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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.62 Uberlândia May/Aug 2017  Epub Mar 09, 2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n62a2017-p1227a1248 

Artigos

Rousseau e Schiller: elementos para uma formação estética do homem

Rousseau and Schiller: elements for a aesthetic education of man

Rousseau et Schiller: éléments pour une formation esthétique de l’homme

Daiane Eccel* 

Marlene de Souza Dozol** 

*Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora de Filosofia da Educação junto ao departamento de EED, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). . E-mail:daianeeccel@hotmail.com

**Doutora em Educação, pela Linha de Pesquisa História e Filosofia da Educação, pela Universidade de São Paulo (USP). Professora de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lena.dozol@ uol.com.br


Resumo

A preocupação com a formação humana da forma como foi inaugurada por Rousseau na França do século XVIII chegou até a Alemanha. O resultado é que filósofos e poetas como Kant, Schiller, Goethe e Hölderlin escreveram sobre alguns aspectos que compunham a Bildung. Neste artigo nos dedicaremos a investigar os elementos para uma estética formativa por meio de Rousseau e Schiller. Ambos têm em comum o fato de criticarem o tipo de homem cultivado em seu tempo e perceberem a emergência de uma formação que levasse em consideração tanto a autonomia da razão quanto a força dos sentimentos por meio de um livre jogo entre eles.

Palavras-chave: Rousseau; Schiller; Estética; Formação humana

Abstract

The concern with the human education as inaugurated by Rousseau in France in the XVIII century came to Germany. In this country, philosophers and poetries like Kant, Schiller, Goethe and Hölderlin wrote about that constitute the Bildung. In this article, we will dedicate to investigate the elements to a formative aesthetic through Rousseau and Schiller. Both critic the modern cultivated men in their times and realized the need for a Bildung that considers than the autonomy of the mind as the power of feelings through a free play between them.

Keywords: Rousseau; Schiller; Aesthetics; Human Education

Résumé

La préoccupation envers la formation de l’être humain de la façon dont l’a fait Rousseau dans la France du XVIII ème siècle s’est répercutée jusqu’en Allemagne. Le résultat en est que des philosophes et des poètes tels que Kant, Schiller, Goethe et Höldering ont écrits à propos de certains aspects qui composaient la Bildung. Nous nous appliquerons, dans cet article, à étudier les éléments d’une esthétique formative à travers Rousseau et Schiller. Ils ont en commun le fait qu’ils critiquent le genre d’homme cultivé de leur temps et qu’ils perçoivent l’émergence d’une formation qui prenait en considération aussi bien l’autonomie que la force des sentiments au moyen d’un jeu qui se joue entre celles-ci.

Mots-clés: Rousseau; Schiller; Esthétique; Formation humaine

Quando Rousseau deixou este mundo em 1778, o jovem Schiller, então com dezenove anos, já havia escrito seu primeiro romance, A noite; já conhecia o famoso grupo de teatro Sturm und Drang e estava trabalhando em seu romance Os bandoleiros (Die Räuber), que seria publicado no anonimato em 1781. Centenas de quilômetros, uma língua diferente e uma iminente Revolução separavam e, concomitantemente, aproximavam o jovem filósofo e dramaturgo de Marbach - que seria um dos expoentes do Classicismo de Weimar - e o tão conhecido filósofo de Genebra e seus postulados.

Na década de 70, do século XVIII, Friedrich Schiller já havia tido contato com as obras de Shakespeare, dos antigos gregos, conhecia Goethe e fazia jus ao germanismo da época: lia as obras em língua francesa que influenciariam a posterior Revolução. Entre eles, estava Jean-Jacques Rousseau, cuja influência, conforme Arnold Hauser (1995, p. 614), foi incomparavelmente mais profunda e mais ampla que a de Voltaire sobre o que viria ser posteriormente conhecido como Romantismo, notadamente o alemão: nem na França Rousseau tinha adeptos tão numerosos e entusiásticos quanto na Alemanha. Tanto que, todo o movimento Sturm und Drang, Klinger, Lessing, Herder, Goethe e Schiller dependeram dele e reconheceram a dívida que tinham para com ele.

Com e pós Kant, a Revolução Francesa tomou dimensões sem iguais na Alemanha, a ponto de não ousarmos contestar a afirmação de Isaiah Berlin (2015) que não hesita em dizer que os franceses tinham a força e os alemães tinham as ideias para fazer a Revolução. Não é de pouca monta o fato de Schiller ter recebido formalmente o título de citoyen français e ter tomado as reflexões acerca da Revolução como um dos elementos centrais em seu pensamento. Encantamento, mas também decepção por este movimento político, aparecem claramente nos escritos de Schiller que à época herdava da tradição francesa o ideal de liberdade recém problematizado por Kant. O filósofo do classicismo de Weimar havia, de início, enxergado na Revolução a esperança da renovação dos costumes viciados do século XVIII que tomavam conta da corte francesa e que era refletido na forma demasiada rebuscada de expressão nas artes, costumes e forma que já haviam sido denunciados por Rousseau em seu Primeiro Discurso, mesmo antes do advento da referida revolução. Nele, ou melhor, no Discurso sobre as ciências e as artes (1760), Rousseau não estabelece uma relação causal entre o progresso das luzes e o aprimoramento da moral e dos costumes. Dito de outro modo, entre a inteligência e a “sabedoria”. Está implícita aí uma divisão operada pela sociedade corrompida pela qual não só razão e moral se excluem, mas também o gosto ou o sentimento da beleza, desfigurado pelos ditames da moda e do luxo, ancorado em falsos valores, distante da natureza e, portanto, da verdadeira fruição dos sentidos. É nessa direção que ele se põe contra o rococó e a arte palaciana (associadas ao ócio e ao luxo), mas também contra a “ciência louca dos homens” e, de maneira alguma, contra a ciência e à arte em si mesmas; trata-se de uma crítica ao modo como os homens a praticam no interior de uma sociedade decadente. Além disso, em resposta às objeções ao seu discurso, argumenta que a Academia de Dijon - pela qual concorreu ao prêmio - não solicita a enumeração de bens gerados pelas ciências e pelas artes e sim se o progresso correspondeu ao progresso dos costumes. Rousseau esclarece que o exame por ele empreendido ateve-se à relação entre o progresso das luzes e o aperfeiçoamento moral. Ao dizer que “não”, acabava por relativizar o otimismo antropológico iluminista e ferir os valores do seu próprio tempo.

