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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.63 Uberlândia set./dic 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n63a2017-05 

Dossiê: Diferenças e Educação - explorações conceituais entre o Brasil e a França

Antropofagia para além da metáfora: por uma filosofia da diferença (anotações de um professor de filosofia)

Anthropophagie au-delà de la métaphore: vers une philosophie de la différence (notes d’un professeur de philosophie)

Anthropophagy beyond metaphor: for a philosophy of difference (notes of a professor of philosophy)

Filipe Cepas* 

*Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: filcepps@gmail.com


Resumo

Pensar a antropofagia para além da oposição metafórico/literal, próprio/ não-próprio, parece impossível. E, ainda assim, é a isso que nos convida Oswald de Andrade, quando define o pensamento como sendo da ordem da devoração, da ultrapassagem da oposição Eu/outro. O estado de guerra, de oposição, é constitutivo, sem pressupor uma identidade primeira (devoro, logo existo, poderíamos dizer; ou, “sou inimigo do meu inimigo”, na formulação de Viveiros de Castro). Este texto se propõe a explorar livremente, de modo ensaístico, a devoração, a ausência de reciprocidade e a comunhão efêmera a que esta dá lugar, assim como suas implicações para o ensino de filosofia.

Palavras-chave: Antropofagia; Negação da reciprocidade; Ensino de filosofia

Résumé

Penser l’anthropophagie au-delà de l’opposition métaphore/literal, propre/non-propre, cela nous semble impossible. Et pourtant, voilà ce qui nous invite Oswald de Andrade, quand il nous donne la définition de la pensée comme dévoration, le dépassement de l’opposition moi/l’autre. L’état de guerre, l’opposition, cela est constitutive, sans présupposer une identité première (je dévore, donc je suis, on dirait; ou, «Je suis l’ennemi de mon ennemi” dans la formulation de Viveiros de Castro). Ce texte se propose d’explorer librement, en utilisant la forme d’essaye, la dévoration comme l’absence de réciprocité et comme communion éphémère à laquelle cela donne lieu, pour en dégager les implications dans l’enseignement de la philosophie.

Mots clé: Anthropophagie; Refus de la réciprocité; Enseignement de la philosophie

Abstract

It seems an impossible task to think of anthropophagy beyond the opposition of metaphorical/literal, proper/non-proper. And yet, that is what Oswald de Andrade invites us to, when he defines thinking as being a kind of devouring, overcoming the opposition I/other. The state of war, the opposition itself, is constitutive, without presupposing a first identity (I devour, therefore I exist, we could say, or, “I am the enemy of my enemy”, in the formulation of Viveiros de Castro). This text proposes to freely explore, in an essayistic way, the devouring, the absence of reciprocity and the ephemeral communion to which it gives rise, and its implications for the teaching of philosophy.

Keywords: Anthropophagy; Denial of reciprocity; Teaching of philosophy

Inicio o texto com algumas “teses”. O ensino-aprendizado da filosofia não deve ter como pressuposto a centralidade desta para a construção de uma “postura crítica”, mas deve reinventar essa postura enquanto exercício de apropriação e subversão da “tradição do pensamento ocidental”. É inconcebível ensinar filosofia como se vivêssemos na Europa, ou como se quiséssemos apenas nos adaptar ao mundo hipertecnicizado, sonhando com a superação do subdesenvolvimento do eterno país do futuro. É preciso partir de um desejo da diferença para reinventar a civilização. Se a globalização pode significar um rearranjo produtivo, tectônico, em que o mundo todo tende à homogeneização e a (para lá de relativa) ausência de fronteiras, torna-se ainda mais urgente a atenção para com nossa diferença específica. Formulemos de modo dramático e epigráfico o que iremos desenvolver daqui para frente: nossa responsabilidade é com a revolução caraíba, antropófaga! E seria preciso começar por reinventar o conceito de responsabilidade.

Responsabilidade no Ocidente, num sentido não-antropófago, é ser capaz de responder, responder por algo ou alguém. Mais ainda: estar comprometido com essa função de responder por; estar obrigado a representar, até mesmo juridicamente, o papel daquele que responde por algo ou por alguém. Esse compromisso, esse constrangimento, de onde ele vem?

