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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia May/Aug 2017  Epub Mar 09, 2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p959a984 

Artigos

Os fundamentos da educação popular e seu horizonte formativo: a cidadania em questão

The foundations of popular education and its formative horizon: citizenship in question

Los principios de la educación popular y su horizonte de formación: la ciudadanía en perspectiva

Sandro de Castro Pitano* 

*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor adjunto do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista de produtividade em pesquisa (PQ2/CNPQ E-mail: scpitano@gmail.com.


Resumo

O texto desenvolve uma análise crítica da cidadania, problematizando-a como possível horizonte formativo da educação popular. A análise se estende ao processo educativo escolar, colocando em crise o consenso de que cabe à escola formar o cidadão. A seguir são investigadas as transformações históricas que o conceito sofreu, explicitando suas múltiplas faces no bojo das organizações políticas respectivas. Em relação ao momento atual, busca evidenciar as características da cidadania concebida e desejada pelas modernas democracias, como a brasileira. A questão central e motivadora desse estudo é retomada nas considerações finais: pode uma concepção política e pedagógica radicalmente libertadora como a educação popular balizar-se no cidadão como ideal formativo? Os argumentos reunidos e analisados ao longo do texto permitem concluir que por coerência e fidelidade, embora possa, não deve, pois iria de encontro aos princípios fundantes da educação popular.

Palavras-chave: Educação popular; Cidadão; Educação escolar; Democracia; Formação

Abstract

The paper develops a critical analysis of citizenship, discussing it as possible formative horizon of popular education. The analysis extends to the school education process, putting into crisis the consensus that is the school form the citizen. Below are the historical changes that investigated the concept suffered, explaining its multiple faces in the midst of their political organizations. Relative to the current time, it seeks to demonstrate the citizenship characteristics designed and desired by modern democracies, such as Brazil. The central and motivating question of this study is taken up in the final considerations: can a political and pedagogical concept radically liberating as popular education if beacon-citizen as a formative ideal? The arguments gathered and analyzed throughout the text to the conclusion that for consistency and fidelity, although it should not, as it would against the founding principles of popular education.

Keywords: Popular education; Citizen; School education; Democracy; Formation

Resumen

El texto desarrolla un análisis crítico de la ciudadanía, cuestionando como possible horizonte de formación de la educación popular. El análisis pone en crisis el consenso que corresponde a la escuela formar el ciudadano. Son investigadas las transformaciones históricas que el concepto ha sido objeto, explicando sus múltiples caras en medio de sus organizaciones políticas. En cuanto a la presente, pretende mostrar las características de la ciudadanía concebida y deseada por las democracias modernas, como la brasileña. La cuestión central y motivador de este estudio se recoge en las consideraciones finales: ¿puede un diseño político y pedagógico radicalmente liberador como la educación popular marcar el ciudadano como ideal de formación? Los argumentos recogidos y analizados permiten concluir que para mantener la coherencia y fidelidad, aunque puede, no debería, ya que iría en contra de los principios fundamentales de la educación popular.

Palabras clave: Educación popular; Ciudadano; Educación formal; Democracia; Formación

Introdução

Em relação a outras concepções pedagógicas, a educação popular representa uma alternativa de autêntico contraponto, pois, além de “pensar” a opressão, dispõe-se a trilhar os caminhos capazes de promover a necessária ruptura. Como movimento político-pedagógico, define a libertação dos oprimidos como tarefa propulsora para atingir o seu horizonte: uma nova ordem social, apoiada em um sistema justo de distribuição das riquezas socialmente produzidas. A libertação constitui, portanto, o fundamento de sua mobilização. Diferentemente das demais concepções educativas, a educação popular assume uma práxis disposta a vincular, sob uma ótica crítica, as relações de ensino e produção do conhecimento às condições de existência dos seus sujeitos.

Tratando-se de uma construção gramatical que comporta um substantivo - educação, e um adjetivo - popular, o termo suscita interrogações. Afinal, o que significa o popular? Com frequência popular é associado a outros termos, como simples, pobre, carente, barato, humilde, acessível, proletário, entre outros. Temos, por exemplo, o carro popular, o computador popular, as classes populares. É comum tais termos estarem atrelados, em sua significância, à linguagem sistêmica de nosso mundo mercadológico. Explicita-se assim uma primeira dimensão possível na análise da educação popular: o seu caráter popularizante, isto é, espraiado socialmente.

A outra dimensão consiste na existência de horizontes de uma autêntica pedagogia popular, que aproxima a prática educativa de uma prática social, politicamente voltada para a problematização e a transformação da realidade (STRECK et al., 2014). Essa concepção entende o adjetivo que lhe complementa - popular - como o núcleo de interesses maiores, ligados ao projeto de uma sociedade justa e humana. E que a partir desse esse horizonte, interrogue-se, permanentemente, sobre sua prática, visando à ruptura com o status quo e à construção do novo. Trata-se, portanto, de uma educação popular libertadora, cuja feitura depende menos do contexto em que ocorre e mais da intencionalidade dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, pode se efetivar nas escolas da rede oficial, tanto públicas quanto privadas, nas práticas de educação não escolar e na educação de jovens e adultos, desde que politicamente comprometida com a libertação.

De acordo com Torres (1988, p. 23-24), são características de uma educação popular libertadora: busca respostas aos interesses dos grupos oprimidos; é participativa; crítica; democrática; ligada à realidade e à concretude, conjugando teoria e prática; cooperativa; produtora de conhecimento; não formal e não oficial; questionadora da ordem social vigente, propondo uma nova. Enfim, trata-se de uma educação que, embora identificada com interesses dos grupos oprimidos, define-se menos pelo destinatário da ação do que pela explícita intencionalidade política que a orienta.

