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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia May/Aug 2017  Epub Mar 09, 2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p943a957 

Artigos

A função da imitação no projeto educativo da República e a questão do estilo imitativo dos diálogos de Platão

The role of imitation in the Republic’s educational project and the question of the imitative style of Plato’s dialogues

La funzione dell’imitazione nel progetto educativo della Repubblica e la questione delllo stile imitativo dei dialoghi di Platone

Guilherme da Costa Assunção Cecílio* 

*Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor de Filosofia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF-UFRJ). E-mail: guilherme. cecilio@ifrj.edu.br


Resumo

O correto entendimento da teoria platônica da imitação - μίμησις - evidencia que o filósofo não tem objeções à imitação em si; muito pelo contrário, ela é um recurso de grande importância para seu projeto educativo e filosófico. Essa compreensão nos possibilita redimensionar a crítica à poesia apresentada na República e também justificar o gênero de sua obra filosófica.

Palavras-chave: Platão; República; Imitação; Educação

Abstract

The correct understanding of Plato’s theory of imitation - μίμησις - shows that the philosopher does not have any objection to imitation as such; on the contrary, it is a resource of the utmost importance to his educational and philosophical project. This understanding allows us to grasp the real scope of the critique of poetry presented in his Republic and to justify the style of his own philosophical work.

Keywords: Plato; Republic; Imitation; Education

Riassunto

La corretta comprensione della teoria platonica dell’imitazione - μίμησις - evidenzia che il filosofo non ha obiezioni sull’imitazione in sé; al contrario, essa è una risorsa di grande importanza per il suo progetto educativo e filosofico. Questa comprensione ci permette di ridimensionare la critica alla poesia presentata nella Repubblica e anche di giustificare il genere della sua opera filosofica.

Parole chiave: Platone; Repubblica; Imitazione; Educazione

1. Introdução

A teoria platônica da imitação - μίμησις - é um dos temas mais controvertidos da obra do filósofo, tendo se tornado um problema desde as primeiras tentativas de exegese. Além de complexa, trata-se de uma questão extensa, que está presente explicita ou implicitamente em todo o corpus platonicum.

Talvez a mais célebre apresentação do problema - porque polêmica - encontre-se na República, onde o tema é tratado explicitamente em seus livros II, III e X1, culminando na famosa expulsão dos poetas da cidade perfeita. Dentre os poetas banidos da cidade delineada por Platão, figuram nomes como Eurípedes e Homero, fato que ainda hoje é capaz de chocar, e deve ter sido, a fortiori, muito mais espantoso para um leitor antigo. Em consequência disso, Platão foi tradicionalmente visto como um inimigo da poesia e até das artes em geral, ainda que tal juízo possa causar-nos embaraço ao atestarmos o talento literário de Platão, talento sem par na história da filosofia.

Porém, em dificuldade ainda maior, nos encontramos ao perceber que a μιμησις́ , noção que serve de sustentáculo para a crítica aos poetas, é largamente utilizada pelo filósofo para enunciar essa mesma crítica, fato que foi por vezes classificado como um claro exemplo de contradição performativa.

Para esboçarmos uma nova resposta para esse antigo problema, aternos-emos aos supracitados livros da República, deixando de lado, pois, algumas passagens em que a μίμησις é referida no contexto das Ideias, visto serem estes usos que aludem a problemas que excedem em muito o escopo deste artigo. Ademais, tais referências são proporcionalmente muito mais escassas do que as passagens em que a μίμησις é usada em sentido “estilístico”2, o que permite que estas últimas formem um conjunto que pode ser trabalhado por si só.

Procuraremos mostrar aqui que o correto entendimento da teoria da μίμησις revela que Platão detinha uma concepção positiva da mesma, o que, por um lado, comprova a inexistência da suposta contradição performativa, e, por outro, livra o filósofo das acusações de inimigo da poesia.

Posteriormente, procuraremos demonstrar como essa teoria se harmoniza perfeitamente com o gênero das obras de Platão, as quais, como se sabe, são - em maior ou menor grau - sempre miméticas.