No Ocidente, a afirmação radical da responsabilidade pressupõe uma ordem regular, hierárquica e transcendente, que fixa os papéis. Antes que esta surgisse, a ação significativa no mundo dava-se, ao contrário, pela força da intervenção divina, orgiástica, imanente, inscrita na linguagem e nos fenômenos. Foi a filosofia grega que instituiu a regularidade na natureza para além das aparências. Como disse Vlastos (1987, p. 16), neste ponto,

todos os physiológoi estariam unidos - um grupo de intelectuais contra o mundo. Qualquer outra pessoa, grega ou bárbara, admitiria, como certeza, que qualquer regularidade que se pudesse mencionar poderia falhar, e por uma razão que excluía a priori uma explicação natural do fracasso: porque era causada por um intervenção sobrenatural.”

A filosofia institui a responsabilidade para com o saber, o que significa desejo de ver e dizer a regularidade intrínseca do mundo. É com essa filosofia que nós, enquanto professores de filosofia nos trópicos, estamos comprometidos? Estamos acostumados a dizer que esse compromisso é antes um compromisso com a história desse desejo, com a história da filosofia; ou, antes, ainda, que um não é possível sem o outro: é preciso ensinar história da filosofia e ensinar a filosofar.

Mas seria possível um outro tipo de compromisso com a filosofia e o filosofar? Um compromisso antropófago, caraíba? Digamos que a própria filosofia nos ensinou que o nosso compromisso é sobretudo com a verdade, com o pensamento, a linguagem e a ação (mais amigo da verdade do que de Platão), mas também que parece impossível dizer verdade, pensamento, linguagem e ação sem que estejamos já enredados na história da filosofia. O porquê de um compromisso antropófago tem a ver, portanto, com um desejo e uma desconfiança, a partir de parâmetros mais ou menos extrínsecos à civilização e à história da filosofia, perante esse “ver e dizer a ordem do mundo”.

Guardemo-nos de dizer que se trata de negar ou de relativizar “a filosofia”. Como poderíamos decidir, a priori, até onde se pode ir numa perspectiva que mal começamos a esboçar? Trata-se, sem dúvida, de uma atitude. Por um lado, forçar o pensamento nos seus limites: rever a filosofia, por exemplo, “a partir de” ou “em contraste com” nossas outras heranças: índias e negras. Por outro lado, trata-se talvez, também, ainda, de um compromisso, de uma responsabilidade com a filosofia, talvez também com um ver e dizer a ordem do mundo, mas de um modo radicalmente outro, visceral, sempre desde esse lugar que ocupamos.1

Mas porque? Por que desconfiamos “da filosofia”? E por que ainda nos prendemos a ela? Podemos desconfiar da filosofia por conta de duas teses aparentemente contraditórias: (1) a filosofia (o “pensamento ocidental”) é peça fundamental, determinante, na arquitetura de uma civilização que caminha sob o signo da catástrofe e da autodestruição; ou (2) ela é um ornamento necessário, que parece poder consolar, traçar linhas de fuga, resistências diante do irremediável (uma “estética da existência”). Filosofia como cumplicidade, legitimação ou reforma; filosofia como consolação, resistência ou subversão. Como vivenciar, hoje, a filosofia como exercício utópico o mais livre possível dessas duas alternativas aparentemente contraditórias e igualmente insatisfatórias? A disjuntiva poderia, é verdade, ser facilmente desconstruída, mas talvez ela não seja inútil para pensar a urgência de uma aposta em torno da antropofagia.

Porque, enquanto professores de filosofia, quando dizemos “filosofia”, “pensamento ocidental” ou “história da filosofia”, nos referimos a um ilimitado repertório de problemas, métodos, conceitos e, acima de tudo, perspectivas de vida (complexas relações entre pensamento e existência, mais do que apenas doutrinas) ao qual expomos nossos alunos e alunas, com uma vaga convicção de que o fazemos “para o bem da humanidade”. Não seria aquela disjuntiva talvez a única capaz de nos ajudar a tornar menos vaga essa convicção? “Bem da humanidade” já não é uma das fantasmagorias preferidas de toda a narrativa do Ocidente? Por mais que amenizemos a finalidade, ou quanto mais a amenizamos - por exemplo, ao invés de exercício crítico, pensar em simplesmente oferecer um repertório da cultura, supostamente relevante para o/a estudante -, parece impossível escapar dessa narrativa; afinal, por que ou para que fazemos essa “oferta”? Qual sua relevância? De todo modo, parece improvável que possamos fazer encarnar, ou superar, o fantasma do “bem da humanidade”, sobretudo nos trópicos, sem subvertê-lo de algum modo.