Repensar os problemas, as diretrizes teórico-metodológicas e o ideal formativo da educação popular é uma exigência das condições materiais, políticas e sociais contemporâneas. Por isso, nesse texto, busca-se inicialmente problematizar a cidadania em relação ao processo educativo escolar, colocando em crise o consenso de que cabe à escola formar o cidadão. A seguir, são investigadas as transformações históricas que o conceito de cidadão sofreu, explicitando suas múltiplas faces no bojo das organizações políticas respectivas. A abordagem se estende ao momento atual, buscando evidenciar as características da cidadania concebida e desejada pelas modernas democracias, como a brasileira. Por último, a questão central, motivadora desse trabalho é retomada: a cidadania pode ser assumida como ideal formativo pela educação popular?

Educação e cidadania, coerência ou contradição?

Considerando a radicalidade libertadora como princípio fundante da educação popular, orientando o sentido da sua práxis, é pertinente estender a análise em direção às vinculações possíveis com o cidadão (cidadania), dimensionando a sua coerência (ou não) como ideal formativo. Destaca-se como justificativa dessa problemática que a imagem social da escola é a de uma instituição social responsável pela formação para e da cidadania.

O artigo primeiro da Constituição de 1988 define o Brasil como um Estado democrático de direito, estabelecendo os seus fundamentos: (I) a soberania, (II) a cidadania, (III) a dignidade da pessoa humana, (IV) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e (V) o pluralismo político. Dos cinco princípios fundamentais, destaca-se a cidadania, condição do cidadão como característica maior da existência social das pessoas. A cidadania aparece prevista legalmente, ancorada na própria definição de república, um Estado de direito, ou seja, uma garantia jurídica. É a mesma encontrada no artigo 5º, estabelecendo que “todos são iguais perante a lei”. Sob uma breve apreciação, é possível perceber que o texto constitucional contempla a cidadania em vários momentos, revelando a importância que lhe é conferida na sistematização legal do Estado Brasileiro.

Entretanto, apurando um pouco mais a análise, não é difícil compreender que em momentos cruciais do texto, a cidadania se encontra muito bem delimitada em relação à lógica do sistema político e econômico vigente. Como exemplo, o artigo 6º da Constituição, que prevê os direitos sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Percebe-se que a Constituição é primorosa em definir direitos, porém, mesmo aqueles estabelecidos acabam sendo restritos à formalidade jurídica. No que diz respeito à educação, ainda tomando como base o texto constitucional, a cidadania é responsabilidade atribuída ao processo formativo oficial, de acordo com o que consta no artigo 205: “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. (Grifos meus).

Mas o que significa ser este cidadão, previsto na lei maior, cuja responsabilidade pela formação é atribuída à educação? Será que educadores e educadoras têm o discernimento necessário para posicionar-se diante dessa responsabilidade, aparentemente neutra, que lhes é atribuída? Primeiramente, constata-se o amplo apelo pela cidadania, tal é sua disseminação pelo aparato legal do Estado. Destacando a inevitável presença do poder nas relações sociais, especificamente no aspecto político, chega-se a outra questão problemática: como construção política, a cidadania orientada à participação democrática no modelo representativo não constitui uma formalidade necessária e, ao mesmo tempo, conservadora? Como as relações entre indivíduo e sociedade são dialéticas, isto é, um conforma o outro reciprocamente, é consequente que haja uma ação direcionada e condicionante em direção ao paradigma esperado pela ideologia dominante. Materialidade, relações de ordem econômica e cultural com ênfase nas formas simbólicas atuam como fatores condicionantes, intimamente, ligados à educação em seu viés escolar. Educadores e educadoras populares, atentos a essa vinculação ardilosa, buscam atuar de maneira contra hegemônica, ancorados em outra compreensão da existência humana no mundo.

Embora a educação não se resuma ao espaço-tempo institucionalizado na escola, como lembra Severino (2001, p. 84), é o processo educativo que “promove a inserção dos indivíduos na esfera da realização da existência da espécie”. Considera-se formal e oficial a educação instituída sob a responsabilidade do Estado, que sistematiza e executa as suas principais diretrizes. E a dimensão política - materializada na forma com que os indivíduos se relacionam com a sociedade, de acordo com a Constituição - é uma das tarefas da práxis educativa. O cidadão, como núcleo representativo da existência política e social, deve concretizar os anseios sistêmicos. Por isso, é formado em consonância com os princípios do trabalho e da participação, previstos e esperados pala organização política em vigor. Sem dúvida, havendo um compromisso político da educação, ele é, no meio oficial, o de conformar o indivíduo ao sistema, garantindo a sua reprodução. Nessa ótica, a educação não deve contribuir para o desenvolvimento da capacidade crítica dos educandos, pois o desvelamento ideológico das bases de sustentação das relações sistêmicas pode comprometer a sua existência. Em síntese, é finalidade da educação oficial construir a cidadania, ampliando o funcionamento político da sociedade tal como está sendo, assentada na democracia representativa. É necessário observar, então, o que vem a ser cidadania e o que representa uma educação para a cidadania.

O termo cidadania tem seu uso disseminado no meio educacional de tal forma que é adotado tanto pela educação oficial, como por setores da educação popular, como a concepção de Escola Cidadã, desenvolvida pelo Instituto Paulo Freire de São Paulo desde o ano de 1994. Segundo Gadotti (2001, p. 96), o movimento pela escola cidadã se origina na gestão de Paulo Freire na Secretaria da Educação de São Paulo, criado com o objetivo de “fazer frente ao projeto político-pedagógico neoliberal”. O autor explica que a escola cidadã está fortemente enraizada no movimento de educação popular comunitária, conhecido como “Escola Pública Popular”. Esta proposta teve ramificações em várias regiões do País, como foi o caso da prefeitura de Porto Alegre no período 1993 - 1996, também assumida pelo governo estadual do Rio Grande do Sul, entre 1999 - 2002. Porém, cabe salientar que nesta experiência, apesar do discurso fazer uso dos termos cidadão e cidadania, há outro significado subjacente. Conforme um trecho dos “Princípios e Diretrizes para a Educação Estadual” (2000, p. 11, grifos meus):

A participação popular não acontece apenas através dos mecanismos institucionais e/ou legais, como o voto (em período de eleições). Ela vai além deles, uma vez que é um processo social que possibilita às camadas populares, além de manifestar seus anseios, interesses e necessidades, interferir, influenciar, participar da elaboração e da tomada de decisão, bem como controlar sua implementação. Tratar da participação popular é tratar, necessariamente, da construção do ser humano enquanto sujeito transformador da história.

