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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.63 Uberlândia set./dic 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n63a2017-07 

Dossiê: Diferenças e Educação - explorações conceituais entre o Brasil e a França

Governar pela dívida e subjetividade funcional na educação: qual o lugar da deficiência?

Governing by debt and functional subjectivity in education: what is the place of disability?

Gobernar por la deuda y subjetividad funcional en la educación ¿cuál es el lugar de la deficiencia?

Alexandre Filordi de Carvalho* 

*Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E-mail: afilordi@gmail.com


Resumo

A partir da leitura de Gouverner par la dette (LAZZARATO, 2014), o objetivo do trabalho consiste em investigar a relação das estratégias consolidadas em um tipo de sociedade governada pela dívida com a produção de subjetividades. Significa pensar que, neste tipo de sociedade, a subjetividade é absorvida pelos dispositivos e pelos agenciamentos da dívida compelindo cada um a uma experiência de endividamento próprio com uma mais-perfeição que nunca se obterá. Assim, reduz-se as possibilidades de modos de ser a uma subjetividade funcional. Privilegiando a deficiência como um valor próprio, a hipótese interpretativa assinala que o sujeito deficiente é um operador crítico e de mutação dos agenciamentos produtores de subjetividade na sociedade governada pela dívida. De um lado, porque o campo da deficiência anuncia uma polivocidade de sentidos contra a univocidade de sentidos que são forjados nas sociedades governadas pela dívida, sociedades com Estado (CLASTRES, 2009). Por outro lado, porque ao indagar a composição das unificações de sentidos, questiona-se a própria produção de subjetividades funcionais. Para tanto, o trabalho avança em três frentes. Na primeira, introduz a questão do governo da dívida na dimensão geral das sociedades com Estado e como esta relação assinala para uma produção cultural unificadora. A seguir, analisa a produção de subjetividade por intermédio do governar pela dívida. Finalmente, aborda a questão da deficiência como polivocidade de sentidos face à produção da subjetividade, trazendo implicações para se pensar o amplo papel da educação na cultura do governo pela dívida, perscrutando como a dimensão subjetiva pode ser distinta daquele a que somos destinados pela axiologia da dívida.

Palavras-chave: Governar pela dívida; Produção de subjetividades; Subjetividade funcional; Deficiência; Educação

Abstract

From the reading of Gouverner par la dette (LAZZARATO, 2014), the aim of this text involves investigating the relationship of the consolidated strategies in a type of society governed by debt with the production of subjectivities. It means think that in this kind of society, the subjectivity is absorbed by some dispositives and the assemblages of debt compelling each one to an own debting experience with a more-perfection that it never gets. Thus, it reduces the possibilities of ways of being in a functional subjectivity. Privileging the disability as a proper value, the interpretive hypothesis points out that the disabled subject is a critical acting and, in the same time, a changeable of the assemblages producers of subjectitivy in the society governed by debt. On the one hand, because the field of disability announces a polyvocity of sens against univocal meanings shapping in societies governed by debt, societies of the State (CLASTRES, 2009). On the other hand, because when it inquire the composition of the unifications of senses it asking the own production of functional subjectivities. At first, it introduces the issue of governing by debt upon a general view concerning the societies of the State e how this relationship indicates to a cultural unifier production. Then, it analyzes the production of subjectivity through the governing by debt. Finally, it approaches the issue of disability as polyvocity of senses around the production of subjectivity, bringing some implications to think the broader role of education in the culture of government by debt, seeing how the subjective dimension can be different from that to which we are destined by the axiology of debt.

Keywords: Governing by debt; Production of subjectivities; Functional subjectivity; Disability; Education

Resumen

A partir de la lectura de Gouverner par la dette (Lazzarato, 2014), el objetivo del trabajo es investigar la relación de las estrategias puestas en tipo de sociedad gobernada por la deuda con la producción de las subjetividades. Esto significa pensar que, en tal sociedad, la subjetividad es absorbida por los dispositivos y agenciamentos da deuda llevando cada uno a una experiencia de endeudamiento propio con una más-perfección que jamás se llegará. Así, se reducen las posibilidades de modos de ser a una subjetividad funcional. Tomando la deficiencia como un valor propio, la hipótesis interpretativa indica que el sujeto deficiente es un operador crítico y de mutación de los agenciamentos productores de subjetividad en la sociedad gobernada por la deuda. De un lado, porque el campo de la deficiencia anuncia una multiplicidad de sentidos contra la unicidad de sentidos que son hechos en las sociedades gobernadas por la deuda, sociedades con Estados (Clastres, 2009). Por otro lado, porque al indicar la composición de las unificaciones de sentidos, cuestionase la propia producción de subjetividades funcionales. De hecho, el trabajo avanza en tres direcciones. En la primera, introduce la cuestión del gobierno da la deuda en la dimensión general de las sociedades con Estado y como esa relación indica una producción cultural unificadora. Después, se analiza la producción de subjetividad por medio del gobernar por la deuda. Por último, se investiga la cuestión de la deficiencia como multiplicidad de sentidos delante la producción de la subjetividad, trayendo implicaciones para se pensar el amplio papel de la educación en la cultura del gobierno por la deuda, analizando como la dimensión subjetiva puede ser distinta aquella a la cual somos destinados por la axiología de la deuda.

