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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.63 Uberlândia set./dic 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n63a2017-08 

Dossiê: Diferenças e Educação - explorações conceituais entre o Brasil e a França

A deficiência em sua radicalidade ontológica e suas implicações éticas para as políticas de inclusão escolar*

The disability in your ontological radicalism and its ethical implications for school inclusion policies

La discapacidad en su radicalidad ontológica y sus implicaciones éticas de las políticas de inclusión en la escuela

Pedro Angelo Pagni** 

**Doutor pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Marília (FFC-UNESP/Marília). Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Marília (FFC-UNESP/Marília). E-mail: pedropagni@gmail.com.


Resumo

Este ensaio propõe conceber a deficiência como uma forma ética de vida que se funda em uma radicalidade ontológica e discute os seus efeitos políticos em instituições como a escola. A partir da ontologia do acidente, objetivamos contribuir para o delineamento das bases particulares das formas de vida deficientes e interpelar a sua associação a um devir que consiste no convívio com os efeitos dos acidentes sobre a vida humana. Argumentamos que esse devir comum conduz aos deficientes e ao seu entorno comunitário a transformações, cuja discussão, no caso ficcional e nas duas crônicas selecionadas, sugere que os efeitos políticos dos acidentes lancem essas vidas a uma improvisação existencial ou as façam descobrir que o improviso já estava determinado em sua existência pelos estados de dominação vigentes. Assim, propomos uma inclusão pautada na alteridade com esse ethos e no encontro dos demais atores com seu devir comum na escola.

Palavras-chave: Ontologia do acidente; Deficiência; Ética; Inclusão escolar

Abstract

This essay proposes looking at disability as an ethical way of life is based on an ontological radicalism and discusses their effects in political institutions such as the school. Drawing from the ontology of the accident, we aim to contribute to the delineation of particular bases of disabled life forms and to question their association to a becoming common that is living with the effects of accidents on human life. We argue that this becoming common leads to disabled people and their surroundings, whose transformations community discussion, in the fictional case and the two selected chronicles, suggests that the political effects of accidents launch those lives to existential improvisation or to do find that improvisation was already determined in his existence by the states of current domination. We therefore propose an inclusion based on otherness with this ethos and the meeting of other actors with his becoming common in school.

Keywords: Ontology of the accident; Disabilities; Ethics; School inclusion

Resumen

Este ensayo se propone a mirar la discapacidad como una forma de vida que se apoya en una radicalidad ontológica y a analizar sus efectos políticos en las instituciones como la escuela. Desde la ontología de accidente, nuestro objetivo es contribuir a la delimitación de las bases particulares de esas formas de vida e indagar su asociación a un devenir de aquellos que conviven con los efectos de los accidentes en la vida humana. Sostenemos que ese devenir común conduce a las personas con discapacidad y su entorno comunitario a transformaciones, cuya discusión, en el caso ficticio y las dos crónicas seleccionadas, sugiere que los efectos políticos de accidentes lanzan esas vidas a la improvisación existencial o les hacen descubrir que tal improvisación ya fue determinada en su existencia por los estados actuales de dominación. Por lo tanto, proponemos una inclusión basada en la alteridad con este ethos y en lo encuentro de los demás actores con su devenir común en la escuela.

Palabras clave: Ontología del accidente; Discapacidad; Ética; Inclusión en la escuela

O deficiente tem sido sujeito a determinados mecanismos de exclusão no ambiente escolar. Historicamente, os argumentos utilizados para tal seriam os de que escaparia aos propósitos disciplinares da escola e, ao ser classificado como anormal, deveria ser destinado ao governo de outra instituição que, se não o corrigisse, o privaria da vida social comum. Mais recentemente, no caso brasileiro, tais argumentos sofreram um deslocamento no sentido de buscar a inclusão do deficiente aos dispositivos que o preparam ao exercício de uma função social ou no mercado de trabalho. Nessa configuração mais recente do modo de conceber a deficiência se aposta no discutível princípio de que tal ser se ajuste aos mesmos direitos e deveres dos demais indivíduos para garantir uma suposta isonomia e, para tanto, em contrapartida, minimize as diferenciações presentes em suas formas de vida, obscurecendo-as - para não dizer, neutralizando-as - ao máximo.

Antes de postular qualquer princípio de inclusão, analiso neste ensaio a possibilidade de se olhar a deficiência como uma diferença radical. O vislumbre dessa possibilidade se sustenta na hipótese de que as formas éticas de vida denominados deficientes decorrem de acidentes que não são objetos de deliberação e escolha por parte desses sujeitos, por assim dizer. Afinal, esses modos de existir são, por um lado, acometidos por forças, dentre elas, as físicas e biológicas, que são pouco percebidas socialmente, ao distenderem essa figura chamada sujeito sobre a qual a modernidade se instaurou. Por outro lado, os sujeitos assim designados são objetos de uma complexa interdição dada pelas preconcepções oficiais, religiosas e culturais circulantes, nublando o olhar dos demais ao ponto de os ignorarem como vidas dignas de serem vividas. É este olhar que gostaria de problematizar neste ensaio, aspirando a sua reeducação a partir da filosofia e de cenas literárias, em vistas a dar visibilidade especificamente sobre a particularidade da diferença da deficiência, ressaltando sua radicalidade ontológica, discutindo quais seriam os seus efeitos éticos sobre a esfera política e, particularmente, avaliando as possibilidades de ensejarem outros modos de inclusão na escola. Para tanto, na primeira parte deste ensaio, analiso a radicalidade ontológica da deficiência a partir da ontologia do acidente de Catherine Malabou (2009), indicando suas possíveis contribuições para a ontologia da deficiência, tal como a concebeu Alexandre Filordi de Carvalho (2015), e defendendo a radicalidade ética e política de sua diferença. Na segunda parte, recorro a relatos de experiências de familiares com deficientes, criados do que se supõe como comum entre elas, e de crônicas contidas do livro A vida que ninguém vê de Eliane Brum (2006). Com essas crônicas e relatos, procuro dar visibilidade à relação ontológica com os acidentes produtores da deficiência e o modo como os denominados deficientes se relacionam com seus efeitos, perguntando se nessas formas de dissensão dos sujeitos não se produz modos de existir outros e um devir comum que poderiam, mais do que registrar ao improviso existencial ao qual são lançados, torna-los signos de acontecimentos para uma comunidade e, ao mesmo tempo, evocá-la a pensar em uma improvisação já corrente, ocasionada pelos estados atuais de dominação. Por esse mesmo viés, na terceira parte, procuro encontrar em algumas dessas crônicas, modos de inclusão que ultrapassem as políticas oficiais, ao se expressar pela exposição pública das formas de vida denominadas deficiente e pelo seu acolhimento por parte dos atores da escola, demandando, para isso, uma reeducação do olhar desses últimos. Assim, este ensaio almeja reeducar o olhar dos atores da escola e procura dar visibilidade a uma inclusão outra, capaz de valorizar as formas de vida que exprimem uma diferença radical e a ontologia na qual se fundamenta, em virtude do devir comum que promovem, da transformação ética de si mesmos que exige e das afecções que produzem em seu entorno comunitário, implicando-os numa política da vida que parece ter sido abandonada no presente.

