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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia May/Aug 2017  Epub Mar 09, 2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p1191a1226 

Artigos

Qual herança da modernidade? Uma crítica ao universalismo como critério normativo e projeto cosmopolita

Which heritage of modernity? A critic to universalism as normative criteria and cosmopolitan project

¿Qué herencia de la modernidad? Una crítica al universalismo como criterio normativo y projecto cosmopolita

Leno Francisco Danner* 

*Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do rio Grande do Sul (PUC-RS). Professor de filosofia e sociologia na Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: lenofranciscodanner@gmail.com


Resumo

A cultura europeia moderna possui, na teoria da modernidade de Habermas, duas características especiais e correlatas, secularização das instituições e subjetividade reflexiva, que viabilizariam a constituição de processos de socialização-subjetivação não-etnocêntricos e não-egocêntricos, garantidores do universalismo e instauradores da democracia e dos direitos humanos como o seu cerne. Critico esta posição, acusando-a de apresentar uma cegueira histórico-sociológica e uma romantização do racionalismo que o idealiza e o separa dos processos colonizatórios desenvolvidos desde a Europa, pondo-o como independente em relação a eles, de modo a servir como paradigma avaliativo dos contextos particulares e base para um processo integrativo em nível cosmopolita. Defenderei que o universalismo epistemológico-moral, ao colocar a racionalização como a chave para a maturidade das culturas e para a realização de um projeto cosmopolita, leva diretamente à deslegitimação dos saberes e das práticas mítico-tradicionais, abrindo espaço à modernização travestida de colonização cultural e globalização econômica.

Palavras-chave: Habermas; Modernidade; Racionalismo; Universalismo; Herança

Abstract

according to Habermas’ theory of modernity, European culture has two special and related characteristics, institutional secularization and reflexive subjectivity, which would enable the constitution of processes of non-ethnocentric and non-egocentric socialization-subjetivation, guaranteeing universalism and establishing democracy and human rights as its basis. I criticize habermasian position, accusing it of having a historical-sociological blindness and performing a romanticization of rationalism that idealize and separate it of the colonization process developed since Europe, placing it as independent of economic-cultural colonization, in a way to serve of evaluative paradigm of particular contexts, as basis to a cosmopolitan integrative project. I will defend that epistemological-moral universalism, in the moment it putts the rationalization as key to the maturity of the cultures and of a cosmopolitan integrative project, leads directly to delegitimation of mythical-traditional knowledge and practices, opening a free way to modernization travestied of cultural colonization and economic globalization.

Keywords: Habermas; Modernity; Rationalism; Universalism; Heritage

Resúmen

La cultura europea moderna posee, en la teoría de la modernidad de Habermas, dos características especiales y correlatas, secularización de las instituciones y subjetividad reflexiva, que viabilizarían la constitución de procesos de socialización-subjetivación no-etnocéntricos y no-egocéntricos, garantidores del universalismo e instauradores de la democracia y de los derechos humanos como su núcleo. Critico esta posición, acusándola de poseer una ceguera histórico-sociológica y una romantización del racionalismo que lo idealiza y lo separa de los procesos colonizatorios desarrollados desde Europa, poniéndolo como independiente en relación a ellos, para servir como paradigma evaluativo de los contextos particulares y base para un proceso integrativo a nivel cosmopolita. Defenderé que el universalismo epistemológico-moral, al colocar la racionalización como la clave para la madurez de las culturas y para la realización de un proyecto cosmopolita, lleva directamente a la deslegitimación de los saberes y de las prácticas mítico-tradicionales, abriendo espacio a la modernización travestida de colonización cultural y la globalización económica.

Palabras clave: Habermas; Modernidad; Racionalismo; Universalismo; Herencia

Considerações iniciais

Neste artigo, quero defender dois argumentos concernentes à retomada de um projeto reflexivo de modernidade enquanto paradigma epistemológico-moral e projeto ético-político cosmopolita: (a) de que há uma cegueira histórico-sociológica e uma romantização do racionalismo moderno no que tange ao seu potencial de fundamentação epistemológico-moral universalista e em sua sustentação da modernização enquanto modelo teórico-prático paradigmático; e de que, como consequência, (b) a modernidade é pretensiosa e apressadamente colocada, por causa de sua consciência moral descentrada, como o cerne tanto de um paradigma epistemológico-moral universalista quanto de um projeto ético-político de integração cosmopolita calcado na democracia e nos direitos humanos (que são afirmados como herdeiros dessa mesma modernidade). Dotado dessa capacidade de garantir uma fundamentação universalista das normas, o racionalismo ocidental passaria a servir como guarda-chuva normativo capaz de enquadrar criticamente e de orientar praticamente os contextos particulares, que teriam de seguir o caminho de uma racionalização das normas como condição de sua legitimidade, inclusive levando em conta certos princípios percebidos enquanto possuindo alcance universalista (a democracia e os direitos humanos).

Ora, ao obrigar os contextos particulares a justificarem-se com base na racionalização de suas normas e valores, submetendo-os ao crivo da universalidade, o racionalismo ocidental coloca exatamente a racionalização ou modernização como o critério paradigmático - ele e somente ele - que poderia permitir a justificação objetiva ou formalista das normas, o que serve para, direta ou indiretamente, deslegitimar as visões particularistas de mundo. Trata-se de uma deslegitimação dos contextos axiológicos particulares exatamente pelo fato de que o critério cognitivo - a possibilidade de justificarem universalmente suas normas, racionalizando-as discursivamente - é o cerne para a legitimação epistemológico-moral, o que significa que o ethos da modernidade (descentração, separação entre natureza, cultura e subjetividade) passa a ser afirmado tanto como o critério normativo garantidor da crítica quanto, em consequência, como o modelo sócio-histórico basilar em termos de evolução.

Ora, é aqui que a modernidade perde sua inocência e sua pretensa universalidade: na medida em que pressupõe a superioridade de seu paradigma epistemológico-moral universalista e o coloca como critério normativo ajuizador das particularidades, ela enfatiza exatamente a separação entre natureza, cultura e subjetividade como o cerne da consciência moral, colocando em segundo plano a consciência de mundo mítica. Assim, a crítica e a emancipação seriam detonadas exatamente a partir da consciência moral universalista própria da modernidade ocidental (ou europeia), dificilmente sendo possível a partir das visões míticas de mundo - há, portanto, um modelo superior de racionalidade, especificamente o modelo universalista gestado na modernidade europeia e representado pelo racionalismo ocidental. Isso leva a que a colonização cultural euronorcêntrica e a globalização econômica capitalista possam se utilizar dessa consciência descentrada para defenderem uma necessidade de prossecução totalizante dessa mesma modernização econômico-cultural, percebida como a forma por excelência de progresso, de desenvolvimento e de humanização.

E ela se sustenta, inclusive, no argumento de que uma modernização reflexiva não apenas pode corrigir os déficits da modernização econômico-cultural, internamente às sociedades propriamente modernas e em termos de globalização econômico-cultural, mas também legitimar a continuidade dessa mesma modernização econômico-cultural, tanto como critério epistemológico-moral ajuizador das particularidades quanto como projeto material de integração cosmopolita. Como consequência, também defenderei um terceiro e um quarto argumentos. O terceiro está em que a herança da modernidade consiste na dissociação entre uma concepção idealizada de modernidade enquanto sendo caracterizada pela consciência moral universalista, pela fundamentação epistemológico-moral universalista, a partir da separação entre natureza, cultura e subjetividade, de um lado, e, de outro, pelo aspecto prático da modernização, isto é, pela colonização cultural euronorcêntrica e pela globalização econômica capitalista, que destroem formas alternativas de vida e de produção material, para não se falar do próprio meio ambiente. Geralmente, é esta separação que é pressuposta pelos discursos - como é o caso de Habermas, a ser analisado aqui - defensores de uma retomada do projeto emancipatório da modernidade, ou seja, eles somente podem defender a retomada deste projeto se construírem um modelo idealizado de modernidade, que se diferencia da colonização cultural euronorcêntrica e da globalização econômica capitalista.

Ora, esta herança moderna digna de ser prosseguida mostra apenas a ingenuidade da defesa de uma continuação reflexiva da modernidade seja enquanto paradigma epistemológico-moral universalista, seja como projeto cultural-econômico de integração cosmopolita. Ela mostra também o fato de que o primeiro aspecto da modernização, seu paradigma epistemológico-moral universalista, é incapaz de garantir reflexividade à globalização cultural-econômica, sendo, no mais das vezes, seu bastião normativo. Com isso, o quarto argumento consiste na defesa de que resta à modernidade apenas uma radical crítica interna, que a leva tanto a uma recusa de um paradigma epistemológico-moral universalista quanto a um refreamento da globalização econômico-cultural, na medida em que se reconhece que a modernização é um projeto totalizante, irrefreável e destrutivo das particularidades, exatamente em nome do universalismo epistemológico-moral que embasa a integração econômico-cultural euronorcêntrica em nível global.