Palabras claves: Gobernar por la deuda; Producción de subjetividades; Subjetividad funcional; Deficiencia; Educación

Introdução à problematização

A cultura ocidental, argumentava Lévi-Strauss (1980), foi capaz de se valer de uma história cumulativa como nenhuma outra cultura. Refinando, de geração em geração, um conjunto de técnicas científicas, de procedimentos de dominação da natureza, de previsibilidade racionalizada perante as suas necessidades, tal como o enfrentamento da escassez, o Ocidente jamais conheceu o seu ponto nec plus ultra de cumulação. De transformação em transformação, o estilo de vida ocidental soergueu-se numa espécie de monobloco referencial com os seus valores, os seus padrões, os seus costumes, as suas crenças e expectativas e, sem reconhecer limites fronteiriços, invadiu e dominou, com a sua especialização estatal, toda e qualquer idiossincrasia cultural por onde passasse.

Em uma primeira etapa, os processos de colonização desempenharam este papel com muita precisão. Expropriação, subjugação, escravidão e servilismo, indigenização e aniquilação de patrimônios vivos - religiões, artes, línguas, costumes - foram cruciais para a consolidação incontornável da ocidentalização do mundo. Mas em uma segunda etapa, vieram os modos de produção e de relações humanas derivados da Revolução Industrial para consolidar a especialização de cumulação da experiência cultural ocidental.

Em ambos os casos, como Clastres (2009) nos permite sustentar, tratou-se de ampliar a presença do Estado na face luminosa desta história. Precisamente nas sociedades com Estado, gestão, hierarquia, concorrência, exploração, e o mais determinante, a imposição do trabalho alienante tiveram e têm lugares garantidos. Formas livres de se viver, independentes de graus hierárquicos reconhecedores de relações de poder pela força, a ênfase no uso livre do tempo e sobretudo na multiplicidade de possibilidades de modos de viver, bem como o trabalho para si no seio da manutenção de uma comunidade menor, por exemplo um clã, deixam de existir. Por isto mesmo, o Estado tornou-se sinônimo de o Um, aquele que unifica tudo e a todos; o Estado, assim, é uma experiência de sedentarismo, assumindo múltiplas formas. Neste caso, não se trata de tomar a interpretação de Pierre Clastres com o intuito de fazer coincidir esta função estatal com a emersão dos Estados modernos. Uma sociedade com Estado é toda aquela cuja autoridade advém da hierarquia, da relação de poder impositiva, do assujeitamento dos homens (CLASTRES, 2009).

Ora, parece-me ser uma hipótese interessante pensar o Ocidente como uma experiência cultural ampla de ressonância do Estado, quer seja colonizando no sentido da conquista territorial, quer seja colonizando na direção de impor o seu modo de trabalhar, produzir, consumir, de forjar sentido e proveito à energia humana, de colmatar com padrões massificadores a dimensão simbólica dos seus indivíduos. Numa ideia, a história cumulativa ocidental diz respeito à institucionalização regrada e administrada de sua própria cultura.

A manutenção desta “vocação”, contudo, não se fez, desde longa data, sem o terreur de la dette (CLASTRES, 2009). Para financiar a si mesmo, as sociedades com Estado se valeram do terror da dívida. As suas múltiplas formas sempre variaram conforme fluxos exploratórios. No limite, Guattari (2011) indica que os “fundamentos” da exploração capitalista já se encontram nas condições de tomadas de poder organizadores de populações inteiras, tal como a Igreja foi capaz de fazer a partir da baixa Idade Média, estabelecendo sua lei e estabilizando os segmentos sociais adversários a ela. No Estado moderno, o terror da dívida vai conhecer proporções intransponíveis, como a própria história do Brasil, desde colônia, exemplifica.

Mas não seria temerário demais simplificar as coisas em um vetor hegemônico ou de dominação geral em se tratando de cultura ocidental? Quer dizer, não seria uma posição redutora e limitada pensar em cultura ocidental, uma vez que nela existem uma infinita possibilidade de outras culturas para além de um algo monolítico. Certamente que sim. Sahlins (2013) nos alerta para este cuidado. No entanto, o próprio Sahlins (2013, p. 77) mostra que “é preciso não esquecer que a teoria da mais coercitiva e totalizada instituição conhecida pela humanidade, [é] o Estado”. Malgrado a dimensão compósita de microculturas arraigadas no Ocidente, bem como suas especificidades, de uma forma ou de outra elas são atingidas por aquilo que o Estado foi capaz de constituir e de intervir nestas mesmas culturas. Deste ponto de vista, para efeitos heurísticos, podemos sustentar que as estratégias em torno da presença do Estado no Ocidente infligiram um tipo específico de “gabarito cultural” atinente à própria definição de sua cultura, entendida

(c)omo um conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação chamam “programas”) - para governar o comportamento. A segunda ideia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais para ordenar seu comportamento (GEERTZ, 1989, p. 56).

Em Gouverner par la dette, Lazzarato (2014) leva às últimas consequências importantes fatores pelos quais o Ocidente tem feito da dívida, ou daquele velho terror da dívida já identificado por Clastres (2009), um mecanismo de controle rígido com o intuito de governar o comportamento maciço de seus indivíduos em populações repartidas sob o critério da dívida. Alçando o patamar de financista, o Estado passou a ampliar, por uma série de instituições de confisco e de sequestro de valores e de bens, o terror da dívida. Junto do Estado e com ele, entram em cena Bancos, Financeiras, Bolsas, Títulos Públicos e transações inescrupulosas como políticas de privatização e de redução dos bens sociais públicos em nome uma nova forma de governar o comportamento. No cenário atual, é “impossível distinguir Estado do Capital” (LAZZARATO, 2014, p. 36).

Levando em consideração que o entendimento de cultura envolve certos padrões que visam referenciar o comportamento do homem; levando em consideração que destacamos, aqui para os nossos interesses, o padrão do governo da dívida como consistência de nossa cultura assentada em uma sociedade com Estado; três conjuntos de questões emergem a fim de caracterizar o escopo geral deste trabalho.