O uso da expressão “sujeito transformador” atribui um sentido especial ao objetivo da escola cidadã. E não se trata de aparições isoladas: sujeito e transformação permeiam amplamente o documento em questão. Na temática número um dos Princípios e Diretrizes para a Educação Estadual, o princípio 2 (RIO GRANDE DO SUL, 2000, p. 33) explicita: “Educação Libertadora, formadora de sujeitos críticos e transformadores da realidade, na perspectiva da construção de uma sociedade justa, democrática e humanista”. Novamente, o mesmo sentido é visto na temática número quatro, que versa sobre concepção de educação e desenvolvimento (RIO GRANDE DO SUL, 2000, p. 43): “Educação como processo permanente de formação de sujeitos autônomos, com posição crítica frente às desigualdades e injustiças sociais”.

A análise desses princípios revela, ainda, a pouca incidência dos termos cidadão e cidadania. E, quando aparecem, são complementados,

Para o governo popular, democratizar é construir participativamente um projeto de educação de qualidade social, transformador e libertador, no qual a escola seja um laboratório de prática, de exercício e de conquista de direitos, de formação de sujeitos históricos, autônomos, críticos e criativos, cidadãos plenos, identificados com os valores éticos, voltados à construção de um projeto social solidário. (RIO GRANDE DO SUL, 2000, p. 49).

Casos como esse evidenciam a insegurança de setores da educação popular no uso do termo cidadão, tanto que ele normalmente exige, em prol da coerência discursiva, que lhe seja atribuído um complemento (cidadão pleno). Compreende-se que o cidadão presente no documento analisado, construído a partir de uma concepção libertadora, não se identifica com o cidadão previsto nos textos oficiais, como a Constituição. No artigo “Escola Cidadã: educação para e pela cidadania”, Gadotti (2000, p. 5) salienta que “a maior ambição da Escola Cidadã é contribuir na criação das condições para o surgimento de uma nova cidadania”. O próprio autor, ao iniciar o texto, comenta que o termo foi apropriado com sentido e significado diferentes, “tornando-se uma palavra perigosamente consensual, um envelope vazio”, o qual pode conter todos os tipos de sonhos e respectivas realidades. É evidente que no intuito de escapar de armadilhas como essa são atribuídos complementos à cidadania, na intenção de manifestar um sentido diferente do discurso hegemônico. Gadotti (2000, p. 1) também opta por esse caminho, afirmando que o conceito, hoje, é mais complexo, pois, “com a ampliação dos direitos, nasce, também, uma concepção mais ampla de cidadania”.

Entretanto, a armadilha não permite escapar tão facilmente. Se, como foi evidenciado, a garantia da cidadania existe e tem se ampliado nos documentos oficiais, mantendo-se em um patamar puramente teórico e formal, como aceitar que tal fato consubstancie na prática a sua instauração? Continuamos aferrados ao formalismo ineficaz, apaziguador e conservador de uma cidadania restrita a documentos. O cidadão pleno dos “Princípios e Diretrizes para a Educação Estadual” é também defendido por Gadotti. Resta entender o que seria esta plenitude exigida por meio de uma expressão discursiva identificada, historicamente, com hierarquização e desigualdade social.

Cortina (1997) descreve os pressupostos para uma cidadania plena, entre os quais se destacam as dimensões política, social, econômica, civil e intelectual. Porém, somente a dimensão econômica já é suficiente para pôr em relevo o nível de incompatibilidade entre a cidadania plena e o sistema de produção e consumo vigente, ao prever a participação dos trabalhadores na gestão e nos lucros das empresas. Ou, então, promovendo uma participação compatível, isto é, pouco expressiva, sustentando um “discurso cidadão” diante de uma realidade opressora, que, na prática, não oferece condições de vida digna para todos, no sentido atribuído ao pleno da cidadania. Seria o caso de incluir a participação plena na gestão e nos lucros das empresas como um objetivo da educação popular? Definitivamente este não seria um caminho coerente com seus princípios fundamentais.

Buscando uma compreensão mais aprofundada sobre a polêmica em torno da cidadania e sua eventual pertinência aos propósitos da educação popular, resta problematizar o conceito de cidadão ao longo do contexto histórico, desde a sua gênese.

O cidadão na história: uma genealogia

Cidadão é um termo de conotação eminentemente burguesa - o habitante das cidades - que significa, no cenário moderno, o indivíduo em gozo dos direitos civis e políticos de um Estado. Entre eles, direitos que, na prática, correspondem a deveres, como no caso dos brasileiros, o de votar. A cidadania (condição do cidadão) é uma palavra que se presta aos mais diferentes jogos de linguagem e de poder. A função polissêmica de qualquer signo permite a sua modelização sob variados sistemas semióticos, inclusive divergentes. Mas, de forma geral, a cidadania tem configurado o pertencimento do indivíduo a um Estado, regulamentador dos direitos e deveres individuais e coletivos.

A compreensão do significado histórico do cidadão remete, inicialmente, à Grécia antiga, por volta dos séculos VII e VI a.C. Por origem, a cidadania é uma condição atrelada à participação política na polis (cidade-estado). A inserção na atividade política é uma referência à vida na cidade, do latim civitas, homônimo do grego polis, caracterizando a participação do indivíduo na definição dos rumos da cidade a qual pertence. Em seus primórdios, a cidadania equivale à condição de quem vive na cidade e em sociedade, revelando uma ligação embrionária com a liberdade.