“Pensamento ocidental” é algo mais amplo do que a filosofia: é algo que ela ajudou a produzir e procurou, digamos, decodificar e fundamentar. Nossos padrões perceptivos, nossas estruturas linguísticas, nossos comportamentos, a técnica, a produção de objetos, as relações sociais e toda a economia de nossas vidas compondo o possível e o necessário, o tempo e o espaço, o início e o fim, o próprio e o alheio e todos os dualismos que podemos atribuir à “metafísica do Ocidente”. Se pensamos a antropofagia como um projeto de enfrentamento da “clausura metafísica”, podemos concordar, na esteira de Derrida, que isso envolve uma guerra (destruição/ desconstrução) do pensamento e da linguagem. Ensaiar uma guerra do pensamento e da linguagem seria procurar ir além das figuras herdadas da tradição metafísica. O que significa dizer que isto somente se faria de forma violenta, pela devoração? Nada de metáfora aqui. Ou, antes, trata-se de ensaiar o impossível: a guerra e a devoração no pensamento e na linguagem entendidas fora do regime literal vs. metafórico. O que seria isso?

A própria tradição metafísica nunca deixou de explorar esses limites. Derrida o demonstra na análise da questão da metáfora na filosofia. Quando a filosofia quer pensar o que há de natureza metafórica em seu próprio discurso, ela esbarra em seus limites.

é impossível dominar a metafórica filosófica, como tal, do exterior, ao servir-se de um conceito de metáfora que permanece um produto filosófico. Apenas a filosofia pareceria deter alguma autoridade sobre as suas produções metafóricas. Mas, por outro lado, pela mesma razão, a filosofia priva-se do que se dá. Os seus elementos pertencendo ao seu campo tornam-na impotente para dominar a sua tropologia e a sua metafórica gerais. (…) É a partir do além da diferença entre o próprio e o não-próprio que é necessário dar conta dos efeitos de propriedade e não-propriedade. Por definição, não existe, portanto, categoria propriamente filosófica para qualificar um certo número de tropos que condicionariam a estruturação das oposições filosóficas ditas “fundamentais”, “estruturantes”, “originárias”: tanto quanto as “metáforas” que constituiriam o título de uma tal tropologia, as palavras “figura” ou “tropo” ou “metáfora” não escapam à regra. Para se permitir ignorar essa vigilância da filosofia, seria necessário postular que o sentido visado através destas figuras é uma essência rigorosamente independente do que a transporta, o que já é uma tese filosófica, poder-se-ia mesmo dizer a única tese da filosofia, aquela que constitui o conceito de metáfora, a oposição do próprio e do não-próprio, da essência e do acidente, da intuição e do discurso, do pensamento e da linguagem, do inteligível e do sensível, etc. (DERRIDA, 1991, p. 293-294).

Pensar a antropofagia para além da oposição metafórico/literal, próprio/não-próprio, parece, de fato, impossível. E, ainda assim, é a isso que nos convida Oswald, quando define um pensamento como sendo da ordem da devoração, da ultrapassagem da oposição Eu/outro (“só me interessa o que não é meu”), em estado de guerra, oposição (o tupinambá só devora o inimigo valente). O estado de guerra, de oposição, é constitutivo (devoro, logo existo, poderíamos dizer). Como argumenta Viveiros de Castro (2002, p. 293), “sou inimigo do meu inimigo” é uma definição que não pressupõe nenhum princípio de identidade primeira ou exclusiva. Dada a dificuldade/ impossibilidade de romper os limites do eu-europeu-metafísico que nos constitui, resta seguir os contornos do limite do pensável e ensaiar novas formas de discurso (guerra da linguagem).

Santiago (2008, p. 21), escrevendo sobre o Manifesto Antropófago, em 2007, afirmou que, “no domínio da antropofagia, o único valor responsável é o exorbitante”. Ele cita Levinas - “a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Neste sentido, sou responsável pelo outro sem esperar a reciprocidade, ainda que me custe a vida. A reciprocidade é assunto dele” -; para concluir, então, que “a reciprocidade não é jamais assunto da antropofagia” (SANTIAGO, 2008, p. 21).