Em primeiro lugar, gostaríamos de investigar a relação do governo pela dívida como gabarito cultural. Implica pensar na dimensão de produção de subjetividades, o que maneja a dimensão dos mecanismos de controle para além da função específica do comportamento. Com efeito, emergiria toda uma problemática ao redor do campo da formação do desejo dos sujeitos, das formas de percepção e de valoração com as estratégias desta cultura. De modo amplo, trata-se da relação do governo pela dívida com a produção de certos modos de ser nesta cultura.

Mas a produção da consistência subjetiva neste horizonte voltarse-á para uma problematização mais refinada. Parece-me que o governo da dívida coloca os seus indivíduos face a face não apenas com a impossibilidade da superação da dívida econômica a ser refletida em suas dimensões subjetivas. Ao que tudo indica, os indivíduos encontram-se sempre num tipo de incompletude com os seus próprios corpos, com uma cultura somática de pleno déficit. A deficiência, nesta dimensão, poderia ser entendida para além de um fator endo ou exossomático ligado ao campo da normalidade/anormalidade de certos estatutos morfológicos. No registro do governo pela dívida, a deficiência é toda e qualquer forma a ser corrigida dentro do Estado, ressaltado uma eterna dívida com um corpo irrecuperável, isto é, impossível de ser quitado em sua singularidade: corpo endividado, tentando pagar a fatura da mais-valia de uma perfeição impossível de ser atingida.

Tal conjuntura analítica, a meu ver, traz implicações para se pensar o amplo papel da educação na cultura do governo da dívida. Não se trata de ultrapassar esta cultura, uma vez que isto não se coloca, mas de tentar perscrutar como a dimensão subjetiva pode ser distinta daquele a que somos destinados pelo governo do endividamento. E precisamente neste caso, a afirmação da deficiência seria uma postura epistemológica e empírica no sentido de indagar os referentes culturais acerca do padrão de endividamento consigo mesmo e com a sociedade, claro está, desde a função expectada em torno do corpo que seja funcional a tal sociedade.

Uma vez que Lazzarato parte do pensamento de Guattari para sustentar a sua hipótese interpretativa e de trabalho, o texto busca, na medida do possível, fazer esta mesma articulação. Ao cabo, a intenção é de contribuir para que o pensamento, dentro de seus próprios condicionantes culturais, possa vislumbrar tais limites e tentar avançar na direção do questionamento de seus próprios padrões culturais. Afinal, “a cultura fornece o vínculo entre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que eles realmente se tornam, um por um” (GEERTZ, 1989, p. 64).

Governar pela dívida: axioma capitalístico e incidência de valores na produção de subjetividades

Se há um mínimo de coerência na proposta interpretativa acerca da variação das culturas em dois grandes conjuntos de sociedades, as sem Estado e as com Estado, como intentou Clastres (2009), é possível que o temor de Lévi-Strauss (1980, p. 86-87) tenha se realizado, ao menos parcialmente: “uma humanidade confundida num gênero de vida único é inconcebível, porque seria uma humanidade petrificada”. Mesmo que a ideia seja um recurso de linguagem paroxístico, ela dá o que pensar. Para Guattari (2013, 2011, 2005, 1985) e Lazzarato (2014) há um iminente risco do cumprimento de certa petrificação de nosso gênero de vida. A assunção da axiomática do capital seria o elemento responsável por tal hipótese, uma vez que Estado e capital, com seus modos de produção e de qualificação da vida, confundem-se numa espécie de fusão, manejando um mesmo conjunto de valores.

A axiomática é uma máquina social de controle e de captura. Mais que “a produção pela produção”, o que caracteriza o capitalismo é a apropriação pela apropriação, a qual ele está disposto a tudo sacrificar, mesmo a “produção”. A governamentalidade e seus dispositivos lhe são estritamente subordinados (LAZZARATO, 2014, p. 121).

Para efeitos de compreensão, máquina social compreende todos os arranjos necessários à formação, manutenção e atualização do Estado e, supostamente, dos fluxos capitalísticos que aí circulam. A amálgama desta consistência se dispõe nas estratégias de “modelos de realização”, nos termos de Lazzarato, que compreende não apenas “o Estado, os equipamentos coletivos (como escola, o welfare, a televisão, etc.), o consumo de massa, mas também os neo-arcaísmos do integralismo religioso, do racismo, do chauvinismo, do sexismo, do paternalismo, etc” (LAZZARATO, 2014, p. 121-122).

Deste ponto de vista, os valores circulares presentes nesta composição social reafinam um tipo de governamentalidade voltada para o centro de seus fluxos de forças, ou seja, para um centro de gravidade que repõe a mesma série de valores igualados na axiomática do capital. Assim, configura-se a máquina social de controle e de captura. Em outros termos, se em uma sociedade um conjunto incalculável de experiências culturais deveriam contribuir para o seu avivamento e renovação ao permitir que formas distintas de padrões de comportamento e de formas de governar esses mesmos comportamentos fluíssem, com a axiomática do capital parece que tais variabilidades se fundem em nome de um certo funcionamento social majoritário e unificador para além dos comportamentos, indo na direção dos próprios modos de ser. Por conseguinte, chegaríamos a um ponto sob o qual a dimensão dominante do alinhavar os equipamentos coletivos vai cada vez mais usurpando as dissonâncias culturais visando a consolidação da cultura majoritária por efeitos de igualação. Faz todo o sentido a posição de Guattari e Rolnik (2005, p. 21): “O capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva”.