Podemos estender a denúncia de Rousseau a respeito da degradação das ciências e das belas artes à política degenerada em forma de monarquia absoluta que, juntas, expressam os dois lados de uma mesma moeda. A iminência da Revolução, cronologicamente bem mais próxima de Schiller que de Rousseau, representava por isso, a esperança por uma nova forma de organização política e dos ideais de realização humana por meio da conhecida tríade liberté, egalité e fraternité. O fato é que o terror jacobino chegou ao poder e com ele chegaram também as desesperanças de Schiller, pois no lugar do ideal de excelência humana que deveria ser erguida por meio dos sentimentos iniciais da Revolução, era a barbárie que havia assumido os postos na França. De fato, todas as pompas, o excessivo rebuscamento e o pseudo requinte haviam saído de cena, mas deram lugar à decapitação do monarca e às sucessivas ondas de terror.

O ideal de liberdade, o gosto pela simplicidade na arte pautado no ideal de natureza e o ciclo dinâmico de pensamento que vai da política à formação humana são elementos comuns entre Jean-Jacque Rousseau e Friedrich Schiller. O presente artigo propõe-se a investigar as possíveis influências do pensador suíço sobre Schiller tendo como foco as questões relacionadas à proposta de formação humana de ambos sem nos furtarmos, contudo, de fazer aqui e ali, menções a Kant, uma exigência para compreendermos Schiller). Tentaremos indicar em que medida estes dois filósofos têm semelhantes concepções acerca da proposta de educação do homem e como Schiller insere um elemento novo neste processo por meio do “impulso lúdico” (Spieltrieb). Não menos importante consiste a tarefa de levarmos em consideração algumas diferenças que habitam entre ambas as teorias.

1. A emergência de uma educação estética do homem: a razão e o sentimento

Em função dos anos que Schiller se dedicou a fundo aos estudos sobre os escritos de Immanuel Kant, não é difícil supor que ele tenha chegado a Rousseau via Kant. No prefácio da reunião de suas epístolas ao príncipe dinamarquês de Augustenburg, a epígrafe que aparece apenas na primeira edição das cartas fica por conta de Rousseau e dá vazão ao espírito que Schiller tentará alimentar ao longo das cartas que foram paulatinamente agrupadas e publicadas em 1795. A epígrafe rousseauniana é autoelucidativa e marca o movimento de trânsito schilleriano entre a razão e os sentidos: “Se a razão é que faz o homem, é o sentimento que o conduz” (SCHILLER, 2014, p. 19). Vejamos em que medida esta epígrafe inspiraria esse trânsito para depois nos determos nas cartas destinadas ao príncipe.

Em que pese a dificuldade de definir a natureza da razão em Rousseau, uma vez que não iremos encontrar nele uma teoria do conhecimento propriamente dita, é possível contorná-la com os empréstimos que faz da psicologia de Condillac (1715-1780) e da metafísica de Malebranche (1638-1715). Com o primeiro aprende a considerar a razão não exatamente como uma “faculdade” isolada, mas como um “composto” de todas as outras faculdades humanas, chegando inclusive a dividi-la em “sensitiva” e “intelectual”; tal divisão já é suficiente para percebermos o quanto Rousseau se afasta, primeiramente, de um sistema rígido de categorias que buscam explicar a possibilidade mesma do conhecimento e, em segundo lugar, da oposição formal entre razão e sentidos estabelecida por Descartes. Já do plano metafísico, com Malebranche, extrai o vínculo que estabelece entre a razão e a ideia de ordem, ou seja, de a razão ser algo no humano capaz de ordenar todas as faculdades de acordo com a natureza das coisas e conosco.

Mas o racionalismo de Rousseau é do tipo que reconhece os limites da própria razão e este reconhecimento pode ser compreendido como uma sábia providência da natureza para evitar seus abusos e seus enganos. Neste sentido, a faculdade racional do homem pede o seu “oposto” como complemento e freio, ou seja, o sentimento que, em Rousseau, se confunde, por vezes, com a consciência, traduzida pelo amor do bem e do belo, sobretudo moral. O que há aí, na consciência, são “atos” de sentimentos e não de julgamentos frutos de manobras que pelejam para dissolver ou eliminar as recorrências da sensibilidade. É preciso lembrar, no entanto, que a razão, quando não desprovida de sua “retidão natural” (sim, podemos falar em Rousseau de uma razão corrompida pela ordem social e de uma sã razão que não é má em si mesma) coopera para o conhecimento do bem, mas só a consciência será capaz de amá-lo e a liberdade de escolhê-lo.

