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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.63 Uberlândia set./dic 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n63a2017-13 

Dossiê Artes e Oficinas: incursões na filosofia de Deleuze-Guattari

Das escritas, dos corpos. afetos e entretempos*

De las escrituras, de los cuerpos. afectos y entretiempos

Of writing, of bodies. affects and meanwhile

Vivian Marina Redi Pontin** 

Ana Godoy*** 

**Doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). Professora substituta da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: vivian_marina@yahoo.com.br

***Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: ana.godoy@rocketmail.com


Resumo

Esse texto é produzido por um encontro entre uma escrita e seu acompanhamento. Já que uma escrita nunca se faz só e é vital habitá-la, seu acompanhamento diz de um como se faz, diz de uma preparação, diz da feitura de um corpo. Desde dentro desses fazeres, inventa-se, nessas linhas, uma escrita-oficina que possa cuidar de uma pergunta ativadora: como produzir uma oficina que mobilize encontros em tempos desprovidos de poesia? Alguns gestos foram escolhidos para composição, dentre eles: a partilha enquanto forma de criação por aquilo que se fragmenta sem efetivamente quebrar, destroçar; outro gesto foi pontilhar por ocasião de desenhar um corpo-a-corpo e, não por último, uma vez que os gestos são multiplicadores, a ideia de caça na composição de territórios e suas disposições para desabituar o previsível.

Palavras-chave: Escrita; Território; Corpo-sem-Órgão; Deleuze

Resumen

Dicho texto es producido por el encuentro entre la escritura y su acompañamiento. Ya que una escritura nunca se hace sola y es vital habitarla, su acompañamiento dice de un cómo se hace, dice de una preparación, dice de la hechura de un cuerpo. Desde adentro de esos haceres, se inventa, en dichas líneas, una escrita-taller que pueda cuidar de una pregunta activa: ¿cómo producir un taller que movilice encuentro en tiempos desprovistos de poesía? Algunos gestos fueron escogidos para composición, entre ellos: la partida en cuanto forma de creación por aquello que se fragmenta sin efectivamente romper, destrozar; otro gesto fue martillar por ocasión de diseñar un cuerpo-a-cuerpo y, no por último, una vez que los gestos son multiplicadores, la idea de caza en la composición de territorios y sus disposiciones para deshabituar lo previsible.

Palabras clave: Escritura; Territorio; Cuerpo-sin-órganos; Deleuze

Abstract

This text is produced by a meeting between a writing and its accompaniment. Since a writing is never done alone and it is vital to inhabit it, its accompaniment says of a how it is done, it says of a preparation, it says of the making of a body. From within these works, one invents, in these lines, a writing-workshop that can take care of an activating question: how to produce a workshop that mobilizes meetings in times devoid of poetry? Some gestures were chosen for composition, among them: the sharing as a form of creation by what fragments without actually breaking, destroying; another gesture was to dot for the occasion of drawing a body to body and, not lastly, since gestures are multipliers, the idea of hunting in the composition of territories and their provisions to unseat the predictable.

Keywords: Writing; Body-without-organs; Deleuze

Mas não colaboramos como duas pessoas. Éramos sobretudo como dois riachos que se juntam para fazer “um” terceiro, que teria sido nós. (Gilles Deleuze. Conversações).

Uma escrita nunca está só. Mesmo num quarto vazio, num lugar distante de qualquer civilização, numa ilha deserta, num planeta desabitado… uma escrita nunca está efetivamente só. Pode-se dizer que uma aprendizagem acompanha a escrita em seus passos, abrindo espaços para que as palavras sejam colocadas uma a uma, tentativas e repetições, processos e durações, para esboçar uma escrita, trilhá-la, realizá-la. Os corpos também o fazem sendo formados pelas palavras, formados com as palavras, criados nas palavras, corpos que atravessam e são atravessados nesse percurso.

Alguns diriam que um repertório é aquilo que segue a escrita e sem o qual não seria possível escrever. Uma disposição de elementos com os quais apenas é preciso seguir os códigos e codificações, seguir à risca a maneira como foi construída a língua da qual a escrita é apenas produto. Ou, então, é a partir do repertório que se pode produzir um arranjo no qual a escrita vai se fazendo, tecendo as tramas com os elementos que a constituem.