Digamos que o mais exorbitante é a quebra de contrato, é recusar a troca, a equivalência, o nascimento da lógica (“nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”) e, por conseguinte, da justiça, da verdade e do bem. Padre Vieira se espantava com o fato de que os indígenas aceitavam pacificamente tudo o que os portugueses lhes ofereciam ou lhes impunham e por isso mesmo eram mais difíceis de catequizar, pois dispensavam com igual facilidade aquilo que lhes era dado ou imposto. Essa devoração e a ausência de reciprocidade não excluem o “diálogo”, a troca como devoração, como possibilidade do inimigo vir a ser amigo (por exemplo: a metrópole preocupava-se com o fato de muitos colonos passarem a viver como índios). Essa devoração, a ausência de reciprocidade e a comunhão efêmera a que dá lugar nos remetem à discussão do dom e do contra-dom de Mauss ou, mais precisamente, aos comentários a que lhe apôs Derrida. E o que nos interessa nessa remissão, inicialmente, é apenas evitar toda e qualquer “idealização” em torno de uma perspectiva antropofágica possível, indicando, de modo abreviado, o caráter agonístico, antinômico, violento, de todo discurso que queira enfrentar-se com o limite do pensável “a partir de”, “em consonância com”, “levando em conta” a herança ameríndia.

As teorias antropológicas de Mauss e Lévi-Strauss pensam a diferença entre o Ocidente e as sociedades indígenas sob o fundo de uma semelhança. Em Lévi-Strauss, esta semelhança encontra-se nos binarismos constantes que presidem o paralelismo estrutural entre a organização social e os mitos. Em Mauss, a semelhança seria o fundo comum da relação de doação e reciprocidade, um socialismo liberal que, nos diz Derrida (1991, p. 64), Mauss gostaria de opor “à frieza inumana do economicismo, desses dois economicismos que seriam o mercantilismo capitalista e o comunismo marxista”. Em ambos os casos, a sociedade indígena aparece como o espelho invertido de nossa civilização, o que uma passagem de Tristes Trópicos, referindo-se precisamente à antropofagia, resume bem:

Nenhuma sociedade é perfeita. Todos comportam, por natureza, uma impureza incompatível com as normas que proclamam e que se traduz concretamente por uma certa dose de injustiça, de insensibilidade, de crueldade. Como avaliar esta dose? A pesquisa etnográfica consegue-o sempre. Pois que, se é verdade que a comparação num pequeno número de sociedades as faz surgir muito diferentes entre si, essas diferenças atenuam-se quando o campo de investigação se alarga. Descobre-se então que nenhuma sociedade é fundamentalmente boa; nem, também, absolutamente má. Todas oferecem certas vantagens aos seus membros, tendo em conta um resíduo de iniquidades cuja importância parece aproximadamente constante (…). Tomemos o caso da antropofagia, que, dentro de todas as práticas selvagens, é, sem dúvida, aquela que nos inspira mais horror e repugnância. (…) [Tomemos] as formas de antropofagia que se podem chamar positivas, aquelas que provêm de uma causa mística, mágica ou religiosa: assim, a ingestão de uma parcela do corpo de um ascendente ou de um fragmento de um cadáver inimigo pode permitir a incorporação de suas virtudes ou ainda a neutralização do seu poder; além do facto de tais ritos se realizarem, na maior parte das vezes, de maneira muito discreta, incidindo sobre pequenas quantidades de matéria orgânica pulverizada ou misturada com outros alimentos, reconhecerse-á, mesmo quando revestem formas mais fracas, que a condenação moral de tais costumes implica, quer uma crença na ressurreição corporal que estaria comprometida pela destruição material do cadáver, quer a afirmação de um laço entre alma e corpo e do dualismo correspondente, isto é, convicções que são da mesma natureza daquelas em nome dos quais o consumo ritual é praticado e que não temos razão de preferir àquele. Tanto mais que a desenvoltura em relação à memória do defunto, que poderíamos censurar no canibalismo, não é certamente maior, antes pelo contrário, do que aquela que toleramos nos anfiteatros de dissecação (LÉVI-STRAUSS, 1981, p. 382-383, grifo nosso).

A afirmação de um fundo comum de convicções equivalentes (da mesma natureza) parece escandalosa, contraditória com tudo o que o próprio Lévi-Strauss afirma sobre a dificuldade da interpretação do etnógrafo. Assim também Mauss com relação ao dom. Em Donner le temps, Derrida tenta mostrar o quanto a análise antropológica evita questionar seus pressupostos para poder identificar no dom e no contra-dom um princípio geral de troca e de regulação social mais originário, inscrito na linguagem, contendo uma racionalidade que, em sua aparente gratuidade, mostra-se “no fundo” menos chocante do que (e que deveria servir para nos ajudar a regular, a encontrar o bom termo para) a troca mercantil (tal como, em Lévi-Strauss, a antropofagia mostra-se “preferível” aos nossos sistemas judiciais e presidiários).2