Para que possamos levar a cabo semelhante abordagem, dependeremos de uma compreensão mínima do todo da República, em vista da qual propomos o seguinte conspecto de interpretação.

2. Felicidade, virtude, conhecimento, educação e poesia

Antes de abordarmos o tema da μίμησις, devemos indicar minimamente o contexto no qual ele se inclui. A República é uma obra que, dentre outros objetivos3, visa também determinar o que seja a verdadeira felicidade para o homem, desafiando, assim, uma concepção vulgar de felicidade que vinha sendo propalada no contexto cultural da época, especialmente pelos sofistas. Essa felicidade, filosoficamente redefinida, consiste no exercício da virtude - αρετή -, outro termo cujo significado Platão pretende alterar radicalmente. Α felicidade, dessarte, já não pode ser medida em bens materiais, mas sim em “bens divinos”, isto é, a virtude4.

Se a felicidade, objetivo da obra, foi identificada com a virtude, precisamos também definir esta última: αρητή consistiria no exercício exclusivo, por parte de cada elemento da alma, de sua função própria - έργον -, exercício que redunda em ações virtuosas. Vemos que a virtude depende, por definição, de uma espécie de equilíbrio entre os três integrantes anímicos: o racional, o irascível e o apetitivo. Tal equilíbrio, no entanto, não significa uma igualdade de termos, bem ao contrário, implica uma ordenação, segundo a qual o elemento racional tem a suprema função de comando. Sendo a parte racional preponderante, essa será capaz de retificar as demais partes da alma através do comando que lhe é próprio, restabelecendo o equilíbrio entre os três elementos anímicos. Mas o elemento racional só pode realizar o seu comando através da posse do conhecimento; sendo assim, se há conhecimento, haverá a virtude. Em outras palavras, para Platão o conhecimento é condição suficiente para a virtude, e, ainda que não seja condição necessária, é o meio mais provável e seguro de alcançá-la.

Somando-se isso à crença de que o conhecimento pode ser alcançado com auxílio de outrem, a filosofia de Platão, que visa, em última instância, à felicidade, revela-se uma filosofia educativa na medida em que necessita da educação para atingir o seu termo. Para o filósofo, a educação se realiza de modo pleno sobre o elemento racional, produzindo conhecimento em sentido estrito - επιστημή -, mas também se pode falar de educação dos outros elementos da alma, a qual produzirá conhecimento de outro nível, a opinião - δόξα -. A δόξα, esse tipo inferior de conhecimento, é verdadeira quando consoante com a επιστήμη, isto é, quando ambas conduzem a uma mesma ação virtuosa, com a diferença de que a δόξα, carecendo da justificação racional, não se sustenta por si só (ao contrário da επιστημή , que é inabalável). Porém, ainda assim é altamente desejável que se eduquem os elementos anímicos inferiores, visando à produção da δόξα verdadeira, porque ou essa δόξα harmonizar-se-á com a επιστήμη, submetendo-se o não-racional ao racional, ou, faltando a επιστήμη, determinará ela mesma a ação virtuosa. Contrariamente, uma δόξα incorreta será ou obstáculo para a επιστήμη (causando conflito na alma e dificultando a consolidação do estado virtuoso), ou, faltando a επιστήμη, essa δόξα incorreta guiará a alma para ações viciosas.

É no sentido agora apontado que nos referimos anteriormente à condição suficiente, mas não necessária, da επιστήμη para a obtenção da virtude. Numa situação ideal em que a δοξά verdadeira não fosse abalada por fortes questionamentos, ela, por si só, poderia levar a alma à prática de atos virtuosos5. Mas, excetuada essa situação ideal, é sempre de grande valia educar as instâncias não-racionais da alma para que assim a δόξα não ofereça resistência ao governo da parte racional.

Ora, chegamos então ao último estágio requisitado para a compreensão da teoria da imitação. Platão deseja educar a alma para a virtude e felicidade, e tal educação produz um conhecimento que é de dois níveis, a saber, δόξα e επιστήμη. Por outro lado, Platão reconhece que a educação que tradicionalmente formou o homem grego foi essencialmente poética, e, em seu esquema, a poesia só pode ser responsável pelo ensino da δοξά . Entretanto, acabamos de ver a adequada educação da δόξα não é algo que deva ser tratado levianamente, constituindo, ao contrário, tema de crucial importância.