Foucault (2004) já havia dado um passo relevante nesta direção ao mostrar em Segurança, Território, População que a emersão e fixação dos indivíduos em grupos populacionais inteiros serviu de fundamento inequívoco à própria maturação do capitalismo de Estado. Foram imprescindíveis o refinamento de uso de técnicas estatísticas, de controles administrativos, de padronização de princípios de racionalização de eficiência, de previsibilidade e de calculabilidade para se regular contingências e vicissitudes em nome do aparelhamento do próprio Estado. Aqui o Um passaria a unificar cada vez mais para poder abstrair. Com tais estratégias de abstração, a realidade foi perdendo a potência virtual de auto-transformação cedendo lugar para o controle de suas próprias potências transformadores. Quer dizer, a emersão da noção de população, afinada com a consolidação do Estado, permitiu o acesso máximo refinado a uma política de tratamento massificado. Com isso, o terror da dívida passa a assombrar todo e qualquer indivíduo que, por sua vez, torna-se devedor e corresponsável da população a qual pertence.

Clastres chamava a atenção para o fato de as sociedades sem Estado desconhecerem hierarquia sob processos de dominação, ou funções de poder sob o registo de mando. A elas era totalmente estranha a ideia de excesso inútil, de acúmulo material e da subjugação de outrem para o trabalho. Antes de tudo, as relações visavam um coletivo eivado de afinidades próprias. Os seus indivíduos não saberiam dizer o que é falta, pois se realizavam na efetivação de seus próprios intentos cotidianos. Não sem sentido, o controle do tempo era algo impensado para eles. Mas nas sociedades com Estado é justamente o oposto. Nelas, o indivíduo é abstraído na função populacional eivada pelo poder policial-administrativo, pela usurpação de seu tempo para um trabalho alienado; a funcionalidade demandada a cada um ganha contorno na presunção da necessidade imperiosa de ter que produzir, de ter que forçosamente trabalhar. As formas variadas de coação e de coerção operam justamente aí. E nada garantiria a existência do Estado sem a coação e a coerção entendidas de modo legítimas por aqueles circunscritos ao Estado, isto é, pelos grupos populacionais gestados e gerenciados no seio do Estado. Mais cedo ou mais tarde, todos os indivíduos se deparam com as regularizações das práticas sociais e as subordinações das culturas idiossincráticas à cultura ubíqua do Estado.

Ora, na interpretação de Lazzarato aquilo que Clastres denominou de terror da dívida se concretiza em todos os níveis sociais presentes no Estado. Governar pela dívida, mais precisamente, governar valendo-se da dívida como valor inescapável, como o inevitável preço a ser pago por existir, doravante, torna-se o grande mito fundador da sociedade, o seu totem e o seu tabu, o rito de passagem imprescindível à consagração de uma identidade, o ancestral místico de nossos determinismos, o grande Kula, o Potlach de um único presente, o princípio, o meio e o fim regulador de todas as coisas, além de profecia irrevogável: existir é endividar-se. O primeiro mandamento do Estado atual, inexistente sem o capitalismo, e este sem aquele, é: endividai-vos à minha imagem e semelhança. Devedor do monetarismo internacional, cada Estado inflige à sua população o poder da dívida na consagração de tributos cada vez mais escorchantes. O trabalho não cumpre mais o papel de realização social, mas de insuficiência social na mesma proporção que se torna cada vez mais impossível de liquidar toda a fatura necessária às demandas da finitude existencial. Com efeito, “o capitalismo (e seu poder) se define, antes de tudo, como um controle absoluto sobre o que é possível e o que é impossível” (LAZZARATO, 2014, p. 18).

Pensar em sociedade de controle, no entanto, é muito menos caminhar no sentido das distopias e de suas virtualidades. A sociedade de controle é aquela que banalizou os mecanismos de circulação e de eficiência da dívida. De um lado, trata-se da sistemática implementação de cobranças nos mais distintos níveis e etapas da vida. Financiar os modos de viver é correlato da capacidade de se endividar ou, de modo oposto, de financiar o endividamento. Esta distinção, aliás, é responsável por coligir as populações em lados opostos: credores e devedores, financiadores e emprestadores, administradores e administrados, etc. Em alguma etapa da conjuntura social essas frentes vão se deparar, em maiores ou menores proporções ou intensidades. De todo modo, se no princípio desta sociedade com Estado existe um verbo criador, este verbo é endividar-se.

Mas a questão a emergir deste cenário e a replicar a amplificação do governo da dívida repousa em indagar a respeito das implicações na formação de uma consistência subjetiva daqueles que são colmatados pela cultura do endividamento, presente na sociedade com Estado. Neste caso, a seguinte passagem é ilustrativa: “São as sociedades hierarquizadas, estáticas, monoteístas que introduzem a dívida da existência, a dívida da vida, a dívida primordial, fazendo-a uma dívida infinita” (LAZZARATO, 2014, p. 63). A dívida é produzida na mesma proporção que é uma máquina social de produção de dívida. Espécie de ciclo vicioso, a dívida forjou a antropologia do sacrifício. O homem, enquanto dado antropológico, não honra as suas dívidas, apenas passa de uma a outra. Este mesmo homem é espécie de microcosmo do Estado ao qual pertence; ele é um ponto vigoroso pelo qual passa o fio de sua abstração, pois pertence a uma identificação populacional qualquer. Em outros termos, é de um ciclo a outro que os indivíduos serão arrolados; e é de um ciclo a outro que se passa: do financiamento da saúde, passando pela educação, até a casa própria, signo pomposo do ritual sedentário; da necessidade de se “reciclar” na formação continuada, na aquisição de bens culturais, passando pelo o autoempreendedorismo até a busca constante de um zênite aperfeiçoador; da entrada na ciranda do crédito abundante e caro, banhando-se no consumo renovador da obsolescência constante, a dívida tornou-se um princípio vital, “exercendo suas coações coletivas sobre os indivíduos” (LAZZARATO, 2014, p. 62).