O que nos interessa observar aqui, no entanto, são os meneios do pensamento rousseauísta visando uma constante colaboração entre sentimento e razão, na qual a segunda “esclarece” o primeiro - movimento que parece também estar presente em Schiller. Retornemos, agora, às cartas sobre a educação estética do homem.

Tais cartas, trocadas entre Schiller e o príncipe de Augustenburg, seu mecenas, tentam dar conta da importância de uma formação humana adequada que contemple a dimensão estética do humano. Preocupações latentes com a política do seu tempo, com a cisão do homem moderno, com a liberdade, com uma moral rígida que toma o lugar da estética fazem às vezes de protagonistas nestas vinte e três cartas publicadas pelo autor de Weimar.

Como proposta de formação, as epístolas redigidas por Schiller recebem o título de A educação estética do homem numa série de cartas (Über die Ästhetische Erziehung des Menschen. In einer Reihe von Briefen) e tem suas bases lançadas a partir do movimento simultâneo de laudatio e distanciamento de Immanuel Kant. Schiller é devedor do filósofo de Königsberg, pois foi ele, depois de Baumgarten que atentou para a necessidade da autonomia da estética e deu vazão para as ideias de gênio e gosto, os quais foram exaustivamente tratados em sua Crítica da Faculdade de Julgar. Já em Kant aparece o movimento que definirá também as manobras de Schiller nesta obra: a singularidade da terceira Crítica está resguardada nos juízos estéticos reflexionantes que tem seu ponto de partida no objeto e não no conceito, no particular e não no geral. Este tipo de juízo estético reflete no conceito e busca uma finalidade ou uma espécie de adequação que, quando encontrada, gera a sensação de prazer e desprazer. O objetivo desta faculdade e deste tipo de juízo não é resguardar as abstrações dos conceitos, mas sim aquilo que o objeto tem de concreto. O juízo estético reflexionante cumpre a função de interconectar o conceito e o objeto e o faz buscando uma espécie de universalidade fraca que garanta a contemplação das características singulares do objeto. Neste sentido, a terceira Crítica tenta suprimir uma suposta dicotomia posta entre a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática. Neste contexto, também surgem os postulados sobre o gosto e o gênio que influenciarão Schiller.

Kant é, por isso, o ponto de referência do qual parte Schiller (2014, p. 21) e isso fica evidente logo na primeira carta na qual afirma: “não quero ocultar a origem kantiana da maior parte dos princípios em que repousam as afirmações que se seguirão” e segue “embora as ideias que dominam a parte prática do sistema kantiano sejam objeto de controvérsias entre os filósofos, ouso dizer que merecem sempre o consenso entre os homens”. No entanto, se Kant é o ponto de partida, ele mesmo que é o grande representante da Aufklärung germânica não pode ser o ponto de chegada das reflexões schillerianas. Neste sentido, Schiller mostra-se um grande crítico do seu tempo e, mais próximo a Rousseau, vê que o movimento do Esclarecimento hipertrofiou os poderes da razão. Por um lado, Schiller admira Kant porque teria tentado estabelecer a autonomia da estética e do papel da beleza como fundamental para uma teoria do gosto. No entanto, a forma demasiada rígida e técnica como Kant o fez, despertou as críticas schillerianas como fica expressa na primeira carta ao príncipe: “Essa mesma forma técnica, que torna a verdade visível ao entendimento, a oculta, porém, ao sentimento, pois o entendimento, infelizmente, tem de destruir o objeto do sentido interno quando quer apropriar-se dele” (SCHILLER, 2014, p. 22). A razão e a moral - não do ponto de vista de fins formativos e de suas relações indiretas com a arte, mas como categorias “analíticas” ou mesmo epistemológicas - adentraram o espaço que deveria ser do sensível e da beleza. O excesso de rigor da moral kantiana é capaz de afugentar o belo e não dar vazão para o surgimento do gênio, que não se constitui e nem se manifesta mediante um “por às claras” ou “um prensar a frio” todas as coisas. O argumento de Schiller é que a estética exige um certo velamento, algo que não pode ser completamente depurado, pois “toda sua magia reside em seu mistério, e a supressão do vínculo necessário de seus elementos é também a supressão de sua essência” (SCHILLER, 2014, p. 22). Isso condiz, em parte, com o espírito romântico, que já estaria presente em Rousseau, quando, nas palavras de Humberto Eco (2004, p. 303), “acrescenta uma importante determinação subjetiva: a expressão de um ‘não sei quê’ (je ne sais quoi) de vago e indeterminado” diante de algo e de sentimentos indóceis à soberania da linguagem.

Schiller (2014, p. 35) enxerga no tipo de homem guiado somente pela razão uma espécie de ser humano cindido, fruto típico da modernidade que, por sua vez, opera uma “divisão belicosa” ou uma “demarcação de fronteiras”, conforme aparece em sua sexta carta. É aqui que Schiller expressa sua crítica ao indivíduo moderno, sobretudo quando comparado à totalidade do homem grego que cultivava poesia, religião, filosofia e política em um tipo de união, um todo orgânico que nunca mais existiu. O indivíduo grego “recebia suas forças da natureza, que tudo une, enquanto este as recebe do entendimento, que tudo separa” (SCHILLER, 2014, p. 36). O posicionamento de Schiller marcará aquilo que é um lugarcomum instituído no seio do movimento romântico, ainda que um tanto refratário a ele em outros aspectos: uma admiração incontida pelos gregos e a necessidade de encontrar um caminho semelhante dentro da própria modernidade. Todavia, esta é uma tarefa de grande fôlego e Kant não contribui com ela não somente por sua forma de escrever, mas também por seu grande acento à razão como a excelência da Aufklärung, reforçando, por obra de uma operação formal, a oposição entre o entendimento e o sensível - já indicada na epígrafe escrita por Rousseau. Nessa epígrafe, a especificidade do mundo sensível, como elucidado por George Gusdorf (1973, p. 150-151), não se constitui num

momento provisório, chamado a dissolver-se segundo a disciplina geral do universo do discurso (...). A sensibilidade conduz a inteligência, mas a inteligência não a dissolve; ela permanece, no autor de Nouvelle Heloise e das Confessions, um indicador dos valores fundamentais.

