SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número63Diferença e desidentificação: uma teoria da emancipação educativaApresentação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.63 Uberlândia set./dez 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n63a2017-10 

Dossiê: Diferenças e Educação - explorações conceituais entre o Brasil e a França

Políticas da diferença e políticas públicas em educação no Brasil

Policies of difference and public policies in education in Brazil

Politiques de la différence et politiques publiques en éducation au Brésil

Sílvio Gallo* 

*Doutor pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: gallo@unicamp.br.


Resumo

Como pensar a presença de uma “lógica das diferenças” nas políticas públicas para o campo da Educação produzidas no Brasil nas três últimas décadas? Este artigo coloca a hipótese de que está em curso no Brasil, desde a década de 1980, a consolidação de uma “governamentalidade democrática”, pensada a partir do conceito de governamentalidade proposto por Foucault, que tem como centro a afirmação da cidadania. Serão visitados alguns documentos referenciais de políticas educativas para mostrar a centralidade da afirmação da cidadania e a importância da afirmação da diversidade, como forma de garantir uma cidadania plural. Para fazer frente a esta lógica de governamentalização da vida, que implica em um controle do Estado sobre os indivíduos que têm a ilusão da liberdade e da autonomia pelo seu estatuto de “participante” dos processos políticos, serão trabalhadas as ferramentas conceituais fornecidas por Jacques Rancière para pensar a política como acontecimento e a democracia como dissenso.

Palavras chave: Governamentalidade; Educação; Cidadania; Diferença; Diversidade

Abstract

Could we think a “logic of differences” in the public policies for education in the two or three last decades at Brazil? This paper works with the hypothesis that sustains the presence of a “democratic governmentality” in Brazil from the years 1980 to our days. This hypothesis is sustained in the Foucault’s concept of governmentality, with center in the citizenship. Some documents of the public policies in education are investigated, to show the importance of citizenship and the defense of diversity. To oppose this logic of governmentalization of life, that implicates a State control over the individuals, who have the illusion of freedom and autonomy, as “participants” of the political processes, the paper works with conceptual tools of Jacques Rancière, to think politics as happening and democracy as dissent.

Keywords: Governmentality; Education; Citizenship; Difference; Diversity

Résumé

Serait-il possible penser une « logique des différences » dans les politiques publiques en Éducation produites au Brésil pendant les trois dernières décennies ? Cet article pose l’hypothèse suivante : dès les années 1980, il est en cours au Brésil la consolidation d’une « gouvernementalité démocratique », pensée à partir du concept de gouvernementalité proposé par Foucault, centrée dans l’affirmation de la citoyenneté. Quelques documents des politiques éducatives seront investigués avec le but de démontrer la centralité de la citoyenneté et de la diversité, pour garantir une citoyenneté plurielle. Pour envisager cette logique de gouvernementalisation de la vie, qui impliques un control de l’État sur les individus, qui par son part ont l’illusion de liberté et de autonomie, une fois qu’ils ont le statut de « participants » des processus politiques, l’article travaille quelques outils conceptuels de Jacques Rancière, comme façon de penser la politique comme événement et la démocratie comme dissensus.

Mots clefs: Gouvernementalité; Éducation; Citoyenneté; Différence; Diversité

Sabemos que, nas últimas décadas, uma palavra de ordem passou a presidir muitas das políticas públicas do campo da Educação produzidas no Brasil: inclusão. A valorização da diversidade foi se construindo num movimento crescente, tornando imperiosa a necessidade de incluir a todos no sistema educativo brasileiro. A percepção da importância do tema ficou ainda mais evidente quando o Ministério da Educação criou uma Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) que teria depois seu nome mudado para Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), agudizando a importância da inclusão numa política de valorização da diversidade.

Esta secretaria é apresentada do seguinte modo:

A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) em articulação com os sistemas de ensino implementa políticas educacionais nas áreas de alfabetização e educação de jovens e adultos, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação especial, do campo, escolar indígena, quilombola e educação para as relações étnico-raciais. O objetivo da Secadi é contribuir para o desenvolvimento inclusivo dos sistemas de ensino, voltado à valorização das diferenças e da diversidade, à promoção da educação inclusiva, dos direitos humanos e da sustentabilidade socioambiental, visando à efetivação de políticas públicas transversais e intersetoriais. (http://portal. mec.gov.br/secretaria-de-educacao-continuada-alfabetizacao-diversidade-e-inclusao/apresentacao, consultada em 14/11/2016, destaques meus)

Note-se que o objetivo central do órgão é a promoção de uma educação inclusiva, de modo a valorizar as diferenças e as diversidades, compreendidas em diversos âmbitos: educação especial, relações étnico-raciais, direitos humanos, aí compreendidas as questões de gênero e de diversidade sexual, abarcando toda a educação básica, da alfabetização à educação de jovens e adultos. O propósito é o de fazer atravessar (fala-se em “políticas públicas transversais”) todos os territórios da educação básica pelas questões da diversidade e da inclusão, de modo a nada nem ninguém deixar de fora da maquinaria escolar brasileira.

Em uma rápida consulta à página da SECADI no portal do Ministério da Educação em novembro de 2016, constata-se que na aba “Publicações” está disponibilizada ao público uma grande quantidade de material bibliográfico, de textos de políticas públicas produzidas pelo órgão a materiais de formação e de apoio para o trabalho do professor nas escolas, nos diversos níveis e sobre variados temas. Destaco alguns, a meu ver dentre os mais significativos, e apenas para chamar a atenção para a importância dada ao tema: a coleção “Educação para todos”, composta por 33 volumes; os “Cadernos da SECAD”, com 5 volumes; sobre o tema “Diversidade Étnico-racial” são disponibilizados 10 títulos; outros 12 sobre “Direitos Humanos”; e, no tocante a “Educação Especial”, nada menos do que 57 títulos são disponibilizados.

Como compreender a construção deste campo no Brasil contemporâneo? A que projetos de sociedade servem tais políticas? Que chaves podemos utilizar para fazer sua leitura?

Neste artigo, buscarei apresentar algumas possibilidades de leitura centradas no pensamento de Michel Foucault. Não é minha intenção apresentar uma leitura crítica da inclusão na educação sob a lógica da biopolítica, por exemplo, trabalho já feito com muita competência por colegas da área, como por exemplo em Inclusão e Biopolítica (FABRIS; KLEIN, 2013). Minha intenção é construir uma inteligibilidade da lógica política produzida no Brasil nas últimas décadas, sob a qual emergem as políticas públicas inclusivas e de valorização da diversidade e das diferenças. Após algumas explorações conceituais introdutórias em torno daquilo que Foucault (2008) denominou “artes de governar”, explorando a biopolítica e a governamentalidade, apresentarei algumas derivações conceituais, no sentido de precisar ferramentas para pensar a realidade brasileira. Para examinar o fenômeno da afirmação das diferenças, tomarei como central as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica: diversidade e inclusão, documento publicado pela SECADI-MEC em 2013. Para finalizar, serão exploradas possíveis resistências políticas a este processo.