A modernidade como projeto inacabado: ou sobre o significado da modernidade

Sob a metáfora da modernidade como projeto inacabado, Jürgen Habermas definia a sua postura de defesa e de afirmação da modernidade enquanto o horizonte normativo e cultural da crítica e da emancipação, calcado exatamente na possibilidade do universalismo epistemológicomoral gerado desde o racionalismo moderno desenvolvido na Europa. Por universalismo epistemológico-moral, Habermas entende a fundamentação objetiva das normas - verdade e moralidade -, ainda que em uma condição de pensamento pós-metafísico. Sua defesa de um conceito cético, mas não derrotista de razão apontaria para essa possibilidade de, em um contexto eminentemente moderno de mundo (marcado pela queda das fundamentações metafísico-teológicas), fundamentar-se de maneira universalista essas mesmas normas, garantindo a crítica social e individual e, como consequência, projetos ético-políticos globais (HABERMAS, 1990; 1991; 1993). Uma visão idealizada da modernidade, portanto, baseada no universalismo epistemológico-moral, serviria, no caso de Habermas, para, em um sentido, contrapor-se ao conservadorismo político-cultural, fundado na afirmação do passado tradicional como sustentáculo da cultura, da política, da sociedade - passado tradicional que teria sido destruído pela modernização cultural-econômica. Em outro sentido, essa mesma visão idealizada da modernidade permitiria o enfrentamento das teorias céticas no que tange à possibilidade daquela fundamentação universalista, que percebem a modernidade como problema, e não como solução para os impasses teórico-práticos que nos afetam, sendo incapaz de garantir o universalismo que almeja. Em Habermas, portanto, a modernidade, com seu universalismo epistemológico-moral, serve como fundamento normativo e, assim, tábua de salvação seja para um projeto teórico crítico, seja para um modelo de integração material, sociocultural e ético-político.

Ora, por que a modernidade é um paradigma epistemológico-moral importante? Exatamente pelo fato de que, para Habermas, somente uma fundamentação epistemológico-moral formalista, procedimental e universalista, como a que é possibilitada pela modernidade, poderia fornecer um critério normativo para a crítica e para a construção de valores objetivos - um argumento já clássico na filosofia e na teologia de matiz ocidental. Fiel, nesse aspecto, à tradição filosófica ocidental iniciada na Grécia com Platão e desenvolvida na modernidade por Kant (universalidade como condição da particularidade), Habermas coloca o universalismo epistemológico-moral, em sua tentativa de fundamentação objetiva dos valores, como condição da crítica, da normatividade. Sinteticamente, se não há valores universalistas, então o relativismo epistemológico-moral hegemônico conduz exatamente ao ceticismo, de modo que torna-se impossível ajuizar objetivamente os valores e as práticas dos contextos particulares; se não há normatividade na ciência, então o conhecimento reduz-se ao positivismo; logo, em um e em outro caso, não é possível a crítica, posto que não há justificação. Nesse sentido, uma teoria social crítica - que é o verdadeiro objetivo da teoria da modernidade de Habermas - precisa comprometer-se com o universalismo epistemológico-moral para encontrar uma concepção de normatividade social que lhe permita oferecer um aguilhão crítico aos diagnósticos do presente, bem como uma base programática para pensar-se projetos ético-políticos globais. Ora, a retomada e mesmo a reformulação da modernidade, no entender de Habermas, permitem a construção desse projeto crítico-integrativo.

Mas por que a modernidade possibilita o universalismo epistemológico-moral? Essa resposta Habermas nos dá em Teoria do Agir Comunicativo, a partir da sua análise da estruturação da visão de mundo moderna e da estruturação das visões de mundo míticas. Primeiramente, por visão moderna de mundo, Habermas quer significar a cultura europeia gestada a partir da época moderna - quando fala em modernidade, é à cultura europeia que Habermas está se referindo (HABERMAS, 2012). Entre outras características, a cultura europeia moderna pode ser caracterizada como uma visão de mundo descentrada, isto é, na qual há uma separação entre natureza ou mundo objetivo, cultura ou sociedade e subjetividade. Nela, portanto, a evolução social e a autoconstituição individual não estão subsumidas pelo mundo natural e nem justificadas de maneira religioso-metafísica ou mítico-tradicional. Aquela separação, ao contrário, leva a que sejam necessárias razões para a justificação das normas e das práticas. Aqui está, por conseguinte, a íntima conexão que Habermas estabelece entre a cultura moderna e a racionalidade: somente por meio do processo de racionalização discursiva é que se pode legitimar normas e práticas vinculantes socialmente, o que implica na necessidade da participação de todos os indivíduos e grupos constituintes da sociedade em questão. Na cultura europeia moderna, não mais um modelo metafísico-teológico garante a justificação epistemológico-moral, senão que esta mesma legitimação somente acontece por meio do consenso dialógico, da racionalização discursiva (HABERMAS, 2002).

Habermas utiliza o termo linguistificação do sagrado no intuito de defender que, na consciência europeia moderna, a legitimação da evolução social e dos processos de subjetivação acontecem com base na racionalização discursiva das normas e dos valores, dos fundamentos socioculturais em que os indivíduos e os grupos emergem (HABERMAS, 2012) como consequência, não há um fundamento absoluto (de origem metafísico-teológica) e prévio à justificação e à legitimação, senão que elas dependem do próprio processo de racionalização discursiva entabulado pelos indivíduos e grupos sociais. Ora, aqui é que aparece o aspecto revolucionário e emancipatório da cultura moderna: trata-se da correlação entre a secularização das normas e das práticas e a forte noção de subjetividade reflexiva que, se por um lado retiram toda a autoridade interna às instituições enquanto bastando-se a si mesmas em termos de fundamentação, por outro lado colocam a fonte normativa desta mesma autoridade institucional no próprio processo cooperativo-discursivo realizado pelos indivíduos e grupos no que tange à legitimação das práticas e dos valores. São esses indivíduos e grupos que significam e, portanto, legitimam as práticas e os valores, e não as instituições. Daqueles provém a normatividade a partir da qual estas são organizadas e se orientam em seus processos de socialização e de subjetivação (HABERMAS, 2012).

Nas visões míticas de mundo, ao contrário, há uma estreita imbricação entre natureza ou mundo objetivo, cultura ou sociedade e subjetividade, de modo que tanto a evolução social quanto os processos de subjetivação são retirados do controle grupal e individual, ficando determinados seja pela natureza, à qual não se pode controlar, seja pelas divindades (que também não podem ser dominadas) - natureza e divindade são, no máximo, acessíveis por meio da magia. Nesse sentido, as sociedades de cunho mítico não possuem evolução social, porque não possuem aquela correlação entre a secularização das instituições (e da sociedade e da cultura) e um princípio forte de subjetividade reflexiva. Como não há nem a historicização da sociedade-cultura (que, por causa daquela férrea independência, permanecem naturalizadas, isto é, presas à dinâmica natural totalizante e incontrolada) e nem a afirmação da liberdade individual, a justificação e, portanto, a responsabilidade social não existem: no primeiro caso, a dinâmica social e a autoridade se escoram em bases míticas, não acessíveis, a não ser indiretamente, à coletividade (por meio de suas elites religiosas ou políticas); no segundo caso, não há subjetividade em sentido estrito, posto que os indivíduos estão presos ao horizonte em que emergem, de modo que também não se pode falar de responsabilidade individual. Como consequência, não há crítica e nem transformação sociocultural nas sociedades míticas (HABERMAS, 2012).

Assim, acredita Habermas, a cultura europeia moderna, por causa de sua descentração (separação entre natureza, cultura e subjetividade) consegue gerar ações racionais, o que dificilmente é o caso das sociedades míticas. A cultura europeia moderna possibilita ações racionais pelo fato de que, ao separar as esferas da natureza, da cultura/sociedade e da individualidade, retira o poder das concepções míticas ou metafísicoteológicas de fundamentarem as normas e os valores, a evolução social e os processos de individuação, levando a que a legitimação dessas esferas dependa do grau de cooperação e de discursividade dos indivíduos e dos grupos sociais entre si. Note-se que a racionalidade de que fala Habermas consiste exatamente, quando se fala em legitimação das práticas e das normas, na orientação pelo entendimento, pela dialogicidade enquanto condição desta legitimação, uma situação que é possibilitada exatamente pela descentração das imagens de mundo próprias da cultura europeia moderna. Na falta de deuses e de mitos, a única forma de sustentação das normas e dos valores é a razão comunicativa, que os leva a alcançarem regras epistemológico-morais e práticas de alcance universalista - isto é agir racionalmente (HABERMAS, 2012).

