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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia May/Aug 2017  Epub Mar 09, 2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p1111a1125 

Artigos

“Pessoa”, um si mediatizado: uma reflexão educativa e multicultural na filosofia de Ricoeur*

“Person”, a self mediated: an educational and multicultural reflection in the philosophy of Ricoeur

“Personne”, un si mediatize: une reflexion educative et multiculturelle dan la philosophie de Ricoeur

Josélia Ribeiro Fonseca** 

**Doutora em Educação, área de especialidade Filosofia da Educação pela Universidade dos Açores. Professora Auxiliar do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade dos Açores. E-mail: joselia.mr.fonseca@uac.pt


Resumo

A forte presença das questões multiculturais na sociedade atual torna premente a reflexão e o questionamento sobre a importância da cultura na formação do ser humano, assim como torna imperativo refletir sobre o modo como a educação promove o desenvolvimento do homem como ser cultural e o prepara para o diálogo e para o convívio com as demais culturas. É objetivo deste artigo refletir sobre a importância da educação multicultural na formação da pessoa humana, evidenciando a dimensão ética que está associada aos conceitos de cultura e de educação. O interesse em compreender a educação multicultural sob o signo da ética conduz-nos à procura de linhas de reflexão multicultural na filosofia de Paul Ricoeur.

Palavras-chave: Pessoa; Educação; Multiculturalismo; Ética Ricoeur

Abstract

The strong presence of multicultural issues in today’s society became urgent the reflection and the questioning about the importance of culture in the formation of human beings, and makes it imperative to reflect on how education promotes the development of man as a cultural being and preps him for the dialogue and the interaction with other cultures. The goal of this paper is reflecting on the importance of multicultural education in the formation of the human person, highlighting the ethical dimension that is associated to the concepts of culture and education. The interest in understanding multicultural education under the ethics sign leads us looking for multicultural reflection lines in the philosophy of Paul Ricoeur.

Keywords: Person; Education; Multiculturalism; Ethic Ricoeur

Résumé

La forte présence de problèmes multiculturels dans la société d’aujourd’hui rend urgent de réfléchir et de remettre en question l’importance de la culture dans la formation de l’être humain, tout comme il est impératif de réfléchir à la manière dont l’éducation favorise le développement de l’homme en tant qu’être culturel et le prépare à le dialogue et la convivialité avec les autres cultures. Le but de cet article est de réfléchir à l’importance de l’éducation multiculturelle dans la formation de la personne humaine, en soulignant la dimension éthique qui est associée aux concepts de culture et d’éducation. L’intérêt pour la compréhension de l’éducation multiculturelle sous le signe de l’éthique nous conduit à rechercher des lignes de réflexion multiculturelle dans la philosophie de Paul Ricoeur.

Mots Clés: Personne; Éducation; Multiculturalisme; Éthique Ricoeur

Introdução

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a importância da cultura na formação do homem enquanto “pessoa”, assim como desenvolver uma nova compreensão sobre a premência das atuais questões multiculturais.

A reflexão e análise destas questões apoiam-se nas conceções antropológicas e éticas desenvolvidas por Paul Ricoeur. Não obstante reconhecer que o autor, ao longo do seu percurso bibliográfico, não aborda explicitamente a temática da educação multicultural, identificamos algumas linhas de reflexão antropológica e ética que nos permite antever uma preocupação com a cultura e a sua diversidade.

A filosofia de Ricoeur apresenta uma nova conceção de sujeito e de cultura. O sujeito ricoeuriano desenvolve-se através de um processo de construção hermenêutico, na mediação que o eu circunstanciado - num determinado tempo, espaço e cultura - faz de si mesmo. A cultura assume-se como fundamento ético do projecto existencial e apresenta um carácter dialógico que torna possível a compreensão de traços multiculturais no pensamento de Ricoeur.

A Pessoa - um si mediatizado

A conceção antropológica de Ricoeur é consubstanciada por dois grandes momentos da história da filosofia: o do cogito exaltado de René Descartes e o do cogito humilhado dos chamados filósofos da suspeita - Freud, Marx e Nietzsche.