Tanto com relação ao dom, como em relação à metáfora, Derrida revolve os pressuspostos fonologocêntricos das interseções entre linguagem e economia que atravessam a metafísica ocidental, incluída aí a antropologia e a linguística estruturais. Sabemos que as relações entre linguagem e economia não se fundam simplesmente numa mera transposição metafórica. Vernant (1986, p. 59-60), por exemplo, mostrou o quanto o surgimento da racionalidade grega estava relacionado, dentre outros aspectos, à necessidade de controlar a riqueza:

contrariamente a todos os outros “poderes”, a riqueza não comporta nenhum limite: nada há nela que possa marcar seu termo, limitá-la, realizá-la totalmente. A essência da riqueza é o descomedimento; ela é a própria figura que a hybris toma no mundo. Tal é o tema que volta, de maneira obsedante, no pensamento moral do século VI. Às fórmulas de Sólon passadas a provérbios: “Não há termo para a riqueza. Koros, a saciedade, engendra hybris”, fazem eco as palavras de Teógnis: “Os que hoje têm mais ambicionam o dobro. A riqueza ta chrémata, torna-se no homem loucura, aphrosyne”. (…) Em contraste com a hybris do rico, delineia-se o ideal da sophrosyne. É feito de temperança, de proporção, de justa medida, de justo meio. “Nada em excesso”, tal é a fórmula da nova sabedoria.

Vernant (1986, p. 67) mostra ainda que o principal dispositivo para alcançar este objetivo foi a moeda.

.é no quadro desse esforço geral de codificação e de medida que se deve situar a instituição da moeda em sentido próprio, isto é, da moeda do Estado, emitida e garantida pela Cidade. O fenômeno terá as conseqüências econômicas que se conhecem: nesse plano representará na sociedade grega uma espécie de fator de profunda transformação, orientando-a no sentido do mercantilismo. (…) No plano intelectual, a moeda titulada substitui a imagem antiga, toda carregada de força afetiva e de implicações religiosas, de uma riqueza feita de hybris, pela noção abstrata de nómisma, padrão social de valor, artifício racional que permite estabelecer entre realidades diferentes uma medida comum e igualar assim o intercâmbio como relação social.

No horizonte conceitual da antropofagia, solicitar-se-ia a oposição de um dom e de uma troca do não equivalente (por exemplo, nas trocas sacrificiais) à lógica da moeda titulada e da usura,3 sem querer, ao mesmo tempo, fundar essa oposição em outra, que lhe seria estranha, entre natureza e artifício - como se os índios recusassem à usura porque estariam “mais perto da natureza” e distantes daquela única forma de cultura que possibilitaria uma maior diversidade econômica e social.

Nossa referência marginal à antropofagia, enquanto horizonte conceitual ele mesmo à margem, apesar de todo o prestígio que o cerca, permanece aqui como uma miragem, miragem de uma negociação, tal como formulada por Santiago (2008, p. 21):

mais do que o signo de reconhecimento de uma dívida que se perde no turbilhão dos séculos. A antropofagia é a primazia de uma negociação [com o repertório universal e universalizante da cultura ocidental, FC] cujo resultado - o abatimento ou o desconto do preço legal e oficial (…) - é a iluminação deste mundo e de seus habitantes pela amplidão absoluta da consciência plena das diferenças no exercício de sua ultrapassagem.

Como esse exercício da consciência plena das diferenças e sua ultrapassagem podem servir de estímulo para o ensino e o aprendizado de uma filosofia que não se queira refém da “afirmação do mesmo”? Que exercício é esse? Comecemos pela recusa da usura: um pensamento não vale mais do que outro; a troca, no âmbito do pensamento, não pode ser regida pela ideia de verdade ou de regularidade do mundo, nem de reciprocidade. Trata-se, inicialmente, apenas disso: o acesso a esses princípios ocidentais do pensamento deve ser dramatizado, como num ritual canibal. Trata-se de ensaiar o jogo dos valores do Ocidente tal como os índios puderam, até hoje, conviver com eles, sobreviver a eles e apesar deles. Pensar a devoração (e não a troca, a equivalência, a lei ou a lógica) como forma diferenciada de regulação da hybris, da riqueza e da saciedade.4