Explorações conceituais: biopolítica, governamentalidade

Foucault dedicou-se a pensar as relações de poder propondo abordagens bastante originais e inovadoras. No conjunto de seu trabalho, explorou diferentes manifestações do fenômeno do poder nas sociedades ocidentais: soberania, poder pastoral, disciplina, biopoder. E operou uma transformação significativa em suas próprias investigações: como ele mesmo identificou em seu curso de 1980 no Collège de France (Do governo dos vivos): primeiro, um deslocamento das análises do tipo ideológico para análises das relações saber-poder; e, num segundo momento, deslocamento destas análises para aquelas do “governo pela verdade” (Foucault, 2014a, p. 12-13). Este segundo deslocamento levou o filósofo, no curso de 1978 (Segurança, Território, População), a falar em “artes de governar”, que emergem no século XVI, englobando o governo de si, o governo das almas e das condutas, o governo dos filhos (pelos pais e pelos educadores) e finalmente o governo do Estado (FOUCAULT, 2008, p. 118).1 Com certo atrevimento, poderíamos, talvez, falar em um âmbito “micropolítico” do governo, na gestão da vida cotidiana e das relações entre pais e filhos, das relações consigo mesmo, das relações religiosas com os fiéis nas igrejas, das relações entre os amantes etc. e em um âmbito “macropolítico” do governo, aí compreendido o governo como ação do Estado propriamente dito.2

Comentando retrospectivamente os cursos anteriores (de 1978 e de 1979), Foucault apresenta de forma sintética o que compreende pela noção de “governo”:

Nos cursos dos dois últimos anos, procurei esboçar um pouco essa noção de governo, que me parece muito mais operacional que a noção de poder, “governo” entendido, claro, não no sentido estrito e atual de instância suprema das decisões executivas e administrativas nos sistemas estatais, mas no sentido lato, e aliás antigo, de mecanismos e procedimentos destinados a conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos homens (FOUCAULT, 2014a, p. 13).

Governo, então, como ação de conduzir condutas. Assim como o poder, ele pressupõe que haja liberdade individual,3 que os sujeitos se conduzam por si mesmos (um governo de si), mas implica também que essas condutas possam ser conduzidas por outrem. Estabelece-se, assim, um jogo sutil de condução; ser sujeito livre é conduzir-se, mas é também ser conduzido. Na analítica foucaultiana, há um elemento importante para este jogo, a emergência da “população” como ator político.

Afirma Foucault (2008, p. 137 e ss.) que nos séculos XVII e XVIII a arte de governar estava “bloqueada”, pois encontrava-se na encruzilhada entre o governo da casa pelo pai de família e o governo soberano pelo Estado. Ora, se o Estado era soberano, como exercer o governo dos seus em casa? Que margem teria o homem comum, no exercício micropolítico de conduzir condutas, se encontrava-se sob a tutela de um Estado soberano? Havia, assim, um descompasso entre política e economia (esta compreendida como governo da casa, da família). O desbloqueio da arte de governar foi possível pelo aparecimento de um novo agente, a população.

Acompanhemos o argumento de Foucault:

É a população, portanto, muito mais do que o poder do soberano, que aparece como o fim e o instrumento do governo: sujeito de necessidades, de aspirações, mas também objeto nas mãos do governo [...] [A] população vai ser o objeto que o governo deverá levar em conta nas suas observações, em seu saber, para chegar efetivamente a governar de maneira racional e refletida. A constituição de um saber de governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber de todos os processos que giram em torno da população no sentido lato, o que se chama precisamente “economia” [...] Pois bem, é apreendendo essa rede contínua e múltipla de relações entre a população, o território e a riqueza que se constituirá uma ciência chamada “economia política” e, ao mesmo tempo, um tipo de intervenção característica do governo, que vai ser a intervenção no campo da economia e da população. Em suma, a passagem de uma arte de governar a uma ciência política, a passagem de um regime dominado pelas estruturas de soberania a um regime dominado pelas técnicas do governo se faz no século XVIII em torno da população e, por conseguinte, em torno do nascimento da economia política (FOUCAULT, 2008, p. 140-141).

E, um pouco adiante, de forma sintética:

São estes três movimentos - a meu ver: governo, população e economia política -, acerca dos quais cabe notar que constituem a partir do século XVIII uma série sólida, que certamente não foi dissociada até hoje (FOUCAULT, 2008, p. 143).

Esta técnica de exercício do poder político que o filósofo explica desenrolar-se em torno da população não exclui as práticas anteriores, mas as engloba, constituindo como um “triângulo” que articula soberania, disciplina e governo, tendo como foco central este último. Por essa razão, Foucault afirma que os Estados modernos foram “governamentalizados”, isto é, passaram a operar segundo a lógica do governo. Teríamos três grandes formas que se sucederam no ocidente: o Estado de justiça, operando centralmente pela soberania; o Estado administrativo, operando através da disciplina; e o Estado de governo, fazendo agir sobre as populações um poder sobre a vida, o biopoder.

É no âmbito desta analítica do poder que Foucault (2008, p. 143 e ss.) introduz um novo operador conceitual: a governamentalidade. E apresenta três aspectos pelos quais podemos compreender a noção: a) uma teia composta por instituições, procedimentos, táticas de exercício do governo como condução de condutas, mas que envolve também os saberes criados para que tal exercício seja possível; b) o jogo de forças que, historicamente, conduziu à hegemonia deste tipo de exercício de poder, englobando a soberania e a disciplina, que o antecederam; e c) a resultante do processo histórico de governamentalização dos Estados no ocidente.

E este processo foi possível, afirma o filósofo, pela conjunção de alguns fenômenos em torno das artes de governar: o poder pastoral; a diplomacia militar; e a polícia. O poder pastoral, segundo Foucault, está na base da governamentalidade, posto que foi esta tecnologia de poder, surgida no âmbito do cristianismo medieval, que introduziu o governo como condução de condutas. Foucault sumarizou suas características:

[...] a ideia de um poder pastoral é a ideia de um poder que se exerce mais sobre uma multiplicidade do que sobre um território. É um poder que guia para um objetivo e serve de intermediário rumo a esse objetivo. É, portanto, um poder finalizado [...] sobre aqueles mesmos sobre os quais se exerce, e não sobre uma unidade de tipo, de certo modo, superior, seja ele a cidade, o território, o Estado, o soberano. É, enfim, um poder que visa ao mesmo tempo todos e cada um em sua paradoxal equivalência, e não a unidade superior formada pelo todo (FOUCAULT, 2008, p. 173).