Segundo a filosofia cartesiana, o Eu era indubitavelmente o centro de gravidade de todas as coisas, era a verdade máxima, o sum. De acordo com Husserl, o Eu preconizado por Descartes era árido, fechado, solipsista, centrado e encerrado sobre si mesmo. Porém, a corrente fenomenológica postulada por Husserl não solucionou o problema e durante muito tempo o cogito cartesiano foi verdade máxima.

No século XIX, os chamados filósofos da suspeita, não só colocaram em questão o cogito ergo sum cartesiano, como desenvolveram uma verdadeira “campanha” do esquecimento do sujeito. Na ótica destes filósofos, o homem não pode ser o centro de todas as coisas, ele não é o ponto de partida, ele é essencialmente o produto. Para Marx, o homem é produto de uma sociedade, para Nietzsche, o homem é dominado pelo instinto e não pela consciência e para Freud, o inconsciente prevalece sobre o consciente.

Contrariamente à consciência fechada e solipsista cartesiana e ao esquecimento do ser humano, defendido pelos filósofos da suspeita, Ricoeur faz emergir uma nova concepção antropológica que já não se expressa num eu mas num si. O “si” ricoeuriano é a negação clara e evidente do imediatismo e do narcisismo do cogito cartesiano. “Dizer si próprio (soi) não é dizer eu. O eu põe-se ou é deposto; o si próprio é implicado a título reflectido nas operações cuja análise precede o regresso a si mesmo” (RICOEUR, 1990, p. 30). A conceção antropológica de Ricoeur desenvolve-se através de um processo de descentração.

O descentramento do eu que o autor nos propõe consiste num movimento centrífugo:

“O desprendimento é um momento fundamental da apropriação e distingue-a de qualquer forma de «tomar posse». A apropriação é também e primariamente um «deixar ir». É o texto com o seu poder universal de desvelar que dá um si ao eu” (SUMARES, 1989, p. 166).

Segundo a filosofia ricoeuriana, a construção do sujeito ocorre através de um processo de mediação que o eu faz de si a si mesmo. Com Ricoeur, o eu sou cartesiano abre-se ao si reflexivo capaz de se interpretar a si mesmo através das suas acções, através da história que é a sua vida. O “si” ricoeuriano é um ser existente que se constrói através de um processo hermenêutico, isto é, que se desvela de acordo com o modo como interpreta os outros e a forma como vive com eles. O sujeito que se interpreta ao interpretar os signos já não é um cogito, é um existente que descobre, pela exegese da sua vida (RICOEUR, 1992, p. 15).

O acto puro do cogito, enquanto ele se põe absolutamente, é apenas uma verdade abstracta e vazia tão vã como invencível. Resta-lhe ser mediatizado através da totalidade do mundo dos signos e através da interpretação desses signos (RICOEUR,1992, p. 239).

Na verdade, é pela mediação que o homem se constrói enquanto identidade. Ricoeur entende a identidade a partir da sua dupla raiz etimológica, ou seja, a partir dos vocábulos idem (mesmo) e ipse (próprio). A identidade como mesmidade implica a unidade, a permanência no tempo, o que nos permite, apesar da mudança, reconhecer o sujeito como sendo o mesmo que ele próprio. A identidade ipse, por seu turno, diz respeito à identidade própria de cada indivíduo, à subjectividade única, diz respeito ao núcleo da identidade pessoal e ética de cada indivíduo.

Nestes termos, a ipseidade do “si” constrói-se ao longo de uma vida inteira num processo dinâmico e de mediação, pelo qual o sujeito é simultaneamente autor e leitor da história que é a sua vida. A construção do “si” dá-se através da narrativa. “A identidade narrativa (...) compreende a identidade da personagem (...). A construção da identidade constrói-se em ligação com a da intriga” (RICOEUR, 1990, p. 168).

A vida de cada indivíduo é constituída por uma série de narrativas, a partir das quais o indivíduo narra uma história que pode ser real ou fictícia. Não obstante ser verdadeira ou fictícia, a narrativa que cada indivíduo faz é sempre contextualizada no seu tempo. “A pessoa, compreendida como personagem da narrativa, não é uma entidade distinta das suas experiências. Bem pelo contrário: ela divide o regime próprio da identidade com a história relatada” (RICOEUR, 1992, p. 176).