É nesse sentido que Rousseau diferencia-se da perspectiva intelectualista de Kant e irá “lembrar a Schiller” que a presença do homem no mundo é ou poderia ser tão densa quanto esse mesmo mundo.

Tal problemática - a da cisão entre o inteligível e o sensível - é claramente exposta na sexta carta e é assunto das epístolas que se seguem. Interessante é notar que a crítica de Schiller ganha uma dimensão mais ampla e extrapola os limites da necessidade da estética apenas como um âmbito que deve ter sua autonomia enquanto disciplina. Mais do que isso, Schiller (2014, p. 38) se mostra descrente com a situação da política e o sistema ético do seu tempo, e traça duras críticas à concepção moderna de Estado, pois “o Estado continua eternamente estranho a seus cidadãos”, degenerando-os moralmente. De acordo com Hauser (1995, p. 623), para “Schiller, a educação estética é a única salvação do mal reconhecido por Rousseau” e experimentar-se como um cosmos individual diante dos riscos da fragmentação.

A solução para tal impasse, ou seja, tal decadência política e moral advinda da cisão do homem moderno deve ter as suas origens fora deste próprio Estado. Quando o autor, retoricamente, indaga-se sobre uma possível solução, ele imediatamente nos oferece a resposta:

“Seria o caso de esperarmos tal obra do Estado? Impossível, pois o Estado em sua forma presente originou o mal, e o Estado, a que se propõe a razão na Ideia, não poderia fundar esta humanidade melhor, pois nela teria de ser fundado” (SCHILLER, 2014, p. 43).

Neste sentido, apesar de formalmente ser entendido como um clássico, Schiller compõe com o grupo dos românticos que parece olhar para as instituições de seu tempo de forma irônica e cética, olhar que também podemos atribuir a Rousseau, ainda que este nutra, sobretudo por meio dos seus escritos políticos, a crença em algum tipo “universal” de organização - mesmo que pensado como “ideia reguladora” - que corrija os rumos da sociedade1.

A única forma de tentar reintegrar o homem e eliminar a formação unilateral de suas forças é por meio do belo, da educação estética. E essa será a tarefa que Schiller se propõe ao longo das cartas, pois “é pela beleza que se vai à liberdade”2 (SCHILLER, 2014, p. 24). No entanto, é preciso notar que não se trata de uma apreciação do belo pelo belo somente enquanto belo, mas antes disso, é necessário que além de um elemento sensível em particular, o belo una-se também a uma faculdade da razão e é justamente essa não união que causa a cisão e que faz com que o homem perca sua humanidade. O belo deve representar, portanto, a harmoniosa união entre a sensibilidade e o intelecto e não um mero privilégio do segundo sobre o primeiro. A tentação do leitor de Schiller é, no entanto, interpretar a proposta schilleriana como uma espécie de um completo mergulho no sensível de forma desmedida e irracional. Esse seria um entendimento bastante superficial sobre a proposta do autor que não regressa na história humana a ponto de desconsiderar o poder do uso da razão e limitar-se somente ao âmbito do sensível. Apesar de sua crítica à Aufklärung, responsável pela cisão do homem moderno, Schiller reivindica a mesma máxima invocada por Kant retomando Horácio (2014, p. 46): Sapere aude, ousa ser sábio. O intelecto, porém, mais do que exercer seu papel na busca da verdade filosófica, deve também agir a favor de um aperfeiçoamento moral dos homens, sempre aliado à sensação, pois “o caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração” e, assim como em Rousseau, capaz de colocar em jogo uma “participação sentimental” que não se experimenta pela erudição.

Baseado nisso, Schiller critica a moral kantiana, que é carregada de forma e proposições vazias de conteúdo sensível de maneira que a moralidade não permanece equilibrada com a estética. Há uma dupla crítica de Schiller a Kant que se faz importante neste pequeno ensaio: trata-se da hybris kantiana com relação à moral, ou aquilo que Schiller chama de “moralidade de santo” por parte de Kant e a confiança exacerbada deste na razão, que foi mitigada após suas leituras de Rousseau. Schiller assinala que o filósofo da pequena Königsberg esqueceu-se da lição deixada por Baumgarten3, a saber, a necessidade da autonomia da estética frente ao âmbito moral.

Neste sentido, a crítica schilleriana é bastante equilibrada, pois também leitor ávido de Kant, Schiller está convencido de que nem a moral e tampouco a razão devem ser eliminadas do âmbito da estética, mas desconfia da exclusividade de ambas como uma espécie de caminho único a ser percorrido em termos de formação humana. Schiller não elimina os opostos a ponto de permanecer apenas com a razão ou com a sensibilidade, mas seguindo a trilha já iniciada por Rousseau, sugere uma forma de educação do homem que alie o inteligível ao sensível como pares ou polos opostos e, ao mesmo tempo complementares do humano.