Isso torna a cultura europeia moderna, como já disse acima en passant, altamente reflexiva e geradora de reflexividade social e individual. A secularização da cultura e a força da subjetividade reflexiva, enquanto polos ferreamente imbricados, impõem, por um lado, uma desconstrução avassaladora das fundamentações metafísico-teológicas e da autoridade dali originada, mas, por outro lado, historicizando a sociedade-cultura e submetendo-a à dinâmica da subjetividade reflexiva, garantem um processo correlato de socialização e de subjetivação que é marcado pela crítica e pelo aprendizado individual e social, garantidores da evolução sociocultural. Na sociedade europeia moderna, portanto, pode-se aprender e transformar as instituições, as práticas e os valores, pois todos eles, devido à sua historicidade, podem ser criticados e submetidos a reformulações. Com isso, acredita Habermas, a descentração e a racionalização são as condições básicas para uma sociedade emancipada, posto que, ao separar natureza, cultura e subjetividade, ao historicizar a cultura-sociedade e ao levar à consolidação de um conceito forte de subjetividade reflexiva, coloca-se por terra toda e qualquer espécie de fundamentação institucional que não esteja submetida ao controle dos indivíduos e dos grupos (HABERMAS, 2012). Por outras palavras, a modernidade europeia ensinou que a fundamentação é uma questão dos próprios indivíduos e grupos, a partir de sua racionalização discursiva.

Mas a modernidade europeia ensinou algo ainda mais importante no que tange à questão da fundamentação das normas e das práticas, mesmo depois da desconstrução das posições metafísico-teológicas de mundo (estou utilizando o termo concepção metafísico-teológica como significando uma fundamentação objetiva, forte, dos valores epistemológico-morais, que teriam alcance universal não obstante a localização histórico-cultural das sociedades e, na verdade, enquanto se constituindo como juízes dos contextos particulares). A modernidade europeia, portanto, mostrou que é possível a fundamentação epistemológico-moral universalista em uma época pós-metafísica - ou, de todo modo, sua retomada por Habermas pretende defender exatamente isso. Tal posição de Habermas, de que há uma conexão entre a cultura europeia moderna e a fundamentação epistemológico-moral universalista escora-se exatamente naqueles dois pressupostos básicos da consciência descentrada que é própria dessa mesma Europa, a saber, a secularização das instituições e a afirmação da subjetividade reflexiva. Secularização e subjetividade, de um lado, implicam em que a autoridade metafísico-teológica não seja mais reconhecida como o substrato das normas e das práticas, das instituições, da cultura, do poder, da vida individual, etc. Por outro, levam a que o processo de legitimação institucional e sociocultural seja assumido conscientemente pelos próprios indivíduos e grupos. Estes, na falta daquela escora metafísico-teológica, necessitam criar procedimentos imparciais de legitimação que levem em conta todos os envolvidos, de modo que daqui adviria a garantia de objetividade das normas.

Assim, a modernidade europeia sustenta uma fundamentação universalista das normas porque coloca a racionalidade comunicativa como base dessa universalização, isto é, o procedimento de discussão, a formalização e a imparcialidade, a partir da pressuposição seja da separação entre natureza, cultura e individualidade, seja da secularização ou historicização das instituições e da noção forte de subjetividade reflexiva. Os indivíduos europeus modernos, calcados no fato de que a cultura europeia é descentrada, conseguem formalizar a fundamentação das normas, ou seja, pensá-las sem a escora da religião ou da metafísica, de modo não-egocêntrico e não-etnocêntrico, alcançando, assim, sua imparcialidade, sua universalidade, por meio do próprio diálogo e do acordo dali adveniente, baseado em razões justificáveis discursivamente (HABERMAS, 2004, 2012; HONNET, 2007; FORST, 2007).

A universalidade das normas e das práticas, por parte da modernidade, é conseguida pelo procedimento de racionalização discursiva dos valores. A consciência moderna de mundo, descentrada, leva em conta exatamente uma postura não-egocêntrica e não-etnocêntrica, formalista em relação à cultura, à religião e, enfim, ao próprio contexto. Ora, que valores poderiam ser pensados a partir disso? Segundo Habermas, a democracia e os direitos humanos - estes seriam o resultado do processo de modernização cultural detonado desde a Europa, seja enquanto projeto interno a essa mesma modernidade, seja enquanto ideal ético-político cosmopolita (HABERMAS, 2002; 2003). Democracia e direitos humanos, enquanto valores universalistas, partem da afirmação de princípios-meta, formalistas o suficiente para servirem como guarda-chuva normativo para avaliar-se diferentes contextos, bem como para serem utilizados para a organização desses diferentes contextos - mormente quando se fala em direitos humanos. Estes são resultado de uma visão de mundo descentrada e racionalizada, marcada pela secularização e pela afirmação da subjetividade reflexiva enquanto bases da formulação das normas e das práticas. Sua generalidade, calcada nesses dois princípios, lhes permite ultrapassarem o horizonte moderno em que surgiram e, dado seu formalismo, servirem como paradigma epistemológico-moral e escora normativa para a afirmação de um projeto ético-político emancipatório fundado na defesa e na retomada de um modelo reflexivo de modernidade (HABERMAS, 2002). O que torna especiais a democracia e os direitos humanos, enquanto herdeiros do universalismo epistemológico-moral moderno, é sua característica não-egocêntrica e não-etnocêntrica, sua sensibilidade às diferenças, característica básica da visão de mundo descentrada gestada na modernidade europeia. Isso garantiria legitimidade à reafirmação da modernidade enquanto projeto emancipatório-integrativo.

Assim, a retomada da modernidade pode servir como suporte para a defesa de um projeto ético-político emancipatório de cunho universalista, na medida em que é seu conteúdo normativo calcado na relação entre secularização e subjetividade reflexiva que permite a crítica social e, assim, a emancipação em relação aos problemas socioculturais próprios das sociedades modernas e mais além. Em primeiro lugar, portanto, a retomada dessa ideal universalista de modernidade possibilita a correta avaliação das patologias culturais e econômicas originadas a partir da colonização cultural euronorcêntrica e da globalização econômica capitalista. Nesse quesito, tal conceito normativo de modernidade, de universalismo epistemológico-moral, garante, no entender de Habermas, uma fecunda crítica interna aos aspectos destrutivos da modernização econômico-cultural - passando da crítica à economia para a crítica da cultura e da política. Em segundo lugar, permite, por meio da defesa da democracia e dos direitos humanos (em particular dos direitos humanos), a afirmação de um ideal ético-político cosmopolita que sirva de fundamento normativo para o enquadramento, a avaliação crítica dos contextos particulares e, se necessário, de sua intervenção. Note-se, em relação a isso, que é exatamente esse modelo normativo de modernidade, calcado no universalismo epistemológico-moral possibilitado pela intersecção entre secularização e subjetividade reflexiva, que traz autorreflexividade para dentro da modernidade, tornando-a consciente de seus problemas e de suas potencialidades, mas que também a expande, dotando-a de condições de formular discursos e práticas de alcance cosmopolita. Ou seja, esse modelo normativo de modernidade, calcado no universalismo epistemológico-moral, institui o âmbito cosmopolita e se responsabiliza por ele, na medida em que oferece o paradigma para sua avaliação crítica e para seu enquadramento ético-político (HABERMAS, 2002). Assim, uma modernidade reflexiva teria condições de resolver seus déficits e, assim, sustentar o projeto ético-político cosmopolita de que falei acima, especialmente em um contexto já globalizado.