O conjunto destas narrativas constitui a própria identidade do indivíduo, uma identidade que é refigurada e prefigurada por todas as histórias que ele conta sobre si mesmo ao outro ou que ele conta a si mesmo sobre o outro. A identidade narrativa resulta, pois, de contínuas rectificações operadas por uma narrativa posterior sobre uma narrativa anterior. A narrativa é sempre resultado do modo como cada indivíduo interpreta os signos e os símbolos da sua cultura.

É sob o signo de uma matriz cultural que o homem faz a hermenêutica de si mesmo e, ao mesmo tempo que se compreender, cria para a constituição de um novo sistema simbólico que a funda.

“Quer seja uma história contada ou fictícia. Trata-se de uma experiência em divergência com o modelo físico de objectividade mas em correspondência com a configuração e refiguração da realidade cultural e temporal dos homens” (SUMARES, 1989, p. 231).

A constituição da ipseidade de cada homem é, portanto, marcada por um ciclo hermenêutico, através do qual cultura e indivíduo se recriam mutuamente.

É pela configuração da vida e da tradição cultural (da continuidade dos vivos contada em narrativa) que o curso da história e a sua cadeia de interpretações se encarnam nos cursos das coisas, transformando-a ao mesmo tempo (SUMARES, 1989, p. 262).

Na verdade, a cultura desempenha um papel fundamental na construção do si de cada indivíduo. É pela hermenêutica do texto1, dos signos e símbolos de uma determinada realidade que o sujeito se descobre e dá sentido à realidade.

A cultura como fundamento ético do projecto existencial na filosofia ricoeuriana

Atendendo à importância que a cultura desempenha na construção do “si” ricoeuriano, torna-se imperativo compreender como é que o autor define “cultura”. Ricoeur define “cultura” como um conjunto complexo de valores ou evaluações que constituem um povo. No entanto, estes valores não devem ser entendidos ao nível da moralidade constituída, pois o autor considera esta última como um nível superficial de manifestação de valores. O conceito de “valor” que Ricoeur utiliza diz respeito às atitudes concretas face à vida, mas que se compreendem a um nível mais racional e reflexivo.

Compreender a cultura de um povo consiste em interpretar os signos e os símbolos através dos quais se manifestam o pensamento, a vontade, os sentimentos desse povo num determinado momento.

A um nível menos superficial, os valores manifestam-se através das instituições tradicionais (...). As instituições são sempre um signo abstracto que precisa ser decifrado. Parece que se queremos alcançar o núcleo cultural, é preciso escavar o leito de imagens e símbolos que constituem as representações base de um povo. Eu tomo aqui as noções de imagem e símbolo no sentido da psicanálise; não (...) é com efeito uma descrição imediata que os descobre (...) é preciso uma verdadeira decifração, uma interpretação metódica (SUMARES, 1989, p. 296).

A compreensão da cultura resulta também da hermenêutica do fundo ideológico e utópico que a cria. A ideologia e a utopia, enquanto, sistema simbólico que suporta o quadro de significação de um determinado povo, são responsáveis pela criação e pela transformação e recriação da cultura. Enquanto práticas imaginárias, a ideologia e a utopia “(...) fundam-se na actividade linguística e simbólica onde se reflectem a acção humana e a ligação interpessoal e histórica que une o presente com o passado e o futuro da humanidade num só destino” (SUMARES, 1989, p. 279).

Assim sendo, a cultura é o subsolo de uma sociedade, na medida em que é o elo de ligação de um povo, ou seja, a cultura é o conjunto de signos, símbolos e valores comuns que serve de matriz de compreensão da realidade e das interacções interpessoais que constituem uma determinada comunidade histórica. É este quadro simbólico comum que sustenta a construção de um sentimento de pertença e de uma identidade colectiva.