Apesar de anunciarmos a proposta estética schilleriana de forma tão breve, isso não acontece ao longo das epístolas nas quais o autor desenvolve uma complicada trama para explicitar a radical oposição entre a astuta razão e o vivo sentimento que assola o homem moderno. Oposição essa que compõe o ponto de partida na investida schilleriana da educação estética do homem. Somente a beleza - aliada à razão e ao sentimento é capaz de um movimento de reunificação. Há, portanto, em Schiller um adiantamento da tendência de pensamento que se estenderá ao longo dos séculos posteriores: um diagnóstico de época e a identificação de algumas patologias próprias dela aliado a uma antropologia. O que está em jogo aqui é propriamente o conceito de “homem” e de “humanidade” e daí surge a importância acerca do tipo de formação humana que deveria estar voltada para a estética. Neste sentido, é elucidativo o comentário de Ricardo Barbosa:

O esforço de Schiller foi o de colocar em evidência o momento da verdade das duas posições, superando sua unilateralidade: ambas estavam ancoradas na natureza mista do homem, mas não conseguiam abarcá-la como um todo, enfatizando ora suas necessidades como um ser físico, ora como um ser racional. Se a cultura estética era chamada a desempenhar um papel central na formação do homem para a liberdade, era preciso antes compreender a constituição peculiar do homem como o sujeito e o objeto dessa formação promovida pelo gosto. A antropologia é o fundamento da teoria estética (2004, p. 38).

É levando em consideração a necessidade de uma antropologia que leve em conta as benesses do intelecto e os sentimentos que impulsionam os homens, que se faz necessário investigarmos o conceito de “impulso lúdico” em Schiller.

2. O livre jogo entre a autonomia da razão e o sentimento

Na medida em que a problemática schilleriana vai se desenhando tendo como pano de fundo uma espécie de “antropologia” (diferente daquela proposta por Kant), é justamente por meio desta antropologia que o autor encontra uma espécie de via de resolução para a cisão que assola o homem moderno. Pedro Süssekind (2011, p.11-24) aponta dois momentos nos quais Schiller tenta resolver a questão: a primeira está em seu escrito Sobre o sublime, de 1801, e a outra estaria em A educação estética do homem - que é a que nos interessa mais diretamente neste artigo.

O autor inicia a décima carta ao seu mecenas reforçando o diagnóstico da cisão do homem moderno, que está lançado em “duas vias opostas” que lhe conduzem por um lado à rudeza e por outro à perversão. Nesta carta, o autor realiza uma espécie de mirada histórica retrospectiva para concluir que na medida em que as grandes civilizações da Antiguidade ocidental atingiam seu ápice4 - a força e a liberdade se perdiam. O mesmo acontece com a modernidade, “cujo refinamento crescia na mesma medida em que findava sua autonomia” (SHILLER, 2014, p. 53). A beleza seria, para Schiller, a única maneira de salvá-lo dessa dupla barbárie, mas para que tal itinerário seja traçado é preciso que se chegue àquilo que o autor chama de “conceito racional puro da beleza” e a partir daqui, as cartas que se seguem até a décima quinta ganham contornos mais abstratos, já que será necessário realizar uma redução transcendental a fim de chegarmos aos dois conceitos mais abstratos do homem: a pessoa e o estado. A primeira refere-se aquilo que é perene e imutável e o segundo é aquele que passa por incensáveis mutações. A partir daqui também é possível visualizar com mais clareza que o conceito de beleza em Schiller está instalado no nível intelectual e não no empírico. A beleza é possuidora de uma concepção suprassensível e intelectual e por isso o autor não está preocupado com a aplicabilidade da educação estética que propõe. É apenas possível dizer que a beleza manifestada na arte que entra em contato com os homens é capaz de educá-los e conduzi-los à liberdade, pois tal educação se dá no todo (culturalmente e, sobretudo, moralmente, já que algumas virtudes são erigidas neste processo).

Por isso, só a arte consolidaria a força moral do homem e poderia educá-lo para a liberdade: absoluta, aquela que ele mantém mesmo diante do sofrimento do que não pode escapar como ser natural. É a capacidade de sentir o sublime, considerado pelo autor como uma das mais esplêndidas faculdades humanas, que expressa a autonomia racional e influencia a moralidade, dando a possibilidade de destruir ‘conceitualmente’ a morte (SÜSSEKIND, 2011, p. 16).

A beleza é a única capaz de romper o ciclo que cinde o homem moderno. Isso acontece porque a beleza é proveniente da faculdade que concebe o todo e não somente as partes. Daí o esforço do filósofo em mostrar como se dá esse processo pelo meio do caminho da abstração e dedução da ideia do belo.

Na ideia de pessoa e de estado estão contidos dois princípios antagônicos: na pessoa está seu próprio fundamento, enquanto o estado, alterado constante pelo devir, precisa ele mesmo de um fundamento que é causado externamente, a saber, o tempo - que é, como esclarecido por Schiller (2014, p. 55) na carta XI, “a condição de todo vir a ser”. A pessoa, por sua vez, “que se revela no eu que perdura eternamente, não pode vir a ser, não pode começar no tempo, porque, inversamente, é nela que tem início tempo, pois algo que perdure tem que repousar como fundamento da alternância” (SCHILLER, 2014, p. 56). É dessa relação múltipla que encontramos uma espécie de unidade, já que nenhum dos dois conceitos abstratos - pessoa e estado - pode subsistir sozinho. Embora a pessoa tenha uma espécie de caráter mais primário porque dela depende o tempo, sem o constante vir-a-ser, ela perde sentido. Daqui surge um ideal de perfeição de pessoa expresso por Schiller: “o homem, pois, representado em sua perfeição seria a unidade duradoura que permanece sempre a mesma nas marés da modificação” (SCHILLER, 2014, p. 56).

