças até então. Chegando à escola e tendo diretamente um choque perceptivo onde eu identifiquei a existência de dificuldades e as faltas de cuidados que parte dos alunos estavam submetidos, decidi utilizar minhas aulas de teatro como forma de ensino de um caráter humano, mostrando a importância da convivência, da integração, da aceitação do colega, da quebra com violência e dos preconceitos. Ou seja, eu quis utilizar o teatro para uma reconstrução do sensível. Era um grupo com dificuldades de relacionarse, tocar-se, ou seja, dificuldades basicamente ligadas à convivência. Antes do trabalho com teorias diretas do teatro era preciso quebrar esse bloqueio do grupo com o grupo. (EbI, 2011, p. 4).

No geral creio que tanto para mim quanto para o grupo todo o trabalho desenvolvido foi bastante proveitoso. Creio que para mim, a maior contribuição foi justamente compreender que mesmo pessoas que não são do teatro, que não querem o teatro como profissão, podem interessar-se pelo teatro como obra de arte, como linguagem, como obra estética, e não como ferramenta, como terapia, como geralmente é defendida em práticas teatrais para pessoas que não são de teatro. Para eles, creio, que a maior contribuição foi justamente poder ter esse contato com o teatro, com a estética teatral, com o trabalho de ator, com dramaturgias interessantes do campo teatral. Creio que com esses encontros eles conheceram melhor o próprio teatro, o teatro como obra de arte, o que em minha opinião nunca deveria ter deixado de ser. O teatro já é pedagógico por si só. Ele não precisa ser usado como ferramenta. É uma linguagem que em contato com o público já causa reflexão, mas a reflexão sobre a obra mesmo, sobre o processo de criação e até mesmo sobre o texto e a personagem e sua vida, já que a relação entre teatro e vida é inevitável. Mas o principal foi o contato com o teatro e seu funcionamento, o desenvolvimento, o preparativo e as necessidades de uma montagem, o trabalho em grupo, o respeito pelo colega. Todas essas coisas foram aprendidas nestes encontros, mesmo tendo como foco apenas uma experimentação teatral (EbIII, 2011, p. 9-10).

Ser Arte e ser Educação ao mesmo tempo. A especificidade da dimensão poética do ensino de Teatro se apresenta como aquela capaz de realizar uma educação mais aberta e criativa, não prescritiva. Promove uma escuta do mundo radicalmente polifônica, pois possui o poder de engendrar direções ilimitadas de pensamento e ação. O ensino de Teatro possibilita um espaço da desconstrução dos modos de olhar e agir no mundo (e na escola como um mundo onde se passam muitas coisas), onde não existem fórmulas certas ou erradas, lugares definidos anteriormente pelo professor.

O ensino do Teatro orienta-se e tem como base o sensível, o inefável e a experiência (embora nem sempre isso se efetive em todas as aulas), a escola, por sua vez, com seu projeto de modernidade e como espaço de governo dos outros, vem na contramão dessas ideias, pois, na instituição escolar, funciona a “arte de governo pedagógica”, que desfigura a experiência que o sujeito possa ter de si mesmo, diz Pagni (2011, p. 11), e está pautada pela racionalização das subjetividades, regulamentando e prescrevendo normas de conduta e disciplinarizando os corpos. Daí que a escola parece não oferecer possibilidades de fuga. A racionalidade instrumental ou técnica que pauta o ensino e os processos de aprendizagem escolar faz com que a Arte seja minimizada nos currículos escolares, ou seja, a dimensão estética do ensino e sua relação com a vida, com a ética, são colocadas de lado (ou mesmo consideradas desimportantes) nas práticas escolares.

Como se observa, o Estágio, e especificamente a escrita dos relatórios como formas de escrita de si, possibilitam uma experiência de si aos aprendizes da docência, na qual se envolvem com paixão e sofrimento, no sentido de serem profundamente afetados pelo que lhes acontece e padecerem por isso. Esse é o significado da experiência propriamente dita, diferentemente do que denominamos de prática, ação e/ou experimento, termos que no nosso senso comum pedagógico costumamos usar indistintamente. Diz Larrosa:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (2002, p. 24).

E, partindo para a etimologia do termo experiência, vemos que ela evoca uma estreita relação com a formação humana. Deriva do latim experiri (provar, experimentar), e possui associação com a palavra “perigo”, na medida em que contém a mesma raiz (per) de periculum (perigo). Larrosa lembra que a palavra experiência possui a raiz (ex) de exterior, de extranjero (estrangeiro), de extraño (estranho), de existência. “A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente” (Larrosa, 2002, p. 24).

Então, este é um dos princípios da experiência, o princípio de exterioridade: só há experiência com um alguém ou algo, exterior a mim mesmo, estrangeiro a mim. A partir das palavras equivalentes de experiência em alemão, os termos Erlebnis e Erfahrung, podemos compreender ainda melhor e ressignificar a palavra experiência. Erlebnis costuma se traduzida por “experiência vivida” ou “vivência”, entendida como uma experiência mais imediata, pré-reflexiva e pessoal; já Erfahrung compõese de Farht (viagem) e pode ser associada a Gefahr (perigo). Portanto, remete-se a um longo tempo e ainda sugere uma ideia de “aventura”. Com base nessas duas noções, a experiência significa ter vivido os riscos do perigo, ter a eles sobrevivido e aprendido algo no encontro com o perigo (PAGNI, 2011; PASSEGGI, 2011).

Ao contrário de experimento científico, que tem um caráter de caminho seguro e determinado, a experiência possui um caráter de incerteza, de risco e de indeterminação. As expressões em alemão contribuíram para que a palavra experiência fosse diferenciada de experimento que, nas teorias pedagógicas e em boa parte das Ciências Humanas, foi utilizada como uma das técnicas ou metodologia para legitimar o campo da Educação como um campo científico. Então, é importante, além de despragmatizar a palavra experiência, desempirizar, descontaminá-la de suas aderências empiristas (LARROSA, 2003; 2005).

O Estágio e a escrita dos relatórios de estágio, enquanto escritas de si, tomados nesta perspectiva, têm um papel central na constituição do si docente, como uma experiência formadora, no sentido de inscrever os futuros docentes em exercícios em que tomam a si próprios como matéria de autorreflexão e se assumem autores da própria vida. Enfim, a escrita do relatório de Estágio é uma oportunidade para isso, quando o sujeito volta-se para si mesmo, para reescrever-se, compreender-se e transformar-se através desse ato autoral.

Referências

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1O artigo foi elaborado a partir da Tese de doutoramento em Educação.

Recebido: 22 de Dezembro de 2015; Aceito: 26 de Outubro de 2016

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