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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia May/Aug 2017  Epub Mar 09, 2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p985a1009 

Artigos

O hábito da reprodução de teorias: produção e ensino de filosofia no Brasil contemporâneo

The practice of reproducing theories: creating and teaching Philosophy in contemporary Brazil

El hábito de la reproducción de las teorías: producción y enseñanza de Filosofía en el Brasil contemporáneo

Suze Oliveira Piza* 

*Doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora de Filosofia, Ciências Humanas e do Programa de Pós Graduação em Filosofia (PPG-FIL) da Universidade Federal do ABC (UFABC). E-mail: suzepiza@gmail.com


Resumo

O artigo tem como objeto principal apresentar a tendência à reprodução de teorias filosóficas em nossas universidades e escolas, bem como o impacto negativo dessa prática na formação do filósofo e na própria presença da Filosofia no Brasil. Para tanto, considera-se a tradição latino-americana que discorre desde os anos 1960 sobre a existência de Filosofia na América Latina, o que possibilitou uma crítica da forma brasileira de se relacionar com a tradição do pensamento filosófico ocidental. A prática da produção persistente de comentários filosóficos das teorias consagradas se mostra inadequada como modelo para o pensar, disso só decorre uma modalidade de conhecimento estéril que incentiva a subserviência, a ausência de pensamento e a alienação. O saldo desse cenário é que em todos os níveis da educação formal há uma heteronomia generalizada que contraria por princípio a própria natureza da atitude filosófica e as diretrizes de ensino de Filosofia no País.

Palavras-chave: Reprodução de teorias; Formação do filósofo; Brasil

Abstract

The main objective of this article is to present the tendency used in Brazilian universities and schools to reproduce philosophical theories, as well as the negative impact that this practice has on the education of new philosophers and the presence of Philosophy itself in Brazil. To achieve this, we consider the Latin American tradition that since the 1960s has deliberated the existence of Philosophy in Latin America, making it possible to form a critique, from the point of view of how Brazilians relate to the tradition of western philosophical thinking. The practice of persistently producing only philosophical commentaries of consecrated theories appears to be inadequate as a model for this line of thought, as the result is sterile knowledge that encourages subservience, an absence of thought and estrangement. The outcome of this is that at all levels of formal education, there is a generalized heteronomy, which would contradict, in principle, the very nature of the philosophical attitude and the guidelines for teaching Philosophy in Brazil.

Keywords: Reproducing theories; Education philosophers; Brazil

Resumen

El artículo tiene como objeto principal presentar la tendencia a la reproducción de teorías filosóficas en nuestras universidades y escuelas, así como el impacto negativo de esa práctica en la formación del filósofo y en la propia presencia de la Filosofía en Brasil. Para ello, se considera la tradición latinoamericana que discurre desde los años 60 sobre la existencia de Filosofía en América Latina, lo que posibilitó una crítica de la forma brasileña de relacionarse con la tradición del pensamiento filosófico occidental. La práctica de la producción persistente de comentarios filosóficos de las teorías consagradas se muestra inadecuada como modelo para el pensar, de ello sólo se deriva una modalidad de conocimiento estéril que incentiva la subordinación, la ausencia de pensamiento y la alienación. El saldo de ese escenario es que en todos los niveles de la educación formal hay una heteronomía generalizada que contraría por principio la propia naturaleza de la actitud filosófica y las directrices de enseñanza de Filosofía en el país.

Palabras clave: reproducción de teorías; formación del filósofo; Brasil

O objetivo da parresia é fazer com que, em um dado momento, aquele a quem se endereça a fala se encontre em uma situação tal que não necessite mais do discurso do outro. De que modo e por que não necessitará mais do discurso do outro? Precisamente, porque o discurso do outro foi verdadeiro. É na medida em que o outro confiou, transmitiu um discurso verdadeiro àquele a quem se endereçava que este então, interiorizando este discurso verdadeiro, subjetivando-o, pode se dispensar da relação com o outro (Michel Foucault).

A prática de “produção” de pensamento filosófico no Brasil está centrada na reprodução de teorias filosóficas consideradas como válidas pela comunidade acadêmica. A reprodução se dá basicamente pela produção de comentários de textos clássicos e interpretações. Na maioria dos casos, há também o cruzamento de teorias distintas onde se traçam paralelos ou ainda se indicam convergências ou divergências entre autores, aproximações e distanciamentos, comum também é buscar a gênese de uma dada ideia ou teoria de um autor em outro do passado1, dentre esses alguns poucos intelectuais atualizam determinados aspectos dessas teorias e outros mais ousados as aplicam a situações contemporâneas.

Com esse artigo, proponho uma reflexão sobre o contexto em que se dá essa prática de reprodução de teorias filosóficas, indico algumas razões pelas quais chegamos a ela e proponho uma outra maneira de nos relacionarmos com a tradição da História da Filosofia, uma forma de fazer Filosofia mais saudável que a atual. Acredito que a explicitação de como a Filosofia europeia foi e é produzida pode contribuir, nesse momento, para o avanço da produção de Filosofia no Brasil. Um avanço que possibilitaria fazer mais do que o que tem sido feito nas universidades, que é, na maioria das vezes, a produção de comentários filosóficos sobre os filósofos da tradição. Defendo que nesse momento, a relação com a tradição deveria consistir em ver como foi e é feita a Filosofia europeia e não ver o que foi feito. O pano de fundo dessa reflexão é bastante prático e se configura a partir de uma constatação: há um dano grave causado por essa prática na formação dos estudantes, haja visto que o hábito da reprodução de teorias filosóficas tem impactado negativamente nas práticas de ensino de Filosofia. A prática da reprodução leva a formação de uma subjetividade heterônoma e domesticada.

1. Há Filosofia em nossa América?

Já há uma tradição de pensamento e textos sobre produção de Filosofia na América Latina e dentre esses trabalhos há diversos que merecem nossa atenção, especialmente pelo papel cumprido por esses autores ao enunciar o contexto de reprodução de teorias filosóficas na América Latina e perguntar pelo estatuto do que estamos fazendo quando fazemos Filosofia, uma verdadeira ontologia do presente.