De tal análise antropológica surgem ainda dois impulsos antagônicos que derivam dos conceitos abstratos de pessoa e estado. Trata-se de “duas tendências opostas no homem, as duas leis fundamentais da natureza sensível-racional” (SCHILLER, 2014, p. 57). A lei racional, que é de caráter universal e dita as leis, sendo assim absoluta e eterna, confere forma à matéria, por isso chamado de impulso formal (Formtrieb). O impulso material (Sachtrieb), por sua vez, está diretamente relacionado ao sensível - que nunca é absoluto, mas sempre relativo e temporal, pois está diretamente ligado à substância física do homem. Trata-se dos casos particulares e das leis universais estabelecidas pelo impulso formal. A respeito desses impulsos, nota-se que eles já se encontravam presentes em Kant sob outro signo: as faculdades, e Schiller certamente herdou algo daí. Por outro lado, o que faz toda a diferença neste caso é o fato de Schiller conferir um caráter de formação ou educação dos instintos, ao passo que em Kant, as faculdades a priori transcendentais não são passíveis de transformação. Em Schiller, os impulsos são forças da natureza que conduzem o homem a direções opostas. Havia inicialmente uma direção originária e correta de tais impulsos, mas esta foi perdida em função da própria cultura moderna ocidental do homem cindido que não deu conta de organizá-los.

Uma das falhas da cultura é não levar em conta a necessidade da ação recíproca entre os dois impulsos. Schiller abre uma nota de rodapé somente para tratar deste problema. Embora as tendências de ambos se contradigam, eles não são completamente antagônicos e deve haver uma harmonia entre ambos. O autor aponta para o perigo de quando um impulso não respeita o limite do outro e a harmonia é quebrada. Isso significa afirmar que a razão não deve imperar no âmbito da sensação, assim como esta também deve manter-se em seus limites. A subordinação de um fundamento ao outro causa prejuízos, pois quando este processo se dá, tudo o que há é “uniformidade e não harmonia”. A subordinação, segundo Schiller, deve haver e tem caráter essencial, no entanto, ela deve ser recíproca de forma que o grau de importância de ambos se mantenha em harmonia, salvando o homem da situação de cisão. Nas palavras do próprio autor, a sentença faz-se clara: “ambos os princípios são, a um só tempo, coordenados e subordinados um ao outro, isto é, estão em ação recíproca” (SCHILLER, 2014, p. 63). O papel da cultura é evitar que haja transgressões entre os dois, ou seja, quanto mais isso se dá no âmbito da reciprocidade entre ambos os impulsos, mais próximo do ideal almejado estamos.

A partir daqui, Schiller (2014) sugere algo que parece inverossímil e, segundo ele, até contraditório, já que ele encontra um terceiro impulso, advindo da ação recíproca entre os dois impulsos anteriores. Em suas palavras, tal impulso seria “impensável”. Ele o é na medida em que não se realiza em sua plenitude na humanidade, já que é possível apenas nos aproximarmos dele e não realizá-lo completamente. Não obstante, importa notar que a tarefa proposta por Schiller (2014) em suas reflexões sobre os impulsos está no âmbito da ideia e é uma exigência da razão, daí justifica-se pensar este terceiro impulso chamado justamente de “impulso lúdico” (Spieltrieb).

Tal impulso existiria se e somente se a ação recíproca entre os impulsos material e formal fosse constante e, portanto, o Spieltrieb é altamente dependente de tal ação recíproca. Segundo Schiller (2014, p. 69):

Existissem casos em que ele fizesse simultaneamente esta dupla experiência, em que fosse consciente de sua liberdade e sentisse a sua existência, em que se percebesse como matéria e se conhecesse como espírito, nestes casos e, só nestes, ele teria uma intuição plena de sua humanidade.

O impulso lúdico é o que chega mais próximo ao conceito de beleza que Schiller (2014, p. 73) busca, já que ele “designa todas as qualidades estéticas dos fenômenos”. Por este motivo, ele é chamado de forma viva, considerando que o impulso formal tem como objeto a forma e o impulso sensível tem como objeto a vida. O caso do bloco de mármore é o exemplo escolhido pelo filósofo alemão: um bloco de mármore, que é pura forma, toma forma viva pelas mãos do escultor. A um homem, por exemplo, não basta que seja vida, mesmo que ele tenha vida e forma, pois é preciso que ele seja uma forma viva, pois “somente quando sua forma vive em nossa sensibilidade e sua vida se forma em nosso entendimento o homem é forma viva, e este será sempre o caso quando julgamos o belo” (SCHILLER, 2014, p .73).

Impossível não escutar aqui as reverberações da Paidéia grega, expressão, segundo Werner Jaeger (1995, p. 14), “de um sentimento vital antropocêntrico” e que o célebre helenista amplia quando estabelece profundas conexões entre a formação humana e a arte: “Assim, entre os povos, o grego é o antropoplástico” (JAEGER, 1995, p. 14). Não à toa, Jaeger (1995, p. 13) alude ao oleiro que modela sua argila ou ao escultor que lapida suas pedras, associando ambas as artes à educação como um processo de construção consciente e do qual resultará o “Homem vivo”, paradigma cuja validade genérica e normativa deverá sinalizar as ricas possibilidades ou desdobramentos da natureza humana.