A governamentalidade moderna absorveu tais características, transferindo para o âmbito do Estado que age sobre uma população essa tecnologia de poder, esse conjunto de técnicas que tornam possível conduzir as condutas dos grupos humanos, tomados estes como objetivos em si mesmos. Dados os interesses deste artigo, não me debruçarei sobre o segundo elemento da tríade, a diplomacia militar; mas tratarei, ainda que de forma breve, a questão da polícia.

Foucault destaca que essa palavra só ganharia o sentido hoje usual depois do final do século XVIII. Ele explora três sentidos que a palavra tinha entre os séculos XV e XVI, mas se interessa de modo especial pelo sentido que ela assume no século XVII, quando passa a ser pensada como o cálculo e o equilíbrio das forças do Estado:

[...] A partir do século XVII vai-se começar a chamar de “polícia” o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado. Em outras palavras, a polícia vai ser o cálculo e a técnica que possibilitarão estabelecer uma relação móvel, mas apesar de tudo estável e controlável, entre a ordem interna do Estado e o crescimento de suas forças (FOUCAULT, 2008, p. 421).

Não acompanharei aqui o extenso estudo que o filósofo fez deste tema no curso; para meus propósitos, essa caracterização é suficiente para marcar a apropriação feita desta noção de polícia pela governamentalidade moderna. Tomando a população como campo de ação do Estado, é necessário seu controle, através de conjuntos de técnicas que sejam capazes de garantir seu bem-estar, seu crescimento, mas sem provocar desequilíbrios na ordem interna do Estado. Um Estado governamentalizado gerencia, “policia” a população na medida mesma em que a conduz, conduzindo as ações de cada um, para efetivar as ações de governo.

Um último elemento neste mosaico conceitual da governamentalidade. Ela é a peça que permitiu a Foucault transitar do governo dos outros (o âmbito da política, se assim quisermos chamar) para o problema do governo de si mesmo (e, portanto, para o âmbito que ele mesmo denominou de ética). Governar é também governar-se, de modo que a governamentalidade abra o campo de interrogações não apenas sobre o sujeito, mas sobre o si mesmo, objeto central dos últimos estudos do pesquisador francês.

Nas conferências apresentadas no Dartmouth College, nos Estados Unidos, em novembro de 1980, Foucault remete-se a três conjuntos de técnicas propostos por Habermas (técnicas de produção, técnicas de significação e técnicas de dominação) para introduzir um quarto conjunto, que seria o foco de suas atenções, as técnicas de si. E comenta que, para fazer uma genealogia do sujeito moderno, é preciso trabalhar na intersecção das técnicas de dominação com as técnicas de si - justamente o eixo aberto pela governamentalidade. E emenda:

O ponto de contato onde os modos pelos quais os indivíduos são dirigidos pelos outros se articula com o modo pelo qual eles se conduzem a si mesmos é aquilo que, penso, podemos chamar de “governo”. Governar as pessoas, no sentido amplo do termo, não é uma maneira de forçá-las a fazer aquilo que quer quem governa; há, sempre, um equilíbrio instável com complementariedade e conflitos, entre as técnicas que asseguram a coerção e os processos através dos quais o si [o sujeito] se constitui ou se modifica por si mesmo (FOUCAULT, 2013, p. 38-39).

Pouco depois, em 1982, em novo seminário nos Estados Unidos, desta vez na Vermont University, ele afirmaria: “eu chamo ‘governamentalidade’ o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si” (FOUCAULT, 2014b, p. 266). Para o que concerne ao tema deste artigo, não será possível desenvolver mais a fundo esse aspecto digamos “subjetivo” da governamentalidade, mas penso ser importante destacá-lo, em especial porque ele abre a compreensão de que ser governado não significa ser dominado pelo outro, ter sua vontade subsumida à vontade do outro. No modo governamentalizado da política, há que se manter um equilíbrio de forças no qual cada indivíduo é tomado como sujeito livre, que tem sua conduta conduzida pelo governo, mas sem abrir mão da liberdade e de ação de si sobre si mesmo.4

Primeira derivação: governar o cidadão - uma “governamentalidade democrática”?

O trabalho de Foucault deixa muito clara a perspectiva de que a governamentalidade é a forma de operação dos Estados nacionais modernos no ocidente. Isto pensado, evidentemente, desde um ponto de vista europeu. Na filosofia política singular de Foucault, é este processo de “governamentalização” do Estado que marca a modernidade, muito mais do que a constituição das democracias, como é estudado na filosofia política clássica. Mas, claro, há um vínculo direto e indissolúvel entre governamentalidade e democracia, entre governamentalidade e Estado de bem-estar social. O cidadão do Estado democrático é o cidadão governável. Somos constituídos como cidadãos para que possamos ser governados. Lembrando, como foi assinalado anteriormente, que ser governado não significa ser dominado, abdicar da liberdade; ao contrário, o governo é evidenciado por ele como sendo, justamente, a forma de conduzir as condutas de pessoas livres. Em direção análoga, é também o Estado governamentalizado que opera as biopolíticas de controle populacional, de seguridade social, dentre outras. Somos constituídos cidadãos para termos acessos a tais políticas e benefícios sociais; sermos governados pelo Estado é o preço que pagamos.

A questão que se impõe é: esta analítica de Foucault, pensada a partir do contexto europeu, faz sentido quando deslocada para a realidade brasileira? Seria possível encontrar aqui os rastros de um processo de governamentalização do Estado?

Nossa história, fruto de processos de colonização, é muito distinta da europeia. Para dizer de modo sintético, cito a sabedoria de Tom Zé que condensa tudo em dois versos: “Saímos da nossa Idade Média nessa nau/Diretamente para a era do pré-sal”.5 Será o Estado Moderno brasileiro um Estado governamentalizado? Quais as aproximações e os distanciamentos entre nossa experiência e a europeia? Essa transição abrupta citada por Tom Zé, de nossa “idade média” com seu Estado soberano (primeiro como colônia e depois como império) para uma hipermodernidade tecnológica provocou que tipo de efeitos?