Em suma, o tratamento da poesia emerge como necessário para o aperfeiçoamento da educação proposta na República, e, assim para a obtenção da virtude e da felicidade. No contexto da obra questionar o conceito de felicidade implica em questionar a educação e, assim, a poesia tradicional, o que culminará na condenação de certos poetas e de tipos poéticos.

2.1 A poesia e a experiência poética dos gregos

A despeito da argumentação agora apresentada, é natural que um leitor moderno sinta um certo estranhamento com respeito à estrita conexão que Platão faz entre felicidade e poesia. É difícil entender em que sentido essa poesia fosse capaz de estabelecer certas opiniões - δόξαι - que determinariam a visão de mundo de toda uma sociedade. Além disso, para aceitarmos o equacionamento de felicidade e poesia, precisamos dispensar atenção para uma outra imbricação que hoje nos é estranha, a saber, a estrita conexão entre poesia e educação. Isto é, para que a crítica de Platão ganhe sentido, precisamos reconstituir esse elo essencial que já não existe mais no mundo moderno. Destarte, é forçoso fazer uma breve digressão.

Devemos inicialmente nos perguntar qual a ligação existente entre poesia e educação na Grécia Antiga. Como podemos notar até mesmo nas páginas da República, a poesia era a base da educação grega, através da qual as crianças aprendiam “religião”, “história”, uma “geografia” básica, a própria língua grega (incluindo-se a alfabetização) e muito mais. A poesia não era apenas, como um leitor moderno tende a pensar, o lugar da sensibilidade, da “arte” capaz de tocar o âmago da existência emocional humana. Muito mais do que isso, ela foi por muito tempo o arcabouço de toda uma cultura, a reserva dos costumes e identidade de uma civilização, ou, segundo a metáfora de Eric Havelock, uma “enciclopédia” da cultura grega. Não nos interessa aqui justificar porque a Grécia gozou duma situação tão singular6; interessa-nos apenas verificar esse fato, cujas exemplificações vão desde as muito frequentes intervenções poéticas das personagens dos diálogos platônicos, que lançam mão largamente da declamação de trechos de poemas memorizados, até o exemplo histórico da argumentação dos atenienses, que, para ganhar liderança naval numa batalha, argumentaram que Homero, na Ilíada, atestara a superioridade dos navegantes áticos. O que devemos ter em mente é que a poesia constituía uma realidade tão enraizada na sociedade grega, vale dizer, graças à educação, que afetava o modo de pensar de todo grego.

Mas, dentre os diversos tipos de poesia, algumas espécies poéticas tinham privilégio na educação tradicional, sendo a poesia de Homero a variedade preponderante, a tal ponto que ele foi alcunhado “educador de toda a Grécia”. Porém, especificamente no panorama ateniense, tal função de reservatório cultural era parcialmente integrada pela mais notória invenção poética da Ática: o teatro, e, sobretudo, a tragédia. Assim, o que nos interessa para compreendermos a crítica platônica à poesia são as espécies poéticas mais importantes para a educação no contexto do filósofo, nomeadamente, a épica e a tragédia, que Platão une sob o nome genérico de “poesia trágica” 7.

Mas o que seria, afinal, essa poesia trágica? Num primeiro momento podemos responder que se trata da representação de ações reconhecidas como virtuosas, isto é, uma poesia que trata da virtude. De fato, compreende-se porque Platão se interessa tanto por ela: além de ser o núcleo da παιδειά grega, ela é, simultaneamente, a espécie de poesia que determina os padrões de virtuosidade da cultura grega.