É por meio desse processo que a natureza humana se unificaria e chegaria cada vez mais perto da perfeição. Schiller alude claramente à ideia de que se há uma humanidade, há um ideal de exigência de beleza. Notamos aqui a evidência de uma exigência normativa, de um ideal estabelecido por Schiller para o qual já havíamos apontado anteriormente. O autor afasta sua teoria, pois segundo Suzuki, “o belo não é um conceito de experiência, mas antes um imperativo” (SCHILLER apud SUZUKI, 2014, p. 11).

Por meio do conceito de unificação, Schiller (2014) identifica o impulso lúdico como um mero jogo e, neste sentido, identifica o belo como um mero jogo. Para se defender das críticas que tendem a afirmar que a identificação da beleza com um mero jogo seria reduzi-la, Schiller (2014, p. 75) insiste em afirmar o contrário, ou seja, isso é ampliá-la, pois “com o agradável, com o bem, com a perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, no entanto, ele joga”. Neste sentido Schiller (2014) faz o movimento clássico do seu entorno intelectual e se aproxima dos gregos na medida em que recorre à Grécia para ilustrar o que entende por jogo lúdico. O exemplo são os jogos olímpicos, nos quais “os povos gregos rejubilam com competições de força, velocidade e flexibilidade sem derramamento de sangue e com a disputa dos mais nobres talentos (...)” (SCHILLER, 2014, p. 75)5. É com os gregos deste período que Schiller tenta demonstrar como eram homens completos quando comparados aos modernos homens cindidos. Natureza e cultura estavam no auge da sua integração.

Enquanto o indivíduo moderno se afasta da natureza e se torna fragmentário, governado pela arbitrariedade do Estado, exacerbadamente cultural, frio, mecânico, destituído de uma noção de totalidade, o grego aparece como estágio máximo da realização humana, no qual a natureza e a cultura se encontravam em harmonia. A crítica de Schiller não se baseia numa visão nostálgica da Antiguidade, mas visa justamente a uma reflexão sobre o ideal de harmonia entre o mundo da natureza e o da cultura, a ser buscado na modernidade. Nesse caso, a “educação estética” teria a possibilidade de orientar o homem moderno na direção desse ideal de algo que, na Grécia, existia como uma perfeição (SÜSSEKIND, 2005, p. 247).

Importa lembrar que os jogos realizados no Monte Olimpo compunham parte de um ritual sagrado, já que aconteciam em honra a alguns deuses. Talvez um dos mais ilustres exemplos dos jogos encontra-se no canto XXIII da Ilíada narrado por Homero (2015), no qual a guerra é interrompida e jogos se dão em honra à morte de Pátroclo. O mais livre e o mais inusitado se revelam na medida em que o ócio e a indiferença encontram seu espaço. Daí surge a famosa sentença schilleriana que afirma que o homem “somente é homem pleno quando joga” (SCHILLER, 2014, p. 76). Mas é neste jogo, neste ócio ou neste “descomprometer-se” que o homem chega a uma ideia de dever e a partir daí algumas virtudes lhe são forjadas. A beleza não deve ser submetida somente às leis da razão, assim como também não deve ser tornada “séria” a ponto de corresponder somente ao impulso formal (SÜSSEKIND, 2011, p. 21).

Por meio da harmonia da oposição entre natureza e cultura otimizada pelo impulso lúdico - resultado da ação recíproca entre os dois impulsos aparentemente opostos (Sachtrieb e Formtrieb), o homem vive a experiência da liberdade estética - que não é exatamente a liberdade moral problematizada por Kant. Tanto aquele que sabe contemplar o belo, quanto aquele que é gênio e cria a obra de arte, são considerados nobres por parte de Schiller. Segundo os comentários de Suzuki (2014, p. 17), o homem estético, aquele que é educado pela beleza é ele mesmo o homem virtuoso e “tem como imperativo aproximar dignidade e felicidade, dever e prazer no belo”.

Vimos que o impulso lúdico também está vinculado a ideia de ócio e de indiferença. Não estaria esse terceiro impulso, de maneira semelhante, já presente nos Devaneios do caminhante solitário, escrito autobiográfico iniciado por Rousseau em 1776? Quando o velho filósofo se deixa deslizar no fundo de um barco, com seus olhos pregados no céu, sobre a superfície especular do lago de Bienne; quando caminha e herboriza “desinteressadamente” ou quando faz da memória uma criação literária cuja expressão já se oferece em forma de prosa poética (e, ao fazê-lo, descansa dos reveses de sua própria vida, da crueldade do mundo e dos homens), enfim, quando se deixa ficar, no mais desabrido ócio na Ilha de Saint-Pierre durante dois meses, não desfrutaria aí de um gênero de pensamento que se faz mediante o livre jogo entre a imaginação e o intelecto? Não operaria, ainda, nas palavras de Franklin Leopoldo e Silva (2011, p. 60), “um formidável recuo do pensamento para identificar-se ao sentimento”?. E afinal, não seria essa também uma aspiração de seu leitor Schiller?

À guisa de conclusão

Uma reflexão sobre o ideal de harmonia entre o mundo da natureza e o da cultura não é exatamente uma novidade schilleriana, ainda que tenhamos que reconhecer a originalidade do impulso lúdico como estratégia para unir ambas as dimensões no homem: a da natureza e a da cultura, tentativa que também iremos encontrar em Rousseau. No entanto, para este autor, a estratégia de reunificação encontrará na política a sua mais alta forma de realização. De qualquer modo, as relações entre natureza e cultura constituem o fulcro de todo o arcabouço teórico do filósofo genebrino, o que certamente influenciou toda a modernidade que se seguiu.