Entretanto, quando se diz que uma escrita nunca está só não se está perseguindo com quais peças ela é e deve ser construída. Desfazer-se da solidão é afirmar um povoamento, não importando necessariamente do que é composto, se determinado e identificado por partes formadoras. Desse povoamento, o que lhe importa, o que lhe interessa é como as ligações são feitas, quais são as forças que lhe tomam e fazem uma escrita. Dos elementos que a compõem, como são alterados e provocados os movimentos, quais são os rumos que essa composição abre e enreda.

Guattari, numa passagem de Caosmose (1992, p. 153), afirma que “o espaço da escritura é [...] um dos mais misteriosos que se nos oferece”, nele interferindo fortemente “a postura do corpo, os ritmos respiratórios e cardíacos, as descargas humorais”. Entretanto sabemos disso como se não soubéssemos, e seguimos acreditando que escrever é um exercício intelectual, e não uma prática corporal. De fato, talvez tudo trabalhe de forma a que já se perceba que a linha de escrita é a mesma linha do desenho, e que esta linha prolonga o corpo, que seu movimento passa por cada músculo e cada víscera, que essa linha, portanto, respira, e padece daquilo de que o corpo padece, e que não é chamada de linha vital apenas pela beleza da imagem, mas antes e sobretudo porque se faz corpo com ela concretamente. Resta saber como percorrer esse espaço, de direito misterioso, uma vez que não se sabe onde ele começa ou acaba.

Assim é que trabalhar com a escrita e acompanhar o processo está longe de ser trabalhar com palavras ou com ideias.

Ler, em sua etimologia1, relaciona-se com o verbo escolher e são muitas as leituras que rodeiam uma escrita. Leituras escolhidas e preferidas, leituras que nos escolhem, leituras escolhidas por outrem. Escolhas espalhadas que não são propriamente ligadas a um voluntarismo, mas que dizem de uma preparação para a escrita. É preciso se dispor e estar atento aquilo que uma leitura convoca, aquilo que prende a atenção e o que faz dispersar. Nem sempre são as palavras dispostas no papel que capturam e fazem fugir, nesse caso a questão que se coloca é: quais afetos percorrem essas linhas e um corpo que lê? E, depois, o que fazer com esse afeto? “A alegria é transmitida não de alguém que sabe a alguém que é ignorante, mas de um modo em si mesmo produtor […], alegria de pensar e de imaginar juntos, com os outros, graças aos outros” (STENGERS, 2015, p. 152). Ter um bocado de gentileza na sinuosidade do pensamento entre legível e ilegível, dizível e indizível, expresso e expressivo, audível e inaudível, visível e invisível, entre leituras numa escrita.

Gostamos de imaginar que a boa viagem é aquela para a qual nos preparamos. Aquela cujos obstáculos, reveses ou sucessos dependem exclusivamente da escolha dos equipamentos que carregamos: uma boa intenção, livros, computadores, um diploma, uma posição ou mesmo um currículo que, como boias ou bússolas, nos mantêm à tona e no rumo certo. Como se escrever fosse conduzir um experimento específico, cujos resultados dependem em grande parte da estrita observância de procedimentos já determinados, e cuja validade precede as circunstâncias de aplicação. Mas, muito sugestivamente, a experimentação não é nunca o experimento e as circunstâncias tendem a escapar à aplicação, não fosse isso jamais nos perguntaríamos como começar, por onde começar (a cada vez). É precisamente este jogo de perguntas que nos põem em relação com a impossibilidade que faz de cada começo um combate. Começa-se por onde for. Começa-se de qualquer jeito. Começa-se com qualquer coisa, com o que chama atenção. Mas o que faz com que, num dado momento, alguma coisa (uma palavra, uma frase, uma pessoa) nos chame atenção? Digamos que ela, qualquer coisa, seja somente um mistério; não que esconda um mistério, porque parece ser da qualidade do misterioso nada esconder, sem, no entanto, tudo explicar. Pode-se levar uma vida a decifrar um único mistério, precisamente porque o que se decifra é a qualidade única que distingue uma coisa não somente de outras, mas dela mesma. Toda uma artesania inseparável das singularidades dos materiais que a condicionam, aqueles que cada um elege para si. Acompanhar é antes e sobretudo abrir caminho para o artesão, para o caçador, para a criança que brinca (diria Nietzsche).