Não terei condições, aqui, de explorar de forma exaustiva estas questões; mas quero me debruçar sobre um aspecto que a mim parece evidente e determinante para compreender nosso presente. E, ao trabalhar este aspecto, assumirei uma postura de “infidelidade” para com Foucault e defenderei uma ideia que pode parecer incongruente ou mesmo absurda, quando partimos de seus trabalhos. Para ser breve, defendo que o Estado atual brasileiro é sim um Estado governamentalizado, mas que o processo pelo qual passamos - e no qual seguimos - possui características singulares que constituem o que parece-me ser possível denominar uma “governamentalidade democrática”.6

No contexto do pensamento de Foucault, essa expressão soaria como um pleonasmo. Como vimos anteriormente, a governamentalidade é a forma do Estado democrático moderno, de modo que dizer Estado governamentalizado é dizer Estado democrático; dizer governamentalidade é dizer democracia. Porém, com a história brasileira, o problema ganha outros contornos. Vivemos, entre as décadas de 1960 e 1980, um regime ditatorial, um Estado de exceção em relação aos direitos políticos. Com a transição para a democracia, em meados dos anos 1980, a consolidação no novo regime exigiu a promulgação de uma nova constituição. Foi instituída uma Assembleia Nacional Constituinte que, em setembro de 1988 aprovou a Constituição da República Federativa do Brasil. O presidente daquela Assembleia, o deputado Ulysses Guimarães, anunciou-a na época como a “constituição cidadã”.

A Constituição de 1988 elege cinco fundamentos, sendo um deles a cidadania. Considera-se fundamental, no movimento político brasileiro visando a instalação e a consolidação de um Estado democrático de direito, a caracterização de todos os membros deste Estado como cidadãos, o que implica a eles uma série de direitos políticos e um conjunto de deveres cívicos. Não há Estado democrático de direito sem cidadãos, por isso a cidadania foi eleita como um dos fundamentos constitucionais. Mais do que isso, a cidadania passou a presidir toda a formulação de políticas públicas no país desde então.

No caso específico do campo da Educação, isso é muito evidente. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, construída a partir da Constituição Federal e promulgada em 1996, define, em seu artigo segundo: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (grifo meu). Quando consultamos os documentos de política pública produzidos pelo Ministério da Educação desde então a centralidade da formação para a cidadania salta aos olhos. É preciso educar o cidadão; é preciso, através da educação, formar o cidadão, para que o Estado democrático de direito possa ser devidamente consolidado.

Na chave de leitura que estamos utilizando, pode-se dizer: é preciso constituir a todos como cidadãos, para que possam ser governados. Fora da cidadania não há governo democrático possível; por essa razão, as pedras de toque são duas: cidadania e inclusão. Todos devem ser cidadãos, todos precisam estar incluídos. Assim se constrói e se consolida um Estado democrático de direito, onde antes havia um regime de exceção. É neste contexto, pois, de um “salto” de um Estado de dominação para um Estado democrático, que vem sendo construído nas últimas décadas, que proponho lermos a realidade política brasileira contemporânea como uma “governamentalidade democrática”. Aqui, a democracia não andou lado a lado com a governamentalização do Estado. Este foi governamentalizado de diferentes formas, ou mesmo com traços democráticos débeis e frágeis; urgia, então, que um processo de democratização do Estado fosse implementado, através da instituição da cidadania, para que se pudesse governar de forma legítima toda a população brasileira.

Para compreender melhor este processo, voltemos a Foucault. No curso de 1978, já citado aqui, ele mostrou como a sociedade civil é o correlato do Estado governamentalizado:

A sociedade como um campo específico de naturalidade própria do homem: é isso que vai fazer surgir como vis-à-vis do Estado o que se chamará de sociedade civil. [...] A sociedade civil é o que o pensamento governamental, as novas formas de governamentalidade nascidas no século XVIII fazem surgir como correlativo necessário do Estado. [...] O Estado tem a seu encargo uma sociedade, uma sociedade civil, e é a gestão dessa sociedade civil que o Estado deve assegurar. Mutação fundamental, está claro, em relação a uma razão de Estado, a uma racionalidade de polícia que continuava a lidar apenas com uma coleção de súditos (FOUCAULT, 2008, p. 470-471).

Não há Estado governamentalizado sem sociedade civil; isto que os Estados europeus consolidaram no século XVIII, está em processo de consolidação no Brasil de nosso presente, neste “salto” de uma razão de Estado operando pela dominação, agindo sobre os indivíduos como súditos, para uma governamentalidade democrática que, de uma só vez, precisa governamentalizar o Estado e produzir uma sociedade civil formada por cidadãos para serem governados, para terem suas condutas conduzidas pelo Estado.7

Outro elemento importante a ser destacado é o vínculo da governamentalidade com a liberdade. Conforme já destacado anteriormente, são os indivíduos livres que são governados; mas é preciso ir um pouco mais a fundo:

[...] a inscrição da liberdade não apenas como direito dos indivíduos legitimamente opostos ao poder, às usurpações, aos abusos do soberano ou do governo, mas [da] liberdade que se tornou um elemento indispensável à própria governamentalidade. Agora só se pode governar bem se, efetivamente, a liberdade ou certo número de formas de liberdade forem respeitados. Não respeitar a liberdade é não apenas exercer abusos de direito em relação à lei, mas é principalmente não saber governar como se deve. A integração das liberdades e dos limites próprios a essa liberdade no interior do campo da prática governamental tornou-se agora um imperativo (FOUCAULT, 2008, p. 474-475; grifo meu).

A liberdade não é exterior, não é o fora do poder, ela está em seu próprio âmago, quando se tratam dos Estados governamentalizados modernos; ela é indispensável à própria engrenagem da governamentalidade, como assinala Foucault. De modo que, na construção da governamentalidade democrática brasileira, a liberdade dos cidadãos não poderia ser deixada de lado. Apenas cidadãos livres podem ser governados, participando de modo ativo, como membros de uma sociedade civil, na organização da estrutura mesma do Estado, que se volta para eles para conduzir suas condutas, de modo a concertar as ações conjuntas entre Estado e sociedade civil, construindo um projeto de país, mas também o cotidiano mesmo que vivemos.

Estes traços estão todos muito presentes na legislação e nas políticas brasileiras que vêm sendo construídas desde 1985, com o processo de redemocratização do país. E parece importante destacar que a governamentalização dá-se no âmbito do Estado: não se trata de projeto de um ou outro partido político; é um projeto geral de país, ao qual todos os partidos políticos estão subsumidos, ou nem teriam como existir enquanto tais. Todos os partidos políticos que ocuparam os principais cargos de gestão executiva e legislativa nos últimos trinta anos participaram e participam ativamente deste processo de governamentalização do Estado brasileiro, independentemente de suas concepções políticas, de suas posições ideológicas, de suas ações concretas no cotidiano.