Em sua gênese, o cidadão ocidental se constitui em paralelo ao surgimento das cidades-estados. É quando a cidadania coincide com a ação militar, fundante de um modelo ocidental da guerra, implementado em função dos interesses dos proprietários rurais em defender suas posses. É possível visualizar uma lógica geopolítica perfeitamente vinculada ao campo do poder, consolidando a ideia da inviolabilidade da propriedade privada. Curiosamente, a cidade para os gregos “não se tratava de um espaço físico situado numa cidade ou em qualquer outro aglomerado no sentido urbanístico do termo”, mas sim “de um conjunto de homens livres decidindo coletiva e livremente o destino de sua comunidade” (DUETTO, 2004, p. 62). A cidade está, portanto, onde estão os seus cidadãos. É da organização militar, na qual participavam os homens livres impelidos por interesses vinculados à propriedade que surge a democracia, por origem, um sistema (geo) político e econômico explicitamente classista. Somente uma minoria composta pelos homens, possuidores das melhores terras, compunha a comunidade cívica. Ao mesmo tempo, grande parte da população vivia em situação de dependência, maior ou menor e as decisões “públicas” eram tomadas pelos conselhos restritos dos notáveis, “bem nascidos”.

Por volta do século VII a.C., os gregos empreendiam um forte movimento expansionista em direção ao mediterrâneo, principalmente em busca de terras férteis. A posse da terra refletia a desigualdade entre ricos e pobres. Esses, na maioria camponeses que trabalhavam como rendeiros nas propriedades maiores, acabavam escravizados quando endividados junto aos grandes proprietários. Com a concentração de riqueza diante da brutal miserabilidade à que eram submetidas mais e mais pessoas, caracterizou-se um quadro de grave crise social em Atenas. Frente à unidade da cidade ameaçada, no ano de 594 a.C., o legislador Sólon instituiu reformas como a abolição da escravidão por dívidas. Entretanto, a divisão das terras públicas, conquistadas através do movimento expansionista, não foi submetida a critérios de igualdade. O destaque do reformismo de Sólon é o fato de ter “dotado a cidade de leis escritas para que a justiça fosse a mesma para todos” (MOSSÉ, 1993, p. 19). Desde então, todos em Atenas passaram a ser iguais perante a lei, embora desiguais, de fato. Incluídos na condição de cidadãos, embora apenas uma minoria tivesse acesso às mais altas magistraturas, a saber, “aqueles a quem a riqueza e o tempo livre permitiam disputá-las”. Porém, apesar de todas as reformas instituídas e caracterizadas principalmente pela inclusão universal ao status de cidadão, as condições de vida, efetivamente, pouco mudaram e a desigualdade econômica se refletia no exercício político.

Cidadania e lei como princípios de organização social e política andam juntas desde a antiguidade. Isso explicita, por origem, o caráter emancipatório e reformista subjacente à inclusão formal oferecida pela legislação. Châtelet (2000, p. 16) também ratifica a noção de que a inclusão cidadã, naquele momento, teve um significado reformista:

No final do século VI a.C. e durante a segunda metade do século seguinte, o poder democrático realizou uma série de reformas que estenderam o estatuto de cidadãos plenos à totalidade dos habitantes masculinos nascidos atenienses, assegurando-lhes assim a igualdade diante das leis (isonomia) e o acesso às magistraturas.

Diferentemente dos escravos, das mulheres, dos estrangeiros e dos despossuídos de fortuna, eram os cidadãos que deliberavam sobre os destinos da cidade. A liberdade de participação bem delimitada, comportando um restrito universo de indivíduos, enfatiza o caráter elitista e discriminatório da cidadania em seu berço. O cidadão é por origem, ativo politicamente. Porém, o grau de discriminação manifestado pela parcela genuinamente participativa já comprometia a cidadania como condição universal. Afinal, a ingerência política dependia do gênero (somente homens), do nascimento (somente os nascidos em terras gregas) e da condição econômica (somente proprietários de terras). Com isso, a conclusão é de que o regime de governo não era outro, senão a aristocracia.

Semelhante à polis grega, na civitas romana os patrícios, famílias poderosas, eram os administradores da vida na coletividade urbana. Os não nobres e estrangeiros compunham a plebe, mantida à parte dos direitos políticos. Os plebeus faziam parte da camada social formada por pessoas de origem diversa, que não possuíam quaisquer direitos, apenas deveres. Exerciam atividades como a pequena agricultura, o comércio e o artesanato. Abaixo deles ainda havia os escravos (capturados em guerras) e os plebeus que deviam algo aos patrícios. Com a queda do império romano (século V), os governos passaram a ser constituídos por monarquias e as camadas sociais compostas por nobres, membros do clero e camponeses. Os cidadãos não existiam nessas sociedades de ordens, onde clero e nobreza detinham o saber e o poder político.

Precedendo historicamente ao nascimento do capitalismo, ainda na Idade Média, as cidades começaram a crescer e a urbanização se tornou um fenômeno típico do contexto em transformação. Isso permite entender porque a cidadania renasce vinculada à noção de liberdade. Muitos dos habitantes urbanos eram oriundos dos feudos, ex-servos que buscavam a liberdade nas cidades. Comparadas as condições, servo de gleba e cidadão (aqui compreendido como habitante das cidades em ascensão), a cidadania representava uma possibilidade de vida bem mais promissora. As cidades oportunizavam trabalho e condições de sobrevivência bem melhores do que os feudos. Por isso, a cidadania representava a liberdade em relação à condição servil vivenciada nas grandes propriedades, sob o poder dos senhores feudais. Nesse rearranjo histórico, a cidadania se reconstrói baseada na reformulação do antigo significado. Agora conta a igualdade dentro de uma nova classe, a burguesia mercantil, anunciadora do capitalismo como sistema de produção e consumo hegemônico a partir da modernidade.