Há uma obra pouco conhecida (e quando conhecida nada reconhecida) no mundo da Filosofia no Brasil que será trazida aqui por nós para iniciar a reflexão sobre reprodução de Filosofia no Brasil. Roberto Gomes, filósofo e escritor, escreveu um livro que faz uma crítica ostensiva à falta de personalidade e originalidade dos filósofos no Brasil, trata-se da obra Crítica da razão tupiniquim. Esse texto já em sua 12ª edição, mas demasiadamente desconhecido no meio filosófico, faz de maneira bem-humorada uma leitura do tipo de racionalidade (filosófica?) que há entre nós.

Examinando nossa razão tupiniquim, Roberto Gomes caracterizará nossa razão como afirmativa, ornamental, dependente e deslocada, invocando em muitos momentos Mario de Andrade, por motivos óbvios (o passado é lição para se meditar não para reproduzir). Não entrarei aqui em uma das discussões mais fundamentais da obra que é a relação da Filosofia com a Cultura, quero apenas chamar a atenção para a caracterização dessa razão brasileira para compreender o atual estado de coisas no que diz respeito à produção de Filosofia como mera reprodução de ideias e uma infindável produção de comentários filosóficos em nossas universidades.

Roberto Gomes qualifica nossa razão como uma razão afirmativa, pois contrariando toda a história da Filosofia em que filósofos negam uns aos outros - negam seus mestres e negam, portanto, o passado - os filósofos brasileiros ocupam basicamente seu tempo com a afirmação das teorias já desenvolvidas e, normalmente afirmando as interpretações mais correntes dessas Filosofias em um eterno retorno do mesmo. Interpretações não esperadas, não pensadas ainda ou que ultrapassam muito o limite do comentário, quando escutadas, são consideradas errôneas e acusadas, muitas vezes, de não representar a Filosofia em questão ou o pensamento do autor. Quando tal interpretação é escutada2 torna-se ré e passa sua vida em tribunais de justificativas e defesas (congressos, colóquios, encontros)3. Esse processo tem o sim como ponto de partida e chegada, não se nega e não se cria, não há uma posição subjetiva de quem fala.

Afirma Roberto Gomes (1990, p. 31),

Antes de mais nada, Sócrates diz não a tudo que o precede, como Tales havia dito não as cosmogonias e como Platão dirá não a Sócrates - encontrando em Aristóteles aquele que lhe diz o contrário (...) qualquer momento criador foi na origem uma negação (...) Há uma condição para esse não. A crítica é algo para ser assumido, é uma posição do espírito

A afirmação das Filosofias torna-se rapidamente cópia do que disseram os filósofos. Em Diário de um filósofo no Brasil, Cabrera (2013, p. 214) afirma que ao copiarmos, renunciamos a autoria tão cara aos europeus e, consequentemente renunciamos a própria prática filosófica europeia que estudamos:

Seja o que for, entretanto, que pensarmos das produções filosóficas vindas da Europa, elas se caracterizam sempre pela sua atitude de fazer Filosofia por intermédio das próprias forças reflexivas num veio autoral, e não de mera cópia. Especificamente no período moderno, filósofos europeus como Descartes, Kant, Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger, entre muitos outros, acentuaram veementemente este caráter pessoal e próprio do ato de pensar. A Filosofia europeia é resultado de uma grande coragem existencial, de um poderoso ato de vontade criadora).

Tanto Roberto Gomes como Júlio Cabrera concordam com o fato de que a Filosofia está ligada à criação de algo e não apenas à reprodução ou cópia do que já existe, ela é um ato de grande coragem existencial. Tal vontade na modernidade se atrela ao uso do próprio intelecto, ousar saber, como já diria Kant, e isso exige certa independência do intelecto do outro.

A chamada razão tupiniquim, ao fazer apenas cópia, é razão ornamental, pois, como já enunciava Sergio Buarque de Holanda: na formação do Brasil teorias serão ornamento e prenda e não forma de conhecimento e ação. A cópia faz com que os conceitos e teorias sirvam apenas de ornamento para o intelectual, sem função para o conhecimento ou para a ação. Faz também com que a essa razão seja dependente, pois sempre reproduz a matriz europeia, recentemente estadunidense, e ainda repete os mesmos autores há muito consagrados nessas culturas4. Quem estudar e como os estudar está definido na própria noção de pesquisa em Filosofia no Brasil: trata-se de elencar cuidadosamente quem disse o que e explicitar o que foi dito, incluindo a bibliografia secundária daqueles que disseram antes. Inúmeras vezes isso não passa de simples catalogação, a chamada revisão de literatura não é feita para o pesquisador ir além, e dizer aquilo que ainda não foi dito, ou pensar a partir dali, faz-se porque é necessário reiterar o que foi dito5.

Por fim, a razão tupiniquim é uma razão deslocada. Sabemos que alguns pensamentos do passado podem ter vigência no nosso tempo. Sabemos que problemas do passado também podem ser problemas do nosso tempo. Mas, quanto de produção filosófica no Brasil trata daquilo que não tem mais lugar no tempo e principalmente, nenhuma vinculação com nosso espaço? Repetimos Filosofias que não nos pertencem6 e com isso criamos as condições de possibilidade para a alienação.

A alienação também é disseminada quando insistimos em tornar universal aquilo que não é. A prática de tornar universal, pensamentos que foram produzidos em um dado tempo e um dado espaço para responder a determinadas questões não é tarefa fácil, pelo menos não para aqueles que querem fazer isso de forma honesta7, mas há um esforço nesse sentido, trazer teorias e torna-las nossas referências contemporâneas para “pensar”.

As características indicadas por Gomes quando somadas se apresentam como denúncia de uma prática insistente de produzir comentários filosóficos que há em nossas instituições de ensino. Com isso, Gomes apresenta um fato que ainda não foi superado por nós: a prática de produzir comentários filosóficos é obstáculo, ainda incontornável, no caminho para a autonomia.

Poucos pesquisadores e estudantes de Filosofia se aventuram no pensar junto e quando o fazem sofrem, muitas vezes, a recusa de um lugar na academia e a falta de reconhecimento de sua produção8. Se ao menos o pensar junto (estar além do comentário) fosse realizado já poderíamos diminuir o obstáculo, visto que no pensar junto se usa o pensamento do outro, constrói-se um diálogo (fundamental para o pensar filosófico), o texto segue um problema e orienta o pensamento do próprio filósofo que o escreve. Esse seria o tipo de texto que Júlio Cabrera em sua obra Diários de um filósofo no Brasil chama de pensar-com:

Teríamos assim, na atual situação de institucionalização da Filosofia brasileira, pelo menos dois tipos de textos filosóficos e suas nuanças e casos intermediários - 1) os textos-comentário (marcadamente históricos e exegéticos, de exposição do pensamento de autores europeus; 2- os textos do pensamento-com (quando os autores europeus são trazidos à tona dentro de um processo de pensamento próprio) que poderíamos chamar talvez de reflexão acompanhada ou texto acompanhado9. A existência desse tipo de texto justificaria dizer que não é verdade que a totalidade da produção filosófica institucional vai contra a concepção filosófica europeia de um filosofar autônomo10 (CABRERA, 2010, p. 226).