Segunda derivação: afirmar as diferenças - sob a lógica do governo

Com a chave de leitura da governamentalidade democrática, podemos compreender o processo em curso no Brasil nos últimos 30 anos de consolidação de uma escola democrática e republicana, à qual todos tenham acesso e que seja a mesma para todos, garantindo oportunidades iguais.8 Como afirmado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no já citado artigo segundo, a educação deve estar inspirada no princípio da liberdade e estar orientada para a formação do cidadão, para o exercício da cidadania. Os processos educativos são apresentados, assim, como uma das peças centrais na maquinaria de instalação e consolidação desta maquinaria governamental.

Neste contexto, quero focar agora as políticas públicas no campo da educação que visam regulamentar e implementar o trato com as diferenças e com a diversidade. A produção nesta área tem sido extensa, e nos limites deste artigo não teríamos condições de proceder a uma análise exaustiva e aprofundada. Por isto, tomarei como base o documento Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica: Diversidade e Inclusão, publicado pelo MEC em 2013, que consolida as principais ações do governo federal neste campo. Trata-se de um documento extenso, que condensa as diretrizes curriculares e as diretrizes operacionais para a educação básica, desdobrando-se em escolas do campo, educação de jovens e adultos, crianças e jovens em situação de itinerância, jovens e adultos em privação de liberdade, educação indígena e educação quilombola, e abarcando diversas áreas: relações étnico-raciais e história e cultura da África; educação especial e respectivos atendimentos especializados; direitos humanos; educação ambiental. O ato mesmo de procurar articular todos estes campos e áreas em um único documento de política pública, revela seu forte apelo inclusivo: nada nem ninguém pode ficar de fora. Em sua introdução, lê-se:

Um dos desafios posto pela contemporaneidade às políticas educacionais é o de garantir, contextualizadamente, o direito humano universal, social inalienável à educação. O direito universal deve ser analisado isoladamente em estreita relação com outros direitos, especialmente, dos direitos civis e políticos e dos direitos de caráter subjetivo, sobre os quais a educação incide decisivamente.

Nessa perspectiva, torna-se inadiável trazer para o debate os princípios e as práticas de um processo de inclusão social, que garanta o acesso à educação e considere a diversidade humana, social, cultural, econômica dos grupos historicamente excluídos. Trata-se das questões de classe, gênero, raça, etnia, geração, constituídas por categorias que se entrelaçam na vida social, mulheres, afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência, populações do campo, de diferentes orientações sexuais, sujeitos albergados, em situação de rua, em privação de liberdade, de todos que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira e que começam a ser contemplados pelas políticas públicas.

Para que se conquiste a inclusão social, a educação escolar deve fundamentar-se na ética e nos valores da liberdade, na justiça social, na pluralidade, na solidariedade e na sustentabilidade, cuja finalidade é o pleno desenvolvimento de seus sujeitos, nas dimensões individual e social de cidadãos conscientes de seus direitos e deveres, compromissados com a transformação social (CRAVEIRO; MEDEIROS, 2013, p. 7).

Percebemos no trecho citado que duas palavras se destacam: inclusão e diversidade. Para garantir a universalidade do direito à educação, é preciso incluir a todos; toda a diversidade humana precisa ser abarcada. Chamo a atenção para o fato de que o documento, em qualquer momento, trata de diferenças; é sempre a diversidade que é afirmada. Isto pode parecer de menor importância, mas penso que precisamos examinar com um pouco mais de atenção. A diversidade permite remeter ao direito universal, como aglutinador de tudo aquilo que é diverso. Ela está implicada no conjunto daquilo que compõe o universal. Em outras palavras: há uma unidade que é resultante da diversidade ou, numa direção distinta, a diversidade é nada mais do que o desdobramento de uma unidade. Tomar a diversidade em lugar da diferença significa “domar” a diferença, apaziguá-la, neutralizar os horrores que o efetivamente diferente poderia provocar. No fundo, trata-se de não se suportar a alteridade. Lidar com o diverso é lidar com distintas faces de nós mesmos, não com o totalmente outro.

Por outro lado, a diferença implica em multiplicidade, nunca em unidade. Na afirmação da diferença, não há unidade possível, não há como reunir as multiplicidades em um conjunto único, logo não cabe aqui o apelo ao universal. Pode-se dizer que a diferença implica no fora, posto que sempre escapa aos conjuntos, enquanto a diversidade implica no dentro, na interiorização, no pertencimento a um grupo que, por sua vez, encontra-se em outro grupo, até que se chegue ao universal. Por isso, a diversidade está diretamente articulada com os jogos de inclusão. É sempre possível organizar grupos, conjuntos que contenham o diverso. Mas o diferente escapa, não se deixa conter. Seria inútil tentar incluir as diferenças, pois elas proliferam, se multiplicam e não se deixam conter em qualquer conjunto.

Disto decorre que, na lógica da construção das políticas públicas articuladas com uma governamentalidade democrática, é sempre mais interessante e produtivo afirmar a diversidade, em detrimento da diferença. Esta agregaria instabilidades ao sistema, provocando perigosos desequilíbrios aos processos dinâmicos de condução das condutas em meio à liberdade.

Destaco apenas um exemplo de como a diversidade é tratada nas Diretrizes; aquilo que trago relativo à educação indígena é afirmado também em relação à educação no campo, à educação de jovens e adultos, à educação das pessoas privadas de liberdade, à educação quilombola, à educação de crianças e jovens em situação de itinerância. Portanto, um único exemplo é indicativo de como a questão é tratada em todos os panoramas da diversidade escolar e educativa. Tal operação é válida justamente porque, conforme assinalado, o documento de política pública em educação trabalha com uma lógica universalista.

Sobre as escolas voltadas à educação indígena, temos as seguintes indicações:

A escola desta modalidade tem uma realidade singular, inscrita em terras e cultura indígenas. Requer, portanto, pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada povo ou comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira (artigos 5º, 9º, 10, 11 e inciso VIII do artigo 4º da LDB). Na estruturação e no funcionamento das escolas indígenas é reconhecida sua condição de escolas com normas e ordenamento jurídico próprios, com ensino intercultural e bilíngue, visando à valorização plena das culturas dos povos indígenas e à afirmação e manutenção de sua diversidade étnica (CRAVEIRO; MEDEIROS, 2013, p. 53).