Quando Guattari propôs designar a sociedade contemporânea por sociedade capitalística, e não mais meramente capitalista, era justamente para acentuar a tônica das relações humanas elevada a um nível de uniformização. Independentemente do modo de produção e das opções políticas de um Estado, o endividamento deixaria de ser finito, alçando um patamar infinito, portanto, indefinido em sua mobilidade. Por conseguinte,

a revolução capitalística atacará a todas as antigas territorialidades, ela deslocará as comunidades rurais, provinciais, corporativas, ela desterritorializará as festas, os cultos, a música, os ícones tradicionais, ela “colonizará” não apenas as antigas aristocracias mas também todas as camadas marginais ou nômades da sociedade (GUATTARI, 2011, p. 54).

Ora, os modos de produção de subjetividade estão umbilicalmente ligados com esta revolução capitalística. Doravante, a incompletude da dívida passa a se confundir com “a natureza humana definida como uma ‘falta para ser’, um déficit, uma incompletude que somente os deuses, o Estado ou a sociedade estão capazes de suprimir” (LAZZARATO, 2014, p. 62). A lógica da falta, espécie de pneuma do axioma do capital, espraia-se pelos componentes de práticas sociais de uma maneira muito simples. Uma vez que no governo da dívida a moeda-finança, na proposta de Lazzarato (2014), impõe-se como a medida das medidas, capitalizando os diferenciais da valorização de todas as atividades humanas, tudo se tornará medível e valorado por tal canal. O grande operar de referencial de valores passa a ser a dívida em sua lógica da falta e da busca de sua satisfação infinda. Aqui não há mais pontos referenciais, pois todos devem ser ultrapassados, ao mesmo tempo, declarando a obsolescência nas quais se situavam: da tecnologia à eficiência farmacológica, da mobilidade física à ascensão social, da especificidade cultural à sua superação pelo saber globalizado, dos limites físicos à vigorexia permanente, do gerenciamento da existência ao capital humana, da escola à formação continuada, do autoconhecimento ao conhecimento cosmológico. Faz sentido, então, pensar que “a dívida impõe uma aprendizagem de comportamento” (LAZZARATO, 2014, p. 58).

A aprendizagem do comportamento, no entanto, é apenas uma expressão para designar todas as formas pelas quais a consistência subjetiva é produzida. A produção social do sujeito não visa apenas o seu comportamento. Ela é absolutamente abrangente no que diz respeito às maneiras com as quais se é aparelhado com o gabarito de certos valores, ou seja, com um conjunto de padrões negociável conforme a produção de verdade ao redor desses padrões. Se a dívida impõe uma aprendizagem de comportamento é por que se tornou um valor absoluto no modo de ser contemporâneo. Guattari (1995, 2011, 2013) designou esta conjuntura de produção de competências semióticas. Trata-se de um conjunto majoritário de sentidos, portanto, de relação de significados com significantes usados, distribuídos, trocados e consumidos na mesma sociedade que os produz. Aliás, a forma pela qual são dispostos e encontrados na sociedade já indicia o modo de produção dessas competências semióticas. Por isso mesmo, não há axiomática do capital sem uma semiótica do capital. Como indicava Guattari, esta semiótica tem por função precípua exercer uma força de modelagem social. A sua força maior se expressa na confluência de univocidades de sentidos e de expressão, um tipo de sobrecodificação massificada:

A sobrecodificação, pelo capital, das atividades, dos pensamentos, dos sentimentos humanos, acarreta a equivalência e a ressonância de todos os modos particularizados de subjetivação. A subjetividade é nacionalizada. O conjunto de valores de desejo é reorganizado numa economia fundada na dependência sistemática dos valores de uso em relação aos valores de troca [...] A ordem capitalista pretende impor aos indivíduos que vivam unicamente num sistema de troca, uma traduzibilidade geral de todos os valores para além dos quais tudo é feito, de modo que o menor de seus desejos seja sentido como associal, perigoso, culpado (GUATTARI, 1985, p. 201-202).

As competências semióticas estão associadas a esta sobrecodificação do capital, pois na mesma medida que apenas um repertório material nos é imposto por um modo de produção capitalista, o mesmo ocorre na dimensão cultural e no manejo de seus padrões simbólicos ou de seus valores. Mas também no “funcionamento de base dos comportamentos perceptivos, sensitivos, afetivos, cognitivos, linguísticos, etc., que se engasta a maquinaria capitalística” (GUATTARI, 1985, p. 205), claro está, para que os indivíduos sejam “equipados de modos de percepção ou de normalização de desejo” (GUATTARI, 1985, p. 202). No final, as competências semióticas produzem um nível funcional sensitivo, afetivo, práxico na direção de uma ordem social negociável tão somente no diapasão de certas normas de valorização e de certos valores normalizadores.