Cegueira histórico-sociológica e romantização da modernidade

A teoria da modernidade de Habermas, calcada na reafirmação do racionalismo ocidental em sua pretensão de fundamentação epistemológico-moral universalista, sofre de dois problemas importantes que, no meu entender, põem em xeque a possibilidade de essa mesma modernidade servir como paradigma e como projeto integrador. Chamarei estes dois problemas - de resto imbricados - de cegueira histórico-sociológica e de romantização do racionalismo. No que se segue, procurarei explicá-los e, a partir disso, pensar algumas consequências do próprio fenômeno da modernização enquanto tendência totalizante respaldada exatamente pela afirmação da superioridade do paradigma epistemológico-moral racionalista no que tange a sustentar uma consciência moral universalista, descentrada, não-egocêntrica e não-etnocêntrica, diferentemente da consciência de mundo mítica. Conforme penso, é exatamente o universalismo epistemológico-moral que serve como substrato para a deslegitimação teórico-prática das práticas e dos valores de outras culturas, servindo, direta ou indiretamente, como escora da colonização cultural e da globalização econômica. Com isso, o próprio sentido dado à democracia e aos direitos humanos deveria ser repensado, ou seja, em primeira mão eles deveriam representar apenas uma crítica interna à modernidade, exigindo a moderação de sua pretensão universalista - a tendência totalizante da modernização é que se constitui, hoje, no maior perigo para a existência das diferenças, para a estabilidade mundial e para o equilíbrio ecológico.

Na teoria da modernidade de Habermas, como de resto em muitos defensores da modernidade enquanto paradigma epistemológico-moral universalista digno de ser resgatado como base de um projeto emancipatório (por exemplo, Axel Honneth e Rainer Forst, que não tratarei aqui), há uma dissociação explícita entre um modelo idealizado de modernidade e a Realpolitik da modernização. De um lado, portanto, há uma concepção normativa de modernidade caracterizada pelo universalismo epistemológico-moral, pela secularização das instituições e pela subjetividade reflexiva, pela consciência descentrada, não egocêntrica e não-etnocêntrica, pela separação entre natureza, cultura e subjetividade. De outro, há o fenômeno da modernização econômico-social capitalista em seu caminho globalizante (já consolidado, inclusive) e da colonização cultural euronorcêntrica, que destruiu e destrói sem misericórdia as culturas e os valores arcaicos.

No primeiro caso, aparece o aspecto claramente emancipatório da modernidade, representado por essa consciência moral universalista: ela geraria e sustentaria uma concepção objetiva de normatividade social que lhe permitiria - e aos grupos sociais portadores de interesses universalistas ou emancipatórios que agem em nome dessa mesma modernidade - a crítica social, política, cultural, econômica, etc., correlatamente à legitimação de práticas emancipatórias por eles encampadas. Ainda neste primeiro caso, haveria a defesa e a promoção de todas as diferenças ameaçadas pelo rolo compressor da colonização cultural e da modernização econômica. No segundo caso, teríamos a tendência totalizante e autonomizada (em relação ao controle democrático e ao enquadramento normativo) da economia capitalista e do Estado burocrático-administrativo, bem como da própria colonização cultural, que seguiu as orientações do contexto euronorcêntrico como forma de legitimação do capitalismo e do ideal de civilização metropolitana em sua marcha global (e intrinsecamente imbricada). A riqueza da modernidade estaria naquele primeiro aspecto; sua tragédia, no segundo.

Pois bem, é assim que Habermas incorre, com essa sua separação entre um modelo normativo de modernidade (universalismo epistemológico-moral) e a Realpolitik da modernização (colonização cultural e globalização econômica euronorcêntricas), em uma cegueira históricosociológica da modernização, na medida em que, ao realizar tal separação, pode, por um lado, defender o universalismo epistemológico-moral moderno como paradigma crítico-normativo e, por outro, acreditar que esse mesmo paradigma poderia garantir reflexividade e, portanto, moderação à colonização cultural e à globalização econômica. A cegueira histórico-sociológica em relação à modernização leva a que essa separação permita uma retomada e uma renovação da modernidade não obstante as patologias geradas em termos de modernização, que encontram seu sentido na afirmação da superioridade de uma visão universalista de mundo em relação às visões particularistas.

A civilização da razão é o corolário dos projetos integrativos cosmopolitas, culturais, políticos e mesmo econômicos. E a civilização da razão também é o baluarte, o fundamento normativo, das intervenções humanistas. Ora, o que isto pode nos dizer? Exatamente que o universalismo epistemológico-moral deve prosseguir em nível global, posto que seu formalismo e sua descentração (sua capacidade de colocar-se no lugar dos outros, de levar em conta os interesses dos outros - não-egocentrismo e não-etnocentrismo) são superiores àquelas posições arcaicas. Estas, por estarem presas ao horizonte natural ou religioso-cultural em que emergem (lembre-se que a separação entre natureza, cultura e subjetividade dá a capacidade ao homem moderno de fundamentar e de agir moralmente sem referência à cultura e à religião), agem de maneira egocêntrica e etnocêntrica, fundamentalista por assim dizer, de modo que atacam diretamente os valores universalistas de um modo geral, os direitos humanos em particular.

Como se pode perceber aqui, trata-se da retórica básica quando se trata da defesa do universalismo epistemológico-moral, da prossecução da globalização e da modernização cultural de um modo geral. Com efeito, a modernização ocidental passou a ser a base paradigmática de qualquer projeto global de integração, pelo fato de que, antes disso, se consolidou como modelo normativo hegemônico quando da comparação com as concepções míticas ou tradicionais de mundo: a superioridade deste modelo teórico-normativo, por causa da pressuposição de sua capacidade de universalização, torna a consciência de mundo míticotradicional não apenas incapaz de sustentar esta mesma integração, mas também de pensar formal e universalmente e, então, de poder arbitrar praticamente sobre disputas de valores. A acusação é sempre a mesma: as visões mítico-tradicionais, presas ao contexto de que emergem, não conseguem colocar-se no lugar dos outros, racionalizando seus fundamentos e suas justificativas (sempre presos à sua base religioso-cultural), de modo que não podem garantir esses valores universalistas. Logo, não podem decidir sobre eles e, na verdade, necessitam curvar-se a eles.

Parece exagero de minha parte, mas isso pode ser percebido na afirmação, por Habermas, de que o critério cognitivo poderia servir de base para a avaliação da capacidade de racionalidade das visões de mundo as mais diversas, mormente das visões mítico-tradicionais de mundo. Com efeito, o referido pensador é enfático ao afirmar que a superioridade de uma cultura e das culturas entre si pode ser avaliada a partir da sua capacidade de racionalizarem a fundamentação das normas e das práticas, ou seja, a partir do grau em que conseguem justificar discursiva e universalmente suas práticas e normas (HABERMAS, 2012). Quando mais uma cultura consegue fundamentar de maneira formalista seus valores (sem o recurso ao mito, à religião, à cultura nativa), mais eles tornam-se universalizáveis, mais eles tornam-se maduros, reflexivos. Ou seja, quando mais universalista é a justificação dada por uma visão de mundo, mais ela se aproxima do modelo europeu moderno, racionalista. Quando mais incapaz de, na fundamentação das normas, desprender-se do seu contexto religioso-cultural ou mítico, mais arcaica ou inferior é a cultura em questão (pelo menos no que tange à capacidade de descentração, que é o critério de maturidade e de emancipação cultural pressuposto por Habermas como superior). Sociedades podem ser mais ou menos racionais, internamente a si mesmas. Depende do grau de formalização, de descentração e, portanto, de racionalização das normas que elas conseguem atingir, possibilitando - ou não - uma consciência moral universalista ao estilo da representada pela modernidade europeia (que foi o modelo da colonização econômico-cultural, que ainda o é). A ideia de civilização, não por acaso, se confunde com a própria noção de uma cultura universalista: ela foi e é a justificação básica da colonização. Enfim, quando se fala em maturidade sociocultural, fala-se em visão de mundo universalista.

É por isso que Habermas coloca a descentração como uma tendência evolutiva histórico-universal que todas as culturas, se tivessem a oportunidade de enveredarem pelo caminho da modernização europeia moderna (pelo menos no aspecto do desencantamento das imagens míticas e metafísico-religiosas de mundo), adquiririam com mais ou menos intensidade. Ou seja, se elas se modernizassem naquele aspecto, elas gerariam, em seu seio, uma consciência moral universalista enquanto base dos processos de socialização e de subjetivação ali gestados e dinamizados.

A posição universalista não precisa negar o pluralismo [...], mas percebe que essa multiplicidade de formas de vida está restrita aos conteúdos culturais e afirma que toda cultura, se for o caso de alcançar certo grau de ‘conscientização’ ou de ‘sublimação’, teria de compartilhar certas qualidades formais da compreensão de mundo moderna. A assunção universalista refere-se, portanto, a algumas características estruturais e necessárias próprias a mundos da vida modernos (HABERMAS, 2012, p. 326).