O outro momento clássico da história da cidadania situa-se nos primórdios do desenvolvimento da organização capitalista, considerado por Covre (2007, p. 17) o resultado das lutas emancipatórias da classe burguesa contra o feudalismo. Refere-se, portanto, ao período moderno, cujas raízes remontam ao século XV. Porém, somente a partir do século XVII materializou-se o ideal democrático responsável pela retomada do status de cidadão de um Estado, tendo como marco a Revolução Gloriosa (Inglaterra, 1688). Com a consolidação do parlamentarismo, ganhavam corpo as constituições que formulavam as relações jurídicas normativas em oposição às normas difusas e arbitrárias vigentes na monarquia. Como lembra Mello (1994, p. 30), a democracia parlamentar inglesa é derivada não apenas das noções ideais de igualdade, mas também do princípio da liberdade, fortemente influenciada pelo liberalismo de John Locke (1632-1704).

Porém, a concepção de cidadania delineada por Locke se prestou a legitimar a exploração burguesa sobre os trabalhadores. No capítulo V do “Segundo tratado sobre o governo civil”, Locke (1994, p. 97) explica que o seu objetivo é “mostrar como os homens podem ter adquirido uma propriedade em porções distintas do que Deus deu à humanidade em comum, mesmo sem o acordo expresso de todos os co-proprietários”. A capacidade, o empreendedorismo, a iniciativa e a disposição, quesitos intrínsecos ao funcionamento do capitalismo, estão presentes na justificativa que desenvolve diante da propriedade privada. E assim se materializa mais uma concepção de cidadania que prevê a desigual condição social entre as pessoas. Para o inglês, o conjunto de renúncias que os homens fazem ao entrar na sociedade (igualdade, liberdade e o poder executivo possuídos no estado de natureza) decorre de um interesse maior: melhor proteger sua liberdade e propriedade.

Com a Revolução Francesa (1789) consolidaram-se a classe burguesa e o seu sistema de produção e consumo, o capitalismo. Como afirma Covre (2007, p. 20):

De um lado, trata-se do processo - o mais avançado que a humanidade já conheceu - de saída do imobilismo da sociedade feudal. Nessa evolução, despontou a cidadania em sua proposta de igualdade formal para todos. De outro lado, porém, delineia-se o processo de exploração e dominação do capital.

A cidadania representava, para a burguesia, a possibilidade de, contando com o apoio de todos os setores subalternos (artesãos e camponeses), romper com os privilégios do nascimento preponderantes no sistema feudal. Ao Estado de nascimento opunha-se o Estado de direito. Porém, na constituição do Estado revolucionário francês vingaram apenas a democracia representativa e a desigualdade social. Semelhante à Atenas de Sólon, onde todos são cidadãos iguais perante a lei, a cidadania renasce com outra face, sedimentada, porém, nos velhos princípios e objetivos. Formalismo e propriedade privada; inclusão, emancipação e reforma1. Igualdade e liberdade restam limitadas pelo poder econômico, atendendo aos interesses dominantes. A concepção de liberdade e igualdade modernas circula disfarçada por um discurso sedutor, com ares de universalidade, quando “refere-se basicamente à eliminação dos privilégios estamentais e dos entraves para o comércio” (RIBEIRO, 2002, p. 121). É por este caminho que se chega à cidadania na atualidade.

Com a criação dos estados nacionais consolida-se um conjunto institucional que favorece o novo paradigma de produção e, com ele, o poder político baseado nos ideais de igualdade, liberdade e propriedade.

Esta, como horizonte concreto, depende de um aparato jurídico que a defenda, salvaguardando sua condição e permitindo a manutenção das liberdades. Nascem os direitos políticos e o estatuto jurídico da cidadania, para os quais o ano de 1789 representa um marco histórico. A Revolução Francesa origina a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo artigo II afirma que “o objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem; esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.

Desde então, a cidadania se caracteriza pela titularidade de direitos individuais previstos por um Estado legalmente instituído. Identificada com os anseios de uma classe em ascensão, a nova cidadania se afirma de maneira semelhante à cidadania antiga, basicamente, sobre os pilares da liberdade proporcionada pela propriedade e protegida pelo direito positivo. Trata-se de um status social afinado com interesses hegemônicos, em resposta às novas relações de poder. E no seio delas, diferentes das do feudalismo, uma velha situação se mantém determinante ao acesso dos critérios mínimos da cidadania como participação ativa na sociedade: a desigualdade social.

Marshall (1967) realiza uma contextualização histórica do conceito de cidadania a partir da modernidade, subdividindo-a em cidadania civil, cidadania política e cidadania social. A primeira corresponde ao período de sistematização do direito burguês, garantidor das liberdades individuais, conforme demonstra a Declaração dos direitos do homem e do cidadão (1789). A cidadania política é sedimentada ainda no século XIX, através das políticas de participação nos governos, ou seja, as democracias representativas. O voto simboliza a cidadania política, conferindo ao cidadão o papel de agente nas relações de poder. Por fim, a cidadania social é uma característica típica do século XX, proporcionada pela efetivação do Estado de bem estar social em países como Alemanha, França e Inglaterra. Embora os direitos de cidadania não correspondam, diretamente, aos direitos humanos, é nítida a zona de convergência entre eles, influenciada, principalmente, pela Declaração universal dos direitos humanos (1948) que estabelece o direito à vida, proibição de tortura, liberdade da escravidão, igualdade perante a lei, entre outros.

É a dimensão social da cidadania que explicita o maior abismo entre o formalmente previsto e o efetivamente alcançado. A desigualdade das condições econômicas entre as pessoas constitui-se em um impeditivo concreto para a fruição do que é previsto em lei, inclusive quanto aos aspectos políticos e civis. A concretude da cidadania, entendida como a correspondência entre o legal e o efetivo, continua dependente do fator material. Mesmo não havendo mais escravidão, o modo de produção e consumo dominante, ao primar pela posse do capital, determina a capacidade de participação, aproximando-se da cidadania antiga em seu caráter excludente.