Faz todo sentido, portanto, Guattari e Lazzarato conceberem que a produção de subjetividade é a produção mais importante do capitalismo. No final, desdobram-se as estratégias com as quais o assujeitamento social fará coincidir o assujeitamento subjetivo: um retroalimentando o outro, incessantemente, com o mesmo conjunto de competência semiótica; um retroalimentando o outro numa quitação de dívida social impossível de ser liquidada, pois a mesma dívida se renova com o surgimento e a adoção de modismos, de comportamentos massificados, de reprodução de modos perceptivos e afetivos, de modos de ser pouco variável pela intercessão de como se trabalha, consume-se, move-se, alimenta-se, diverte-se, informa-se, veste-se, fala-se, vive-se e, para tudo isto, endividando-se. A farta argumentação de Lazzarato (2013, p. 149) é necessária aqui:

O capitalismo organiza a produção e o controle da subjetividade (a genealogia moderna da moral) por meio de dois dispositivos diferentes que tecem em conjunto o sujeito individuado (“o assujeitamento social”) e o que é o seu aparente contrário, a dessubjetivação (“o servomecanismo maquínico”). O capitalismo exerce sobre a subjetividade uma dupla tomada. O assujeitamento implica técnicas de governamento que passam pela representação (política e relativa a linguagem), os saberes, as práticas discursivas visuais, etc., mobilizando-as, e produzindo “sujeitos de direito”, “sujeitos políticos”, e sujeitos tout court, o “eu” (moi), dos indivíduos.

O assujeitamento social, produzindo-nos como sujeitos individuados, confere-nos uma identidade, um sexo, uma profissão, uma nacionalidade, etc. Ele constitui uma armadilha semiótica significante e representativa da qual ninguém escapa. No capitalismo contemporâneo, tais processos e técnicas encontram sua realização no “capital humano” que faz de cada um de nós um “sujeito” responsável e culpável de suas próprias ações e comportamentos. O “sujeito livre”, no sentido de “desembaraçado” de toda subordinação pessoal, realiza-se na figura do empreendedor de si e na figura do consumidor que escolhe de modo “soberano” em meio a uma variedade infinita de mercadorias.

Eis um interessante sentido para a sociedade governada pela dívida. Cada sujeito é devedor a seus conjuntos de valores para que ele seja tal como pode ser; cada conjunto de sujeitos deve aos arranjos sociais a funcionalidade de seus sentidos para poderem viver como vivem nas organizações sociais. Entre um horizonte e outro, o Estado é o grande provedor dos referenciais possíveis à luz da axiomática do capital. Em meio a uma semiotização dominante dos sujeitos, a indagação que se impõe é a seguinte: qual a implicação do governo pela dívida nos sujeitos que, por serem deficientes, já prenunciam a dissonância com a axiomática do capital e da unificação dos valores culturais do Estado? Não seria o deficiente, a ser assumido a partir de uma “ontologia da deficiência” (CARVALHO, 2015) um sujeito produtor de outra semiótica, ou seja, de outro nível de sentido para a existência? E com isto, e por isto mesmo, não seria todo e qualquer deficiente uma força crítica dos modos massificados e homogeneizadores de conceber a experiência subjetiva, o modo de ser nesta vida governada por intermédio do Estado, deste Um, que a tudo unifica? E quais seriam as consequências de se pensar neste registro para o campo da educação e, notadamente, para o que se pretende como inclusão? Afinal, não estaria aqui em jogo a própria dimensão da cultura, e de sua concepção enquanto pano de fundo necessário para nos fornecer gabaritos de valores existenciais? E não se trataria de colocar em xeque a própria axiologia do capital no governo pela dívida encarnada no Estado? Talvez, se ainda pudermos lutar para afirmar a proposta de Geertz (1989, p. 64): “se queremos descobrir quanto vale o homem, só poderemos descobri-lo naquilo que os homens são: e o que os homens são, acima de todas as outras coisas, é variado”.

Subjetividade funcional e deficiência

Quando Geertz afirma que “todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie” (GEERTZ, 1989, p. 57), está enfatizando o lugar da cultura na forma de governar a conduta dos homens. Mauss (2006) chamava a atenção para o fato de o corpo ser produzido artificialmente por intermédio de técnicas distintas, conforme a variação cultural e a ênfase de escolha que dada sociedade fornece por seus padrões culturais. O corpo individual, como se vê, é também uma produção social. De todo modo, a potencialidade antropoplástica dos indivíduos é moldada pela força cultural a eles exercida. Por ser imanente ao corpo, a experiência subjetiva não se dissocia das forças sociais exercidas sobre ele. Consequentemente, a produção de subjetividade está implicada nas técnicas da produção do próprio corpo, de sua funcionalidade, do que ele será capaz de fazer, das composições plásticas de seu linguajar social - posturas, performances produtivas, mutações, uso dos prazeres, etc. - e, não menos importante, do valor social que pode alcançar. Sendo assim, corpo e subjetividade são experiências indissociáveis na composição dos sujeitos. E ainda que pudéssemos ter outro corpo e outra subjetividade, como atesta Geertz, isto não ocorreria sem uma inventividade estrangeira à cultura que a ambos padroniza.

Ora, se procede a análise empreendida anteriormente, o peso da unificação dos sentidos, ou melhor, de uma produção semiótica dos sujeitos em nosso tipo de sociedade, tende a unificar possibilidades de sentidos com demanda de funcionalidade do corpo. A forma pela qual a sociedade com Estado prefigura uma cultura de equivalência ou um “sistema de equivalências na esfera da cultura”, nos termos de Guattari e Rolnik (1995, p. 21), põe em evidência um duplo papel que o dissenso com as equivalências efetua. De um lado, porque o poder normativo do trânsito dos sentidos socioculturais denuncia a dissonância; de outro lado, porque esta denúncia, por si só, já subentende a força unificadora de sentidos que são impostos aos sujeitos, justamente porque ela produz a dissonância.