Contribuições da ontologia do acidente e o delineamento de uma diferença radical

Ao analisar o World Report on Disability (WRD), Carvalho (2015) chama atenção pela ampliação da noção de deficiência aí assumida, estendendo-a não apenas às incapacidades funcionais-orgânicas, como também às limitações no desenvolvimento de atividades e às restrições de participação na vida social, ao ponto de concluir que faz parte mesmo de toda a condição humana e a afligir a todos nós. Não obstante, essa amplitude que faz com que admitamos que, em parte ou em algum momento da vida, fomos, somos ou seremos deficientes, ele problematiza o valor depreciativo e negativo com que a deficiência é (pré-) concebida. Desenvolve dessa forma uma leitura aguda sobre os dispositivos utilizados para compensar os seus evidentes déficits, tal como chamar de especial o deficiente e constituir um conjunto de práticas que apelam à comiseração de sua fraqueza, dor, dentre outros sentimentos que movem a compaixão para com esse ser outro, substantivamente diferente. Caso tomássemos a deficiência em sua positividade, pondera Carvalho (2015, p. 41), o devir deficiente poderia ser considerado um “elemento potencializador de dinâmicas relacionais inter e intra-humanas”. Para isso, seria necessário que o ser considerado especial fosse, por um lado, considerado ‘cada um de nós e não o “meu outro” e, por outro, como essa especialidade seria comum, cada qual poderia se afirmar como diferente e, portanto, capaz de enriquecer as suas experiências singulares no convívio social. Este seria um dos aspectos perspectivados pela ontologia da deficiência. Os outros aspectos estariam associados à problematização das dinâmicas organizacional e produtiva existentes, assim como o alinhamento do deficiente às formas de luta social comuns aos demais, que impeliriam a interpelar “as representações dominantes de uma sociedade sobre ela mesma, isto é, sobre os seus funcionamentos e disfuncionamentos, sobre os seus governos e desgovernos” (CARVALHO, 2015, p. 43).

Ao assumir essa perspectiva, um devir deficiente seria formado num sentido divergente da padronização assumida pela educação moderna. Segundo Carvalho (2015, p. 44), o deficiente nos convocaria “a ampliar as nossas perspectivas de experiência no e com o mundo”, derrubando “das escadas normativas as bulas e as convicções sobre a mobilidade, a eficiência do corpo, as posturas condizentes com os ritos sociais” e transfigurando “a face humana de todos nós em um caleidoscópio que permite a condição humana se afirmar como um dançarino frenético”. Desse ponto de vista, a deficiência não seria uma maldição, mas uma das faces da condição humana: a que se desprende de sua concepção como “identidade normal”, propugnando a diferença como uma condição que aglutina os chamados de humanos e o uso de sua lógica que, sob um viés deleuzeano, facultar-lhe-ias a própria transformação de si. Essa ontologia da deficiência poderia forçar, assim, a uma política da vida em que a diferença se constituísse como sua afirmação ontológica e essa modificação do ser que sugere o seu potencial transformador do mundo.

Interessa a este ensaio o potencial transformador da deficiência assinalado e, sobretudo, dos devires comuns provocados na relação com esses modos de existência deficientes enunciados sob essa ótica. Não obstante, minha concordância com o ponto de vista da lógica da diferença adotado por Carvalho (2015), contudo, gostaria de ponderar sobre a sua elaboração conceitual e a sua construção no sentido de aprofundá-lo um pouco mais. Particularmente, minha indagação se refere a qual seria a diferença da deficiência, já que se refere à diferença de modo similar àquela que podemos relacionar a dos negros, a dos homossexuais, a das mulheres, dentre outros movimentos sociais e políticos que apoiam parte de suas ações numa lógica da diferença, antes do que na sua ontologia? Para começar a responder a esta questão e argumentar pela particularidade da diferença da deficiência gostaria de reportar-me à ontologia do acidente de Catherine Malabou (2014)1.

Embora pouco se refira à deficiência, essa autora procura problematizar os processos de autotransformação de si mesmos em busca de sua identidade a partir da noção de plasticidade destrutiva e do quanto o acidente desta última provoca, numa deriva existencial e biológica progressiva. Para ela, mesmo que o uso pela medicina, pela arte e pela educação da noção de plasticidade sempre tenha sido julgado positivo, ela procura compreendê-la também em seu sentido negativo ou, melhor dizendo, destrutivo. Isso porque entende que o trabalho negativo da destruição, seja biológico ou ontologicamente empreendido, pouco foi considerado como parte da formação subjetiva do sujeito, ainda que para lançá-lo a uma improvisação existencial extrema: o que significa admitir que a deformação causada por um acidente jamais foi vista como constitutiva desse mesmo sujeito.

Nem na vida ordinária nem na científica, por assim dizer, admite-se que esse improviso constitua a existência, por mais que todos estejam sujeitos aos acidentes que o promovem, como mencionado por Carvalho (2015). Ao contrário disso, no âmbito das neurociências, a destruição produzida por um acidente interno ou externo ou essa deformação na constituição mental, por exemplo, raramente são consideradas para compreender a plasticidade cerebral ao qual dão tanta importância. O mesmo se pode dizer em relação ao caráter negativo ou destrutivo da plasticidade no que se refere aos estudos sobre a formação do sujeito pela ontologia, salvo para registrar o restabelecimento de um equilíbrio qualquer e a restauração de sua própria identidade. Isso significa admitir que, fora dessa lógica e racionalidade, pouco se tem considerado o impacto desse seu poder destrutivo, tampouco as possibilidades que o acidente abre, ao abordá-lo como um princípio ontológico e, portanto, constitutivo da formação do humano.

O poder de explosão plástica ontológica e existencial da subjetividade e da identidade nunca recebeu ele próprio uma identidade. Aproximado mas contornado, frequentemente percebido na literatura fantástica mas nunca reconduzido ao real, abandonado pela psicanálise, ignorado pela filosofia, sem nome próprio na neurologia, o fenômeno da plasticidade patológica, de uma plasticidade que não conserta, de uma plasticidade sem compensação ou cicatriz, que corta o fio da vida em dois, ou em vários segmentos que não se reencontrarão mais, tem no entanto sua fenomenologia própria que precisa ser escrita (MALABOU, 2014, p. 14).

É essa fenomenologia que Catherine Malabou (2014) esboça em algumas transformações ocorridas na identidade subjetiva, por exemplo, ao relatar casos de pacientes com Alzheimer. Afinal, elas seriam movidas, antes do que pela astúcia, estratagemas ou máscaras tipológicas, por uma ontologia e uma clandestinidade existencial que tornaria irreconhecível tais atores, em virtude de uma mudança de sua própria natureza e de sua escultura interior - e não de sua aparência. Sem deixar-lhe a possibilidade de uma saída em relação a essa mudança, salvo a de esse sujeito buscar uma forma de fuga, diante da possibilidade de contornar a identidade que desertou, a plasticidade destrutiva “torna possível a aparição ou a formação da alteridade lá onde o outro falta absolutamente” (MALABOU, 2014, p. 17).

Na relação consigo de quem convive com os efeitos de-formativos e os defeitos funcionais provocados pela plasticidade destrutiva é que se nota essa forma de alteridade ímpar com o acidente, esse outro de si que falta, que esfacela qualquer identidade subjetiva e que faz se tornar irreconhecível a si mesmo. E a meu juízo é essa convivência com esses déficits, por assim dizer, causados pelos acidentes que caracterizam as formas de vida ou os modos de existência deficientes. O que significa que, para além de toda designação vocabular, classificação científica ou, mesmo, estigma social em circulação, é essa convivência com os efeitos dos acidentes que demarcam esses modos de existência denominados de deficientes que pode afligir a qualquer um de nós, seja por algum tempo, seja pelo resto, seja por toda nossa vida. Por esse motivo, o acidente se torna constitutivo desse modo de ser e a convivência com ele se apresenta como uma das condições do humano, similarmente a outras como as relacionadas à fragilidade e à finitude do homem.