O “índio tecnizado” de Oswald é uma figura possível dessa devoração, para além de toda metáfora. É o processo de um saque, de uma pilhagem nativa, o pensamento a golpe de tacape servindo-se de tudo o que lhe aparece sem a promessa do ressarcimento, sem contra-dom. Calote na dívida que supostamente contraímos ao nos reconhecermos como que “reféns” do “pensamento ocidental”. É toda a regra do dever e da responsabilidade que é subvertida. Não exporemos mais nossos alunos à suposta necessidade de “compreender” os valores do Ocidente (o que significa, usualmente, “assentir minimamente”, na farsa do esclarecimento escolar, aos “grandes valores” como a Democracia, o Direito, a Razão). Devoraremos aqueles valores que eventualmente nos engradecem, pequenos ou grandes valores, “valores valentes”, sem esperar nada em troca, sem dar nada em troca, cientes de que continuamos “bárbaros”, “selvagens”; cientes de que, se é para falar em nome da democracia, por exemplo, seria preciso reinventar a democracia nos trópicos. Numa perspectiva antropofágica, é preciso reinventar o ensino de filosofia nos trópicos como desconstrução selvagem de suas metáforas.

Referências

ANDRADE, Oswald. Obras completas vol.6, Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. [ Links ]

CEPPAS, Filipe. Responsabilidade do ensino de filosofia nos trópicos. O professor-xamã. O que nos faz pensar. v. 34, Rio de Janeiro: PUCRJ, p. 237-247. 2014. [ Links ]

DERRIDA, J. Donner le temps, Paris: Galilée, 1991. [ Links ]

______. Margens da filosofia, Lisboa: Gimarães ed, s/d. [ Links ]

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos, Tradução de Jorge C. Pereira, Lisboa: Edições 70, 1981. [ Links ]

SANTIAGO, Silviano. Le commencement de la fin. In: SANTIAGO et. al. Brésil/Europe: repenser le mouvement antropophagique, n. 60, Paris: College International de Philosophie, papiers, 2008. [ Links ]

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, Tradução de Ísis B. B. da Fonseca, São Paulo: Difel, 1986. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem, São Paulo: Cosacnaify, 2002. [ Links ]

______. Posfácio. In: CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência, Tradução de P. Neves, São Paulo: Cosac Naify, 2014. [ Links ]

VLASTOS, Gregory. O universo de Platão. Tradução de Maria L. M. S. Coroa, Brasília: Ed. UnB, 1987. [ Links ]

1Sobre a questão da responsabilidade em relação com a antropofagia, o sacrifício e o ensino de filosofia, ver Ceppas (2014).

2“Penso nos nossos costumes judiciários e penitenciários. Ao estudá-los de fora, seríamos tentados a opor dois tipos de sociedades: aquelas que praticam a antropofagia, isto é, que vêem na absorção de certos indivíduos, detentores de forças temíveis, o único meio de neutralizarem estas, e mesmo de beneficiar delas; e as que, como a nossa, adoptam aquilo que se poderia chamar a antropémia (do grego émein, vomitar); colocadas perante o mesmo problema, escolheram a solução inversa, que consiste em expulsar esses seres temíveis para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabelecimentos destinados a este fim.” (LÉVI-STRAUSS, 1981, p.383) Sobre a “idealização” das “sociedades arcaicas” por parte de Mauss, pode-se ler: « On peut et on doit revenir à de l’archaïque, à des éléments (…); on retrouvera des motifs de vie et d’action que connaissent encore des sociétés et des classes nombreuses: la joie à donner en public; le plaisir de la dépense artistique généreuse; celui de l’hospitalité et de la fête privée et publique. L’assurance sociale, la sollicitude de la mutualité, de la coopération, celle du groupe professionnel, de toutes ces personnes morales que le droit anglais décore du nom de “ Friendly Societies “ valent mieux que la simple sécurité personnelle que garantissait le noble à son tenancier, mieux que la vie chiche que donne le salaire journalier assigné par le patronat, et même mieux que l’épargne capitaliste - qui n’est fondée que sur un crédit changeant» (DERRIDA, 1991, p. 89).

3“A inconstância da alma selvagem, em seu momento de abertura, é a expressão de um modo de ser onde « é a troca, não a identidade, o valor fundamental a ser afirmado », para relembrarmos a profunda reflexão de Clifford.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 206).

4Sobre a questão da troca e da dívida e a centralidade deste debate na antropologia, a partir dos trabalhos de Pierre Clastres e de Deleuze & Guattari, ver Viveiros de Castro (2015).

Recebido: 20 de Dezembro de 2016; Aceito: 17 de Maio de 2017

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