Eis as razões pelas quais é importante prevalecer um núcleo duro de valores sociais que são, mais ou menos, transitados nas experiências culturais mais distintas da sociedade ocidental. Em nossa situação, a dívida representa o paroxismo abrangente de tais valores, o big data unificador de sentidos, de percepção, de trânsito social, de ligação com o trabalho, a produção semiótica mais contundente, pois age de modo massificador. É toda uma estrutura de submissão a valores e a sentidos que está em jogo:

A cultura de massa produz, exatamente, indivíduos: indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistema de submissão - não sistemas de submissão visíveis e explícitos, como na etologia animal, ou como nas sociedades arcaicas ou pré-capitalistas, mas sistemas de submissão muito mais dissimulados (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 22).

A dimensão dissimulada da massificação, para não dizer cínica, dispõe-se nas incontáveis combinações que o critério da dívida como mensuração social se interpõe entre os sujeitos, afetando seus modos de ser pela reduplicação e ressonância dos mesmos critérios de valoração em um tipo de modelagem cada vez mais precoce e ininterrupta visando a cultura da equivalência. Deixamos de operar com códigos culturais extra-econômicos (códigos religiosos, artísticos, políticos, tradicionais, etc.) que pudessem servir como valores para distintos modos de ser. No governo pela dívida, o “dinheiro é o único código compatível com o capital” (LAZZARATO, 2014, p. 128).

A consequência não poderia ser outra a não ser a redução da subjetividade a relações funcionais, isto é, lucrativas. A subjetividade funcional é o lugar de trânsito do corpo funcional e dos sentidos trafegados para a funcionalidade demandada diuturnamente. Implica dizer que na sociedade do governo pela dívida a lógica de todo aperfeiçoamento subjaz ao plano da exploração lucrativa de qualificações a serem usadas para a manutenção da dívida, nem que seja para com a dívida consigo mesmo, fetiche formador do capital humano: aprender a dar o melhor de si. “A axiomática do capital [...]”, argumenta Lazzarato (2014, p. 130), “deve necessariamente produzir e reproduzir as mesmas ‘qualificações’ que o dinheiro, o grande igualizador, apaga, organizando-as em divisões e hierarquias não apenas de classes, mas raciais, sexuais, sociais”.

Não é de se espantar como o diagnóstico de Lazzarato coincide com o pressuposto das sociedades com Estado de Clastres. A convergência analítica, além de tudo, permite-nos supor que os fluxos dos códigos sociais são administrados com tamanho vigor a ponto de colocar os equipamentos coletivos a serviço da produção da subjetividade funcional.

Os fluxos de subjetividades “liberadas” das antigas codificações sociais devem ser “formatas” pelas instituições estatais (escola, prisão, hospital, segurança social, etc.) que designam aos sujeitos individuais um corpo, um sexo, uma raça, uma nacionalidade, uma subjetividade funcional conforme a divisão social do trabalho (LAZZARATO, 2014, p. 130-131, grifos meus).

Se pensarmos a subjetividade no nível de um dispositivo de indexação e de avaliação da relação corpo-sujeito, um interessante campo para as pesquisas acerca da deficiência se abre. É possível dizer que a deficiência é tudo aquilo que na contracorrente da semiótica unificadora das sociedades com Estado desestabiliza e põe em evidência o conjunto de finalidades para os quais a subjetividade funcional passou a existir. O sujeito deficiente denuncia a falta de trânsito com valores que não sejam unificadores ou homogeneizadores no plano social, justamente pelo fato de que “esta homogeneização das competências semióticas é essencial ao sistema econômico capitalista” (GUATTARI, 1985, p. 52).

Mas a deficiência tem de ser percebida como um “fora” ao sujeito cultural para poder chancelar a ela a tranquila consciência de que ele pode seguir com a sua vocação funcional na sociedade. A diferença é que este sujeito pode entrar na ciranda infinita dos aperfeiçoamentos semióticos a ele demandado o tempo todo, enquanto o deficiente está fadado a fatores pressupostos como limites concretos: mobilidade, capacidade intelectiva, singularidade perceptorial, manejo linguístico próprio ou limitado, impedimentos sociais, enfim, uma série comparativa de valores e de medidas. No entanto, o mesmo sujeito não se dá conta de que a sua subjetividade funcional é uma integração completa à axiomática do capital, uma ligação direta aos pressupostos unificadores de sentido unificador. E ele alimentará a dívida impossível de ser quitada socialmente já que tem de se aperfeiçoar em todos os níveis e direções de sua vida para se enquadrar nas demandas de funcionalidades mutáveis drasticamente da noite para o dia.

No sentido oposto, o deficiente pode ser concebido como sujeito (corpo e subjetividade) pleno de polivocidade de expressão e de sentido, uma vez que não se trata de ele se adequar à uma subjetividade funcional mas de operar, por sua singularidade, uma resistência e uma denúncia às relações de poder sociais unificadoras. O grau zero da deficiência já é uma luta por afirmação de polivocidade de expressão semiótica em nossa sociedade. Mas isto não ocorre pelo simples motivo de que na sociedade com Estado ou se está dentro dela ou se está fora. A sua força e imperiosa forma de violência aceitas socialmente encontram-se em suas estratégias de pacificar, de fazer adentrar em seus rituais os sujeitos, de educar para os seus sentidos, de providenciar formas políticas a garantir a sua hegemonia por um jogo de valores de representação biunívoca. Não à toa, “uma das grandes fases de iniciação aos fluxos capitalísticos consiste na interiorização do corpo ‘natural’, do corpo ‘individuado’, já estruturado segundo os dualismos do masculino e do feminino, da alma e do corpo, do individual e do coletivo” (LAZZARATO, 2014, p. 161), e por que não dizer, do deficiente e do “normal”.