A sua singularidade ocorre, desde o ponto de vista da ontologia do acidente, em razão da ruptura ontológica radical que provoca nos sujeitos acometidos dos efeitos da destruição plástica e de uma dissensão que transforma o existir. Diz a autora,

Existir, em tais casos - mas no fundo não será sempre o caso? -, consiste em fazer a experiência de uma ausência de exterioridade, que é também uma ausência de interioridade, donde a fuga impossível, a transformação sem sair do lugar. Não há dentro, nem fora do mundo. Por isso mesmo, a modificação se faz mais radical, mais violenta; fragmentada com ainda maior certeza (MALABOU, 2014, p. 19).

É esse tipo de radicalidade ontológica que o acidente produz nos modos de existência em geral, assumindo uma configuração ímpar em relação às formas de vida deficientes. Compreender tal radicalidade significa admitir que a dissensão sofrida por esse sujeito não dissocia de um acidente que lhe é constitutivo e que lhe dá forma. Por essa razão, ela assume, para além de uma figuração trágica, uma ontologia própria que faz restar aos corpos dos acidentados uma vida singularmente deserdada de um eu consciente e de uma subjetividade idêntica, como um fio que fora cortado em dois, mas que persiste, insiste, teima em dar forma ao inesperado dessa existência mesma, em fugir desse corte para se reinventar em outras bases e com outras forças. É dessa natureza a meu juízo o impasse do deficiente e com similar expectativa de criar uma forma de fuga compreendida como uma variável do problema que a noção de plasticidade destrutiva convidaria a refletir, persistindo na tese de que, como diz Malabou (2014, p. 22): “a síntese de uma alma e de um corpo outros em sua própria deserção é ainda uma forma, um todo, um sistema, algo vivo”.

Essa vida em jogo seria composta também por uma arte plástica da destruição, proveniente de componentes tanto biológicos quanto ontológicos. Esse é o recorte que a autora almeja para, filosoficamente, falar da radicalidade ontológica dessa arte e que, pondero eu, pode ajudar a compreender que a diferença do deficiente também decorre tanto de acidentes quanto dessa plasticidade destrutiva com a qual convive ordinariamente: algumas vezes em algum momento da vida como qualquer um, outras desde o seu nascimento. Nessa direção, a convocação de Malabou (2014) para se pensar no vazio da subjetividade e da ruptura produzida pelos acidentes que atravessam a vida desse corpo desertado e desse ser apátrida ontologicamente, parecem trazer importantes contribuições para a ontologia da deficiência, nos termos inicialmente delineados, na medida em que colocam em seu cerne o problema da dissensão do sujeito e de sua deriva existencial.

Desse ponto de vista, a radicalidade do acidente auxilia a compreender a deficiência como uma diferença e um modo de vida radical não somente ontológica, como também ética e politicamente. Por isso, a ontologia do acidente parte da compreensão de que a relação que o sujeito acidentado trava consigo mesmo, não há qualquer vislumbre de transcendência, de fuga ou de evasão. Porque o acidente é um outro de si mesmo, alheio à vontade e ao planejado pela consciência, ele indica uma forma de fuga que escapa à identidade subjetiva, não conhecendo a salvação nem a redenção, postuladas por muitas metamorfoses literárias ou pela configuração de um eu idêntico mais próximo ao existente. É uma forma de fuga que, por assim dizer, se perfaz na mesma pele e no mesmo corpo para se tornar irreconhecível para si mesmo, provocando uma dissensão sem precedentes e para a qual, paradoxalmente, não existe fuga possível.

Isso ocorreria porque o que provoca essa forma de fuga seriam os acidentes que atravessam não somente a vida singular de cada um, como também teriam um espectro mais amplo afetando a existência comum na medida em que se caracterizam por uma série ampla de ocorrências físicas, psíquicas e históricas, ou seja, desde deformações corporais, passando por uma série de doenças e de traumas psíquicos, até crises sociais agudas. De acordo com Malabou, a biografia dos sujeitos é rompida por acidentes que é “impossível se reapropriar pela palavra ou pela rememoração” (MALABOU, 2014, p. 26), pois os mesmos não têm significação, mas seus efeitos mudam o sentido de sua forma singular de vida.

Uma lesão cerebral, uma catástrofe natural, um acontecimento brutal, súbito, cego, não podem, por princípio, ser reintegrados a posteriori pela experiência. Tais acontecimentos são puras forças que golpeiam, dilaceram e furam a continuidade subjetiva, não autorizando nenhuma justificação ou retomada da psique (MALABOU, 2014, p. 29-30)

São acontecimentos dessa envergadura que a plasticidade destrutiva coloca em evidência e que conclama à análise não somente como objetos da neurobiologia, mas também como desafios da filosofia. Isso porque, segundo a mesma autora:

A possibilidade de mudar de identidade por destruição, a possibilidade da metamorfose aniquiladora, não aparece como uma virtualidade constante do ser, inscrita nele a título de eventualidade, compreendida em seu sentido biológico e ontológico. A destruição permanece um acidente quando devia ao contrário ser considerada como uma espécie de acidente, jogo de palavras que visa dizer que o acidente é uma propriedade da espécie, que a capacidade de se transformar sob o efeito da destruição é um possível, uma estrutura existencial. Esse estatuto estrutural da identidade do acidente não reduz por isso o acaso de sua ocorrência, não anula a contingência de sua atualização que, em todos os casos, permanece absolutamente imprevisível. É por isso que reconhecer a ontologia do acidente é uma tarefa filosoficamente difícil: é preciso admiti-la como uma lei, ao mesmo tempo lógica e biológica, mas como uma lei que não permite antecipar nada sobre seus próprios casos. Uma lei surpreendida por seus próprios casos. A destruição, por princípio, não responde à sua própria necessidade, não confirma, quando acontece, sua própria possibilidade (MALABOU, 2014, p. 30).

Esses desafios lançados à filosofia de trabalhar sem a regularidade de uma lei, ao mesmo tempo biológica e ontológica, de atentar aos acontecimentos e de buscar as rupturas seria efetivamente reinventá-la ou recobrar suas tradições outras, como tão bem o fez o pensamento tardio de Michel Foucault. Implicaria em admitir também a transformação dos sujeitos envolvidos com essas práticas filosófica que qualificam a filosofia de um ponto de vista ainda mais radical, isto é, como algo que lhe escapa, na medida em que almeja um objeto rarefeito - o próprio sujeito cindido - e um problema constante - a impossibilidade de reconciliá-lo a um eu idêntico - que aflige não somente as existências alheias, mas as suas próprias, no que entretecem de comum ao dos outros. A amplitude existencial desses desafios, seguramente, tornaria a tarefa da filosofia ainda mais difícil e a disposição de quem a pratica mais arriscada, já que demandaria a sua própria transformação na relação com o seu objeto e com o problema enfrentado, fazendo com que se interpelasse e se ocupasse de si mesmo.

Ela requereria também certa abertura de quem realiza o ato filosófico para que, ao ser afetado por esse outro, nas suas relações intersubjetivas, sobretudo, quando for um outrem acidentado, permita-se essa autotransformação sem preconcepções, fazendo do acidente dele e da forma de vida que constitui esse modo de conviver com a destruição um acontecimento para si mesmo. É, portanto, o encontro com esse acontecimento imprevisível e com um acidente alheio que lhe facultaria, dependendo de sua coragem, a possibilidade desse experimento de si e a disposição de se colocar ao lado desse outrem, sem temer a sua diferença e o processo de diferenciação que lhe aguarda. Ao contrário de temer essa diferença alheia e esse processo de diferenciação de si, eles seriam tomados como norma de conduta, postulando não que a diferença fosse normal, mas que o normal fosse o diferente ou a diferenciação. Para além dessa inversão lógica, desse ponto de vista, a diferenciação e, de certo, o devir em relação a si mesmo implicaria no principal desafio filosófico de uma autotransformação constante cujo fim seria, por um lado, a continuidade infinita desse processo transformativo de si, enquanto persistir a vida e a sua errância. Por outro, a ruptura percebida com um acidente nem sempre seu, mas de outrem com quem se relaciona e nele vislumbra algo em comum, reeducando seu olhar e seus gestos em relação a esse outro.

O motivo pelo qual essa ruptura que implica uma mudança de sentido da vida se torna crucial para a ontologia do acidente é o de que ela ocorre na medida em que o acidente, seja qual for ele, é experimentado pelo sujeito. Diante de sua ocorrência, esse mesmo sujeito não vislumbra uma fuga possível, já que esses acidentes são imprevisíveis, tanto quanto os efeitos sobre a sua existência e a sua repercussão sobre a esfera pública. A explicação dada pela autora para isso é a de que “o acidente é a dimensão experimental da ontologia” (MALABOU, 2014, p. 49), ou seja, o sujeito pode até experimentá-lo, mas é o acidente que faz desse mesmo sujeito experimento, sendo, portanto, um experimento do sujeito, como se tivesse em suas mãos, não tendo para onde fugir, salvo enfrenta-lo, se conformando e convivendo com ele, fazendo mais parte dele do que faz parte de si. Seguramente, esse fazer parte de si lhe dá uma configuração, como também deforma o próprio sujeito nesse processo de diferenciação de si. Nessa experimentação do deficiente com os efeitos causado pelos acidentes que provocaram sua deficiência é uma relação, ou seja, esse seu experimento de si é tão imprevisto quanto o de sua relação com outrem e, quem sabe, ainda mais imprevisível do que esta última porque determinada não somente socialmente, como também biológica e ontologicamente, por uma interveniência da vida que normatiza e constitui um modo de vida possível.

Dessa perspectiva, o ser deficiente poderia vivenciar esse acontecimento em que eventualmente pode ter se tornado ou, ao menos, esse experimento do próprio acidente que provocou a sua deficiência, tendo, quem sabe, mais do que a visibilidade merecida, a expressão efetiva do que são e o respeito não pelo que desejam que ele seja para se enquadrar a ordem do mundo atual. Mesmo que o/a deficiente tente se adequar a certa normalidade em torno de uma identidade e de relações interpessoais que giram em torno dos parâmetros da biologia, a convivência com os acidentes que fundam uma espécie de ontologia se constituem numa diferença com a qual eles devem lidar em sua existência ordinária para formar um modo de existência próprio ou uma forma de vida singular, em resposta a normalidade e a governamentalidade instituídas.

Nesse campo emergente da relação do deficiente com os acidentes causadores de seus déficits e limitações parece emergir uma ética que se funda, por assim dizer, na ontologia do acidente. É como se a sua dificuldade em evitar ou em sair de sua condição, seja pela busca de superação de seus déficits, seja pela procura da suposta “cura” de suas disfunções, produzissem uma linha de deriva e de fuga aos modos de existência e de governamentalidade imperantes, criando outros, pouco visíveis, mas nem por isso menos potentes. É essa potência de vida e aquela ética que caracterizam os modos de existência deficientes que pode ser explorada como uma segunda contribuição da ontologia do acidente para a ontologia da deficiência.

Tanto uma quanto outra se relacionam com uma forma particular de diferença, ao qual denomino de radical, na medida em que não se assentam em escolhas ou por obra da consciência, mas por acidentes com cujos efeitos convivem o ethos deficiente, por assim dizer, e com uma destruição plástica que lhe é imanente e com a qual, por mais que tente, não é integralmente superável em sua existência. Isso ocorre, na acepção de Malabou (2014, p. 30-31), porque qualquer transformação do sujeito não seria “a consequência de um acontecimento exterior, que sobrevém de maneira puramente casual para afetar e alterar uma identidade originariamente estável”, mas também uma espécie de identidade “normal” que se caracterizaria, desde sempre, “uma entidade mutável e transformável, sempre capaz de dar uma guinada ou dizer adeus a si mesma”. Assim delimitada, essa identidade “normal” seria ditada pela diferença mesma, mais do que por sua lógica como sugerido por Carvalho (2015), e, particularmente, pelas vicissitudes da vida, nos termos assinalados por Georges Canguilhem (1997), onde o acidente seria uma de suas principais dimensões.

Sob essa ótica, a experiência da diferenciação ética de si provocada pelos acidentes seriam o móvel dessa normalidade particular, por assim dizer, produzindo modos de existência que, antes do que identidades, indagam o sujeito sobre seus desajustes com as próprias representações de si mesmos e o instigam a um devir deficiente de uma forma perfeita, mas criador de uma forma de fuga e de modos de subjetivação outros, imprevisíveis. Tanto essa forma de fuga quanto esses modos de subjetivação apostam na conversão da potência daquele desajuste e dessa deficiência em ato transformador, numa explosão de vida, em um mundo que a esvaziou.

Sem que a promessa de salvação da alma, nem sua perduração infinita se façam presentes, tal explosão implica a meu juízo numa intensidade de vida capaz de ser sentida, vivida no instante e constitutiva desse devir do sujeito, talvez, como um momento que o fez mudar de lugar, romper-se, dissentir-se, transformar-se, não para se adequar às representações em circulação no mundo ou para se subjugar às formas de governamentalidade imperantes, mas, quem sabe, se contrapor a elas, afrontar, resistir. É justamente esse ponto de sua imprevisibilidade e de sua ruptura que julgo como positivo - seguindo Malabou (2014), mesmo sendo uma denegação da negação -, assim como o estendo para compreender a deficiência como resultado, como sintoma e como produto de um acidente com o qual o ser deficiente abriga e convive, ao mesmo tempo em que expõe como uma marca corpórea, física, um signo que exprime publicamente, provocando uma alteridade outra.

Distintamente da autora, porém, penso que essa alteridade é o que mais interessa na medida em que ela provoca com a exposição dessa relação do deficiente com sua própria deficiência um questionamento das formas de vida e dos modos de existir denominados normais e que se esquivam o tempo todo dessa relação para se dobrar ao imperativo moral da eficiência que rege o mundo atual, adentrando e controlando os capilares da vida mesma. Parece ser possível, assim, vislumbrar não somente a radicalidade ontológica na qual se funda o ethos deficiente, como também o seu radical efeito político, no presente, como um contraponto aos excessos da tecnologia do biopoder em relação à normalidade e ao imperativo da eficiência aplicado ao empreendedorismo de si, nos termos explorados em outra ocasião (PAGNI, 2015).

Julgo por isso a deficiência do ponto de vista ontológico como uma diferença radical. Também é por essa razão que, ao me apropriar da ontologia do acidente de Malabou (2014), dela divirjo na medida em que considero que tal radicalidade da diferença pode, na relação do deficiente com outrem, provocar neste último também uma transformação, desde que tenha abertura para acolhê-la. Na experiência singular com a deficiência alheia, esse sujeito pode se indagar sobre o modo como se relaciona com si mesmo e, particularmente, com os déficits provocados por acidentes estruturais que ignora, mas não tem como fugir, já que seriam insuperáveis, como isso interfere sobre seus afetos e o seu modo de ser e de viver. Assim, pode aprender com o deficiente algo que o constitui, ou seja, a convivência com um acidente e com déficits insuperáveis, que os acompanham, contra os quais pode lutar sem que necessariamente os superem e com os quais deve conviver.

Aprendizados com o ethos e os devires deficientes: ensaiando uma reeducação do olhar

Nesse campo em que se vê a emergência de uma alteridade outra, na medida em que, na relação de outrem com o deficiente, se vê afrontada uma identidade fixa, uma subjetivação normalizada e, considerando os efeitos nefastos dos acidentes que lhes acometem, se vê justamente um vazio, uma dissensão, que é comum a ambos. Como não se trata de enxergar no outro um eu idêntico, normal e perfeito, se projeta sobre esse si vazio com o qual o deficiente se relaciona a própria cisão desse outrem, conferindo a ela, quando não totalmente capturado pela designação vocabular, pela classificação científica e pelo estigma social em circulação, uma deformidade ficcional que é dele, e não desse outro. Por isso, a relação com os deficientes assombra as almas acomodadas a uma identidade e aos corpos já prenhes de normalidade. Justamente porque essas formas de vida afrontam a essa comodidade e enquadramento social, implicando num devir cujo fim não está na mimetização ao eu alheio, mas o improviso existencial e a necessidade de ter que se reinventar, recorrendo não somente ao humano convencionado, mas também ao inumano da arte, nos termos indicados em oura ocasião (LYOTARD, 1998; PAGNI, 2014).

Em busca desse inumano da arte tento focalizar nesta parte do ensaio o encontro dos sujeitos com essas forças de vida que faz com que o acidente alheio se torne para outrem um acontecimento, ainda que para o deficiente esse movimento continue incerto. Diferentemente de Gilles Deleuze (2000) para quem aquele acontecimento seria encarnado como uma ferida pelo poeta acidentado, para Malabou (2014) a relação do sujeito com o acidente seria sua dissensão, sua deriva e sua improvisação existencial permanente, mantendo aberta, sem cicatrização o ferimento, expondo-o como constitutivo de um si para o qual não se fez nem se sabe se fará acontecimento. Como demonstrado em outra ocasião (PAGNI, 2015), é precisamente esse apego aos acontecimentos que interpelam a generalização das ciências e ao devir antes do que à universalização em relação às verdades que problematizam a filosofia no sentido de indaga-la que signo os acontecimentos teriam para a existência, que sentidos a multiplicariam e que verdades a configurariam.

Desse ponto de vista, a filosofia poderia trabalhar aproximandose dos saberes científicos e técnicos que fossem capazes de acolhê-las (como faz a autora ao se aproximar das neurociências), como também da arte e da literatura quando o trabalho com o conceito se mostrasse inócuo. São esses últimos campos que vou preferir para, de um lado, dar visibilidade a esses modos de existência outros e, por outro lado, propor ensaiar uma relação com eles, que possibilite uma metamorfose de si. Para isso, recorro a um caso ficcional e a gêneros literários como as crônicas de Eliane Brum (2006), que permitem a essas formas de vida, que tem encontrado pouco espaço na filosofia melhor exprimir seus modos de existências no mundo e, assim, perfazer-se por meio de relatos de seus familiares e de seu entorno2.

Em um desses casos é possível vislumbrar uma cena interpelativa, ao modo literário e a algo comum a essa forma de relação com a deficiência. Trata-se do caso de Francisco, relatado por seu pai numa sala de espera de um desses hospitais ou centros de atendimento às pessoas com deficiência. O relato ocorreu após o pai de Francisco3 tê-lo entregue aos cuidados dos estagiários e dos profissionais para mais uma rotina de terapias. Já fazia algum tempo que via esse homem com Francisco, enquanto aguardava minha filha em uma dessas terapias. Nesse dia sentou-se ao meu lado e, finalmente, tive a coragem de perguntar o que tinha se sucedido com Francisco. Ele contou o seguinte:

- Há dois anos, Francisco estudava à noite, trabalhava durante o dia, tinha namorada, ia para a balada. Foi um acidente...na verdade, uma bactéria, que se alojou em seu cérebro, quando tinha 21 anos. Uma bactéria sem importância dessas que se contrai, que parece uma gripe que logo passará.... mas que não passou, se alojou no cérebro. Começou a alterar à voz, a perder os movimentos, a ter epilepsia, até que um neurologista o encaminhou para um neurocirurgião que, então, teve que retirar a parte já comprometida de seu cérebro e, então, ele ficou desse modo. Perdeu também o emprego, a namorada e parte da vida...foi obrigado a ter que renascer a cada dia e ter que conviver com o que se tornou.

- O que posso te dizer é que aqui no centro posso trazê-lo todos os dias...estão reprogramando o cérebro dele... já começamos a ver os primeiros resultados. Ele olha para o tablet e sorri quando vê fotos do passado ou de alguma garota que lhe interessa. Já sei quando está aborrecido e, de alguma forma, procuro animá-lo. Por isso, também, preciso ter ânimo sempre, estar ao lado, não desistir jamais. Fui o que restou, conjuntamente com sua mãe e irmão, para ele, seu único laço com o mundo e com a persistência de vê-lo novamente nele.

- Pensando bem, ele também foi único no que restou para mim, depois de uma vida de trabalho, de abandono dos filhos e da família, me trouxe um alento novo, desconhecido, uma alma que acreditara perdida e que anima meu corpo a carrega-lo, a barbeá-lo, a acompanha-lo, a vibrar com um lábio que mexe e a acreditar que continuará a viver.

Dois anos se passaram e, aos poucos, o pai e a família se preparam para receber Francisco de volta. Um Francisco que não será mais o mesmo, eles sabem. Francisco também sabe disso, segundo o pai. Como tiveram que viver entre um improviso e outro, agora, a vida deles, mesmo com a reprogramação de Francisco, deverá ser a do improviso ordinário, a de uma existência improvisada e a de um devir sem fim, deficiente, como a de todos nós. A diferença é a de que Francisco e seu pai imaginam e se preparam para assim viver, pelas circunstâncias de um acidente, contudo, poucos de nós imaginam ou se preparam para isso, embora muitos já vivam dessa forma por acidentes que lhes escapam e lhes obrigam a existir do improviso. Nem na vida ordinária nem na científica, por assim dizer, admite-se que esse improviso constitua a existência, por mais que todos estejam sujeitos aos acidentes que o promovem. Ao contrário disso, no âmbito das neurociências, a destruição produzida por um acidente interno ou externo ou essa deformação na constituição mental, por exemplo, raramente são consideradas para compreender a plasticidade cerebral ao qual dão tanta importância. Tampouco os profissionais que reprogramam o cérebro de Francisco se atentam a isso.

Caso se considere a primeira parte deste ensaio, essa cena parece corroborar os efeitos devastadores dos acidentes. Sem deixar a esses atores - sejam os pacientes de Malabou com Alzheimer (2014), sejam pessoas como Francisco - a possibilidade de uma saída em relação a essa mudança, restaria a eles apenas buscar contornar a identidade que os desertou. É o caso explícito de Francisco, que “renasce a cada dia” como diz seu pai em razão desse estranhamento em relação a si mesmo, ao que era antes e o que se tornou, por um lado, e onde o seu outro lhe falta, sem ter qualquer referência desse eu, agora esvaziado de sentido e de significado para ele. Talvez, importante para seus pais, mas já relativizado, minimizado, na medida em que na relação com esse outro - seu filho - só podem vislumbrar suas próprias projeções, alguns traços de um eu pretérito que não é mais idêntico a si mesmo, como se seu corpo não coubesse mais na representação que dele se faz nem da alma que o anima.

Para Francisco não há uma saída em vista ou consciente, enquanto que para seus cuidadores ainda resta a esperança de que algum acontecimento natural ou artificialmente criado pelos saberes científicos e pelas tecnologias do biopoder possam salvá-lo ou simplesmente curá-lo dos efeitos devastadores de um acidente que passou a constituí-lo, repartindo sua vida em dois, como também as de seus familiares e a de seu entorno. Aliás, é o caso também de Leandro, o “menino do alto” retratado em uma das crônicas de Eliane Brum (2006).