A discussão sobre a produção de Filosofia no Brasil (que tem já uma tradição que remonta a filósofos latino-americanos como L. Zea, S. Bondy e E. Dussel) tem uma dimensão ainda mais complexa e profunda que o hábito da cópia, trata-se de saber o que motiva a reprodução de Filosofia na América Latina e ainda se temos uma Filosofia original ou se podemos ter, se sim o que seria essa Filosofia?

Muitos filósofos se dedicaram a pensar essa questão em nosso continente. Chamarei a atenção para um debate clássico de dois filósofos de suma importância para essa discussão: S. Bondy e Leopoldo Zea. Ambos tratam da questão da produção de Filosofia e nos oferecem uma perspectiva para pensar a noção de originalidade. Apresentamos abaixo a discussão central desse debate com base no artigo de Trindade, O debate entre Salazar Bondy e Leopoldo Zea.

Os dois autores Zea e Bondy tratam das mesmas questões: “Si há habido o no una filosofía de nuestra América, en caso de respuesta negativa si podría haberla y bajo que condiciones y, por último, hasta qué punto tiene sentido y valor tomar como tema u objeto privilegiado de atención la realidad latinoamericana”. Essas questões são tratadas respectivamente nas obras Existe una filosofía de nuestra América? (Bondy) e La filosofía americana como filosofía sin más (Zea).

Salazar Bondy responde a primeira pergunta afirmando a não existência de uma Filosofia hispano-americana pelo fato de que o que tem ocorrido historicamente é apenas repetição (o que estamos chamando nesse artigo de reprodução). Quanto à segunda pergunta, Salazar Bondy afirma a necessidade de romper com o sistema de dependência e subdesenvolvimento a que estão subjugados os países hispano-americanos como única condição para se produzir um pensamento libertado e libertador. Há, portanto, uma necessidade da libertação econômica para que haja uma libertação filosófica.

A tese de Bondy é acompanhada por outros filósofos que defendem que uma série de circunstâncias históricas, como o fato de termos sido colonizados, dentre outras circunstâncias, foram decisivas para a criação desse hábito de reprodução. A colonização como afirma Dussel colonizou nosso mundo-da-vida11 e, consequentemente, orienta nossa percepção e constitui nosso imaginário.12 Talvez só esse fato por si só justificasse a relação nada saudável que temos com o pensamento europeu ou o estadunidense que muitas vezes beira a subserviência.

Leopoldo Zea concebe a Filosofia latino-americana como uma antropologia que se desenvolveu progressivamente tematizando a questão do ser do homem americano e uma Filosofia da história e da cultura. Uma Filosofia é original e autêntica quando tem vinculação com a nossa origem e trata de nossos problemas. Mesmo não sendo uma Filosofia produzida no solo em que esses problemas estão, é, portanto, possível uma apropriação de Filosofias produzidas em outro lugar e tempo e ainda ser original.

E. Dussel defende a necessidade da libertação, tanto em uma dimensão econômica (libertação da condição econômica de submissão a outros povos), quanto epistemológica (libertação da Filosofia do euro centrismo13), além de propor uma relação criativa com a tradição. Ele mesmo é exemplo dessa proposta: militante da Filosofia latino-americana, centra toda sua produção em questões e problemas que tenham lugar em nosso continente, há em sua produção a evidente exposição do que os filósofos europeus pensam para depois ser posta sua própria Filosofia, ele insere sua produção na História da Filosofia e na tradição ocidental, no entanto, vai além dela. A formação desse filósofo (que vai de estudos aprofundados do pensamento de Marx à uma apropriação de toda a corrente fenomenológica) é marcada pela apropriação criativa e não reprodutiva das teorias filosóficas.

Em um conjunto de conferências publicadas na obra 1492: o encobrimento do outro - a origem do mito da modernidade, publicada no Brasil em 1993, Dussel trata da conquista à colonização do mundo da vida (lebenswelt). Apropriando-se do conceito husserliano de mundo da vida, Dussel vai aplicá-lo à compreensão do fenômeno da colonização da América [latina] e fará uma reflexão fantástica que leva o conceito de descobrimento a um tratamento mais adequado, o de encobrimento do outro. Segundo Dussel, processos de colonização não dominam apenas o espaço, o tempo, a geografia e a história, consequentemente, nem a cultura com o domínio da língua e da religião de um povo, e sim domina o mundo da vida dos sujeitos, a somatória dos sentidos das experiências e, por conseguinte, a percepção e o imaginário dos mesmos.

Segundo Dussel (1993, p. 43),

Colonização do mundo da vida não é aqui uma metáfora. A palavra tem sentido forte, histórico, real (...) A colonização da vida cotidiana do nativo, do escravo africano depois, foi o primeiro processo “europeu” de “modernização” de civilização, de subsumir (ou alienar) o Outro como si mesmo (...) É o começo da domesticação, estruturação, colonização do “modo” como aquelas pessoas viviam e reproduziam a vida humana. Sobre o efeito daquela “colonização” do mundo da vida se construirá a América Latina posterior.14.

Partindo desse princípio dusseliano, percebe-se que uma série de mecanismos sociais presentes em nosso continente, dentre eles aqueles que produzem alienação em massa, poderiam também estar entre os motivos da nossa Filosofia nacional ser o que é ou ainda não-ser. Isto é, há motivos econômico-sociais (ou mais particularmente cultural-institucionais) que levam a maioria dos intelectuais apenas a reproduzir pensamentos elaborados por outro e nem sequer pensar junto ou pensar-com.