Note-se que Habermas está afirmando que, no caso de uma cultura enveredar pelo caminho do desencantamento do mundo, isto é, consolidar internamente, a pouco e pouco, a secularização das instituições e a subjetividade reflexiva, ela instaurará estruturas de consciência descentradas, formalistas, possibilitando exatamente o universalismo moral. Isso, em primeiro lugar, daria razão à modernidade e, consequentemente, ao seu projeto epistemológico-moral universalista; em segundo lugar, tornaria legítimos os esforços teórico-práticos no sentido da integração, colocando a modernização como o padrão civilizacional que, pelo menos em vários aspectos pontuais (descentração, secularização, subjetivação), seria racional e mereceria ser implantado praticamente. Por fim, em terceiro lugar, respaldaria a afirmação habermasiana de que seria possível mensurar o grau de maturidade e de evolução de uma dada cultura a partir da sua capacidade de racionalizar a fundamentação das normas e das práticas, a partir de sua capacidade de justificar universalmente essas mesmas normas e práticas.

A pressuposição habermasiana de fundo, portanto, consiste em que todas as culturas apresentam ou podem apresentar, em sua dinâmica interna, pretensões cognitivas universalistas, na medida em que a validade de suas normas sempre se remete à objetividade que as sustenta, a um fundamento forte, por assim dizer: socialização e subjetivação sempre acontecem, em qualquer cultura que for, por meio de sua vinculação às normas objetivas, escoradas em algum fundamento religioso, cultural ou institucional. E essa escora objetiva ou universalista acontece com base em razões, pressupõe justificação (ainda que uma justificação mítica, religiosa, cultural) - o que mostra que, em sua estrutura interna, qualquer cultura tende a gerar, com sua evolução, certo processo de racionalização que a leva à necessidade de oferecer argumentos para sua validade e, aos poucos, aceitar argumentos críticos provindos dos indivíduos e dos grupos, modificando, em algum aspecto, sua base anterior. Ora, na medida em que se avança a miscigenação cultural ou, pelo menos, no momento em que as culturas entram em choque, tais justificações, também em confronto, exigem o ponto de vista imparcial e universalista como forma de resolução dos problemas e proposição de ações, favorecendo o fortalecimento dos processos de racionalização sociocultural e, com isso, as fundamentações universalistas. A globalização consolidada, desse modo, torna a racionalização comunicativa e o universalismo epistemológicomoral elementos inultrapassáveis da sociabilidade contemporânea, ou seja, torna basilar o elemento normativo da modernidade como forma de paradigma epistemológico-moral e de integração material.

Com isso, seguindo a posição de Habermas, é possível entender-se o sentido em que este fundamento cognitivo - a capacidade de racionalização discursiva e de justificação universalista das normas e das práticas - passa a ser colocado como base para a avaliação crítica e o enquadramento das culturas particulares. Elas, em certo sentido, possuem uma estrutura de justificação da autoridade que pressupõe pelo menos um mínimo de racionalização comunicativa (algo que a cultura europeia moderna possui em abundância), na medida em que necessitam repassar tais fundamentos, valores e práticas como os mais condizentes seja com certo ideal de sociedade/comunidade, de individualidade ou conduta individual, seja com certo padrão mítico-tradicional ou religioso-metafísico. As culturas, por conseguinte, pressupõem que seus processos de socialização e de subjetivação acontecem com base em fundamentos legitimados intersubjetivamente, escorados em (e dinamizados por) algum tipo de justificativa ou razão, o que os torna válidos, tendo-os de repassarem (por meio de tradições, figuras religiosas, práticas de iniciação e instituições) coletivamente como as bases vinculantes a partir das quais as vidas social e individual, eminentemente imbricadas, transcorrem. Aqui está, portanto, a estrutura comunicativa, racional, que constitui todas as culturas com mais ou menos intensidade: todas elas somente justificam seus princípios internos, sua autoridade institucional e a validade de seus valores por meio da inculcação cotidiana em termos de processos de socialização e de subjetivação, ou seja, por meio da linguagem.

Com isso, as culturas permitem um mínimo de racionalização dessas mesmas práticas e desses mesmos princípios. E essa racionalização mostraria o grau de universalidade alcançado efetivamente pela justificação das regras e das práticas de cada cultura em particular. Permitiria, como consequência, a comparação entre diferentes valores de diferentes culturas, no sentido de mensurar-se sua racionalidade, que é sempre determinada a partir do grau de descentração, de formalismo e, assim, de universalidade alcançado. Nesse quesito, o universalismo epistemológico-moral garantiria a avaliação crítica e o enquadramento dos valores particulares, tanto pela pressuposição da estrutura comunicativa da validação das normas interiormente a cada cultura (estrutura essa desenvolvida em graus maiores ou menores, dependendo de cada cultura) quanto, como consequência, pela afirmação de certos princípios universais mínimos que, sob a forma de valores, permitiriam o ajuizamento dos contextos particulares (é o caso dos direitos humanos, mas também da democracia).

Ora, temos aqui o triunfo da modernização, da cultura moderna sob a forma de universalismo epistemológico-moral. Este triunfo possui um duplo aspecto, já comentado acima em termos de interpretação da teoria da modernidade de Habermas: de um lado, a possibilidade de se avaliar o grau de racionalidade, de justificação formalista e, assim, de maturidade (secularização e liberdade individual) de cada cultura a partir de um paradigma objetivo que concebe a existência de, por assim dizer, estruturas comuns às culturas particulares; de outro lado, a viabilidade do enquadramento dos contextos particulares a partir da afirmação de princípios axiológicos comuns dotados de suficiente universalidade para o ajuizamento e a intervenção nos contextos particulares. Dá-se, com isso, razão e legitimidade à modernização, na medida em que é exatamente a modernização da cultura que se constitui no processo histórico-evolutivo modelar quando se pensa em maturidade cultural e paradigma epistemológico-moral universalista. Note-se que não é por mero acaso que a modernidade é alçada a esse status de paradigma epistemológico-moral universalista. Isso acontece pelo fato que ela representa o apogeu no que diz respeito ao processo de descentração e, assim, como oferecendo efetivamente um paradigma epistemológico-moral universalista garantidor da fundamentação objetiva das normas. A modernidade oferece o padrão normativo para a avaliação de todos os contextos particulares pelo fato de que, nela, uma consciência epistemológico-moral universalista, calcada na secularização e na liberdade individual, representa a culminação de um processo de desenvolvimento sociocultural maduro, efetivamente marcado pelo universalismo - este é o resultado final, por assim dizer, a que os processos evolutivos das sociedades alcançariam, com mais ou menos tempo. Somente essa compreensão de modernidade, afirmada como maturação do desenvolvimento sociocultural marcado pela secularização e pela liberdade, legitima o universalismo epistemológico-moral moderno a servir como padrão normativo e projeto integrador universalistas.

A cegueira histórico-sociológica em relação à dissociação entre este ideal normativo de modernidade e a Realpolitik da modernização econômico-cultural euronorcêntrica salta aos olhos com essa sobrevalorização da modernidade enquanto ápice de uma tendência histórico-evolutiva global e modelar: em algum momento histórico, as culturas mítico-tradicionais ou deixarão de existir, na medida em que modernizam-se, ou simplesmente transformar-se-ão, ainda que minimamente, em termos de secularização e de liberdade individual, alcançando estruturas de consciência descentradas, formalistas, de amplidão universalista, substituindo formas de legitimação tradicionais e práticas sociais/individuais arcaicas pela legitimação procedimentalista e pela reflexividade próprias aos valores modernos. Com isso, aparece de maneira explícita (como o próprio Habermas reconhece, ainda que com todos os cuidados), a superioridade da cultura europeia moderna, descentrada, e do universalismo epistemológico-moral dali originado, seja enquanto padrão normativo, seja enquanto base de um projeto integrador.