Para além de ser o elemento unificador de um povo, a cultura é também entendida por Ricoeur como sendo o seu escudo protector, na medida em que através dela o homem transforma a natureza e faz frente à sua dimensão superior e esmagadora. Deste modo, a cultura confere ao homem o poder criador dos deuses: a arte, a literatura e até mesmo a religião são símbolos que representam a forma como o homem desvela o ser próprio da natureza e lhe dá sentido existencial.

A concepção de pessoa, “si” mediatizado, que Ricoeur nos apresenta é, sem sombra de dúvida, a de um sujeito cultural. O “si” humano constrói-se ao longo de uma vida inteira através das suas acções, estas são sempre consubstanciadas pelo espaço, pelo tempo, pelo mundo cultural que o rodeia.

Segundo a filosofia ricoeuriana, o homem é uma subjectividade encarnada num corpo real e existente. Este corpo compreende-se através da interpretação de tudo o que o rodeia. Interpretar e compreender a cultura é, no fim de contas, fazer uma arqueologia do próprio sujeito e é simultaneamente libertar o eu do cárcere solipsista a que o cogito cartesiano o submete.

Assim como a noção de “pessoa” é uma categoria ética que constitui uma segunda natureza, uma espécie de segunda veste do próprio homem, que é constituída ao longo da sua existência, a cultura é a segunda roupagem, a segunda natureza que o homem atribui à própria natureza.

A cultura é, portanto, fruto da compreensão que o homem faz da sua existência enquanto realidade circunstanciada. Ela expressa-se na linguagem simbólica sob a qual o homem codifica o desvelamento que faz do ser da natureza para a partir dele descobrir o seu eu e traçar o projecto que ele pretende ser.

As obras culturais constroem-se a partir da imaginação humana. Entende-se esta última como a dimensão subjacente e fundante do poder auto-criador do homem, como o poder de fomentar a auto-compreensão mediada pelos signos, símbolos e textos, como a dimensão humana criadora da identidade, capaz de inventar acções identificadoras do indivíduo.

Deste modo, a cultura é o fundamento do homem. O ser humano manifesta a sua existência através das suas acções e consequentemente através das suas obras, sendo a cultura uma criação do homem, ela é a prova evidente da sua existência.

Os objectos culturais - a arte, a literatura, a filosofia, etc. - são a manifestação da existência do homem na medida em que expressam o que ele pensa e sente do mundo real ao mesmo tempo que se abre caminhos para uma outra possibilidade. Através destes objectos, perpetua-se o real humano, no sentido em que se representa a natureza tal como o homem a percepciona, quer real, quer ficticiamente.

É na objectividade dos objectos culturais propriamente ditos, ou as obras, que se persegue a projecção das possibilidades do homem; as obras pintadas, esculpidas, escritas dão a densidade da coisa, a duração do real, a estas imagens do homem; elas fazem existir entre os homens e no meio dos homens (RICOEUR, 1965, p. 503).

De facto, há um paralelismo entre cultura e arte. A obra de arte só ganha sentido e existência a partir do que alguns autores designam por triângulo estético, (autor - obra - espectador). O autor cria a obra de arte a partir da interpretação subjectiva que faz do outro, no entanto se o espectador não interpreta o trabalho do artista é como se esse trabalho não existisse, porque o outro não reconhece o sentido e o sentimento do artista face à realidade. A cultura também só se torna efectiva a partir da arqueologia recíproca dos sujeitos.

Os objectos (culturais) ajudam no reconhecimento do outro. A minha existência é tributável de uma constituição na opinião do outro. Ora, esta constituição mútua pela a opinião é ainda orientada pelos objectos, mas pelos objectos que não são mais as coisas. (...) Estes objectos são as obras do direito, da arte, da filosofia (...).

É através destas obras, pela mediação destes monumentos, que se constitui uma «dignidade» do homem, que é ainda o traço do processo de consciência dupla, o reconhecimento do si num outro (RICOEUR, 1965, p. 502-503).

Na verdade podemos afirmar que na filosofia ricoeuriana a cultura ocupa um lugar de destaque na formação da pessoa. Ricoeur reconhece a cultura como “a realização máxima do homem enquanto pessoa” (1990, p. 222), e ao fazê-lo está-lhe a conferir um substrato ético.