Uma escrita, portanto, pode ser encarada como oficina, da qual participam elementos variados, sem necessariamente ser imposta uma hierarquia, uma vez que todos experimentam algo numa oficina e esse algo pode até fugir daquilo ou daquele que o propõe. A experimentação pode dizer de uma oficina, mas não se resume a ela, não se resume nela. Uma escrita-oficina, para além da experimentação, exige a feitura de alianças, exige uma trama de fios, exige que se criem laços, muitas vezes de conexões estranhas, esquizas, não esperadas, que a escrita encontra a ocasião de trazer à tona. Afinal, “escrever é um gesto absolutamente positivo: dizer o que se admira e não combater o que se detesta” (DELEUZE, 1996, p. 26), é uma questão de criar vidas, gesto afirmativo, para esses elementos heterogêneos, e não de representá-las em palavras, criar para extravasá-las de “qualquer matéria vivível ou vivida” (DELEUZE, 1997, p. 11), dar potência a essa vida inventada numa escrita.

Há todo tipo de coisas implicado na escrita: tratos com um certo tipo de jardim, anotações sobre ritmos vitais, fluxos de toda ordem, sugestivas combinações de modos de fazer, receitas improváveis que consideram as três lógicas que subjazem à cozinha (embora jamais se restrinjam a elas); aquelas às quais um dia Michel de Certeau se referiu: a lógica das qualidades sensíveis que determina os elementos considerados comestíveis; a lógica das formas que determina as misturas permitidas e os modos de preparação reconhecidos; e, finalmente, a lógica das proposições que determina as boas maneiras a mesa e o calendário das proibições. Não para nos rendermos a elas, mas para usá-las em proveito daquilo que se quer dizer.

Uma das coisas mais bonitas de pensar com Deleuze, e isso tem a ver com uma generosidade sem falsa modéstia, é que se pode pensar com os procedimentos adotados por esse ou aquele artista, filósofo, cientista, enfim com esse ou aquele qualquer coisa, e não necessariamente tomar partido, concordar, discordar, entrar num movimento de julgar aquilo que esse ou aquele qualquer coisa fez em seu trabalho. Extrair procedimentos também leva a pensar, entra-se num outro registro do pensamento, em que não se busca incessantemente por aqueles que pensam como um eu, que atestam aquilo que o eu pensa. Pensar como se faz, como se fez tal e qual coisa inventada, mais do que julgar a invenção - isso é uma outra maneira de pensar, um pensar com cocriação.

Desprender, destacar um procedimento em que se lança o olhar para um como se faz também envolve um deslocamento, quando tal procedimento chega para a escrita. Por isso, colocar a escrita em contágio com a oficina - porque são fazeres que se dão em diferentes nichos de trabalho, são fazeres com elementos heterogêneos que convergem para um fazer-escrita.

Escreve-se, portanto, com a preguiça, com o mau-humor, com as interrupções, com os brancos, com a travação, com a irritação, com a variação incessante de estados que reivindicam estratégias singulares, estratégias que nada tem a ver com escrita criativa, pois dizem respeito antes à simpatia e à caça. Escreve-se com (o que se caça) e escreve-se como quem caça, mas só caça aquele que simpatiza.

Aquilo que se seleciona para participar de uma escrita pode funcionar de diferentes maneiras, porque o gesto de selecionar envolve um critério de seleção que influencia nos modos de operação entre os elementos e a escrita. Não há, contudo, fidelidades, tal como a ideia de um melhor representante, a correspondência entre modelo e cópia, a transposição fiel dos elementos para a escrita. Esse movimento se confunde com uma resposta diante da relação entre aquilo que se seleciona para compor e uma escrita. Destoa, pois, a ideia de experimentar uma relação entre a seleção e o fazer-escrita. “Ensaiar ou experimentar pensar com base nesse ‘fato’, ou seja, naquilo que brutalmente tornou-se uma evidência comum, é evitar fazer dele um argumento […] Trata-se de fazer dele uma questão” (STENGERS, 2015, p. 18, grifo da autora). Uma questão necessária para a escrita, uma questão vital.