Devemos então agora indagar o porquê da insatisfação de Platão com tal educação poética. A resposta começa a tomar corpo quando atentamos para dois aspectos dessa poesia: por um lado, trata-se dum discurso que naturalmente é multifacetado, não tendo nenhuma pretensão de unificar a experiência em regras e definições8; por outro, encontram-se em tal poesia diversos exemplos de atos reprováveis sendo praticados por deuses e heróis, cujo eventual sentido profundo (se é que este existe) dificilmente seria apreendido pelos jovens educandos. Como consequência desses dois aspectos, podemos apontar ainda que essa poesia configura um conjunto tão variado e, por que não dizer, ambíguo, que ao se isolarem partes de uma obra como a Ilíada obtêm-se juízos contraditórios sobre o mesmo assunto, o que é, sem dúvida, gravíssimo, dado que um dos principais temas tratados por esse tipo de poesia é a virtude.

Sendo assim, podemos dizer que certa espécie de poesia, tal como ela fora historicamente praticada, é criticável por lidar com uma esfera que é epistemologicamente inferior, nomeadamente, a esfera da sensibilidade. Tal crítica é literal no livro X da República, quando Sócrates vincula esse tipo de poesia à esfera sensível da alma, àquela que só percebe o múltiplo e que muitas vezes encontra-se em aporia graças a ele, como no exemplo do bastão que aparenta estar quebrado quando parcialmente submerso9.

Depois desse breve esclarecimento sobre a singular experiência poética grega, podemos finalmente abordar o problema da imitação. Mas seria salutar ainda enfatizar algo que já surgiu no argumento: as objeções de Platão parecem restringir-se à poesia nas formas como ela historicamente se apresentou, e não à poesia per se, o que pretendemos evidenciar ao longo deste trabalho.

2.2 Modos de enunciação do discurso e emulação

A referência direta à imitação emerge no texto da República numa altura em que Sócrates procura tornar claro aos seus interlocutores tanto o objeto visado pelo discurso poético, quanto o modo de se fazer referência a esse objeto. Em termos platônicos, Sócrates aplicará o método da subdivisão, distinguindo entre o que deve ser dito - ὰλεκτέον - e o modo como deve ser dito - ωςλεκτέον 10.

Quanto ao que deve ser dito, a essa altura do diálogo já se definiram os modelos - τύποι - da temperança, coragem, e demais virtudes dos quais os poetas se servirão na criação dοs μύθοι adequados à educação das crianças.

Sócrates está agora interessado em examinar as maneiras de enunciar esses modelos, ou seja, o modo como se deve falar - ως λεκτέον -. Aqui ele afirma que sempre se enuncia por narrativa - διήγησις -, a qual é, por sua vez, subdividida em narrativa simples - απλη διήγησις - e narrativa imitativa - [διήγησις] διὰ μιμήσεως -; dessas duas espécies de narrativa provêm a narrativa mista - [διήγησις] δι’αμφοτερων́ 11. Sócrates aduz alguns exemplos historicamente constituídos para todas as espécies: para a narrativa simples, ditirambos; para a imitativa, tragédia e comédia; para a mista, épica.

Portanto, temos aqui dois grandes pólos, a narração simples e a imitação, a partir dos quais advêm todas as maneiras possíveis de enunciar um discurso. Tratemos da imitação, que é o nosso objeto de estudo neste artigo.

Como o poeta imita alguém? Sócrates dirá: fazendo-se semelhante a algo na voz e na aparência12; essa é, de fato, a definição mais importante de imitação da República, ao menos no que concerne à poesia (deixaremos de lado a questão da pintura). Por mera análise dos termos da definição, temos a imitação como um procedimento de enunciação que pressupõe objetos a serem imitados. Tais objetos podem ser de dois tipos: (a) discursos ou ações de homens bons, ou, ao contrário, (b) discursos e ações de homens inferiores e de tudo mais indiscriminadamente, incluindo os sons do trovão, do vento e dos animais13. Desses dois tipos de imitação decorrem duas espécies poéticas muito distintas: do primeiro tipo de imitação, a espécie que podemos chamar de poesia imitativa do homem bom; do segundo, decorre a espécie que poderíamos nomear de poesia imitativa múltipla.