Similarmente ao caso de Francisco, essa crônica também torna a realidade uma ficção, em vistas a produzir um efeito preciso em seus leitores: o de fazê-los ver a vida que ninguém vê. Dando visibilidade a essa vida, a escritora narra a história de um menino, morador de uma comunidade num morro em Porto Alegre, cuja divisa com a planície expressava uma clara divisão de classes que somente foi descoberta por ele quando, aos 12 anos, sofreu um acidente numa das ruas da cidade. Escreve a autora:

O drama do menino é que nasceu duas vezes. Nos primeiros 12 anos descia a cidade vertical aos trambolhões de criança, resvalando pelos barrancos, rindo das pedras. Espantando a fome que assombrava a família com aquela inocência que protege a infância. (...) Numa das incursões à planície, aconteceu. Nem viu o carro, não viu mais nada. Despertou cinco meses depois. Acordou para o horror. Tinha as pernas retorcidas, as mãos em garras. O menino renasceu. Como prisioneiro (BRUM, 2006, p. 72).

Ao renascer prisioneiro do alto, Leandro descobriu que vivia numa cidade dividida entre o morro e a cidade. Descobriu pelo acidente e pelo trauma craniano provocado que vivia de improviso, lutando para sobreviver, nessa divisão ocasionada por um acidente que não era físico, nem biológico, mas um trauma social, fruto das desigualdades de um país como o nosso. Assim, perdeu sua inocência, no momento em se que descobriu prisioneiro em sua casa no alto, ficando muito tempo sem retornar à planície.

Ia da cama a uma poltrona velha em que assistia televisão na sala, entendendo definitivamente que as suas pernas eram as únicas asas que tinha para voar entre esses dois mundos apartados entre si. Justamente num lugar em que, além das pernas, precisava também dos braços quando chovia, uma cadeira de rodas não tinha sentido. Como diz a autora: “Não foi a fatalidade que encarcerou o menino. Foi o lado errado. Quando a quase dois anos mergulhou no mundo dos semimortos, os médicos garantiram que só um milagre o salvaria. (...) Só a família acreditou na ressurreição” (BRUM, 2006, p. 73).

Como acontece em muitos outros casos4, como os ilustrados aqui por Francisco e Leandro, há uma primeira comunidade que começa a se formar pelos laços entretecidos com a própria família. São os mais próximos que acreditam no improvável, que se associam abrindo mão de suas próprias vidas para cuidar desse outro que convive com o acidente e que se encontram numa dissensão subjetiva, numa fragilidade, muito mais grave do que as suas. São esses cuidadores que ampliam o senso comum em que vivem, condensando em gestos e em palavras, aquilo que os tornados deficientes por acidentes, como os aqui relatados, que lhes permitem ser vistos e ser significados publicamente como acontecimentos. Por vezes, essa comunidade, nem sempre visível, consegue trazer à público esses signos. Algo que raramente ocorre em consonância com as políticas públicas ou pelo agenciamento de instituições estatais. Tampouco os serviços técnicos são, muitas vezes, prestados em casos como os de Leandro e de outras pessoas que nasceram, acidentalmente, no lado errado da cidade.

O que resta a Francisco ou a Leandro é que ainda pulsa em seus corpos uma vida singular na qual pouco se reconhecem e quase nada são reconhecidos, salvo como deficientes, como algo penoso e negativo. Os únicos aliados que possuem nesse jogo de poder e nos processos que os objetificam como anormais, por assim dizer, são seus familiares e a comunidade ao seu entorno. Embora essa relação intersubjetiva ou comunitária daqueles que convivem ordinariamente com os efeitos de acidentes em sua própria pele com outrem de quem eventualmente dependem e são sujeitos aos seus cuidados não tenham sido objetos de análise pela ontologia do acidente, a discussão sobre esse tema parece ser relevante para os desdobramentos dos modos de existência deficientes e seus impactos sobre a comunidade em que vivem. O mesmo se pode dizer acerca de sua importância para redimensionar a ontologia na qual essa ética particular se funda, dando a ela contornos menos clássicos, mais relacionais e, portanto, associados a um campo de forças não somente biológicos ou físicos - como postulados pela ontologia do acidente -, como também relacionados ao poder e às lutas pela existência.

Dessa perspectiva, o caso de Leandro parece mais radical e auxilia a pensar um pouco mais as dificuldades da emergência desse modo de existência deficiente em um contexto como o que veremos a seguir, porém, o seu determinante papel espetacular como acontecimento para determinadas comunidades. Mais do que uma radicalidade ontológica e, por assim dizer, ética, assim contextualizada, casos como esse que dão visibilidade a formas de vida deficientes sugerem a sua radicalidade política, quando esses modos de existência se expõe especularmente e, mesmo sem o desejar, se apresentam como um acontecimento para tais comunidades.

Como Leandro precisava fazer fisioterapia e o poder público nada fazia, escreve Brum (2006), o pai fez uma gambiarra com canos de PVC e elásticos. Desse improvido esforço familiar pelo menos a mão conseguiu sair da forma de garra. Abandonado à própria sorte, percebia a cada dia a liberdade que lhe fora roubada por uma desigualdade atroz, que nem o direito básico ao atendimento lhe fora concedido. O que leva a escritora a concluir: “Não foi o acidente que roubou a liberdade do menino. Não foi o traumatismo craniano que retorceu seus pés. Foi crime” (BRUM, 2006, p. 73).

Esse crime não é de ordem cósmica, mas social e política, dada as profundas desigualdades existentes em nosso país e da omissão do poder público e do Estado, sobretudo, em relação às comunidades similares àquelas em que vive Leandro. Nesse lugar em que as pessoas aprenderam a não reclamar de sua infâmia e que suas vozes foram retiradas ao nascer, só restou ao menino esperar que algum acontecimento o salvasse. E, efetivamente, um dia aconteceu: uma enfermeira do posto de saúde em visita à comunidade lá o descobriu, percebeu o quanto havia perdido e o que haviam feito com sua vida, tornando-se sua aliada. Também há como aliados muitos profissionais que, concomitantemente a qualquer eficiência técnica e domínio de saberes científicos, são sensíveis a essas demandas apresentadas por formas de vidas como as de Leandro e estão abertos a enxergá-las, sem as manchas, para usar uma expressão de Carlos Skliar (2003).

Escreve Brum (2006), mais uma vez, o pai arrumou uma porta velha onde amarra o menino com um cinto velho e o carrega para baixo do morro, com a ajuda de um parente. Faz duas vezes por semana essa aventura sobre um precipício em que qualquer falha poderia ser fatal. É outro acidente que esses alpinistas procuram vencer, decorrente de um traumatismo social. Acostumados com o improviso de uma existência que ninguém vê, por estar no alto e na extrema pobreza, esse acidente se faz visível com o espetáculo da descida do menino para toda a comunidade, retratados magnificamente pela escritora

Quando o pai raquítico carrega o filho de pernas mortas pela escarpa de sua tragédia, o morro para e se cala. Alpinistas da miséria, um passo em falso pode lhes custar a vida. Embaixo, a enfermeira espera. Ou o vizinho. Como não há ambulância para leva-lo à fisioterapia, um e outro se revezam em seus próprios carros. A cada vez o menino vai com o coração descompassado, a cada vez que desce sonha que subirá com as próprias pernas (BRUM, 2006, p. 74-75).

Como um espetáculo que traz o signo de um acontecimento, a descida do menino do morro até a planície é para ele uma forma de se manter em movimento, em luta pela vida e para alimentar seus sonhos. Diz o menino: “- Eu fecho os olhos e me vejo correndo pelo morro. Penso que vai acontecer, mas não acontece” (BRUM, 2006, p. 75). Contudo, pondera a autora, se referindo aos motivos porque o povo do morro se cala e o que essa (des)esperança, por assim dizer, representa. É a espera de um acontecimento para um acidente que não se sabe se vem, embora já apareça para aqueles que estão em seu entorno e para sua comunidade.