No escopo da moderna democracia capitalista, cidadão vem a ser o indivíduo medianamente “instruído e participante, desde que ordeiro e subalterno” (BRANDÃO, 1985, p. 83). Considerando o mundo fetichizado da mercadoria, a educação compatível às expectativas desse indivíduo é aquela que, de acordo com Brandão (2002, p. 11), forma “pessoas que se reinventam através do saber e do desenvolvimento de suas capacidades, para virem a ser exatamente isso: competentes, competitivos destinados a vencerem na vida, isto é, no mercado”. Nessa concepção, o processo de formação humana engloba dimensões de competência técnica e utilitária, com o fito de “produzir” os novos “produtores” da mercadoria e do seu consumo, jamais anunciando a construção de outro mundo.

O processo de democratização da escola pública elevou, consideravelmente, o número de vagas nos níveis médio e fundamental, bem como a quantidade de professores, sem que o aporte de recursos fosse destinado em proporção compatível. Reproduzindo a visão quantitativa e tecnicista que permeia ações políticas dessa natureza, às escolas cabe formar “o indivíduo andróide, replicante, peça de uma engrenagem que se move apenas em função da lógica da tecnologia” (VASCONCELOS, 2003, p. 18). O resultado? A deterioração qualitativa, vitimando o panorama escolar e conduzindo os seus sujeitos (alunos e professores) à auto degradação permanente, em vista da ausência de horizontes.

Vive-se em meio a um apelo constante por mais democracia, por construção da cidadania, tanto pela classe dirigente da política nacional quanto pela mídia e, contraditoriamente, o que existe, na prática, é o aumento da desigualdade e da injustiça social. Será esse o significado concreto do apelo democrático e cidadão no mundo capitalista, para alguns o melhor dos mundos, preocupado menos com o desenvolvimento humano do que com o econômico? Por esse prisma, a relação entre educação e sociedade é balizada pela formação de um indivíduo capaz de se “incluir” na ordem social vigente (adaptação), reconhecendo-se em condições (direitos e deveres) de contribuir com o seu aperfeiçoamento. Uma vez incluído na ordem social, ele deve continuar participando, esporadicamente, do processo político. Nada tão coerente: uma democracia formal (e legal), mantida por uma cidadania formal (e legal), constituída por cidadãos cumpridores dos seus deveres. Portanto, formar o “cidadão” é uma tarefa essencial à educação escolar. Assumida como legítima por todos (inclusive pelos oprimidos), perpetua a “ordem” social, tornando-a hegemônica.

Atualmente, o direito se apresenta como fonte e guarda da cidadania. Porém, como a lei é igual para todos, mesmo que a igualdade não passe de uma quimera, os direitos prometidos aos membros do estado não passam de pura abstração. O que tem havido é a aceitação passiva do discurso corrente nos meios de comunicação, indicando que, para ser cidadão, basta estar registrado em cartório. Esta cidadania jurídica vai ao encontro do formalismo legal, portanto, cada indivíduo-cidadão conta com as garantias institucionais. Em contrapartida, é viabilizada a sua inclusão nos programas sociais governamentais, voltados, provavelmente, para a garantia daquele bem-estar mínimo, salientado por Marshall (1967). O movimento convergente, empreendido por governos, mídia, grupos econômicos e até ONGs em direção à cidadania, no que tange à sua universalização, transparece objetivos de preservação sistêmica. Robustece a emancipação (inclusão social estratificada, melhor identificada como força de consumo induzida) e a reforma, visando brecar eventuais movimentos de transformação profunda da sociedade.

A cidadania e seus agregados: emancipação e reforma

As análises históricas desenvolvidas possibilitam relacionar o significado do conceito de cidadania, em suas mutações, às mudanças socioeconômicas provocadas desde a antiguidade. As noções de liberdade e de igualdade, influenciadas diretamente pelo contratualismo rousseauniano, acompanharam a evolução conceitual da cidadania. Paralelamente, merece destaque a vinculação entre o significado atribuído à cidadania e os anseios aparentemente universais, porém, de fundo particularista. Em seus interesses majoritários, as camadas dominantes ajustaram o conceito às aspirações de cunho político, econômico e social. Igualdade e liberdade entre os cidadãos se mostrou como a característica preponderante das cidadanias grega e romana. De modo semelhante, os revolucionários da modernidade buscavam a igualdade com relação ao clero e à nobreza, assim como a liberdade (de pensamento, de credo, de ir e vir...).

Com a urbanização acelerada, a cidadania se torna a condição universal dos habitantes da cidade, como forma de não contradizer os ideais de igualdade e liberdade que estribaram as revoluções burguesas. Abstraindo da realidade social, marcada pela desigualdade extrema entre os indivíduos, a cidadania universalizada engloba a todos, desaguando em ideologia conservadora. Qual a melhor solução para conflitos oriundos de diferentes concepções religiosas, étnicas e culturais, assim como da desigualdade social, a não ser igualar teórica e formalmente a todos sob o rótulo de cidadãos? Marshall (1967, p. 63) salienta que os direitos conquistados e vinculados à cidadania, principalmente a partir do século XIX, constituem uma resposta direta do sistema e da classe que o dirige aos conflitos sociais que punham em risco a estabilidade social. Logo, as reformas são necessárias, no sentido de abrandar o grave problema causado pela desigualdade material, estendendo uma espécie de “rede de proteção” capaz de anestesiar os oprimidos.