A ética ricoeuriana é uma ética da pessoa, de um si que se constitui a partir da hermenêutica que faz do mundo e da relação dialógica que estabelece com os outros. O projecto ético de Ricoeur materializa-se em três patamares de complexidade crescente, a saber: estima de si, solicitude e instituições justas.

A “estima de si” diz respeito à interpretação que o outro faz de si mesmo. Ao auto-interpretar-se, o homem assume-se como sujeito responsável, como um sujeito “capable” de imputação ético-jurídica. Ao reconhecer-se como sujeito de direito, o homem reconhece imanente a si a dimensão da alteridade. Nenhum homem é sujeito isolado no mundo.

Na mediação que o eu faz de si através da identidade narrativa, o outro encontra-se implicado, ou como agente beneficiário ou como agente sofredor da minha acção, quer como testemunha quer como juiz, contando comigo, com a minha fidelidade à palavra dada, apela-me à responsabilidade. Assim sendo, identifica-me como sendo eu mesmo.

Dizer “estima de si”, não é, portanto, o mesmo que dizer estima de mim. Neste sentido, a relação dialógica de viver bem com os outros, que Ricoeur designou de “solicitude”, não se acrescenta de fora, “mas é uma dimensão (...) que passa sob silêncio. Há uma reciprocidade, um não pode viver sem o outro” (1990, p. 210)..

O homem para ser feliz precisa do outro, dos amigos que se mostrem solícitos e solidários face à sua vulnerabilidade. A solicitude recíproca do eu ao outro e do outro a mim conduz-me ao reconhecimento do outro como um eu, como um sujeito ético-jurídico, um sujeito de direitos que necessita, tal como eu, de espaço para a realização da sua liberdade, para actualização máxima da sua potência.

Ricoeur acalenta, portanto, um projecto ético em que subjectividade e alteridade comunicam dialecticamente, o que conduz a um conhecimento mútuo do si e do outro. A ipseidade enquanto resultado de uma mediatização encerra em si mesmo a alteridade.

É nestes termos, que se compreende o lema ético de Ricoeur, “viver bem com e pelos outros nas instituições justas.” (1990, p. 211). Estas últimas, de acordo com a ética ricoeuriana, não se apresentam como um artificialismo, pelo contrário, as instituições são co-naturais ao homem, no sentido em que este só se constitui enquanto pessoa através da hermenêutica que faz de si e do mundo e das relações de solicitude que mantém com os outros.

Ricoeur define as instituições como “ as estruturas do viver em conjunto de uma comunidade histórica, povo, nações, regiões, etc.” (1990, p. 217) Nas instituições, as pessoas vivem sobre o mesmo ethos, ou seja, partilham os mesmos valores, as mesmas preocupações e laboram para a realização da vida boa do si em comungam com todos os outros.

O ethos fundador das instituições é, na verdade, o núcleo cultural sobre o qual se funda toda a sociedade. A realidade social é uma realidade simbólica, “constituída por imagens e símbolos que constituem o que se poderia chamar o sonho desperto de um grupo histórico. É neste sentido que eu falo do âmago ético e mítico que constitui um fundo cultural de um povo” (RICOEUR, 1955, p. 296).

De facto, a cultura, construída sobre o ethos de uma determinada comunidade, é a garantia de vida boa de uma determinada sociedade, na medida em que, tal como já referimos anteriormente, serve de “escudo protector” contra a natureza e é o elo de ligação entre as pessoas que a constituem.

Traços multiculturais na filosofia ricoeuriana

Na leitura que fizemos das obras de Paul Ricoeur, não encontrámos explícito a referência à educação multicultural. O que verificámos é que existem algumas linhas de reflexão que nos poderão levar a afirmar que há indícios de uma preocupação com o educar para o multiculturalismo. Estes indícios multiculturais poderão encontrar-se no modo como o autor define o que deveria ser a educação moderna.

Ricoeur concebe a educação como um bem social e, ao fazê-lo, reconhece a necessidade imperativa da educação estar comprometida com as preocupações e os modelos do seu tempo.