Vê-se que a perspectiva adotada como diretriz curricular é o reconhecimento da realidade distinta na qual as escolas indígenas estão instaladas e a determinação que esta diversidade deve ser respeitada e valorizada, inclusive através da adoção de um ensino bilíngue (na respectiva língua indígena e em português) e intercultural, na permeabilidade entre a cultura branca ocidental e a cultura indígena daquela tribo. Esta escola, porém, não deixa de ser uma escola e, assim, deve seguir o padrão para a educação e as instituições escolares determinados na Constituição Federal e nas legislações específicas. E ainda mais: é reconhecida a necessidade de uma pedagogia própria e de uma formação específica dos professores, mas desde que respeitados os preceitos gerais indicados na Constituição, na legislação educacional, na base nacional comum; isto é, respeita-se a diversidade, desde que ela esteja submetida aos mesmos princípios que regem a universalidade dos cidadãos brasileiros. Ou, ainda para dizer de outra forma, as diferenças podem ser garantidas e afirmadas, desde que façam parte do conjunto comum; isto é, os diferentes podem ser diferentes, desde que sejam iguais.

De modo que a escola indígena se mostra como o paradigma do modelo da inclusão: de um lado, se reconhecem os povos indígenas como diversos; sua diversidade é valorizada; o ensino é praticado em sua língua, a partir de sua cultura. De outro lado, a escola indígena é regida pelas mesmas leis gerais da educação brasileira; ensina-se na língua específica, mas também se ensina o português; respeita-se e valoriza-se a cultura étnica, mas também se introduz a cultura branca ocidental, em diálogo. Tal relação transversal entre as culturas diversas promove a integração e a inclusão dos povos indígenas à universalidade da cultura brasileira (centralmente branca e ocidental). A integração cultural é o passaporte para a inclusão dos povos indígenas na cidadania brasileira. Uma vez cidadãos, eles são livres e autônomos. Uma vez cidadãos, eles podem ser governados, ter suas condutas conduzidas segundo os mesmos preceitos gerais, reafirmando e valorizando a soberania nacional.

Em outras palavras, escola é apresentada como instrumento da inclusão, da afirmação do dentro do sistema governamentalizado. E, na medida em que se procura abarcar toda a diversidade de culturas e grupos sociais brasileiros, nada resta fora do governo democrático das condutas. Lembremos novamente do trecho citado da introdução das Diretrizes, quando são destacadas as questões de classe, gênero, raça, etnia, geração, que abarcam categorias que se entrelaçam na vida social, mulheres, afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência, populações do campo, de diferentes orientações sexuais, sujeitos albergados, em situação de rua, em privação de liberdade, isto é, de todos que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira. Diferenças incluídas, diversidade afirmada: diferenças governadas. De fato, tudo está incluído, nada nem ninguém pode ser colocado fora. Talvez porque isso geraria uma instabilidade no sistema? Abordaremos essa questão mais adiante, em nosso último tópico.

Além de inclusão e diversidade, uma terceira palavra emerge de modo significativo nas Diretrizes, catalisador das anteriores: cidadania. Acolher e integrar o diverso, estimular a inclusão, é uma forma de promover a cidadania. Em outra parte do documento, encontramos tal questão evidenciada como desafio a ser perseguido:

Em um contexto marcado pelo desenvolvimento de formas de exclusão cada vez mais sutis e humilhantes, a cidadania aparece hoje como uma promessa de sociabilidade, em que a escola precisa ampliar parte de suas funções, solicitando de seus agentes a função de mantenedores da paz nas relações sociais, diante das formas cada vez mais amplas e destrutivas de violência. Nessa perspectiva e no cenário em que a escola de Educação Básica se insere e em que o professor e o estudante atuam, há que se perguntar: de que tipo de educação os homens e as mulheres dos próximos 20 anos necessitam, para participarem da construção desse mundo tão diverso? A que trabalho e a que cidadania se refere? Em outras palavras, que sociedade florescerá? Por isso mesmo, a educação brasileira deve assumir o desafio de propor uma escola emancipadora e libertadora (CRAVEIRO; MEDEIROS, 2013, p. 23).

Uma educação que emancipe e liberte, um processo educativo capaz de formar cidadãos livres. Na maquinaria da governamentalidade democrática, isto significa preparar aqueles que tornam possível e viável este tipo de sociedade e este tipo de governo das condutas. Fecha-se o ciclo: um projeto social governamentalizado institui uma escola que valoriza e inclui o diverso; a diversidade de culturas, assim reconhecida, implica em indivíduos que são educados para consolidar uma cidadania que implica em liberdade e emancipação; os cidadãos formados nessa escola confirmam, referendam e alimentam a sociedade que é gerida pelo Estado governamentalizado.9

Uma última observação. Como vimos anteriormente, uma das componentes históricas da construção da governamentalidade na analítica de Foucault é a polícia, entendida como administração do social. Pois é exatamente isto que vemos na política pública produzida no Brasil no campo da educação: um policiamento (administração) das diferenças por sua valorização e inclusão nos mais diversos contextos escolares. Enfim, as diferenças precisam ser incluídas para serem governadas. Uma sociedade democrática é a afirmação da diversidade, na qual as diferentes posições dialogam na direção de um projeto comum. A administração deste projeto é um policiamento que organiza, que concerta as diferenças, sob a batuta comum da cidadania que embasa uma sociedade democrática.

O quadro que procurei esboçar pode parecer um tanto fechado ou mesmo totalitário. Mas, lembremos: para Foucault, a governamentalidade é uma técnica de governo e, assim, pressupõe a liberdade. Não se trata, de modo algum, de um sistema de dominação, no qual as liberdades são neutralizadas. Este, sim, seria um sistema totalitário.

Na realidade brasileira, a construção de uma governamentalidade democrática afirma a cidadania e a diversidade, estimula os jogos de inclusão, para que possa haver um governo democrático. Não podemos nos esquecer, no entanto: estamos sendo governados; somos cidadãos para que possamos ser governados. A questão que espero ter deixado razoavelmente claro é que, neste jogo de governamento, a diferença é governada como diversidade, sendo a participação de todos e de cada um garantida pela lógica política da inclusão.

Palavras finais: resistências possíveis?

O quadro esboçado no tópico anterior nos impõe um conjunto de questões. É inegável o ganho democrático para a sociedade brasileira com as políticas públicas que vêm sendo implantadas no âmbito desta governamentalidade made in Brazil; porém, ainda que haja avanços, estes avanços são direcionados no quadro de um determinado regime do político, no qual cada um só pode ser parte do processo ao seguir as regras e condições impostas pela governamentalidade democrática. E não somos convidados a participar do jogo; ao contrário, somos todos incluídos, queiramos ou não. É preciso que todos joguem: eis a regra democrática. E com a participação de todos, os possíveis conflitos e as contradições serão resolvidos segundo a lógica da maioria, através da produção de consensos.