O conjunto de direitos conquistados nas últimas décadas, vinculados à cidadania e universalizados através do seu significado, não correspondem à materialização de igualdade e liberdade. O sentimento de inclusão é o benefício maior, tanto para os cidadãos possuidores de amparo formal, como para a estrutura social em vigor. Estrutura que se fortalece com os lampejos de participação política, proporcionados a cada dois anos pelas eleições. Certidão de Nascimento, Carteira de Identidade, CPF e Título de Eleitor são os atestados da cidadania contemporânea. São eles que permitem a inclusão nos programas assistenciais, a abertura de conta em instituição bancária, a compra a prazo e o voto, atitudes esperadas do cidadão. Porém, todo o arcabouço legal, estruturado em função das garantias da cidadania universal é insuficiente, não esquecendo que o direito se forma como direito de uma determinada classe. Se resultasse naquilo que prevê, estaria contrariando a própria existência e comprometendo todo o sistema que ajuda a manter. Na verdade, cidadãos continuam sendo os proprietários do capital e, consequentemente, do poder na sociedade. O teórico status universal de cidadão não corresponde às condições vivenciadas na prática, pois não é a cidadania que instituiu o direito, e sim o contrário.

É possível interpretar nosso contexto social como uma comunidade de cidadãos livres e iguais? Canivez (1991, p. 147) responde pontualmente: “A sociedade moderna impõe aos indivíduos que se considerem coisas. Ela os confina em uma rede de dependências, em relações de poder em que ninguém é na verdade seu próprio dono”. Assim, conclui, “ninguém, na sociedade, é verdadeiramente livre”. De caráter elitista, a democracia ocidental desde as origens não visa a totalidade dos indivíduos em seu espaço de pertencimento. Essa espécie de “democratização” da democracia, nos tempos atuais, é nitidamente formal, quando impede o empoderamento político de boa parte dos indivíduos (cidadãos) a ela vinculados. Mantendo-se fiel aos vínculos de origem (liberdade seletiva e propriedade), transfigura-se em um idealismo tendencioso, estrategicamente proposto pelo capitalismo moderno.

O cidadão na educação oficial: reforma e inclusão passiva

Com base na análise histórica percebe-se que a cidadania tem sido um conceito de movimento ambíguo: tanto é reformada como é reformadora. Consegue tornar-se unanimidade como status almejado pelos indivíduos enquanto confere legitimidade ao ordenamento social. O conceito tem sido de grande valia para os interesses dominantes, considerando o poder de preservação que revela. E a educação oficial, atuando com fidelidade aos seus princípios no interior das democracias representativas, formando para o respeito à lei e à inserção no mercado de trabalho, chancela a cidadania como meta universal. Cidadão, o indivíduo membro de um estado, portador de direitos e deveres, que exerce a função sazonal de governante em potência.

Levando em conta o aparato legal em torno da cidadania, tornou-se lugar que é responsabilidade da instituição escolar formar o cidadão. De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, em seu artigo dois (p. 4, grifos meus):

A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios da liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

O artigo 32 (BRASIL, 1996, p. 17), que trata do ensino fundamental, estabelece como “objetivo a formação básica do cidadão”, da mesma forma que o artigo 35 (BRASIL, 1996, p. 19), inciso II, ao estabelecer as diretrizes para o ensino médio, reforça que o objetivo a ser alcançado é “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando”. De modo geral, as instituições de ensino brasileiras demonstram ter incorporado, perfeitamente, o que reza a legislação, ratificando a tese de que a educação oficial tem, na cidadania, o seu horizonte formativo.

Delimitada, ao mesmo tempo em que é, formalmente, garantida pela legislação, a cidadania dos oprimidos se situa entre duas alternativas complementares: uma participação frágil, quase nula no que é permitido em sociedade, decorrente do condicionamento material e simbólico, e uma inclusão conservadora, que aparenta conferir o papel de ator social. Nessa, desde que respeite o previsto no rol dos direitos e deveres, o cidadão pode (independente da sua condição econômica) participar ativamente como eleitor. A atuação produz o sentimento de dever cumprido e permite ao cidadão pleitear junto aos eleitos, representantes no poder político, as concessões indispensáveis à sua sobrevivência com dignidade. É sob esse contexto que se insere a reforma, companheira da inclusão, buscando aperfeiçoar a sociedade através de pequenas mudanças, mantendo sua estrutura fundamental.

Reformar, do latim reformare (CUNHA, 2007, p. 365), corresponde a promover uma ação restauradora que mantém a forma maior, mudando em pequenas proporções o já estruturado. Nesse movimento, o ponto de partida é algo dado, aceito como tal, carente apenas de alguns ajustes. Reformar pressupõe certo estar de acordo, no qual as pessoas estejam conformadas com o real cotidianamente vivenciado. Nesse sentido, a reforma é conservadora, postura típica de quem aceita, por exemplo, a impossibilidade de todas as pessoas viverem em condições dignas. Outrossim, a reforma, não raro, torna-se idealista quando (ingenuamente ou não) espera que, atuando na forma, opere uma mudança significativa de conteúdo. Mas as relações econômicas, substrato determinante da possibilidade de usufruir dos bens gerados coletivamente mantém-se inalteradas. Sob uma visão crítica, acreditar na conciliação entre os direitos do cidadão e as relações mercadológicas em curso é inconcebível.

Problematizar e expor a incompatibilidade entre a efetivação do que prevê a Constituição cidadã de 1988 e a regulação prevista pelo sistema são imperativos da educação popular. O mesmo vale para a possibilidade da democracia e do Estado de direito, historicamente identificados com o ponto de vista de uma classe, existirem sem que se submetam à lógica do mercado. Inclusão e reforma consistem em estratégias terapêuticas para conformar os grupos oprimidos (no dizer corrente: excluídos), unindo-se em favor da conservação social. É por essa alternativa que se batem, ainda que pouco conscientes disso, os educadores e educadoras que adotam o horizonte cidadão previsto nas leis e que “respinga”, fortemente, nos projetos político-pedagógicos das suas instituições.

A conformidade crescente consolida o ordenamento social juntamente com a maior adesão ao processo educativo. Educada é a pessoa que “pensa conforme os padrões da sociedade, que foi moldada de acordo com ela, que recebeu e aceita seus valores” (ROSSI, 1980, p. 23). O discurso corrente alcança um grau de naturalização semelhante ao demonstrado pela aceitação das desigualdades sociais, “justificadas” através de fatores geográficos, raciais ou mesmo comportamentais diante das “oportunidades iguais” oferecidas pelo sistema. Mesmo ancorado em abstrações falsamente universais como “opinião pública”, “bem comum”, “interesses dos cidadãos”, entre outras.

A evolução conceitual da cidadania demonstra que a emancipação tem estado presente em suas mutações. Atualmente ela se presta a duas interpretações: de um lado é vista como mecanismo de regulação social; de outro, é entendida como ideal a ser alcançado em sua plenitude, com vistas à emancipação. Mas o que resta de concreto é a manutenção das contradições sociais inerentes ao capitalismo. As metamorfoses sofridas pela cidadania, ao longo dos tempos, revelam a incorporação paulatina de direitos que redundam, apenas, em emancipação dentro do sistema.

Emancipar, do latim emancipare (CUNHA, 2007, p. 289), equivale a promover alguém a uma condição mais elevada, movimento que supera a dependência (e não a dominação) em relação a alguma incapacidade estabelecida. Emancipar não exige antônimo, apenas implica um grau de melhoria crescente dentro de um sistema, reduzindo as limitações. Com relação à espécie humana, é possível conceber a emancipação como uma melhoria universal da situação existente. No Brasil, políticas compensatórias como as cotas raciais nas universidades são um caso típico dessa tendência, vinculada ao reforço da crença popular de que a educação é via de ascensão (emancipação) social. Em cada um dos três momentos clássicos da cidadania, é possível notar que, de algum modo, ela foi adaptada, em resposta às perigosas manifestações em favor da igualdade efetiva. Principalmente nas análises sobre a democracia grega, entre os séculos VII e V a.C., sobre a cidadania proclamada pelas revoluções burguesas (norte-americana e francesa) e sobre o período contemporâneo, bem representado pela Constituição de 1988.

Decorrente de uma reestruturação do capitalismo, agora em sua fase neoliberal, separam-se novamente a sociedade civil, no que tange aos direitos da cidadania social, e o Estado de direito. Cabe agora instituir direitos que protejam o cidadão consumidor, pois é ele quem assume as responsabilidades pela própria condição social, situação melhor identificada com os anseios do capital. E o consumo, dado o seu teor pragmático, acaba corporificando um desejo sedutor de poder que aproxima e identifica o cidadão com o consumidor. A proteção ao consumidor, codificada em manuais, nunca problematiza o consumo; apenas induz a comprar mais, no intuito de aparentar uma participação ativa na sociedade. Porém, trata-se de uma participação harmônica ao sistema: quanto mais participantes ativos houver, mais ele se fortalecerá. Comparativamente, o consumo é o ópio pós-moderno, adorado nos shopping centers e que condiciona o comportamento coletivo, conduzindo ao individualismo sem limites.

A identificação entre consumidor e cidadão não deixa margem para o posicionamento crítico diante das contradições sociais, especialmente a desigualdade. A cidadania continua como condição universal a ser alcançada e o consumo, atiçado pela multiplicação das necessidades, é o meio de atingi-la. Logo, saciar o desejo de consumir é algo impossível, bem ao gosto do capitalismo. Através da facilidade de crédito, o consumo é acessível à quase totalidade das pessoas, incluindo aquelas em situação de pobreza, que vêem as classes melhor favorecidas como um exemplo a ser seguido. A cidadania por essa via se consolida hierárquica, desigual e fantasiosamente, clamando por mais inclusão, esperançosa da plenitude e da igualdade anunciadas pela propaganda. Dos direitos sociais às conquistas pessoais, mesmo que pequenas, em função das condições difíceis, revelam a postura ativa no convívio social. Eis a cidadania plena, pujante e ao alcance de todos, finalmente!

Considerações finais

Evidenciada a tendência conservadora da educação oficial em torno da cidadania, é lícito questionar a sua coerência como conceito e horizonte de formação da educação popular. Pode uma ação pedagógica radicalmente libertadora balizar-se no cidadão como ideal formativo? Uma educação que se preocupa, especialmente, com os grupos sociais oprimidos (FREIRE, 2002), pessoas que dependem diretamente de movimentos de inclusão em um patamar subalterno para sobreviver. Entende-se que por coerência e fidelidade para com os princípios fundantes da educação popular, embora possa (o que iria de encontro aos próprios fundamentos), não deve! Caberia salientar, como faz Brandão (2002, p. 62), com relação à condição de cidadão nas modernas democracias, que “o exercício da cidadania não é a observância crítica dos princípios éticos e eticamente políticos do contrato social”, mas, tão somente, “a adequação da conduta pessoal aos preceitos da astúcia e ‘competitividade’ da lógica de mercado do ‘mundo dos negócios’”.

Se a realidade constitui o grande desafio da prática educativa, é preciso que, problematizando-a, seja buscada a visão do sentido da escola e da ação docente, sem esquecer as características mais gritantes do nosso contexto: miséria, exploração e desumanização de milhões de pessoas. Constatou-se que a cidadania (condição do cidadão), impregnando as propostas pedagógicas e políticas da educação formal, ao revelar uma tendência histórica à seletividade e à hierarquização, não corresponde aos anseios da práxis libertadora. Afinal, o cidadão deve ser incluído e emancipado dentro de um sistema que pode, no máximo, operar reformas conservadoras, mantendo as graves contradições sociais em sua bipolaridade (opressores e oprimidos). Consequentemente, postular o cidadão como paradigma e horizonte formativo se mostra inconsistente em relação aos fundamentos e à utopia da educação popular.

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1Mesmo concordando com o significado transformador da Revolução Francesa, vale lembrar que a burguesia foi revolucionária apenas até chegar ao poder, consolidando suas ideias políticas e econômicas. Daí em diante, em se tratando de cidadania, de acordo com Mossé (1993, p. 71), há duas espécies: os cidadãos ativos e os cidadãos passivos. Estes, expulsos da participação política em função de sua pobreza.

Recebido: 14 de Julho de 2015; Aceito: 19 de Abril de 2017

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