Segundo o filósofo, em entrevista a Kechikian (1993, p. 71), a sociedade moderna é “uma sociedade pluralista tanto religiosamente, como política, moral e filosoficamente, onde cada um conta apenas com a força da sua palavra.”

Neste contexto, a tarefa da educação consiste em preparar o homem para ser um cidadão activo e consciente dos problemas vividos por este novo modelo de sociedade. Na óptica ricoeuriana, a educação moderna deve promover o desenvolvimento da autonomia e do espírito crítico e reflexivo das crianças, para que estas possam encontrar um sentido para a resolução das antinomias que o filósofo identifica na sociedade actual.

Ricoeur, na mesma entrevista concedida a Kechikian (1993, p. 71-72) defende que

[p]arece ser tarefa da educação moderna (…) ajudar os indivíduos (…) a dominar com coragem um certo número de antinomias. Comecemos pela antinomia mais simples. É preciso iniciar os indivíduos simultaneamente à solidão e à vida pública (…). Esta primeira polaridade implica imediatamente uma segunda. As pessoas devem ser inseridas numa certa tradição viva. (…) é preciso fornecer (…) o utensílio crítico para escolher. Donde a terceira antinomia é a necessidade de, por um lado, ter convicções e de se manter firme em alguma; e, por outro lado, preservar uma abertura tolerante a outras posições diferentes da sua.”

Na verdade podemos afirmar que a conceção de educação ricoeuriana assenta também numa antinomia: a do desenvolvimento do homem enquanto identidade individual e contextualizado num determinada cultura e a do desenvolvimento do homem enquanto identidade colectiva, cidadão do mundo aberto à diferença e ao diálogo.

Deste modo, a educação deve, tal como refere o filósofo (1997), compor-se de dois momentos distintos e fundamentais: a informação e a discussão. É preciso fornecer às crianças e aos jovens o conhecimento da sua história e da sua cultura, pois só deste modo eles poderão compreender e escolher o legado cultural com que se identificam. Mas é também importante que sejam criadas condições para que os alunos possam desenvolver o seu poder argumentativo, “é preciso preparar as crianças para serem bons discutidores” (RICOEUR, 1997, p. 178).

A noção de educação que Ricoeur nos apresenta é, portanto, a de uma educação de consensos, uma educação que visa iniciar as crianças na sua cultura e fornecer-lhe meios que lhe possibilitam uma leitura crítica do real cultural e a abertura a outras culturas.

Na referida entrevista, o filósofo argumenta que

[s]e conseguimos viver em conjunto apesar de tudo, é porque as nossas múltiplas tradições não podem evitar entrecruzar-se em pontos de cruzamento e provocar os lugares de reencontro (…) Criam também bens comuns. É isto que a educação deve reforça (KECHIKIAN, 1993, p. 71-72).

É a partir desta concepção de educação como reforço de consensos e do carácter dinâmico que Ricoeur atribui à noção de cultura que se torna possível antever na filosofia do autor uma preocupação com a educação para o multiculturalismo.

Correlativamente à concepção do “si”, que se constrói num processo de mediação e na relação dialógica com o outro, Ricoeur defende uma noção de cultura descentrada que, enquanto sistema de relações simbólicas, se interprete e reformule constantemente.

“O simples facto de haver linguagens diferentes é já turbulento e parece indicar também que a história permite figuras históricas coerentes e fechadas dos conjuntos culturais instituídos. (...) A condição humana é tal que a mudança é possível (...) uma tradição cultural não permanece viva se não se recriar incessantemente” (RICOEUR, 1995, p. 296).

A abertura às diversas culturas dá-se através de um processo comunicativo, que, segundo o filósofo deve ser propiciado e trabalhado na educação, “é preciso apresentar às crianças as escolhas fundamentais com imaginação e simpatia. (…) É preciso ousar falar do que divide os contemporâneos para os posicionar face às alternativas” (RICOEUR, 1995, p. 72-73).