2. Sem produzir Filosofia, o que estamos ensinando?

No meio desse clima de reprodução de teorias não faltam justificativas para tais práticas. Há aqueles que questionam a capacidade racional do brasileiro, afinal, a atividade filosófica é cansativa, exige uma grande capacidade de abstração e nós os brasileiros seríamos mais familiarizados com a imagem do que com o conceito, seríamos mais vinculados à intuição que a intelecção e mais emocionais que racionais. A tese de fundo dessa caracterização emocional da nossa gente resulta no fato de que aqui não poderia haver um Platão ou um Kant, no limite disso está a tese de que haveria um limite filosófico da língua portuguesa. Por mais incrível que possa parecer é bem comum o discurso nas nossas salas de aula fundado no mito predileto que opõe emoções e sentimentos típicos da pré-modernidade (leia-se a nossa modernidade periférica) ao cálculo frio e distanciado tipicamente modernos dos europeus. Em síntese, eles pensam e nós não.

A obra Conversas com filósofos brasileiros, talvez uma das poucas que trata do tema da Filosofia no Brasil e que tenha tido alguma recepção na academia, indica um pouco de como essa questão é tratada entre nós. O conceito de Filosofia Nacional, ou Filosofia brasileira, é rejeitado pela maioria, afinal, alegam, a Filosofia é universal. Naturalmente que a afirmação da universalidade é no mínimo controversa, uma vez que não há rejeição necessária da expressão Filosofia francesa ou Filosofia alemã15.

Por vezes, no discurso (e podemos ver isso em parte das entrevistas que compõem o livro) fala-se que não existe Filosofia regional, no entanto, sabemos que no mundo da Filosofia essas Filosofias existem. Ninguém se surpreenderá se for identificado como fazendo Filosofia alemã, grega ou francesa, não se chama a universalidade para colocá-las no seu devido lugar ou destruir os feudos com limites territoriais bem definidos. Então, no fim das contas há muita retórica16 no tratamento dessa questão. Como disse anteriormente, não entrarei aqui com profundidade na relação entre Filosofia e Cultura, mas quero tratar da produção em Filosofia por um caminho menos árduo ou ousado.

Marilena Chauí, em sua entrevista para a construção da obra Conversas com filósofos brasileiros, responde à questão que foi feita a todos os entrevistados: Seria possível falar de uma “Filosofia brasileira”? Como você vê a relação entre Filosofia e a cultura brasileira?

Com relação a essa questão, faço minhas as palavras do professor Lívio Teixeira. Quando a revista Aut Aut fez um número dedicado ao tema “Filosofia no Brasil”, perguntaram-lhe sobre a existência de uma Filosofia brasileira. Ele disse que preferia falar em “contribuições brasileiras à Filosofia”. Esta demarcação me parece muito boa, me parece preferível a falar em uma Filosofia brasileira (NOBRE; REGO, 2000, p. 309).

A descida de degrau de uma discussão sobre produção de Filosofia autêntica ou originalmente brasileira para a contribuição brasileira à Filosofia, que se pretende universal, parece incomodar menos. Ainda assim gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que a questão da produção continua em voga, ou seja, podemos compreender aqueles que não querem entrar na tarefa de uma produção filosófica que tenha a ver com a nossa origem, como diria L. Zea, mas, devemos perguntar: é possível, mesmo no nível da contribuição à uma Filosofia universal, pensar em contribuição sem pensar em produção filosófica? Contribuir com o que?

Mesmo no âmbito da contribuição precisamos pensar com o que realmente poderíamos contribuir. Poderíamos contribuir com a tarefa de explicar e comentar o autor? Esse é o nosso papel, mesmo sabendo que esses textos serão usados com ressalva e sempre acompanhados da orientação do professor de que precisamos lidar com o próprio autor e no original17?18. Fomos convencidos, como afirma Paulo Arantes, respondendo à questão sobre quais conceitos orientavam sua produção filosófica, que somos apenas técnicos em bibliografia filosófica?

Bom, como se diz em assembleia, essa proposta [a produção filosófica nacional] está prejudicada. Não tenho reflexão filosófica própria e original e, portanto, não posso ter conceitos que orientem essa reflexão. Não é coqueterie, não estou fazendo charme ao dizer que nunca fiz Filosofia. Não posso nem dizer que pretendi fazer Filosofia porque, quando entrei na Faculdade, a primeira coisa que me disseram foi: “Você não vai ser filósofo. Isso não existe. Filosofia não tem conteúdo e não é matéria transmissível. Esqueça isso. Você será um técnico em bibliografia filosófica”. Quem alimentava essa pretensão de ser filósofo era o pessoal da linha Tobias Barreto e Miguel Reale ou Vicente Ferreira da Silva, entre outras sumidades (NOBRE; REGO, 2000, p. 354-355, grifo meu).

Creio que a citação dispensa comentários. Mas, é bastante ilustrativa de algumas ideias que estamos discutindo aqui. Fazer Filosofia é coisa para pretensiosos19 e parece que a atividade para a qual somos formados é a técnica em bibliografia filosófica.

Para aqueles que não aceitam essa posição, algumas alternativas têm sido usadas. E uma delas é a experiência de pensar filosoficamente mantendo uma relação com a tradição que é de diálogo e não de subserviência. Acredito que no exame dessas experiências encontramos alguns caminhos que poderiam ser ensinados nas universidades: ensinar a forma e não apenas o conteúdo de um dado pensamento, ou como dizia Kant: ensinar a filosofar e não ensinar Filosofia. Ou como diria Descartes, ou como diria Hegel...20

Júlio Cabrera ressalta em seu texto passagens sobre a autonomia e a produção de Filosofia presentes em alguns de nossos principais filósofos.

Quando Kant insere a discussão sobre a autonomia (posta de maneira incisiva na Resposta à pergunta: O que é a Aufklärung?) e sobre uma pedagogia aplicável, afirma a respeito do professor: “em suma, ele não deve ensinar pensamentos, mas a pensar; não se deve carregá-lo, mas guiá-lo, se quer que ele seja apto no futuro a caminhar por si próprio” (KANT, 1992, p. 174). Além disso, a recomendação kantiana é que devemos construir algo sobre os conteúdos filosóficos que foram apreendidos e entendidos como começo da construção filosófica e não como fim.

Cabrera (2013, p. 217) chama a atenção para os textos de Schopenhauer sobre a autonomia e o pensamento e a institucionalização do conhecimento, Filosofia e universidade e o pensar por si mesmo sintetizada na questão: é possível separar o ensino da Filosofia e o pensamento? e cita:

Alguns cientes desse inconveniente, abasteceram-se de uma provisão de pensamentos alheios (...) eles jogam com esses pensamentos para lá e para cá e procuram eventualmente combiná-los como as pedras de dominó; eles comparam o que disse este, o que disse aquele, outro e mais outro e não procuram chegar a alguma compreensão do assunto. Em busca procurar-se-ia em tais pessoas alguma visão fundamental, firme e coerente das coisas e do mundo, que repousasse em uma base intuitiva (SCHOPENHAUER, 2009, p. 182 apudCABRERA, 2013, grifos nossos).

E ainda Cabrera lembra Heidegger com a célebre crítica à tese de que não devemos fazer uma introdução à Filosofia, pois não se tem como introduzir algo que já estamos dentro. O estudo, segundo Heidegger (2009), poderia fazer no máximo que a Filosofia aconteça em nós.

É possível que precisemos nos ater à história da Filosofia (...) adquirir conhecimentos eruditos e abrangentes quanto ao que e como filósofos pensaram, até pode ser útil. No entanto, sua utilidade não se reverte para o filosofar. Ao contrário: a posse de conhecimentos sobre Filosofia é a principal causa de que com isso estamos alcançando o filosofar (HEIDEGGER, 2009, p. 5).

(...) a posição tanto social quanto profissional dos professores de Filosofia ainda não é suficiente para assegurar que aquele que fala de Filosofia seja de fato um filósofo (HEIDEGGER, 2009, p. 241).

Essas referências ao texto de Cabrera, e às referências que o mesmo usa para desenvolver sua tese sobre a Filosofia no Brasil, tem apenas uma intenção aqui: lembrar que se esses autores/filósofos reproduzidos por nós dizem: não façam isso! O que dizem a respeito da produção de Filosofia parece-nos importante, talvez devêssemos repensar o que cabe ao estudante de Filosofia quando solicitamos que ele apenas exponha a concepção de um dado filósofo, e pensarmos se com isso não estamos criando heteronomia como atitude. Importante lembrar que não se trata apenas do estudante faz, afinal o que a maioria dos filósofos (seus professores) tem feito?

O que defendemos aqui é que mergulhar na tradição é essencial, mas depois de mergulhar precisamos subir novamente para a superfície. Aqueles que têm tentado isso têm sido acusados de não fazer algo sério, de não fazer Filosofia (essa acusação sempre me incomoda pela falta de precisão da maioria desses discursos do que seja de fato Filosofia) e, muitas vezes quem intenta pensar é chamado de arrogante ou pretensioso.

A problemática que envolve a produção de Filosofia no Brasil, o que ela é e qual o sentido de fazer Filosofia em nossa terra não se restringe à produção do pensamento, já que tem impactos profundos nas práticas de ensino de Filosofia, da educação básica ao final do doutorado. Não há incitação a pensar por si só, não há a indicação clara de como podemos pensar com a tradição sem nos submetermos a ela. Não o alerta claro de que os filósofos que deveriam estar atrás de nós nos ajudando a pensar nosso mundo, e não na nossa frente tapando nossos olhos e fazendo com que parássemos de olhar o mundo e ficássemos olhando apenas para eles e seus problemas, ou para a Filosofia e seus problemas.

Se não temos produção de Filosofia, se não temos o hábito de pensar filosoficamente, o que ensinamos em nossas salas de aula? Não há muitas alternativas para responder essa questão: ensinamos as teorias daqueles que diferente de nós pensaram. Há uma insistência em quase todos os documentos oficiais da educação brasileira (diretrizes, orientações, etc.) que a tarefa da Filosofia diz respeito ao desenvolvimento de um pensar autônomo na sua vinculação com a cidadania e o desenvolvimento da atitude crítica. Ora, ensinando nossos estudantes a reproduzir o que outros pensaram (mesmo que isso não tenha vínculo algum conosco) e afirmando-os diariamente estamos bem distantes da realização desse objetivo ou tarefa.

3. Reprodução ou repetição de Filosofia?

Trata-se de repetir a Crítica da razão pura. (Martin Heidegger)

Essa discussão pode parecer que defendo o abandono da tradição. Não defendo o abandono da tradição ou da História da Filosofia não porque acho que ela seja universal, ao contrário, mas por ser nossa história também na medida que fomos colonizados pelos europeus. Muitas dessas ideias expressas na História da Filosofia dizem respeito à ontologia latino-americana.

Justamente por não defender a recusa da tradição, chamo aqui alguns dos filósofos já mencionados e pergunto a eles o que querem dizer exatamente com produção de pensamento ou ainda com ensinar a filosofar e não ensinar Filosofia? Esses grandes filósofos nunca repetiram seus antecessores?

Nesse ponto vale chamar a atenção para o que Heidegger fez com a história da Filosofia: repetir o caminho trilhado pelos filósofos, mas repetir o caminho e não o caminho que o sujeito anterior percorreu21. Ao se permitir fazer “o mesmo” caminho permite-se ver outras coisas. Não se faz o mesmo caminho para ver o que o outro viu e sim para ver coisas diferentes. Foucault afirma que Kant repete na Antropologia a Crítica da razão pura. Foucault de muitas formas repete Kant e não deixa de fazer Filosofia por isso, nem se torna advogado de Kant. A repetição pode ser, por conseguinte, um procedimento de produção de Filosofia. Repetir, nesse sentido, não é reproduzir.

A leitura fenomenológica que Heidegger faz da Crítica da razão pura contraria muitos dos estudiosos de Kant (contraria quando se procura em Heidegger o que Kant teria dito - o que absolutamente ele não faz - curiosa busca, pois se deveria procurar em Kant o que Kant diz e não em Heidegger). Kant e o problema da metafísica de Heidegger é a repetição de um caminho, se esperarmos encontrar lá Kant, não encontraremos. Encontraremos Heidegger que fez o mesmo caminho e encontrou outras coisas para nos dizer, pois não se abandonou no trajeto.

Já no prefácio de Kant e o problema da metafísica, Heidegger (1996) indica que o acusam de violentar os textos dos filósofos por fazer uma interpretação arbitrária da Filosofia de Kant e de tantas outras. Heidegger (1996) afirma que há intermináveis objeções contra a arbitrariedade de suas interpretações e ironicamente diz que a presente obra pode muito bem servir de base a tais objeções. Com efeito, ele afirma que os historiadores da Filosofia, quando direcionam sua crítica contra quem trata de expor um diálogo de pensamentos entre pensadores, tem razão. Afinal, em um diálogo desta natureza se está sujeito há muitas leis diversas, são leis mais vulneráveis e no diálogo o perigo de errar é maior e os defeitos mais frequentes (HEIDEGGER, 1996, p. 10).

Não precisamos fazer os mesmos caminhos dos filósofos, mas poderíamos se achássemos isso frutífero. Todavia, o processo de formação do estudante de Filosofia passa pela aquisição do conhecimento de uma série de teorias, enquanto se aprende a filosofar o estudante é levado a esses caminhos, inclusive como aquisição de um repertório cultural (que esperamos não seja monopólio dos europeus). E quando levados a esses caminhos, se a atitude do professor for outra já aí começará o processo de se pensar filosoficamente. O resultado dessa repetição pode ser uma nova Filosofia. O que está em jogo aqui é a repetição como procedimento de produção de Filosofia, e não de reprodução (que é procedimento de cópia) e como princípio de uma pedagogia filosófica formativa de humanos. Esse é o ponto.

Sobre essa questão da produção e reprodução de Filosofia no Brasil, vale ainda propor uma reflexão. Qual a motivação de se produzir Filosofia e não simplesmente reproduzir? Reconhecimento pessoal, valorização da identidade nacional, ou mostrar que somos capazes? Creio que a resposta a essa questão não passa por aí22. Uma resposta já foi dada ao longo desse texto quando indico que quando se expressa na universidade ou nas escolas, por meio do discurso dos professores, a Filosofia tem um compromisso com a autonomia e a criação da possibilidade dos humanos se governarem a si mesmos, ela tem um compromisso com o desenvolvimento de um senso crítico e contribuir para a cidadania23. Se a Filosofia é ensinada, precisamos fazer parte dessa produção.

Contudo, nem todos querem atrelar Filosofia ao ensino de Filosofia24, quem sabe para esses a motivação estará em outro lugar. No fim de sua vida, e em seu último curso, Foucault se dedicou ao tema da parresia. E com esse tema trouxe para a Filosofia a reflexão sobre o papel do intelectual. Há uma íntima relação desse conceito, ou prática, com a produção do discurso filosófico.

4. Entrelaçamento conceitual: produção de pensamento, autonomia e a parresia

Nós devemos começar por reinventar o futuro nos concentrando em um presente mais criativo. (Michel Foucault)

A problemática que envolve a produção de Filosofia no Brasil tem uma dimensão política que não pode ser deixada de lado, além das ideias que apresento aqui até agora. Michel Foucault é um companheiro privilegiado para pensarmos a política na vinculação com a reprodução dos discursos. Vejamos com ele como é possível atrelar a produção de pensamento filosófico à relação entre o sujeito, a verdade e o poder. Para tanto recorreremos à noção de parresia tomada para reflexão por Foucault no curso O Governo de si e dos outros II, Coragem de Verdade.

Foucault opta por discutir, em seu último curso, o ato pelo qual o sujeito ao dizer se manifesta e, mais bem dizendo, se representa a si mesmo. Isto é, Foucault traz uma reflexão sobre a relação que há entre a constituição do sujeito e o dizer-verdadeiro, na medida em que o dizerverdadeiro possibilita que ocorra uma espécie de auto soberania que está no cerne daquilo que o homem pode fazer de si mesmo.

Nesse contexto de vinculação do dizer-verdadeiro com a constituição de um si mesmo independente e autônomo, é possível perguntar o que acontece com o sujeito se quando ele fala o faz sem nunca representar a si mesmo, pois nele fala outro . Foucault se pergunta quais as práticas e que tipo de discurso dizia o sujeito, cremos que aqui é possível perguntar pelas práticas e o tipo de discurso que a Filosofia entre nós tem feito. E, principalmente, os impactos desse modo de dizer em nós. Além de retomar algumas teses de Foucault sobre a parresia, esperamos assinalar o sinal mais importante desse retorno ao conceito e a prática da parresia: é preciso dizer a verdade sobre si mesmo.

A parresia pode ser traduzida como o falar franco que desemboca em um compromisso moral com a verdade. A fala não deve ter nenhum interesse que não o de pretender que o outro seja soberano de si mesmo, pressupõe, desde o início, portanto, uma ética, pois é uma relação com o outro. A parresia é, então, a coragem de verdade daquele que fala que envolve aquele que escuta.

Na parresia, o que está fundamentalmente em questão é (...) a franqueza, a liberdade, a abertura, que fazem com que se diga o que se tem a dizer, de maneira como se tem vontade de dizer, quando se tem vontade de dizer e, segundo a forma que se crê ser necessário dizer. O termo parresia está tão ligado à escolha, à decisão, à atitude de quem fala, que os latinos justamente traduziram parresia pela palavra libertas. O tudo dizer da parresia tornou-se libertas: a liberdade de quem fala (FOUCAULT, 2006, p. 261). [HS].

E. Castro, no Vocabulário Foucault, afirma que a parresia é para Foucault uma das técnicas mais fundamentais das práticas de si mesmo na Antiguidade.

Em primeiro lugar, na literatura epicurea, expressa uma qualidade do fisiólogo, o médico conhecedor da natureza, que define a relação entre o médico e o paciente. Falar com parresia, isto é, como liberdade da palavra, consiste em dizer ao enfermo as verdades da natureza que podem mudar o modo de ser do sujeito doente25. Em segundo lugar, no contexto mais amplo da relação mestre-discípulo, a parresia define a atitude do mestre que corresponde ao silêncio do discípulo (CASTRO, 2009, p. 316).

A atitude indicada remonta tanto ao éthos do mestre quanto a técnica necessária para transmitir o discurso ou os discursos verdadeiros. Digno de nota que na explicitação da parresia aparece suas grandes inimigas: a cólera e a adulação. A cólera como o comportamento de quem se encontra em superioridade em relação ao outro e expressa isso como arrebatamento, a adulação daquele que escuta e que compensa o abuso do poder se subordinando para usar isso a seu favor. A parresia estaria longe dessas duas práticas. Ela é o avesso dessas duas práticas. Essas duas práticas estariam na contramão do dizer-verdadeiro, portanto.

A parresia ocorre quando alguém fala e fala a outro, contudo o faz de tal maneira que este outro possa constituir uma relação consigo mesmo, uma relação autônoma, independente, plena. É esse, portanto, o dizer-verdadeiro. A parresia está diretamente, assim, vinculada à autonomia (tema essencialmente kantiano e que aparece a todo o momento na obra de Foucault) e que está no cerne da própria noção de governo para Foucault, uma noção de governo intencionalmente aberta, significando na base a condução das condutas, do outro indivíduo, de um grupo ou de si mesmo.

Apesar do contexto eminentemente político da parresia, visto que Foucault indica a parresia como política na medida em que o foco está em dizer a verdade a alguém, ela é um dizer a verdade que permite ou possibilita que esse sujeito se constitua como autônomo, ao lado, há também uma parresia filosófica em que o foco está em dizer a verdade sobre si mesmo. Ambas parecem nos levar há uma espécie de auto soberania. A parresia pode ser tomada como ação política e como ação filosófica. Nisso consiste para Foucault a própria definição do papel do intelectual: levar a seus contemporâneos o que está acontecendo. Fazer um diagnóstico do presente.

A parresia está em um cruzamento conceitual fundamental da obra de Foucault. Cruzamento esse que tem como desenho a própria atitude crítica. Uma crítica que vem de baixo daquele que precisa de coragem para falar o que deve ser dito. Assim sendo, há na parresia uma noção de dever, o que significa que na base dessa está uma deontologia. Aquele que diz a verdade não é forçado a fazê-lo, mas o faz, pois considera este seu dever. Obedece a si mesmo, consequentemente. Há na defesa da parresia um caminho para o desassujeitamento. Há na parresia uma indocilidade refletida, portanto, corajosa, e essa está no âmago da definição do que é a crítica. A crítica que interroga o poder, uma coragem existencial.

Há em Foucault mais uma vez a convocação para a auto formação da subjetividade, a parresia pretende que o outro se constitua como o soberano de si mesmo por meio de uma elaboração ética. Ela pressupõe, portanto, uma relação com o outro. Ela é entendida, ainda, a partir do seguinte fim: a transformação e autonomia do indivíduo pela criação de modos de existência éticos específicos (VIEIRA, 2013).

O filósofo é o agente da verdade. A Filosofia é uma arte da existência e o discurso verdadeiro realiza a existência, há uma relação entre a existência bela e a verdadeira vida, a vida na verdade, a vida pela verdade, é disso que Foucault trata: da emergência da vida verdadeira no princípio e na forma do dizer verdadeiro (dizer a verdade aos outros, a si mesmo, sobre si mesmo e dizer a verdade sobre os outros), vida verdadeira e jogo do dizer verdadeiro, é esse o tema, o problema que Foucault nos traz (FOUCAULT, 2011b, p. 151-152).26

A questão da produção de Filosofia está antes de tudo, a meu ver, na tarefa do intelectual, uma maneira de refletir sobre a nossa relação com a verdade. É preciso completar: ela é uma maneira de se perguntar se essa é a relação que temos com a verdade, como devemos nos conduzir? A Filosofia pode/deve modificar nossa relação com a verdade e com o presente, nosso tempo.

Há um papel não só do filósofo, mas do intelectual, que passa pela criação de regimes de verdade. Não é papel do intelectual o reforço de regimes de verdade. A tarefa não seria a crítica ou ainda mudar a consciência das pessoas, mas mudar o regime de produção das verdades. Evidenciar aquilo que não está se vendo para que a partir daí se veja. Há uma exigência feita ao parresista: deve-se ter uma relação consigo mesmo, com o outro e com a verdade. O dizer verdadeiro sobre si mesmo para o outro é de suma relevância.

5. Uma relação mais saudável com a tradição e a dimensão ética do ensino de Filosofia

O filósofo no Brasil precisa pensar em seu papel como intelectual e como professor. Defendemos que o papel do filósofo não pode ser o de reproduzir ou fortalecer regimes de verdade, reforçar consensos, parecenos, portanto, que a reprodução pura e simples de Filosofia é antiética e produz uma submissão e uma ausência de soberania que afeta não apenas a Filosofia, mas nós mesmos como sujeitos. Essa prática inaugura um círculo vicioso que resulta em ausência de pensamento.

É totalmente possível conquistarmos uma independência relativa da tradição ao ponto de conseguirmos respirar e atribuir sentidos próprios às nossas experiências por meio do pensamento. Isso é o que considero uma relação saudável com a tradição do pensamento filosófico e, consequentemente, uma relação mais saudável com o ensino de Filosofia. Não vejo como desatrelar as duas coisas.

Em suma, tal relação saudável com a tradição implica em alguns pressupostos, como: a) que é possível assumir uma atitude sem adotar uma doutrina; b) que é possível atuar dentro de um mesmo modelo filosófico sem adotar os mesmos conceitos; c) que é possível atualizar um pensamento filosófico sem fazer a pergunta: o que a autor diria sobre tal tema, problema ou situação hoje?; d) que o estudo da Filosofia pode ser metafilosófico indicando a maneira como os conceitos foram criados, os operadores conceituais usados por um filósofo como ponto de partida para o pensar; e) e que ainda é possível pensar não igual a um filósofo, mas em analogia com ele, pois um diálogo deve ser ético e isso pressupõe dois seres humanos com o mesmo estatuto e em relação. Isso significa dizer que é a ética (relação entre sujeitos) e não a epistemologia (o pesquisador como sujeito e o filósofo como objeto) deveria caracterizar a produção filosófica. Os filósofos e suas filosofias deveriam ficar atrás de nós como molas propulsoras e não na nossa frente como muro impedindo-nos de pensar por nós mesmos. No ensino os mesmos pressupostos deveriam ser respeitados.

O impacto negativo da reprodução de teorias filosóficas no ensino de Filosofia pode ser revertido com duas medidas, uma mais imediata e mais fácil de ser implantada, outra mais difícil e dependerá da mudança estrutural na cultura acadêmica e até na cultura brasileira de um modo geral. Me refiro a ensinar aos estudantes filósofos que tiveram relações criativas com a tradição, permitindo que a forma se sobressaia aos conteúdos. Isso é relativamente fácil de se fazer: a prática de ensino deveria ser voltada para chamar a atenção do estudante sobre como usar as Filosofias e os filósofos para pensar, bem como apresentar exemplos pontuais dessas experiências do pensamento. Em uma dimensão mais profunda, os filósofos brasileiros precisariam recusar a prática de produção de comentários e de recenseamentos filosóficos e produzir conceitos e métodos que colaborem com a compreensão de nós mesmos e do mundo a nossa volta.

Essas mudanças pedem uma escuta. Escutamos pouco os filósofos latino-americanos e outros filósofos não-europeus que nos provocam a décadas a pensar por nós mesmos, eles não têm voz. Seus discursos (não atrelados ao poder) não estão em vigência, não criaram nenhuma esfera de existência, de verdade ou de realidade. Isso precisa ser mudado. É necessário que tragamos outras tradições e culturas para pensarmos a Ética, a Teoria do Conhecimento, a Lógica, etc.27

Àqueles que se recusam a escuta de outras culturas, sugerimos que se escute então aqueles que são considerados os grandes nomes da Filosofia, e que tem voz, aqueles cujos discursos estão em vigência e que dizem basicamente a mesma coisa: sirva-se de si mesmo sem a direção de outrem (...) o perigo não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar, finalmente, depois de algumas quedas (KANT, 1985).

A escuta do outro sem se submissão à sua forma de pensar parece-nos o caminho para garantir a dimensão ética na prática tanto de produção, quanto de ensino de Filosofia.

Referências

ALMEIDA, D. Nós os não-europeus - o pensamento na América Latina e a Não- Filosofia: um possível non rapport? Revista Páginas de Filosofia, São Bernardo do Campo, v. 3, n. 1-2, p. 111-134, jan./dez. 2011. [ Links ]

BONDY, Salazar. Existe una filosofía de nuestra América? México: Siglo XXI Editores, 1988. [ Links ]

CABRERA, J. Diário de um filósofo no Brasil. Ijuí: UNIJUÍ, 2013. [ Links ]

CASTRO, E. Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. [ Links ]

DUSSEL, E. 1492 o encobrimento do outro - A origem do mito da modernidade, São Paulo: Perseu Abramo, 1993. [ Links ]

GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. São Paulo: FTD, 2012. [ Links ]

KANT, I. Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento? In:______. A paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa: Edições 70, 1985. [ Links ]

FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros II - A coragem de verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011. [ Links ]

NOBRE, Marcos. Conversas com filósofos brasileiros, São Paulo: Editora 34, 2000. [ Links ]

TRINDADE, Vanderlei Luiz. O debate entre Salazar Bondy e Leopoldo Zea. 1997. p. 159-171. Disponível em: <http://www.ifil.org/Biblioteca/ trindade.htm>. Acesso em: 20 abr. 2014. [ Links ]

VIEIRA, Priscila. A coragem da verdade e a ética do intelectual em Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2015. [ Links ]

ZEA, La filosofía americana como filosofía sin más. 3. ed. México: Siglo XXI Editores, 1975. [ Links ]

1Nesses casos justifica-se as falas “tudo já estava em Platão” ou “Kant retirou essa ideia de Hume” ou “Marx já havia dito isso”, o exercício filosófico passa a ser buscar o pai de uma dada ideia e provar que aquele que aparentemente é seu dono, não é.

2Normalmente isso ocorre com intelectuais que já provaram após décadas de muitas publicações de comentários que ele conhece o autor.

3Onde encontramos uma legião de advogados para cada filósofo.

4Não é toda a tradição europeia ou estadunidense que é repetida, temos repetido os mesmos nomes.

5Cada vez mais comum é perguntarmos em quem o pesquisador da Filosofia faz seu mestrado ou doutorado. Em quem, não em que, ou sobre o que. A resposta é condizente com a pergunta: faço em Kant, faço em Voltaire, faço em Descartes.

6E não estou aqui defendendo um discurso verde-amarelo nacionalista, não nos pertencem no sentido subjetivo, não fazem sentido para nós.

7Dizemos isso, pois quando não há preocupação de se fazer honestamente, é só retirar as partes que não interessam à argumentação, alegando que determinadas teses dos filósofos devem ser desconsideradas por pertencer a um dado espírito de época. Dessa forma é possível repetir Hegel, ignorando seu euro centrismo, Voltaire e seu racismo, etc.

8Outros na recusa da tradição e do estudo sistemático de Filosofia produzem reflexões do senso comum.

9Esperamos ter conseguido fazer isso em alguns momentos de nossa tese.

10No livro, Cabrera destaca além de Kant outros autores que indicam claramente a preocupação com o filosofar autoral e autêntico.

11A maneira como Dussel usa a fenomenologia para produzir aspectos centrais da sua Filosofia da libertação renderia, certamente, uma pesquisa da mesma natureza que desenvolvemos aqui.

12Em 1492 o encobrimento do outro.

13Boaventura de Sousa Santos tem trazido a tese de que deve haver uma epistemologia do sul.

14Dussel usa os conceitos de Husserl tais como, mundo da vida, intencionalidade, percepção, imaginário, sentido, sem, no entanto, reproduzir Husserl. Considera esses conceitos para pensar algo que Husserl não pensou, nem poderia pensar.

15Ninguém se surpreende quando essas expressões aparecem nos corredores das bibliotecas, na catalogação dos livros e ainda mais nos nossos congressos de Filosofia. O estranhamento vem quando se intenta que a Filosofia latino-americana ou brasileira seja chamada, ou ainda Filosofia africana, é aí que volta o conceito de universalidade.

16Ou hipocrisia, ou cinismo ou má-fé.

17O que certamente é bem mais frutífero.

18O que acontece também com as nossas traduções, sempre usadas como muletas até que possam ser abandonadas para ler os originais.

19Quantas arguições nas bancas ou mesmo antes nas orientações dos mestrados e doutorados, ouvimos: seu projeto é muito ambicioso, reduza-o! Bom seria, parabéns, seu projeto é muito ambicioso, faça-o!

20Há muitas indicações dos nossos grandes filósofos de que não deveríamos copiá-los!

21Até por que isso seria impossível.

22Não nos parece muito adequado desejar a produção só ser mais, ou para ser reconhecido (o que ainda nos colocaria numa relação de submissão ao reconhecimento do outro).

23Se o compromisso for outro teríamos que reformular nossas diretrizes da Educação.

24Apesar da esmagadora maioria dos filósofos no Brasil, até os não licenciados, serem professores.

25Citando a História da sexualidade.

26A Coragem de verdade.

27A quantidade de teorias filosóficas contemporânea sobre etnia, gênero, diversidade, meio ambiente (com perspectiva pós-colonial) que é negligenciada pelos filósofos brasileiros é surpreendente.

Recebido: 26 de Janeiro de 2016; Aceito: 19 de Abril de 2017

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