É preciso aqui atentar para um ponto crucial que até pouco tempo não havia recebido a merecida atenção. Com a expressão “poesia imitativa múltipla” estamos tentando dar conta de um conjunto de termos que, ao que tudo indica, constituem neologismos cunhados por Platão e usados pela primeira vez aqui na República. Trata-se de um grupo de palavras derivadas do radical de μιμησις́ ao qual Platão adicionou os sufixos -ικος́ e -ικη14́ . Em suma, Platão está interessado em distinguir claramente um certo tipo de poesia, e ele o faz através da criação de algumas palavras15.

Tudo isso é de vital importância porque o célebre argumento do livro X que culmina na expulsão dos poetas está textualmente restrito a este tipo de poesia, nomeadamente, à poesia μιμητική; no livro X Sócrates afirma, numa inesperada retomada da discussão do livro III, que foi correto rejeitar a poesia μιμητικη16́ . Ora, isso comprova que há, de fato, duas grandes espécies poéticas que são contrastadas ao longo da obra; essas são exatamente as que foram mencionadas no livro III, nomeadamente, a espécie que imita o homem bom e poesia imitativa múltipla- μιμητική. No contexto do livro X, Sócrates associará essa poesia μιμητική com algo que ele chama de “poesia trágica”, conjunto que abarca o que sói chamar-se de épica e tragédia.

Antes de darmos continuidade ao argumento, é útil explicitar o princípio que perpassa toda a discussão da imitação. Vimos que de uma definição de μίμησις que dizia respeito meramente ao modo de enunciar o discurso, o argumento prosseguiu num outro nível, identificando objetos e atribuindo efetivamente um juízo de valor a dois tipos de poesia imitativa. Devemos nos perguntar por que o texto platônico apresenta tal movimento. A resposta é evidente quando consideramos a afirmação de Sócrates: “as imitações, se se perseverar nelas desde a infância, se transformam em hábito e natureza para o corpo, a voz e a inteligência”.17 A imitação, modo enunciativo do discurso, implica um efeito que

é exterior à linguagem; implica emulação com relação à pessoa imitada. Esse é o grande axioma da imitação na República. Ele obriga que uma discussão estilística desemboque numa classificação valorativa: como poderia ser de outro modo, se o recurso estilístico transforma a natureza íntima daqueles que o utilizam?18

Dando prosseguimento ao argumento, ao examinarmos os termos das definições seja da poesia imitativa do homem bom, seja da poesia imitativa múltipla, perceberemos que se trata de imitações de ações humanas. Mas que ações são essas? No livro III, as ações representadas pela poesia que imita o homem bom são, como já vimos, discursos e ações do homem bom, isto é, ações virtuosas. Já as representadas pela poesia múltipla - μιμητικη ́- são variadas; tão grande é essa variedade que ela finda por incluir ações intemperantes, covardes, em suma, viciosas.

Assim, quando Platão restringe a discussão do livro X à poesia μιμητική e logo depois a identifica com a “poesia trágica”, faz-se necessário discutir a virtude em novos termos. Isso porque Sócrates admite que a “poesia trágica” lida com a virtude, mas se ela é identificada com a poesia μιμητική, que representa o vício, temos, então, uma aporia. A solução encontra-se no fato, já aludido, de que Platão introduz um novo conceito de virtude, e de que nesta altura ele está jogando tanto com o seu próprio conceito de αρετή quanto com aquele tradicionalmente aceito.

Por conseguinte, para que sejamos mais precisos, a “poesia trágica” não imita a virtude e sim ações tradicionalmente reconhecidas como virtuosas, portanto, apenas supostamente virtuosas. Caberá a Sócrates revelar o engano de se considerar virtuosas as ações descritas pela poesia tradicional, quando elas não passam de simulacros de ações virtuosas. Vejamos.

Se a “poesia trágica” imita ações em que os elementos inferiores da alma tripartida se sobrepõem ao elemento racional, considerar isso representação de ações virtuosas é um erro, já que a verdadeira αρητή consiste em cada parte da alma se limitar a realizar sua função própria. Dessa forma, os atos considerados virtuosos pela tradição serão apenas aparência, simulacro de virtuosidade. Em suma, a poesia μιμητική é μιμητική porque só consegue dar conta da aparência da virtude, não de seu ser, aparência que é o próprio vício embelezado por cores poéticas.