Que resistências ocorrem ou podem ser articuladas neste contexto? Será inútil resistir? Estaremos todos devidamente enquadrados na afirmação da diversidade inclusiva? Que papel podem jogar diferenças que resistam e se recusem à inclusão? Que chances políticas elas terão?

Evidentemente, não terei condições de responder a todas estas questões que nos desafiam; elas são constitutivas da própria ontologia de nosso presente, para uma vez mais usarmos uma expressão cara a Foucault. Mas procurarei traçar algumas possíveis linhas de resistência, centrando-as na afirmação de diferenças que são disjuntivas, que implicam numa impossibilidade de inclusão, de redução de tudo a um único conjunto.

Vimos que segundo Foucault (2008) um dos elementos constitutivos da governamentalidade é a polícia, tal como pensada e implementada em diferentes países ao largo do século XVII; Rancière (1996, 2007) trabalha com esta mesma noção de polícia no plano conceitual. Mas, para este filósofo, a polícia não é apenas a forma que a administração social assumiu em dado momento histórico; mais do que isso, ela é a própria oposição à política. Na perspectiva de Rancière (1996, p. 42-47), a política é uma “partilha do sensível”, é um acontecimento, o que significa que não é algo fortuito, mas implica sempre uma ruptura com uma ordem estabelecida. A polícia é seu oposto, é o estabelecimento e a gestão de uma ordem. Isto significa que aquilo que vivemos cotidianamente é a polícia; a política ocorre muito mais raramente, como uma perturbação nesta ordem gerenciada.

“A política se opõe especificamente à polícia. A polícia é uma partilha do sensível da qual o princípio é a ausência de vazio e de suplemento” (RANCIÈRE, 2007, p. 240). Cito estas duas frases de alta densidade conceitual porque elas permitem uma exploração importante para o tema aqui trabalhado. Se concordarmos com a afirmação de que a polícia é um tipo de partilha do sensível que trabalha na perspectiva da completude, em que não há vazio e não há suplemento, ela é uma ferramenta que serve muito bem para pensar a lógica da diversidade e da inclusão. Como vimos, inclui-se para não se deixar nada nem ninguém de fora, de modo que não haja suplementos, de modo que não haja vazios. A lógica policial é a lógica do preenchimento. E pelo que trabalhamos aqui, a governamentalidade “à brasileira”, a governamentalidade democrática em curso entre nós nas últimas três décadas articula-se perfeitamente com esta perspectiva policial. Todos são cidadãos para que todos sejam devidamente governados por este Estado policial.

Rancière nos indica um possível caminho de resistência: a política, uma vez que ela se opõe diretamente à lógica da polícia. A irrupção da política causa uma desordem na ordem policial; ela desequilibra o que está equilibrado, na medida em que insere espaços vazios naquilo que é gerido como um conjunto pleno. A política opera com a diferença, não com a diversidade. Se a polícia trabalha com a criação de consensos, nos quais não há vazio, a política impõe sempre dissensos, um desentendimento na ordem policial, pois é a manifestação da diferença, de uma diferença que não pode ser incluída, mas que exige sua parte na partilha do sensível. De modo que, na ordem administrada da diversidade inclusiva, a diferença irrompe como uma desordem política, que perturba o sistema.

O que temos acompanhado no Brasil é a construção de uma ordem governamental inclusiva, que procura tudo abarcar e tudo gerir para que não fiquem brechas, para que essa ordem não seja perturbada. Mas, por mais que os esforços sejam abrangentes, diferenças resistem, não se deixam capturar pela ordem inclusiva. E podem fazer irromper uma política diferencial, que impõe uma descontinuidade, uma perturbação. A ordem policial sempre pode se restabelecer, impondo novos consensos; mas as diferenças não podem abdicar da potência dissensual da política, que permanece sempre aberta. Contra o governo da diversidade, o desgoverno da diferença.

Um elemento mais, para finalizar. A afirmação política das diferenças contra a ordem policial da diversidade governamentalizada implica na afirmação de uma potência do fora. Foucault e Deleuze & Guattari não cessaram de sublinhar tal potência. Uma lógica disjuntiva, em oposição à lógica inclusiva. Como podem as perturbações causadas pelas diferenças que estão fora da ordem policial produzir transformações? Rancière defende que as mudanças são possíveis apenas com o encontro das duas lógicas; a diferença precisa interpelar a lógica policial inclusiva. É necessário que o fora se encontre com a interioridade da inclusão cidadã, não para incluir-se nela, mas para evidenciar que ela não é capaz de tudo abarcar, que sempre haverá algo fora perturbando e desequilibrando um sistema que se propõe estável.

Rancière afirma também que a política produz subjetivações que são diferenciais, que operam por desidentificação.

A subjetivação política produz um múltiplo que não era dado na constituição policial da comunidade, um múltiplo cuja contagem se põe como contraditória com a lógica policial [...] toda subjetivação é uma desidentificação, o arrancar à naturalidade de um lugar, a abertura de um espaço de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma contagem de incontados, do relacionamento de uma parcela e uma ausência de parcela (RANCIÈRE, 1996, p. 48).

Ora, podemos então dizer que a própria lógica inclusiva das políticas educativas produzidas pela governamentalidade democrática com o intuito de governar as diferenças pela lógica da diversidade tem o potencial de produzir também sujeitos diferenciais, que não se reconhecem na diversidade inclusiva, desidentificam-se com ela e consigo mesmos, colocando-se à margem (no fora) do conjunto administrado pela polícia, mas exigindo serem contados, sem serem incluídos. Isto é, a mesma lógica da diversidade que quer universalizar, unificar por uma igualdade abstrata, produz o múltiplo que escapa, que faz diferença e provoca perturbação.

Uma subjetivação política é uma capacidade de produzir essas cenas polêmicas, essas cenas paradoxais que revelam a contradição de duas lógicas, ao colocar existências que são ao mesmo tempo inexistências ou inexistências que são ao mesmo tempo existências (RANCIÈRE, 1996, p. 52).

Em suma, defendo que podemos compreender nossa contemporaneidade brasileira através da construção em processo de um Estado governamental democrático, que opera produzindo e constituindo cidadãos para serem governados segundo uma ordem policial (administrativa). No campo educacional, tal produção é visível, de modo especial no projeto de governar as diferenças, incluindo-as toda no projeto democrático, sob a batuta da afirmação da diversidade. O projeto é o de tudo abarcar, de modo universal, reduzindo o diferente ao diverso. Tal processo implicou em avanços para a sociedade brasileira; mas também pode ser redutor, se levar a cabo seu intento universalizante.