“Diríamos simplesmente (embora apressadamente): se se deseja caçar; se o que se coloca é a captura, seja sóbrio na linguagem” (GODOY, 2011, p. 148), pois “a palavra é caça, no duplo sentido de que ela é tanto o que se espreita quanto a própria espreita e diz respeito à constituição de afetos e disposições” (GODOY, 2011, p. 148-149). Caçar é seguir o ritmo de outrem (seja ele o que for) e para isso é preciso simpatizar com a vida naquilo que se espreita, sem o que a escrita se reduz a palavras opulentas, signo da “derrisória confiança naquilo que se é” (BADIOU, 2000), aprisionando aquele que escreve nos círculos fechados de sua humanidade atual.

Experimentar é, então, uma questão de gosto, de mobilização afetiva.

Se o espaço de escrita até então misterioso é espaço de caça, trata-se, na relação com os processos formativos instituídos, de um espaço do ingovernável, e que, por conseguinte, não corresponde à forma-Estado e não responde à sua lógica. Frequentar esse espaço e percorrê-lo é o que Guimarães Rosa, em “Meu tio o Iauaretê”, já havia mostrado: uma questão de sociabilidade, de produzir sociabilidade. Nesse sentido, a simpatia é uma prática afetiva de frequentação das coisas, até o ponto em que se estabeleça uma espécie de camaradagem em relação a todas as suas manifestações, em que se possa brincar com elas. Nesse espaço misterioso, o fôlego na escrita (escrever uma linha, um parágrafo, uma página) diz precisamente da frequentação. Aumentar o fôlego não é uma questão de disciplina, mas de prática: praticar a frequentação, inventar para si o corpo necessário para que se possa permanecer numa ideia, numa linha, numa página, sem “morrer”.

Isabelle Stengers (2015, p. 25, grifo da autora) chama atenção para “caracterizar, ou seja, colocar a questão dos ‘caracteres’”, que, de modo pragmático, retira de um saber com o qual se aproxima seu poder de definição. Uma questão de frequentação. Perguntar-se pelo que pode os protagonistas numa narrativa convoca um remontar das peças que o criaram, “não para deduzir esse presente do passado, mas para dar espessura” (STENGERS, 2015, p. 25) a esse corpo inventado numa escrita.

Aquilo que pode um corpo.

Bom, voltemos então ao espaço da caça. É preciso destacar aqui que o valor de caça é puramente relacional e, portanto, não recai exclusivamente sobre o animal, mas envolve tudo aquilo que é significativo na experiência: músicas, imagens, duplos etc. Nesse espaço talhado pela predação, isto é, pela luta entre perspectivas, podemos não ser humanos, porque efetivamente simpatizamos com a vida nas coisas e seguimos outrem.

“Não se trata então de pedir uma definição mas uma localização de forças que atuam em um determinado lugar e que giram em torno” (FERRAZ, 2010, p. 9) de um corpo.

O que pode a escrita diante desse corpo? E o que pode um corpo numa escrita?

Inventar modos de se aproximar dos saberes, objetos de pesquisa, problemas de pesquisa, ciências, filosofias, literaturas, referências bibliográficas… Politizar a escrita, ou o fazer-escrita, é fazer circular afetos com ele, delirar vidas nessa escrita, sair do prumo, sair do sulco que coloca a vida e a escrita nos eixos.

Mas por que é preciso inventar esses modos? Porque há procedimentos presentes no fazer-escrita que a tolhem em suas potências de afetar e ser afetada - quais são: nos termos de Michel Foucault (1996), a exclusão, interdição que ligam o discurso ao desejo e ao poder direcionando-os; a separação e rejeição instituídas por aparatos de saber que agem por decifração; a oposição entre verdadeiro ou falso que impõe e reconduz uma violência também de exclusão pelas vontades de verdade e de saber que regem tal oposição. Em outros termos, na doutrina do julgamento ressaltada por Gilles Deleuze em vários textos (mas especialmente em Para dar um fim ao juízo [1997]), julgamento que aprisiona a escrita e a vida pela determinação das existências por uma dívida infinita, pelo sonho já prescrito e murado, pela organização, o domínio e a guerra que permitem e instauram as ações de poder, lembrando que o poder é aquele que separa um corpo daquilo que ele pode. O juízo, escreve ele, “impede a chegada de qualquer novo modo de existência”, mas ele também o desafia, ao não termos “por que julgar os demais existentes, mas sentir se eles nos convêm ou desconvêm, isto é, se nos trazem forças ou então nos remetem às misérias da guerra, às pobrezas do sonho, aos rigores da organização” (DELEUZE, 1997, p. 173). Assim, o combate que se dá na escrita e com a escrita, diz respeito a selecionar aquilo que convém, para com isso investir de força suas linhas.