Temos agora, portanto, uma visão coerente, harmonizada com os níveis de conhecimento defendidos por Platão, de uma poesia boa e outra má - ao menos com relação aos objetivos educativos da República -, sendo a primeira acolhida19 e a última banida.

3. Conclusões acerca da imitação na República

Como já deve estar claro, Platão não ergue objeções à μίμησις per se. Ao contrário, ela é um recurso precioso se usado da forma correta ou, na linguagem do livro X da República, para imitar o ser das ações virtuosas. O que é objeto de crítica é certa espécie poética que imita o simulacro e não o ser da virtude. Em outras palavras, deve-se distinguir o procedimento enunciativo, a μίμησις propriamente dita, das espécies de poesia que se utilizam desse recurso.

Destarte temos a solução para o paradoxo (a contradição performativa aludida na introdução) de uma crítica à imitação através de um discurso imitativo: na verdade não há crítica alguma à imitação, mas apenas a certos tipos de discursos imitativos.

É justo, entretanto, investigarmos as razões da atribuição de tal paradoxo a Platão. Em primeiro lugar, o vocabulário que Platão usa para efetuar essa crítica, como vimos, é totalmente novo, aparentemente cunhado ad hoc para a enunciação de semelhante crítica. Ademais, tal vocabulário é introduzido paulatinamente e de forma, podemos dizer, assistemática: o termo μιμητικος́ é mencionado, de passagem, no livro III, só sendo retomado de modo mais minucioso no último livro da República.

Porém, a razão mais forte é de ordem retórica. Platão escolhe terminar sua obra com a expulsão dos poetas, fazendo referências nominais a baluartes da poesia helênica20. Trata-se de críticas estarrecedoras e que não tem como contrapeso qualquer defesa explícita da poesia. Sendo assim, a impressão que fica ao leitor é a de total repúdio à poesia, pois quando se trata da boa forma, Platão é realmente elíptico, mas quando se trata de vituperar, ele dedica cerca de um quarto21 da República para tal objetivo.

Tendo concluído que Platão, efetivamente, não tem objeções à imitação per se, podemos dar um passo adiante e aplicar a mesma teoria não apenas à poesia, mas a qualquer tipo de discurso, visto que não há qualquer vínculo necessário entre imitação e poesia.

Tal teoria da imitação ensina que ela é uma maneira de enunciar o discurso que, em si mesma, não é nem boa nem má, mas sempre um poderoso recurso pela influência que exerce na alma humana.

Dada a tese de que a filosofia platônica tem por meta a obtenção da felicidade, e considerando-se o referido efeito da μίμησις sobre a alma humana, devemos afirmar que o próprio estilo que Platão escolheu para sua obra em nada é incoerente com seus juízos sobre a imitação. Ao contrário, nada mais natural do que se utilizar desse valioso recurso para efetuar a mudança necessária nos aspirantes a uma vida filosófica. Talvez já estejamos em condições de entender por que Platão criou uma obra filosófica imitativa, em que os personagens ora interagem em conversações em que se busca o conhecimento, ora praticam ações bastante ordinárias.

De fato, nas páginas dos diálogos platônicos flagramos Sócrates resistindo a um impulso amoroso excessivo, enfrentando um tribunal hostil com coragem, aceitando dignamente uma morte indigna. Platão traçou o maior de todos os modelos, para que ele fulgurasse no imaginário de seus leitores. Faltando a justificação racional, ao menos seria oferecido aos seus leitores um paradigma correto de conduta, ao contrário dos paradigmas corruptos da poesia tradicional.

Contudo, os diálogos imitavam algo que jamais a poesia poderia: a investigação dialética. Destarte, além da emulação “moral”, havia a emulação “gnosiológica”: o virtuoso protagonista sempre se mostrava pronto a tomar parte em discussões que o levassem na direção do conhecimento filosófico.