Assim sendo, é o ininterrupto convívio com os efeitos de um acidente que não cessa, não dá tréguas, exigindo de Leandro o tempo todo estar em posição de guarda, imerso numa luta sem fim enquanto perdurar a vida e que conta com importantes aliados. Mas ainda todo esse esforço é insuficiente para fazer volume publicamente e garantir o respeito a direitos jurídicos básicos, a conquistas e, sobretudo, a um modo de existir outro, diferente radicalmente, porque sem possibilidades de ser o mesmo, normal, o esperado.

É uma luta grande demais para um menino que nasceu no lado errado da cidade. Tudo que conseguiu é pouco. Ainda são breves as escadarias. Enquanto acreditar no improvável há uma chance. Enquanto suspirar por videogames ainda resta nele algo de menino. Por isso o povo se cala quando passa. Porque é só um menino de pernas assassinadas. E sonha construir uma ponte entre o morro onde nasceu e a planície em que precisa chegar. É só um menino de pernas mortas. E não desistiu de mudar o mundo (BRUM, 2006, p. 75).

São os signos do espetáculo desse acontecimento que os fazem ver a fragilidade de suas vidas singulares e a necessidade uma luta comum, raramente, ouvida pelo poder público, que contam com pouquíssimos aliados. Esses signos de um acidente que se torna acontecimento ao trazer à luz uma vida miserável que ninguém vê e um improviso existencial, que não necessitou de nenhum acidente para acontecer, bastou nascer do lado errado da cidade.

No caso de Leandro, esse acidente é duplo, mostrando uma dimensão pouco explorada pela ontologia de Malabou (2014). Primeiro, um acidente físico que lhe fez descobrir a evidência de um abismo entre dois mundos e de sua condição de classe social. Um segundo acidente é social e político - e que foi denominado de “crime” por Brum (2006) - porque essa desigualdade e omissão do poder público excede qualquer exercício de poder e até mesmo biopoder para se apresentar como condição de dominação e como tanatopolítica. Na verdade, um acidente dentro de outro acidente ou de um espectro mais amplo para o qual a esperança e essa força de auto-superação são as únicas alternativas para se continuar vivendo, sobrevivendo. Nessa vida, porém, a performatividade dessa força e o espetáculo de uma forma que se expõe ao público parece perturbar os demais modos de ser existentes, tirando-os do prumo, ao apresentar uma estética da tragédia em que, salvo nos corpos desprovidos de alguma sensibilidade, mobiliza aqueles que, antes de serem lançados a uma improvisação da existência, aí já se vem jogados.

Esta parece ser sua força mobilizadora que cindiu não somente o corpo de Leandro, “o menino do alto”, mas também, pelo silêncio daqueles que o veem em sua escalada, a de toda uma população que vê nessa cruzada a persistência para continuarem lutando, ainda que não do mesmo modo, contra a sua própria miséria e o seu improviso, tentando afirmar uma vida num espectro em que foi deliberadamente interditada, como vidas que não merecem ser vividas. São a essas vidas rotas, acidentadas, que gêneros literários e crônicas como esses dão visibilidades, mostrando sua face sombria e, sobretudo, o quanto tais sombras são produzidas por acontecimentos históricos, onde a convivência com os acidentes em formas de vida denominadas deficientes são apenas um modo de apresentá-las ao mundo e a percepção dos seus efeitos uma forma de se dar conta do improviso de sua existência, do crime que lhes acomete.

A visibilidade dessas vidas, a atenção ao acontecimento que significam, o aprendizado com os acidentes com os quais convivem e o acolhimento da diferença radical que exprimem e do devir comum que provocam parecem resumir algumas qualidades necessárias à formação, dentre outros profissionais, daqueles que atuam e que falam sobre sua inclusão nas escolas. Embora tais virtudes não possam ser ensinadas em cursos de qualificação técnicas, elas podem ser aprendidas por casos e crônicas literárias como as que foram aqui enfocadas e darem relevo ao pensar filosófico desses profissionais, preparando-os para um trabalho cotidiano de reflexão acerca de sua própria experiência com essas formas de vida e esse devir comum deficientes. Quem sabe, também, se poderia falar de uma inclusão outra a partir desse aprendizado literário e desse pensar responsáveis por uma formação ética desses profissionais: menos oficial e técnica, como as definidas pelas políticas públicas, mais marcada por uma disposição e realizada como um gesto, nos termos ensaiados a seguir.

O gesto de incluir e a sua transversalidade na escola: conviver com o devir deficiente

A exposição dessas formas de vida, como as anteriormente expostas, é uma denúncia e, inadvertidamente, um modo de resistência, que conclama a população a olhar para o crime que acomete não somente a elas, mas o que têm em comum com a deficiência de toda uma existência. A sua presença numa comunidade e no mundo é um modo de interpelar os excessos do poder e às formas de governamentalidade imperantes, que evitaram sua existência com o cuidado e a atenção que mereciam, perpetuando a sua dominação no obscurantismo e, fascistamente, no governo das diferenças da população, com o intuito de dirimi-las, torná-las assimiladas pelo sistema e, sobretudo, homogêneas para ser governada pacificamente.

Os dispositivos para isso são bem conhecidos, as políticas estatais de inclusão entre eles. Não vou me ater a crítica filosófica a esses dispositivos, nem às configurações de eventuais resistências como as propostas a partir da ética da amizade, nos termos desenvolvidos em outras ocasiões (PAGNI, 2015, 2016), mas seguir a estratégia deste ensaio de recorrer à literatura que retrata essas formas de vida deficientes para, em tensão com os conceitos da filosofia, falar de uma outra inclusão. Nesse sentido, gostaria de me reportar a mais uma crônica de Eliane Brum (2006), intitulada “História de um olhar”, onde parece ser possível vislumbrar literariamente uma inclusão que se dá pelo olhar e pelo gesto.

Essa crônica narra o encontro de Israel, um andarilho supostamente com alguma deficiência intelectual, e Eliane, uma professora de séries iniciais da escola pública, numa vila que tem o nome de Kephas (do grego: pedras), onde vivem desempregados, biscateiros, paneleiros, enfim, toda uma população colocada à margem. Mas, como diz a Brum (2006), onde há essa população sempre há lugar para “um enjeitado da vila enjeitada”: esse era o caso de Israel.

A imagem indesejada no espelho. Imundo, meio abilolado, malcheiroso, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe morta, vivendo em uma casa cheia de fome com a madrasta e uma irmã doente. Desregulado das idéias, segundo o senso comum. Nascido prematuro, mas sem dinheiro para diagnóstico. Escorraçado como um cão, torturado pelos garotos maus. Amarrado, quase violado. Israel era cuspido. Era apedrejado. Israel era a escória da escória (BRUM, 2006, p. 22).

Essa imagem começou a mudar quando, ao seguir até a escola um menino de nove anos, chamado Lucas, e lá encontrar um mistério, que o fazia caminhar até a entrada da instituição todos os dias. Israel, chegou até a escola por fome, escreve Brum (2006, p. 23), “por fome de comida, de afago, de lápis de cor”, por “fome de olhar”. Até que um dia, depois de muitos outros, foi descoberto, conforme a cena narrada abaixo pela escritora:

Aconteceu neste inverno. Eliane, a professora, descobriu Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la.

Eliane viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro (BRUM, 2006, p. 23).

Aos poucos Israel foi adentrando à esfera da escola, na relação intersubjetiva aí entretecida por seus atores e ocupando nessa instituição um lugar singular de diferenciação e de acolhimento. Como escreve a escritora: “Capturado por essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da Escola” (BRUM, 2006, p. 23).