Percebe-se, então, que a escrita alfabético-númerica é, de fato, posterior à linha de escrita, linha de frequentação, com a qual se veem implicados os mais estranhos ou inesperados “entes”/objetos, e aqui se deve entender perspectivas: uma mesa, uma janela, um aspirador de pó, um gato, um cachorro, um vaso de planta, um som, mas também forças... De certo modo, não é preciso escrever para escrever, é preciso frequentar. Também de certo modo frequentar já supõe uma escrita, ainda que não se escreva. A amplitude desse espaço de caça, de frequentação, é incomensurável e ao mesmo tempo variável, todavia ele não prescinde do corpo orgânico, tampouco da inteligência, com os quais entretém relações igualmente variáveis. O misterioso espaço da escrita reivindica a crença, a confiança, sem as quais a “inteligência representa [...] uma ordem de realidade que ameaça sua existência e sua potência de agir individuais (margem de imprevisto, morte inelutável)” (LAPOUJADE, 2013, p. 81).

Desafiar os sentidos a não fazerem o que lhes é habitual - olhos para enxergar, nariz para cheirar - e desde dentro desses olhos que enxergam, enxergar diferentemente o que sempre se viu; sentir o cheiro unido por outras sensações que não sejam necessariamente de identificação de tal e qual cheiro. Por isso, uma escrita que difere da exigência de uma interpretação, ou entendimento tácito, ou transmissão de um saber, porque seus efeitos, a produção de seus sentidos não é dados a priori, não estão previstos no relatório, não tem aviso prévio, tintim por tintim.

Os modos de semiotização que configuram o espaço da escrita e as transformações que eles experimentam possuem uma relação com as transformações socioculturais para as quais as instituições respondem, muito embora a lógica de seu funcionamento não corresponda à lógica das instituições. Vale dizer que o processo não é o mesmo, mas a conversão de um no outro é possível do ponto de vista da compreensão. Tanto é assim que dizemos: escreve-se como a instituição quer.

Numa escrita-oficina é possível experimentar os diferentes procedimentos que compõem uma escrita - pode-se experimentá-los em diferentes suportes, diferentes maneiras de ligar ao corpo tais procedimentos -, mas é sempre bom lembrar-se de trazê-los de volta para a escrita, é nela e com ela que o combate e a experimentação precisam ser feitos.

É aí que as entidades (os objetos tornados entidades) que povoam o espaço da escrita adquirem a função de reconhecer um lugar para o indivíduo, de estabelecer a importância de sua situação. Todavia, nem isso basta, porque o que efetivamente interessa é o movimento da linha de escrita que atravessa todas as entidades, pois, ainda que ele recaia nas coisas, não se encerra no feito, pondo em jogo o desprendimento em relação ao já feito e o apego ao se fazendo que o ultrapassa.

Aquilo que é feito ao escrever. Um “modo como os movimentos e ritmos” (INGOLD, 2012, p. 39) entram no espaço do papel para “pensarmos a escrita não como uma composição verbal, mas como uma malha de linhas - não como texto, mas como textura” (INGOLD, 2012, p. 39, grifos do autor), contato íntimo dos elementos de um corpo, um corpo qualquer, que compõem as linhas de uma escrita, enfim, tramadas.

Referências

BADIOU, Alain. Da vida como nome do ser. In: ALLIEZ, Èric (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000. p. 159-167. [ Links ]

DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992. [ Links ]

*Informamos que o aspecto gráfico deste artigo não segue o padrão editorial da revista Educação e Filosofia. Decidiu-se aqui abrir uma exceção para atender ao anseio das autoras de fazer convergir, a um só tempo, a intervenção estilística e a proposta intelectual que dá a tônica a este texto (Nota do editor).

1Os verbos espanhóis “leer” e “escoger” são provenientes do verbo latino legere. Disponível em: <http://etimologias.dechile.net/?leer>.

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