Tal visão idealizada da modernidade, enquanto sustentando a formulação de um paradigma epistemológico-moral universalista e, a partir dele, de um projeto integrativo em nível cosmopolita, leva à romantização do racionalismo enquanto o baluarte da crítica e a tábua de salvação quando se pensa em um projeto emancipatório que bebe exatamente no universalismo como condição da normatividade social necessária seja à ciência, seja à política. Da cegueira histórico-sociológica acima comentada, que separa aquele ideal normativo de modernidade em relação à Realpolitik da modernização econômico-cultural, chega-se à romantização desse mesmo racionalismo ocidental enquanto estrutura de consciência superior, porque descentrada, formalista, secularizada, capaz de gerar práticas vitais e ações valorativas de cunho universalista, não-egocêntricas e não-etnocêntricas. Nesse sentido, o racionalismo ocidental, dada essa sua tendência à universalidade, bem como sua postura descentrada (separação entre natureza, cultura e individualidade), possibilita, no entender de Habermas, o trato equitativo para com a diferença, sua proteção e fomento, ao mesmo tempo em que permite o enquadramento seja da das patologias da modernidade, seja, por outro lado, de um projeto de integração que possa salvar a realidade global da bancarrota causada em termos de globalização econômico-cultural dinamizada desde o horizonte euronorcêntrico. E o racionalismo ocidental, com seu paradigma epistemológico-moral universalista, permitiria um último passo, talvez seu passo mais pretensioso: o de avaliar criticamente e o de ajuizar praticamente as sociedades tradicionais, fundamentalistas, dada a superioridade da visão de mundo racionalizada da modernidade europeia. O racionalismo ocidental, por conseguinte, ao possibilitar o universalismo epistemológico-moral, teria uma função salvífica, pelo fato de que permitiria a reflexivização dessa mesma modernização, que passaria a ser avaliada por seus efeitos benéficos e por seus efeitos maléficos, internamente a si mesma e no próprio horizonte global, mas tudo isso sem abandonar a modernização, enquanto paradigma epistemológico-moral universalista e projeto ético-político integrativo em âmbito cosmopolita. Com isso, ela seria elevada a paradigma normativo e modelo sociocultural para o ajuizamento e a intervenção internamente a si mesma e externamente, inclusive no horizonte que ainda lhe está fora. A última fronteira da modernidade, nesse quesito, é o fundamentalismo (nome este dado desde a modernidade, não por acaso possuindo o radical fundamento ou fundamentação!).

Qual a herança/tarefa da modernidade?

O que as reflexões anteriores têm a ver com a questão dos direitos humanos e mesmo com a ideia de democracia? É que, conforme comentado en passant acima, direitos humanos e democracia são a herança da modernidade, no entender de Habermas - pelo menos a herança que merece ser enfatizada no que tange à retomada de um projeto emancipatório calcado na reafirmação do universalismo epistemológico-moral. Direitos humanos e democracia ofereceriam a escora normativa capaz de sustentar o ajuizamento crítico em relação à modernização e até aos contextos particulares situados mais além da modernização. Essa, inclusive, seria a tarefa de um projeto emancipatório dinamizado a partir da reapropriação da modernidade, isto é, efetivar universalmente a democracia e os direitos humanos enquanto base dos processos de socialização e de subjetivação, levando em conta, como acredita Habermas, o próprio pluralismo religioso-cultural reinante nesses mesmos contextos. Direitos humanos e democracia, enfim, dariam o tom dos posicionamentos teórico-práticos relativos à globalização econômico-cultural, orientando-a e tornando-a reflexiva, minimizando ou mesmo eliminando seus efeitos destrutivos.

Ora, quero argumentar que esta tarefa reflexivo-integrativa em nível cosmopolita é uma exigência impossível de a modernidade cumprir, haja vista que sua tendência à racionalização constitui-se no principal baluarte dos projetos colonizatórios e na afirmação do progresso e do desenvolvimento capitalista como o padrão societal a partir do qual a globalização deve ser orientada. Meu argumento, portanto, está em que a exigência de universalização das normas como condição de sua validade é um golpe direto às visões de mundo mítico-tradicionais, levando-as à completa deslegitimação enquanto modelos epistemológico-morais legítimos e alternativos em relação à colonização cultural e à globalização euronorcêntrica. Nesse sentido, o racionalismo ocidental, com sua tendência à racionalização discursiva e à universalização da fundamentação, e a cultura descentrada moderna como seu arcabouço societal, solapam a integridade e retiram a legitimidade das sociedades mítico-tradicionais na medida em que lhes exigem exatamente a racionalização como condição da validade, do cosmopolitismo, da globalização. A modernidade ocidental, na medida em que assim o faz, solidifica uma compreensão dessas mesmas culturas mítico-tradicionais como sendo mundos fechados à evolução (e aos direitos) e fundamentalistas (em um sentido negativo), abrindo-se espaço ao enquadramento normativo e até à intervenção com base em valores pretensamente universalistas. Não obstante suas boas intenções, o racionalismo ocidental, em seu projeto universalista, serve como ponta-de-lança no que tange à defesa e à promoção da modernização como o paradigma normativo por excelência para o enquadramento crítico e como a melhor alternativa sociocultural para a integração mundial.

Meu primeiro argumento, em relação ao efeito destrutivo e mesmo preconceituoso do racionalismo ocidental em relação às culturas mítico-tradicionais consiste exatamente na colocação da racionalização da fundamentação como o critério básico para a validade das normas e das práticas. Como disse acima, a Europa moderna é vista, na teoria da modernidade de Habermas, enquanto possuindo uma cultura descentrada que leva à consolidação da secularização e da liberdade individual enquanto as bases dos processos de socialização e de subjetivação, que impõem, por sua vez, a racionalização dessa mesma fundamentação com base na democracia e nos direitos, dando-lhe uma conotação universalista. Essa mesma cultura descentrada consolidada na modernidade europeia, dada sua aspiração à universalidade (na medida em que exige tal justificação axiológica racionalizada e, assim, formalista, descentrada, universalista), seria o padrão histórico-evolutivo de cada sociedade/cultura em particular, desde que fosse perpassada pelo desencantamento das imagens mítico-tradicionais e metafísico-teológicas de mundo. Note-se que a cultura descentrada e racionalizada da modernidade europeia torna-se o modelo epistemológico-moral e societal basilar para o julgamento da própria dinâmica interna à modernidade, bem como de todos os tipos de sociedade/cultura que não são modernos.

É nesse sentido que o mito é o principal alvo da modernidade, na medida em que, em não possuindo aquela formação cultural descentrada, ele nega o universalismo epistemológico-moral e o projeto integrador - nega, inclusive, aquela separação estrita entre natureza, cultura e individualidade que, no Ocidente, esteve na base do capitalismo moderno e da colonização euronorcêntrica. Em suma, o mito é o inimigo a ser combatido pelo racionalismo pelo fato de que ele trava a progressão totalizante da modernização, legitimada por esse mesmo racionalismo. A organização mítica de mundo é vista exatamente como não possibilitando transformação social e liberdade, conforme dito na primeira parte do contexto, algo que, ao contrário, é perfeitamente visível em termos de padrão societal moderno, marcado pela secularização institucional e pela liberdade. Nas sociedades mítico-tradicionais, não haveria democracia nem direitos, posto que os códigos valorativos e as práticas culturais estão calcados em modelos prévios fornecidos pelos mitos e pelos costumes ancestrais.

No caso da teoria da modernidade de Habermas, é exatamente o argumento de que a modernidade possibilita democracia e direitos, ou seja, fundamentação epistemológico-moral universalista, que permite a retomada dessa mesma modernidade como paradigma epistemológico-moral e como projeto integrador. A modernidade, portanto, estaria contraposta ao mito e, na verdade, seria o modelo paradigmático para a avaliação do próprio mito como algo atrasado, não-moderno. Não estou afirmando, que fique claro, que Habermas é um apologeta de um tipo de modernização econômico-cultural colonizatório, mas sim questionando a possibilidade de se retomar o universalismo epistemológico-moral como paradigma e projeto integrador. Ainda conforme a análise feita na primeira parte desse texto, vimos que Habermas é explícito, em Teoria do Agir Comunicativo, na sua defesa da superioridade da visão moderna de mundo em relação às visões mítico-tradicionais de mundo, de modo que a modernidade europeia poderia sustentar pretensões universalistas de validade por causa de sua cultura descentrada, fomentadora da racionalização das normas e das práticas. Isso tornaria a modernidade modelo paradigmático e resultado final, por assim dizer, de um projeto histórico-evolutivo calcado no desencantamento das imagens míticotradicionais e metafísico-teológicas de mundo.

Nesse diapasão, a própria separação feita por Habermas entre um modelo normativo, idealizado, de modernidade, calcado no universalismo epistemológico-moral, e a Realpolitik da modernização leva à cegueira histórico-sociológica e à romantização do racionalismo, que pode ser colocado - mas somente por causa de tal separação - enquanto base de um projeto emancipatório, como paradigma e projeto integrador. Tal separação, inclusive, permite a Habermas defender que uma modernidade econômico-cultural reflexiva, influenciada pelo racionalismo, pode ser moderada em suas tendências totalizantes, colonizatórias. Ora, mas, como estou argumentando, ela não pode ser moderada nessa tendência totalizante exatamente porque sua base paradigmática calcada no universalismo somente pode subsistir se mostrar-se superior em relação às visões particularistas de mundo, o que significa que o universalismo precisa confrontar e deslegitimar as visões particularistas de mundo. Sociedades mítico-tradicionais, como disse acima, apresentam visões particularistas de mundo, em geral fechadas, no sentido de não possuírem pretensões de fundamentação universalista e nem projetos integradores cosmopolitas. A sociedade moderna, ao contrário, na medida em que coloca o universalismo epistemológico-moral enquanto base paradigmática de seus processos de socialização e de subjetivação, precisa combater tudo o que é mítico-tradicional, porque o horizonte mítico-tradicional trava a evolução incessante e, assim, a legitimidade da modernização.

É assim que o argumento utilizado por Habermas para justificar a necessidade teórico-prática do universalismo epistemológico-moral consiste na já clássica assertiva de que o particularismo e o relativismo não permitem a crítica, posto que levam ao ceticismo, ou seja, à superioridade e ao caráter autorreferencial dos valores contextuais. Sem universalismo, são os próprios valores de cada contexto - estejam eles ordenados da maneira que for - que dão a última palavra no que diz respeito a como os processos de socialização e de subjetivação devem acontecer. Em seguindo o argumento de Habermas, não há reflexividade, quando o contexto dá a última palavra, pelo fato de que não há princípios meta, formalistas o suficiente para permitirem o enquadramento teórico-prático desse mesmo contexto. Por exemplo, se um contexto cultural, historicamente localizado, pressupõe a morte de crianças deformadas, e se não há nenhum princípio meta que permita criticar e enquadrar praticamente tal valor contextual, então a morte de crianças deformadas, de acordo com a lógica do contexto em questão, será verdadeira. Sempre que a lógica autorreferencial dos contextos particulares vence, o universalismo perde. Onde há relativismo, não há universalismo, mas sim ceticismo.

O argumento do universalismo pode até sedutor, especialmente diante destes exemplos extremos, mas ele esconde o fato de que o triunfo do universalismo epistemológico-moral somente acontece na medida em que se coloniza as sociedades/culturas particularistas, por meio da deslegitimação de seus valores e práticas contextuais. Com efeito, o primeiro ponto dessa colonização é a própria contraposição entre uma fundamentação universalista e a autorreferencialidade dos contextos particulares. Por autorreferencialidade quero significar o fato de que a validade das normas e das práticas é, fundamentalmente, uma questão de dinâmica interna de cada sociedade/cultura, que não pode ser mensurada a partir de padrões epistemológico-morais formalistas e, muito menos, modificada com base nestes. Este é o ponto atacado pela modernidade europeia, no que tange à pressuposição seja da superioridade de seu modelo civilizacional descentrado (secularização e liberdade individual - democracia e direitos humanos), seja de seu paradigma epistemológico-moral universalista (formalismo e racionalização). Para a modernidade, portanto, há uma conexão direta entre a vitória do contextualismo e o fundamentalismo/ obscurantismo, posto que, ali, o universalismo epistemológico-moral já não é o critério, mas a própria dinâmica interna do contexto.

É aqui que aparece a tendência totalizante da modernidade, totalizante no sentido de que precisa, para se salvar enquanto modernidade, isto é, enquanto paradigma e projeto universalista, deslegitimar os contextos particulares em sua dinâmica autorreferencial, servindo como guarda-chuva normativo e modelo civilizacional. É uma dinâmica totalizante porque cada nova particularidade é um novo obstáculo à legitimidade inconteste do modelo de fundamentação descentrado, formalista e racionalizado (e racionalizante, com o perdão do neologismo, no sentido de exigir a racionalização dos valores e das práticas contextuais como condição de sua legitimidade) proposto como hegemônico pela modernidade. Cada nova cultura autorreferencial é uma nova fronteira a ser enfrentada com as armas da racionalização, de modo a ser dissecada e, assim, assumida em sua dinâmica interna pelo guarda-chuva normativo do universalismo epistemológico-moral moderno. Este mesmo universalismo epistemológico-moral, inclusive na teoria da modernidade de Habermas, serve exatamente como guarda-chuva normativo dos contextos particulares: por um lado, os protege em sua dinâmica interna; por outro lado, quando esta dinâmica interna viola o universalismo, permite sua crítica e seu enquadramento prático. Enfim, conforme penso, o universalismo epistemológico-moral, desenvolvido na modernidade europeia, é totalizante pelo fato de que precisa sempre estar em confronto com os contextos particulares, destruindo as fundamentações e as práticas mítico-tradicionais, que são percebidas enquanto obstáculos ao modelo de fundamentação descentrada, formalista e racionalizada oferecido pela cultura europeia moderna. Enquanto subsistir um contexto mítico-tradicional, o racionalismo ocidental deixa de ser superior, tem contestada sua aspiração à universalidade, o que, por sua vez, leva a que este mesmo racionalismo tenha de atacá-lo com base em seu paradigma epistemológico-moral universalista e em seu modelo civilizacional descentrado (secularização e liberdade individual).

É assim, ou seja, por meio desta contraposição e deste confronto permanentes, que a modernidade pode servir de paradigma normativo e exigir legitimidade na intervenção em relação ao horizonte mítico-tradicional, às suas práticas e aos seus valores. Trazer sempre à memória a contraposição entre um horizonte moderno de mundo e um horizonte mítico-tradicional é importante, para os filhos da modernidade, pois que isso lhes dá a segurança para crerem na superioridade de sua cultura descentrada, esclarecida, frente ao obscurantismo ou ao caráter primitivo da visão de mundo mítico-tradicional. A rememoração, a contraposição e o confronto permanentes, além disso, dão legitimidade aos julgamentos axiológicos calcados no universalismo epistemológico-moral desenvolvido desde a Europa, ligando-os a uma concepção humanística de civilização que em tudo evoluiu para uma forma superior de consciência moral e de organização societal. Com isso, o universalismo passa a ser entendido como “protetor das particularidades”, como “promotor das diferenças”, como o guarda-chuva normativo que efetivamente permite a avaliação axiológica e a intervenção prática em relação a tudo o que viola os valores universalistas, assim como a prossecução da modernização econômico-cultural passa a ter a conotação de progresso sociocultural, de maturidade sociocultural. E o mais interessante está em que não aceitaríamos que a base paradigmática para a avaliação e o enquadramento dos contextos particulares pudesse vir das visões mítico-tradicionais, posto que as julgamos fundamentalistas.

O ideal de progresso e de desenvolvimento civilizacional-cultural humanista, desenvolvido desde o Ocidente, não seria nada sem essa escora normativa que lhe fornece o universalismo epistemológico-moral, mormente quando em confronto direto com as visões mítico-tradicionais de mundo. Travestido de esclarecimento, o universalismo epistemológicomoral leva à deslegitimação de tudo o que cheira a mito, tradicionalismo, fundamentalismo, de modo a garantir a legitimidade teórico-normativa da modernização e de seus arautos. É assim, inclusive, que a colonização cultural e a globalização econômica podem assumir o ideal universalista da modernidade como seu baluarte, para prosseguirem enquanto projeto totalizante e destruírem os últimos redutos (geralmente percebidos como tradicionais, fundamentalistas) à consolidação definitiva dessa mesma globalização econômico-cultural euronorcêntrica, esclarecida, embasada no universalismo epistemológico-moral e, por isso, libertadora (MIGNOLO, 2007; SPIVAK, 2010; BHABHA, 1998; HUNT, 2009).

Modernidade e razão, modernidade como razão? Modernidade reflexiva? A racionalidade é uma pressuposição interna à cultura europeia moderna, afirmada desde ali como padrão universal da crítica e da integração, base dos processos de socialização e subjetivação, bem como tendência histórico-evolutiva universal. Sua universalidade provém, não mais e nem menos, da hegemonia cultural-econômica advinda da colonização, que se baseou naquele paradigma. Assim, uma modernidade reflexiva não apenas não conseguirá apagar os efeitos nefastos, destrutivos, totalizantes da colonização cultural euronorcêntrica e da globalização econômica capitalista, como também servirá para justificar essa mesma globalização econômico-cultural com base na superioridade do paradigma epistemológico-moral universalista e do modelo civilizacional descentrado, formalista e racionalizado desenvolvido desde a modernidade europeia. Direitos humanos e democracia, hoje, são, em grande medida, a base da colonização cultural euronorcêntrica e da globalização econômica capitalista. Aos herdeiros da modernidade, assim, a única herança e a tarefa por excelência que lhes restam é uma radical crítica interna aos intentos e ao sentido universalista de nossa civilização da razão.

Considerações finais

A formalização e a idealização são condições do universalismo, mas também são seu ponto fraco e o levam ao oposto do que pretende: ao invés de possibilitar a crítica, ele é arma para a justificação da colonização cultural e da globalização econômica, na medida em que insiste em que a universalidade é a condição da crítica, a verdade dos contextos particulares, o paradigma normativo para a avaliação e o enquadramento destes, sua tábua de salvação, o que o leva a deslegitimar os contextos particulares enquanto fontes de sentido e de justificação autônomas e alternativas à modernização, colocando a consciência moderna de mundo, e não a consciência mítica, como base da fundamentação universalista. Com isso, Habermas subordina as visões mítico-tradicionais de mundo à visão descentrada de mundo desenvolvida na Europa, que passa a ser o critério de avaliação e de enquadramento daquela. Também subordina os contextos particulares ao universalismo epistemológico-moral, obrigando aqueles a racionalizarem suas fundamentações como condição da legitimidade destas. Por fim, subordina o horizonte mítico-tradicional à modernização, que torna-se a base paradigmática e o modelo civilizador fundamental.

A modernidade criou a ilusão do moderno, por meio da afirmação do mito do universal, do mito da razão. Adorno e Horkheimer nunca estiveram tão certos em relação ao caráter totalizante da modernidade, na medida em que esse mesmo mito do universalismo, como venho dizendo ao longo deste texto, exige progressão incessante rumo ao universal, enfrentando, na concretização desta tarefa, todas as concepções particulares de mundo e deslegitimando-as como incapazes de sustentar uma consciência moral ilustrada e uma organização societal justa e livre. Ora, a simples associação teórica entre modernidade, universalismo, liberdade e justiça alça essa mesma cultura moderna a um patamar de guia e de juiz, legitimando, consequentemente, as instituições, os grupos e as nações que encampam os ideais da modernidade. Nesse diapasão, a globalização é o mais novo discurso da modernidade, uma nova realidade, percebida como inevitável, já consolidada, que dá razão à modernidade e que exige um mais modernização como condição da integração bem-sucedida. Com efeito, a globalização já consolidada (conforme os discursos oficiais), em um processo gradativo, integra os povos e funde suas culturas, o que, por um lado, dá razão ao humanismo cosmopolita moderno (mas desde a modernidade para os outros) e, ao mesmo tempo, justifica a tarefa civilizadora - de guia e de juiz - assumida sem mais pela cultura europeia moderna de ontem, pela cultura euronorcêntrica de hoje, internamente a si mesma e em todo globo. Passa-se a sensação, dessa forma, de que não há alternativa fora da modernidade e fora do processo de modernização cosmopolita, seja enquanto paradigma epistemológico moral, seja enquanto cultura e organização societal, seja mesmo como projetos de progresso e de desenvolvimento.

Ora, na medida em que a globalização é o mais novo discurso e prática da modernização totalizante, há, em consequência, uma faceta problemática quando se fala em democracia e, principalmente, direitos humanos como valores universais, como resultado da cultura europeia moderna, de sua visão de mundo descentrada e de sua base normativa universalista. Note-se que democracia e direitos humanos são valores que, nos discursos normativo-políticos calcados na modernidade, servem não apenas para um ajuizamento interno da própria modernidade, em suas potencialidades e contradições, mas também enquanto paradigma avaliativo e enquadrador de qualquer contexto que esteja situado para além - ou aquém - da modernidade. É nesse sentido que eles apresentam um problema, porque pressupõe exatamente a modernidade como o critério e, assim, a modernidade como guia, juiz e interventor: qualquer reivindicação por direitos necessita recorrer à modernidade e àqueles que a encampam. Isso coloca o horizonte euronorcêntrico, na Realpolitik atual, como o detentor do monopólio de interpretação e, principalmente, de atualização e de intervenção baseado na modernidade. Direitos humanos e democracia legitimam, direta ou indiretamente, a própria modernização; legitimam também o horizonte euronorcêntrico, na Realpolitik atual, a realizar uma tarefa de prossecução da colonização cultural e da globalização econômica justificadas por sua função civilizadora, assim como a função daquele contexto passa a ter conotações de imparcialidade, proteção e realização da justiça às diferenças. Contra a força da Realpolitik, a idealização da modernidade realizada por Habermas não tem como contrapor-se, da mesma forma como não tem forças para frear a colonização cultural e a globalização euronorcêntrica - servindo, em muitos casos, para justificar essa mesma globalização econômico-cultural euronorcêntrica, especialmente quando esta se utiliza do paradigma epistemológico-moral universalista.

A democracia e os direitos humanos, assim, precisam ser direcionados como crítica e limitação da modernização, de modo a recusar qualquer pretensão à universalidade. De fato, conforme penso, se há um futuro para a modernidade de um modo geral e para a democracia e os direitos humanos em particular, esse futuro diz respeito à autoconsciência em relação ao mito do universalismo epistemológico-moral moderno e, com isso, à idealização forçada e injustificada da cultura europeia moderna como a maturação de um desenvolvimento histórico-evolutivo que, calcada na secularização e na liberdade individual, tanto sustenta uma fundamentação universalista das normas quanto instaura a democracia e os direitos humanos como os herdeiros dessa mesma fundamentação universalista. Com isso, passaria para primeiro lugar a tarefa de limitação da tendência totalizante da modernização - hoje travestida de colonização cultural euronorcêntrica e de globalização econômica capitalista, justificadas com base no universalismo epistemológico-moral.

Note-se que não estou defendendo que a democracia e os direitos humanos, enquanto bases normativas e modelos práticos integrativos, sejam recusados ou jogados fora, como inúteis. O que estou defendendo é que eles sejam utilizados contra a modernidade e somente no horizonte da modernidade, no sentido de reformá-la, de modo a corrigir sua tendência a desconstruir as visões de mundo mítico-tradicionais e, com isso, minando a confiança injustificada dessa mesma modernidade em relação a si mesma, que lhe permite sustentar não apenas a superioridade de sua cultura descentrada, mas também sua vocação a servir como paradigma epistemológico-moral universalista e sua vocação a conduzir o mundo rumo ao progresso, ao desenvolvimento, à civilização. Democracia e direitos humanos poderiam, nessa situação, servir para alertar a modernidade de que esta é uma tarefa impossível, posto que as formas de vida são autorreferenciais. Além disso, poderiam recusar à modernidade essa mesma universalidade de sua cultura, mostrando-lhe que o paradigma epistemológico-moral universalista, ao desconstruir a legitimidade das visões de mundo mítico-tradicionais, justifica a prossecução da modernização tanto como paradigma epistemológico-moral universalista quanto como modelo sociocultural integrador, legitimando também o enquadramento de todos os contextos particulares com base nesse ideal normativo de modernidade.

Ora, os filhos da modernidade, tão orgulhosos do conteúdo normativo e da cultura descentrada dessa mesma modernidade, podem, em primeira mão, voltar-se a uma crítica interna da modernização, de modo a impedir que ela continue avançando com base na deslegitimação teórica, na colonização cultural e na destruição de formas de vida alternativas ao ideal de progresso e de desenvolvimento ocidentais. Esses mesmos filhos da modernidade podem fazer isso por meio de uma limitação do próprio universalismo epistemológico-moral, recusando a crença já tão arrigada de que ele possa representar um paradigma normativo capaz de julgar as particularidades e, com isso, de enquadrá-las teórica e praticamente. Não se sustenta mais a dicotomia modernidade versus visão mítico-tradicional de mundo, Ilustração versus fundamentalismo, porque a modernidade não é inocente nem idônea - e, aliás, porque esta é uma construção moderna. Ela, a nossa modernidade, é o mais perigoso fenômeno totalizante da atualidade. Aliás, por que a última fronteira da modernidade é o fundamentalismo? Porque essa mesma modernidade é um projeto totalizante calcado na afirmação da superioridade do paradigma epistemológicomoral universalista e da cultura descentrada próprios da modernidade europeia, algo negado pelas visões mítico-tradicionais de mundo. E a cultura descentrada europeia e o universalismo epistemológico-moral são o fundamento ideológico da modernização econômico-cultural conduzida desde o horizonte euronorcêntrico.

Referências

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Recebido: 03 de Novembro de 2015; Aceito: 21 de Junho de 2017

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