Em suma, os diálogos são obras cunhadas com esta dupla utilidade: em primeiro lugar, criar um modelo de emulação “moral” através da imitação do ser de ações virtuosas, produzindo assim uma opinião verdadeira no leitor22; em segundo lugar, apresentar a dialética através da imitação, o que, por um lado, possibilita a aquisição de conhecimento, pois a imitação veicula argumentos, e, por outro lado, instiga o próprio leitor a investigar dialeticamente.

Referências

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PEREIRA, M. H. da R A República. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. [ Links ]

1Para uma análise da questão da crítica à poesia no livro X da República, ver (CECÍLIO, 2010).

2Para um aprofundamento da questão dos múltiplos sentidos de μίμησις na República, ver (CECÍLIO, 2014).

3Embora o tema da República seja, de fato, o todo indissociável composto pelas noções de justiça - δικαιοσύνη - e “constituição política” - πολιτεία -, esse todo só ganha sentido em sua relação com o fim último do homem, a felicidade - ευδαιμονία ou ευπράττειν -.

4R. 353e-354a.

5R. 412 e-413a é uma passagem que, em nosso parecer, mostra como a δόξα que é reta seja plenamente capaz de, dado certo contexto, produzir por si só a prática de ações virtuosas.

6Para o que remetemos à excelente obra de Havelock, 1996.

7Cite-se, para ficarmos em apenas um exemplo, a nebulosa referência aos “trágicos” contida na abertura do importante livro X da República, 595c.

8Poder-se-ia citar, por exemplo, R. 600e-601b e 602a-603b.

9R. 602c-d.

10R. 392c.

11R. 392d

12“οκον τό γε μοιον αυτν λλ κατ φωνν κατ σχμα μιμεσθαί στιν κενον ν τις μοιο;”, R. 393c.

13R. 396c-397b.

14Segundo Chantraîne (1956, p. 98), há na obra de Platão cerca de 350 palavras desse tipo, 250 das quais parecem ser completos neologismos. Em geral, segundo o mesmo autor, tais palavras estão associadas a termos como τέχνη e επιστήμη, indicando assim arte ou ciência.

15Elizabeth Belfiore (1984, p.126-127) foi, provavelmente, a primeira estudiosa a chamar atenção da crítica especializada para a decisiva importância dos neologismos μιμητική e μιμητικός para a correta compreensão da crítica platônica aos poetas na República. A esse respeito, ver também as contribuições de Ferrari (1989, p. 114-115).

16R. 595a-b.

17“α μιμήσεις, ν κ νέων πόρρω διατελέσωσιν, ες θη τε κα φύσιν καθίστανται κα κατ σμα κα φωνς κα κατ τν διάνοιαν”, R. 395d.

18Esbarramos aqui numa dificuldade: que importa que a imitação modifique o caráter dos que dela se servem, isto é, o caráter dos imitadores, se esses seriam apenas os poetas, atores e rapsodos? Pois bem, seria um erro chamar de imitadores somente poetas e afins; deve-se considerar como imitador todo aquele que recebe uma educação poética, isto é, a educação padrão na Grécia à época de Platão. E também no que concerne à cidade proposta na República, todos aqueles que tomam parte na sua educação acabam sendo imitadores, pois tal educação implicava necessariamente que os educandos lançassem mão de expedientes imitativos.

19Em R. 607a Sócrates preserva textualmente os hinos e encômios que imitem o homem bom, isto é, a mesma poesia a que se fez referência no livro III.

20R. 606e1-2, por exemplo.

21Se considerarmos que os livros II, III e X consistem, basicamente, numa crítica à poesia μιμητική, temos praticamente 3/10 da obra dedicados à crítica poética.

22Em rigor, no tempo em que foram escritos, os diálogos não eram destinados a leitores, pois, como hoje se sabe, as leituras se davam sempre em voz alta diante de uma plateia de ouvintes, o que só acentua o aspecto dramático de tais “leituras”, tornando verossímil o efeito emulativo da imitação. No entanto, por razão de comodidade, mantivemos o termo leitor para fazer referência ao destinatário do texto platônico.

Recebido: 19 de Dezembro de 2015; Aceito: 18 de Maio de 2016

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