Este processo comunicativo não deverá conduzir a uma supressão ou dominação da cultura minoritária pela hegemónica mas a uma “fusão de horizontes”, que enriquecerá cada cultura e conduzirá o homem a uma nova reflexão e a um novo conhecimento sobre si mesmo.

De acordo com o pensamento de Ricoeur a educação multicultural deverá ergue-se sobre pilares axiológicos como a tolerância2 e o respeito pelas diversas culturas. Só através da abertura ao diálogo com os outros e procurando entender as suas razões se poderá encontrar espaços comuns entre culturas, se poderá compreender que todas as culturas têm os mesmos direitos e deverão ter as mesmas oportunidades para se desenvolverem.

Reflexão final

A premente necessidade de conviver e agir pedagogicamente num quadro axiológico e cultural cada vez mais diversificado torna imperativa uma reflexão mais complexa e fundamentada acerca das questões multiculturais e das suas implicações no desenvolvimento do ser humano.

A clarificação desta temática à luz da filosofia ricoeuriana contribuiu decisivamente para a elaboração de uma nova compreensão sobre as questões do multiculturalismo.

Paul Ricoeur alerta-nos para a dimensão essencial e ética que a cultural exerce no desenvolvimento do ser humano, quer como ipseidade, quer como mesmidade. O que nos leva a concluir que negligenciar ou aglutinar a matriz cultural de um determinado indivíduo consiste em desenraizá-lo, desampará-lo do alicerce sólido que, até então, suportou a construção da sua identidade. Na verdade, podemos dizer que é negarlhe a possibilidade de viver com os outros e de construir com eles as instituições justas sob a égide do consenso.

O carácter dinâmico que o filósofo imprime à construção da identidade e a importância que atribui à cultura como fundamento do projecto existencial, também nos adverte para a necessidade e para o dever de cada cultura manter uma relação dialógica com as demais culturas. Uma cultura fechada é obsoleta, intolerante e castradora da liberdade dos indivíduos, na medida em que não oferece a diversidade de caminho possíveis de construção da identidade.

A questão do sujeito e da cultura na filosofia de Ricoeur não se circunscreve ao desejo de um querer algo absolutamente estável e definitivo, pelo contrário, o filósofo preconiza a cultura e o sujeito a partir dos conceitos de abertura e de liberdade, pois só assim se poderá evitar imediatez da consciência narcisista.

Na verdade, podemos afirmar que os traços multiculturais na filosofia ricoeuriana se expressam através do pluralismo cultural que privilegia o diálogo inter e intra culturas.

Referências

KECHIKIAN, Anita. “Paul Ricoeur”. In: ______. Os filósofos da educação. Lisboa: Edições Colibri, 1993. [ Links ]

RICOEUR, Paul. Civilisation universelle et cultures nationales. In: ______. Histoire et verité. Paris: Editions du Seuil, 1955. [ Links ]

______. De l’interprétation. Essais sur Freud. Paris: Editions du Seuil, 1965. [ Links ]

______. Soi même comme un autre. Paris: Editions du Seuil, 1990. [ Links ]

______. O conflito das interpretações. Porto: Rés Editora, 1992. [ Links ]

______. Do texto à acção. Porto: Rés Editora, [s.d.]. [ Links ]

______. A crítica e a convicção. Lisboa: Edições 70, 1997. [ Links ]

______. Historia y narratividad. Barcelona: Ediciones Piados, 1999. [ Links ]

SUMARES, Manuel. O sujeito e a cultura na filosofia de Paul Ricoeur. Lisboa: Ester, 1989. [ Links ]

*Este artigo resulta do aperfeiçoamento de uma comunicação, com mesmo título, apresentada no Congresso Internacional de Filosofia, - Pessoa & sociedade: perspectivas para o Século XXI, que teve lugar em Braga em 2005.

1 Ricoeur, na obra Do texto à acção, define o texto como tudo aquilo que é interpetável.

2Ricoeur entende a tolerância não como aceitação de todas as coisas mas como a abertura e disponibilidade para ouvir e compreender o sentido que os outros atribuem às coisas.

Recebido: 01 de Julho de 2015; Aceito: 18 de Novembro de 2017

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