Ponderações finais: em busca de atos de educar ainda por serem escritos

Podemos argumentar que o lugar da deficiência no governo pela dívida mobiliza o próprio sentido de concepção de deficiência, um fundo crítico às estratégias de unificação cultural de nossa sociedade com Estado e uma sinalização para se pensar aí o lugar da educação.

Mesmo que queiramos afirmar a deficiência por um plano ontológico das diferenças, o que é plenamente possível, não é sensato ignorar o manejo cínico que as políticas de Estado podem aí se valer. O modismo das diferenças pode ser a melhor forma para se manter o mesmo padrão de uma subjetividade negociada pela funcionalidade em que o deficiente é reduzido apenas a uma expressão linguística. Otimizar as diferenças também pode ser uma grife social, sem a menor disposição em querer modificar as formas gerais de produção axiológicas e semióticas voltadas para a consolidação de um sujeito produtivo. Tanto é que no campo da moeda subjetiva a utopia dos servomecanismos utilitários à subjetividade funcional parte de um controle social que marca os sujeitos desde o interior. Neste tipo de sociedade, “tomar pílulas é tomar poder” (LAZZARATO, 2014, p. 162). Ora, os programas culturais são anabolizados por uma diagramação química, por intervenções neurais, por uma endocrinologia hightech, nos termos de Lazzarato, a fim de garantir a mais-valia da funcionalidade: não parar nunca, a não ser quando o que se espera depois de um tratamento em UTI. seja a cova.

Na mesma direção, a adaptação a uma subjetividade funcional nunca deve ser cessada. É por isto que a cada dia uma nova pílula surge para inventar uma nova patologia, ou o contrário, ou ambos, prefigurando a amplificação da dívida que o sujeito possui consigo mesmo. Repentinamente ele descobre que precisa equilibrar um hormônio, cuidar de um mal virtual, medicar-se para produzir melhor, dormir melhor, gozar melhor, pensar melhor, viver melhor. A mais-vida é a prefiguração de uma mais-valia que, tal como no sonho econômico com o qual o mundo não pode parar de crescer, indica apenas o quão abaixo da funcionalidade o indivíduo se encontra e como ele deve se mobilizar, filho de Sísifo que é, para rolar a sua dívida impagável. A armadilha de capturar a subjetividade funcional é implacável.

Assim, no plano da subjetividade funcional, os sujeitos estão sempre capturados. A deficiência poderia ser assumida como um signo social com o intuito de resguardar, de fato, a singularidade e a variedade cultural humana, mas também como força capaz de tentar frear a hegemônica semiótica subjetiva unificadora do Estado. Ser deficiente, no limite, seria assumir a sua condição sem dever nada a ninguém, pois as escalas comparativas seriam abolidas, uma vez que não se visaria mais a funcionalidade desta semiótica capitalística.

Aqui se processa uma inversão. Deveríamos pensar não mais em incluir o deficiente na escola, mas incluir a escola no deficiente. Significa pensar em produzir estratégias que indaguem o papel da escola como agente social iniciador ao capital: serialismos, provas, competências, aptidões, hierarquização, padronização, comparação, distinção, para além de modos de aprender, traduzem a função escolar de modo muito preciso. Tal função é coincidente com a “precocidade do adestramento da criança” em sua “iniciação semiótica nos diferentes modos de tradutibilidade, e nos sistemas de invariantes que lhes correspondem” (GUATTARI, 1985, p. 52).

No final de sua obra, Lazzarato propõe um estilo de vida, para o qual devemos lutar e produzir, que fosse algo semelhante a uma “vida preguiçosa”. Não se trata apenas de recusar a imposição de um trabalho servil com a finalidade de rolar a dívida da existência, mas de cotejar para a nossa temporalidade uma outra velocidade, provocando saídas da valorização dos fluxos de comunicação, consumo e produção em massa. Em seus lugares, outros canais perceptivos do que deve ser valoroso para nós poderiam alçar visibilidade, por exemplo, a partir do momento em que escutássemos o que os deficientes têm a nos ensinar para fora das linhas do poder da funcionalidade. Isto já demandaria um outro tipo de ação. No lugar da aceleração, a pausa; no lugar da perfeição forjada, o singular sem a medida de valor negociável pela funcionalidade; no lugar do controle da temporalidade, um outro fluir. Se é fato que “o capital nos equipa de uma percepção e de uma sensibilidade, porque perceber e sentir são funções da ação” (LAZZARATO, 2014, p. 206), também é fato que precisamos nos descapitalizar destes equipamentos, não para substituí-los por outros, mas apenas para deles nos livrar.

Sem entrar no mérito de graus de deficiências e mesmo porque, no limite, todos nós somos algum tipo de deficiente (CARVALHO, 2015), não seria todo o deficiente um sujeito livre dos equipamentos perceptoriais e sensitivos que são constantemente a nós impostos? E também não seria o deficiente uma outra dobradiça de valores, uma subjetividade eivada com potencialidades distintas da monarquia de nossos sentidos? E a esta altura, não estaria em questão a suspensão das identidades forjadas pelo Um, já que “para mudar de percepção e de maneira de sentir, é preciso mudar o modo de agir, quer dizer em última instância, de modo de viver”? (LAZZARATO, 2014, p. 206).

Levando em consideração o que a sociedade governada pela dívida foi e é capaz de fazer, seria interessante pensar na subjetividade não mais a serviço da funcionalidade, como ato de pagamento necessário a ser quitado, mas como um ato político, uma recusa com a qual podemos romper a relação de dominação da dívida. Ser o que se é não implicaria mais uma aplicação a ser resgatada, mas um cheque em branco.

Referências

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Recebido: 04 de Dezembro de 2016; Aceito: 17 de Maio de 2017

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