Essa foi a cena que, gradativamente, foi se desenhando e que transformou Israel em partícipe dessa comunidade, graças a um olhar que se espalhou da sala de aula para toda instituição, a um gesto que converteu a sua estranheza em amizade, ao ponto de também se modificar por inteiro, reinventando a si mesmo e comovendo a professora e os demais.

Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.

Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas. Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles. E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel. E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel (BRUM, 2006, p. 24).

Partícipe de um novo mundo para ele, em que seus acidentes se converteram em acontecimento, agora, Israel era integrado às conversas. Visto, era também falado, aconselhado e cuidado pelos seus amigos novos, que o tratavam como qualquer outro.

Israel, não importa se alguém não gosta de você. O que importa é que você siga a vida, aconselha Jeferson, de oito anos. Israel, não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares, promete Greice, de nove. Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vandinho, porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranqüiliza Lucas, nove. Israel, tu me botas na garupa no recreio? E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu as ruas de pedra (BRUM, 2006, p. 24).

Israel completou a sua “subversão” - uma das variações da escritora a esse processo de inclusão. Uma subversão, contudo, que não era só de Israel, tampouco se restringiu ao olhar da professora, se expandindo, primeiro, aos alunos da classe do ensino fundamental, depois, à escola e, posteriormente ainda, à toda vila. Israel que, antes se escondia pelos cantos, agora se mostra à toda comunidade, sem medo e, ansioso, espera pelo desfile em sete de setembro, quando exporá uma convivência com os efeitos de um acidente, que mobilizará alguns de seus partícipes a certo devir deficiente comum, enquanto que outros se manterão endurecidos, rígidos, fixos, como as pedras de sua vila. Talvez, para esses outros, a indiferença seja o antídoto para ignorarem não o improviso existencial a que os efeitos dos acidentes com os quais convive Israel, mas, sobretudo, para que, nessa alteridade outra, não percebam o próprio improviso de sua existência, a inumanidade artística que silenciam em nome da inumanidade do sistema e do crime que socialmente representam, em contextos como o nosso e de um cenário dominado pela biopolítica neoliberal.

O que importa é que a história de Israel sugere uma outra inclusão escolar, que corre paralela às políticas oficiais. Movidas por um encontro com o acontecimento, um encontro de olhares. São esses acasos, como a amizade que emerge de relações tão formais quanto aquelas produzidas na escola, de seu contra-turno de suas horas vagas e de recreio, que parecem produzir encontros como esses entre Israel e Eliane, contendo gestos mínimos cuja a potência pouco tem sido explorada ética e politicamente pelos atores dessa instituição. Afinal, escreve a escritora como uma espécie de epígrafe a essa crônica e que utilizo aqui como epílogo deste ensaio:

O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca.

Resgata. Reconhece. Salva.

Inclui (BRUM, 2006, p. 22).

Considerações finais

Foi esse gesto de incluir que este ensaio procurou perspectivar, ao recorrer à ontologia do acidente para elucidar algumas de suas possíveis contribuições para a ontologia da deficiência e para repensar esta última, em vistas a fundamentar uma reflexão acerca de seu ethos como um processo de diferenciação radical, com implicações políticas para o tempo presente, sobretudo, para aqueles que se relacionam com esses modos de existir e compartilham de seu devir comum.

Penso ainda que, com tais desdobramentos teóricos, essa forma de inclusão dos modos de existir e de devir deficientes implicam num exercício de alteridade outro e evocam uma formação ética que é transversa aos dispositivos ordinários e às práticas em circulação no ensino, no currículo e no governamento escolar. Isso porque implicam uma sensibilidade por parte de seus atores e uma disposição em enfrentar ou se preparar para suportar os efeitos de seus próprios acidentes ou o de sujeitos que se constituem a partir da convivência com estes últimos, neste caso, aprendendo com eles a exposição desse modo de ser deficiente e, n’outro, reeducando o olhar para tal e para compartilhar esse devir comum. Foi para alcançar esses efeitos mencionados - esse exercício de aprendizado e essa reeducação do olhar -, no âmbito da ação educativa da escola, que este ensaio recorreu aos casos ficcionais e às crónicas, ora corroborando e ilustrando, ora contrastando e conferindo um sentido particular ao seu uso para adequá-lo a um contexto específico como o nosso, o arcabouço conceitual da ontologia do acidente e o modo como caracterizou-se aqui a deficiência como uma diferença radical. Dessa forma, procurou-se dar forma a este ensaio e, com isso, elaborar indicativos sobre um outro modo de inclusão, vendo-o emergir de algumas cenas interpelativas próprias de gêneros literários ou ficcionais, mas, principalmente, dos dilemas enfrentados na vida ordinária pelos próprios deficientes e por seus aliados relatados por seus familiares ou por testemunhas que os narram como casos.

É nesse registro que julgo haver uma convergência entre a verdade ontológica da filosofia com a existencial desses testemunhos, mais próximos à literatura e à ficção, mas nem por isso menos reais ou verdadeiros, somente possível nesse limiar em que a norma é a diferença e, por sua vez, esta é compreendida radicalmente como formas de vida errantes, deficientes, infames. É esse devir comum entre o designado deficiente e outrem, somente manifesto diante da presença daquele que convive ordinariamente com os efeitos de seus acidentes que lhe constitui, que me parece fecundo para ser visibilizado como mobilizador de uma força vital, inumana, que constitui o humano e que se apresenta, além de sua condição supostamente universal, como potencialmente relevante para resistir no tempo presente às formas de governamento imperantes e à atual biopolítica neoliberal.

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*Neste ensaio apresento os resultados parciais da pesquisa Biopolítica, ética da diferença e educação: outro olhar sobre a inclusão escolar - retratos da positividade da deficiência, apoiada pelos editais de Auxílio à Pesquisa da FAPESP, de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e de Bolsa Produtividade em Pesquisa do CNPq.

1Uma primeira aproximação do tema foi desenvolvida por Fernando Bárcena Orbe (2015). Apropriação semelhante, também utilizada para abordar questões mais relacionadas ao tema da formação humana ou do devir pedagógico do que mais diretamente à compreensão ontológica da deficiência, foram desenvolvidas recentemente por Alexandre Simão de Freitas (2016) e Andrea Diaz Genis (2016).

2Saliento que tais relatos mostram uma relação comum pouco enfocada pela ontologia do acidente, ao ponto de contrariarem algumas de suas teses. Isso porque tais relatos podem mostrar que, em contextos como os brasileiros, nem sempre os acidentes lançam os sujeitos a uma profunda improvisação existencial, pois, já vivem nela e, no máximo, essa ontologia somente os auxiliam a descobri-las. Por outro lado, esses casos também vão até onde a filosofia não consegue chegar com sua trama conceitual, invocando uma trama ficcional, por assim dizer. Nem sempre nesses casos, a ficção é o antônimo da realidade, ao contrário, eles catalisam o que é comum a várias experiências singulares. E, o que me parece comum nesses casos de familiares que convivem com um deficiente, é o caráter destrutivo do acidente, o convívio com esse outro cuja relação com o acidente se torna acontecimento para eles e para a comunidade em seu entorno, enquanto que para si se torna um caminho para descobrir que a improvisação existencial a que foi lançado apenas é mais um improviso para outro, ocasionado pelas mazelas sociais em que vive.

3Nome fictício.

4É possível assinalar também os trabalhos de Ignácio Calderón Almendros (2014) e de Ana Cristina Boher Gilbert (2012) que, ao retratarem as narrativas ou ao analisarem os discursos de deficientes e de seus familiares, reiteram essa hipótese.

Recebido: 04 de Dezembro de 2016; Aceito: 17 de Maio de 2017

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