De acordo com Hauser (1995), o “primitivismo” rousseauísta como uma variante de um ideal arcádico que reaparece sempre que uma cultura se sente exaurida, traduzido por um “desconforto com a cultura” ou, se quiserem, por uma “fadiga cultural” que clama por um “sonho de redenção”, é um sentimento que, com Rousseau, tornou-se consciente pela primeira vez. Nas palavras desse historiador social da arte e da literatura, a

verdadeira originalidade de Rousseau consistiu em sua tese, tão monstruosa em suas implicações para o humanismo iluminista, de que o homem culto é um degenerado e toda a história da civilização uma traição do destino original da humanidade, de que, portanto, a doutrina básica do Iluminismo, a crença no progresso, quando analisada em detalhe, não passa de uma superstição (HAUSER, 1995, p. 570).

Mas o fato é que Rousseau estabelece uma intrincada relação entre a natureza e a cultura, adjetivação que também podemos aplicar a Schiller. Principalmente se considerarmos que, para o pensador genebrino, a cultura (ou se quisermos, a educação, a sociedade, ou ainda, a história) aparece, e ao mesmo tempo, como fonte de corrupção e meio de redenção. É salutar observar, porém, que no tocante a Schiller, aquilo que motiva a cisão do homem moderno nos nossos tempos, não está diretamente relacionado com a cultura em si, mas com um determinado tipo de cultura. Não está presente no ideal schilleriano nenhum tipo de “primitivismo” rousseauísta, para reproduzir as palavras de Hauser. A ideia de natureza em Schiller - que parece ser importante para nossas breves considerações finais sobre o impulso lúdico - segue o caminho kantiano, a saber, de que quando o homem permanece aprisionado aos desígnios da natureza, não é completamente livre. Conforme Süssekind (2011, p. 13):

“segundo Schiller, a cultura pode ser concebida como resposta física do homem contra as imposições da natureza, pois graças ao seu entendimento, às realizações da técnica, ele consegue aumentar artificialmente as suas próprias forças naturais”.

Dessa forma, a autonomia da razão frente a não liberdade imposta pela natureza exerce um papel privilegiando para este autor.

Por outro lado, provavelmente influenciado por Rousseau, Schiller diferenciou a poesia ingênua da poesia sentimental, sendo que esta última, segundo as palavras de Anatol Rosenthal (1963, p. 14) no prefácio às Cartas parte dos sentimentos motivados por uma espécie de angústia “pela nostalgia da unidade perdida que procuram [os poetas sentimentais] reencontrar” e buscando o que esse comentador denominou de “segunda inocência”. Isso significa que podemos encontrar em ambos os teóricos-artistas um “trabalho” - ou como comentou Adauto Novaes (1994, p. 11) ao citar Paul Valéry - uma “estranha indústria” por trás da reconstituição de uma emoção ou de um sentimento, o que não dispensa a colaboração do intelecto. Segundo Novaes (1994, p. 15):

tanto o pensamento como a arte, ao transformarem a origem confusa da imaginação, em obras de arte e obras de pensamento, recorreram à razão mais ainda: para os trabalhos de pensamento e de obra de arte, a razão jamais se sobrepõe à imaginação, nem se desenvolve à parte: ela é também sentimento de alegria - paixão alegre que aumenta a potência de criar, pensar e agir.

Arte e pensamento, nos escritos filosófico-literários de Jean-Jacques Rousseau, irmanam-se mediante o que Jean Starobinski (1991, p. 365-366), para o caso específico dos Devaneios, chamou de “transmutação purificante” que consiste, segundo esse respeitado comentador, no trabalho psíquico de passar “de um estado de perturbação e conflito a um estado de simplicidade límpida”, cuja ambição, por meio da escrita, é a de expressar uma “forma viva”? Sustentado por sua própria teoria da linguagem, procurou na música a força das palavras (em oposição ao fausto), (re) criando uma retórica que busca ofertar a si mesmo uma “cura” e, ao leitor, a natureza- paisagem pelo artifício de uma escrita “pictórica” junto a ilusão da experiência primeira. No caso de Schiller, essa colaboração faz-se mediante um fecundo exercício do espírito que procura aliar uma filosofia subjetiva às exigências do conceito, buscando neutralizar a dicotomia entre razão autônoma e sentimento por meio do impulso lúdico, aquele que faz com que os dois impulsos humanos atuem de forma conjunta e que, jogando com a beleza, constitui o ideal formador do homem.

Referências

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1Segundo Isaiah Berlin, é “precisamente nisso que os alemães não acreditavam, é precisamente do que eles acusavam Rousseau , com justiça, de acreditar” (2015, p. 92).

2Há uma circularidade que permeia as ideias de liberdade (ou política) e estética.Tal circularidade, como observa Suzuki em uma nota, remete a uma discussão com Fichte. Este teria escrito um ensaio (O Espírito e a Letra na Filosofia. Numa série de cartas), cuja publicação Schiller recusou em sua revista. Os problemas postos em questão são: é realmente pela beleza que vai à liberdade? Como alguém pode gozar do prazer do estético em estado de servidão? É necessário que os homens sejam privados da liberdade antes que se dê uma educação estética? (Verificar Suzuki, nota 6, 23, p. 2014)

3Em 1750, Alexander Baumgarten cunha o termo “estética” conforme o entendemos, ou seja, como uma investigação filosófica da sensibilidade.

4Grécia e Roma são os exemplos.

5Contraponto ao exemplo dos gregos antigos, Schiller cita as arenas de gladiadores na antiga Roma, nas quais predominava somente o impulso material.

Recebido: 27 de Dezembro de 2015; Aceito: 22 de Fevereiro de 2017

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