Podemos, porém, argumentar que este mesmo projeto educativo que procura reduzir o diferente ao diverso, para então governá-lo, acaba também por possibilitar processos de subjetivação política do diferente. Sujeitos podem desidentificar-se com o projeto da diversidade, não se reconhecerem como partes deste conjunto, afirmando-se no fora e reivindicando seu pertencimento, sem a ele pertencer. O campo político está aberto às diferenças e o mesmo projeto que intenta contê-las pode, como efeito contrário, estimulá-las. Como afirmou Rancière (1996, p. 54), “a política é feita de relações de mundos”; contra a imposição de um mundo único pela diversidade, impõe-se a necessidade de multiplicar as diferenças, de modo que outros mundos possíveis façam permanecer aberta a possibilidade da política.

Referências

COMBES, M. La vie inséparée - vie et sujet au temps de la biopolitique. Paris: Éditions Dittmar, 2011. [ Links ]

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 16 nov. 2016. [ Links ]

_____. LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL. Lei nº. 9394 de 20 dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 16 nov. 2016. [ Links ]

CRAVEIRO, C.B.A.; MEDEIROS, S. (Org.). Diretrizes curriculares nacionais para a educação básica: diversidade e inclusão. Brasília: CNE/MEC/SECADI, 2013. [ Links ]

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. [ Links ]

FABRIS, E.T.H.; KLEIN, R. R. (Org.). Inclusão e biopolítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. [ Links ]

FOUCAULT, M. The subject and power. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault beyond structuralism and hermeneutics. 2.ed. Chicago: The University of Chicago Press, p. 208-226, 1983. [ Links ]

______. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. [ Links ]

FOUCAULT, M. L’origine de l’herméneutique de soi. Paris: Vrin, 2013. [ Links ]

______. Do governo dos vivos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014a. [ Links ]

______. Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade - Ditos e escritos IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014b. [ Links ]

GADELHA, S. Biopolítica, governamentalidade e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. [ Links ]

GALLO, S. Governamentalidade democrática e ensino de filosofia no Brasil contemporâneo. Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), v. 42, p. 48-64, 2012. https://doi.org/10.1590/s010015742012000100005Links ]

______. “O pequeno cidadão”: sobre a condução da infância em uma governamentalidade democrática In: RESENDE, H. (Org.). Michel Foucault: o governo da infância. Belo Horizonte: Autêntica, p. 329343, 2015. [ Links ]

NOGUERA-RAMÍREZ, C.E. Pedagogia e governamentalidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. [ Links ]

RANCIÈRE, J. O desentendimento - política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996. [ Links ]

______. Aux bords du politique. Paris: Gallimard (Folio Essais), 2007. SENELLART, M. As artes de governar. São Paulo: Editora 34, 2006. [ Links ]

SENELLART, M. As artes de governar. São Paulo: Editora 34, 2006. [ Links ]

1Vale destacar que Michel Senellart (2006), responsável pela edição dos cursos Foucault de 1978 a 1980, escreveu um belo trabalho que, de certo modo dá continuidade aos estudos de Foucault sobre as artes de governar, desenvolvendo uma genealogia destas artes no momento histórico anterior àquele focado pelo filósofo.

2Ao trazer as expressões micropolítica e macropolítica estou evidentemente remetendo aos trabalhos de Félix Guattari e a seus trabalhos com Gilles Deleuze, em especial Mille Plateaux, que fazem eco e estão no mesmo continuum conceitual da noção de “microfísica do poder” desenvolvida por Foucault.

3No texto O sujeito e o poder, uma vez mais tratando da questão do governo, Foucault (1983, p. 221) afirmou que “o poder é exercido apenas sobre sujeitos livres e enquanto são livres”. Quando já não há liberdade, também não há relações de poder, instituindo-se o que ele denominou de “estado de dominação”, oferecendo como exemplo o fenômeno da escravidão.

4Ainda que este aspecto não vá ser aprofundado neste artigo, penso ser importante reportar o leitor interessado no tema para uma das mais interessantes explorações sobre o tema, o livro de Muriel Combes, La vie inséparée - vie et sujet au temps de la biopolitique, que trabalha na intersecção do pensamento de Foucault com o de Gilbert Simondon.

5Versos da canção Tropicalea Jacta Est, do álbum Tropicália Lixo Lógico (Passarinho Experiências Culturais, 2012).

6Explorei esta ideia em duas outras oportunidades, pensando questões de educação no presente político brasileiro. (GALLO, 2012; 2015).

7Também é importante destacar que no processo de governamentalização dos Estados modernos, os processos educativos e as instituições escolares desempenharam importantes papeis. Foucault, no curso de 1978, chama atenção para o governo das crianças no âmbito das artes de governar, mas não traz as escolas como elementos-chave em sua análise. Por isso o livro Pedagogia e Governamentalidade - ou da modernidade como uma sociedade educativa (NOGUERA-RAMÍREZ, 2011) é de especial importância para as argumentações que aqui desenvolvo.

8Para uma análise biopolítica da educação brasileira em períodos anteriores, (GADELHA, 2009), especificamente o capítulo Biopolítica e educação: laços, exemplos e perspectivas, de modo especial a análise que é feita da política educacional brasileira durante o Estado Novo, sob o prisma biopolítico da governamentalidade.

9Um aspecto que poderíamos tomar como “complementar” a esta perspectiva de uma governamentalidade democrática no presente brasileiro foi desenvolvida por Sylvio Gadelha (2009, p. 151): “Mas, então, sob esse novo espírito do capitalismo, que nova forma de governamentalidade é engendrada? Tendo na economia e no mercado sua chave de decifração, seu princípio de inteligibilidade, trata-se de uma governamentalidade que busca programar estrategicamente as atividades e os comportamentos dos indivíduos; trata-se, de última instância, de um tipo de governamentalidade que busca programá-los e controlá-los em suas formas de agir, sentir, pensar e de situar-se diante de si mesmos, da vida que levam e do mundo em que vivem, através de determinados processos e políticas de subjetivação: novas tecnologias gerenciais no campo da administração (management), práticas e saberes psicológicos voltados à dinâmica e à gestão de grupos e das organizações, propaganda, publicidade, marketing, branding, ‘literatura’ de autoajuda, etc.” Não tenho condições aqui de enveredar por este caminho aqui, mas convido o leitor a fazê-lo, visitando a obra citada.

Recebido: 04 de Dezembro de 2016; Aceito: 17 de Maio de 2017

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons