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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.63 Uberlândia set./dic 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n63a2017-15 

Dossiê Artes e Oficinas: incursões na filosofia de Deleuze-Guattari

Corpo(i)ética: educação dos afetos e produção de modos expressivos

Bodyethics: affections education and expressive modes production

Cuerpo(i)ética: educacion de los afectos y produccion de modos expressivos

Fernando H. Yonezawa* 

*Doutor em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES-PPGPSI). E-mail: fefoyo@yahoo.com.br


Resumo

Neste texto compartilharemos nossa experiência de trabalho com experimentações corporais-artísticas, as quais estão baseadas em conceitos deleuzoguattarianos e spinozanos. São experimentações oferecidas para grupos de pessoas de diversas faixas etárias e formações. Ao longo deste trabalho1, viemos forjando a noção conceitual de educação dos afetos, a qual denomina a produção de um conhecimento acerca dos insuspeitos afetos engendrados nas experimentações. Trata-se de uma forma de educação constituída a partir da problematização de tais afetos em conexão com os modos de vida instituídos e respectivas maneiras de sentir, mover-se, expressar-se. Assim, nos questionamos sobre a possiblidade de produção de mais e novos modos expressivos. Baseados em conceitos de Guattari e Deleuze, entendemos que a força expressiva dos corpos sempre se constitui sobre uma problemática estético-artística e não fisiológico-funcional. Então, estaremos descrevendo aqui os procedimentos adotados em nossas experimentações, bem como os efeitos relatados pelos participantes e os conceitos filosóficos mobilizados.

Palavras-chave: Gilles Deleuze; Spinoza; Corpo; Artes; Educação

Abstract

In this text, we would like our work of bodily-artistic experiments, which are based on Deleuze-Guattarian and Spinozian concepts. These experiments are offered to groups of people of varying age groups and backgrounds: Humanities students, health professionals, and public school teachers. With Spinoza and Deleuze we understand that affections are modes and characterize the expressive forms of the power to be affected of bodies. Also with these authors, we take these modes as possessing an educational force, that is, of intending new bodies in expressive ways, since there are affections that violate the relationship of sensible cohesion between the faculties of thought. So we will be describing here the procedures adopted in our experiments, as well as the effects reported by the participants and the mobilized philosophical conceptualization.

Keywords: Gilles Deleuze; Spinoza; Body; Affection; Education

Resumen

En éste texto, nuestro trabajo de experimentación corporales-artísticas, las cuales están basadas en conceptos deleuzo-guattarianos y espinozianos. Dichas experimentaciones son ofrecidas para grupos de personas de diversas edades y formaciones: estudiantes del área de Humanidades, profesionales de la salud y profesores de escuelas públicas. Con Espinosa y Deleuze entendemos que los afectos son modos y caracterizan las formas expresivas de la potencia de ser afectado por los cuerpos. Como en esos autores, también tomamos los modos como poseedores de una fuerza educativa, sea cual sea, la de tensionar en los cuerpos nuevas maneras expresivas, ya que hay afectos que violentan la relación de cohesión sensata entre las facultades del pensamiento. Entonces, estaremos describiendo aquí los procedimientos adoptados en nuestras experimentaciones, bien como los efectos relatados por los participantes y la conceptualización filosófica movilizada.

Palabras-clave: Gilles Deleuze; Spinoza; Cuerpo; Afecto; Educación

Há oito anos temos nos dedicado a produzir sessões de experimentações corporais2, baseadas em exercícios artísticos e nos conceitos da Filosofia Micropolítica de Guattari e Deleuze. Nesta proposta temos o intuito de acessar um plano de consistência, a partir do qual se possa experienciar um corpo que não se defina mais por características inerentes à espécie, ou por relações pré-fixadas entre órgão e função, mas por relações de velocidades, de movimentos e repouso (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 47).

Então, neste plano, as coisas não possuem existência formal ou particularizada e só andam em infinidades, se diferenciando pelo modo como entram em relação. Dessa maneira, é um mundo caótico não por ser desorganizado, mas pela capacidade de portar simultaneamente infinitas relações de movimento e repouso, velocidade e lentidão, as quais estão todas conectadas e em eterna variação de composição e diferenciação (DELEUZE & GUATTARI, 1997,, p. 39).

Conforme Guattari e Deleuze (1997), os órgãos e funções são efeitos de modos de relação e, por isso, um órgão pode operar segundo outros regimes e uma função pode ser exercida via outras organizações. Um corpo tomado pelo plano de composição, portanto, se definiria pelos afetos que é capaz de experimentar, de modo consoante a um agenciamento individuado do qual faz parte. Sendo assim, o que um corpo é capaz de realizar e sentir diz respeito às partes extensivas as quais lhe pertencem num dado circuito de conexões e circulações intensivas.

Sob a perspectiva do plano de consistência, um corpo apropria-se de novos afetos ao mesmo tempo em que se acrescem a ele partes extensivas, conforme variações nas relações de velocidade, movimento e repouso propiciadores de novas conexões e arranjos. Ao mesmo tempo, são os afetos e a composição das partes que, a partir de uma certa relação, passam a se apropriar de um corpo. Trata-se de uma produtividade imanente paradoxal dos corpos, na qual os corpos tomam novos afetos e partes enquanto são simultaneamente tomados pelos afetos e partes do agenciamento dentro do qual são produzidos.

Compreendemos, pois, que é na experimentação de afetos inimagináveis que se podem produzir novos sentidos e modos de expressão, à revelia do entendimento sensato e disciplinador dos modos organizativos dominantes do mundo. Temos percebido que essa potência afetiva própria das experimentações é por si só alterante dos modos sentir, pensar e viver, pois coloca em xeque regimes de sensibilidade e de pensamento, através do engendramento de processos outros.

Nossa inspiração e o modo de montagem das experimentações

Ao longo dos anos nos quais viemos produzindo experimentações corporais, temos feito uso de exercícios do teatro, da dança, da performance e das artes marciais, assim como de materiais orgânicos e inorgânicos, que possam criar estímulos muito precisos de tato, paladar e olfato; também lançamos mão de estímulos auditivos por meio de ruídos, música e instrumentos musicais e da subtração da visão com o uso de venda.

No começo, tivemos no texto “Como criar para si um Corpo sem Órgãos” uma inspiração norteadora de nossa preocupação com desenvolvermos um modo de nos apropriarmos dos exercícios advindos das artes mencionadas, do uso dos materiais e da ideia de estabelecer um programa de experimentação corporal. Sendo formados em Psicologia e tendo ao pensamento de Guattari e Deleuze como referências teóricas de nosso trabalho no campo da subjetividade, nos sentíamos instigados, com este texto, a criar exercícios ou experiências corporais capazes de acessar as intensidades do plano de consistência, que, ao mesmo tempo, se diferenciassem dos tradicionais trabalhos corporalistas da área Psi.

Do ponto de vista pragmático-filosófico, o conceito de corpo sem órgãos arquitetado por Guattari e Deleuze, no referido capítulo do terceiro volume de Mil Platôs, é a própria afirmação do processo de experimentação de um plano de consistência (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 21). Os autores colocam esse processo com toda crueza e simplicidade, de modo a deixar claro que qualquer um pode empreendê-lo; ao mesmo tempo, não supõem nada de antemão que garanta a abertura à experimentação. A despeito disso, nos dão algumas pistas de como produzir um corpo sem órgãos, quais os riscos, os tipos, os modos. Por isso mesmo, a proposta de um programa.

Segundo os autores, o corpo sem órgãos (CsO) é um limite, pois a ele nunca se chega, visto não se tratar de um lugar, mas de uma matéria intensiva que se experimenta num conjunto de práticas. Ele se faz no próprio empreendimento, é um exercício ativo, um combate perpétuo entre forças que o liberam para o plano de consistência e forças as quais o estratificam. Ora, existem três grandes estratos relacionados a nós, quais sejam: o organismo, a significância e a subjetivação (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 22). Cada um desses estratos incide sobre uma superfície de relação do ser humano: o organismo age sobre as articulações de nosso corpo biológico, social, cultural e científico, estruturando-os em sistemas fechados de funcionamento; a significância diz respeito a todos os atos serem remetidos a signos prontos, ou seja, há sempre algo a ser interpretado e inferido a partir dos atos; e a subjetivação, por fim, remete os acontecimentos e enunciados a um sujeito pressuposto. Temos que, a partir deste plano estratificado, pensamos, sentimos e agimos sempre tendo como parâmetros demarcações individualizantes, hierarquizadas, que fixam todo e qualquer tipo de fluxo: material, de pensamento, de pessoas, de afetos etc.

Desse modo, acessar um plano de consistência nos exige rigor e prudência, pois havemos de desestratificar o conjunto de estratos, que impedem o povoamento de nosso corpo por afetos intensivos não subjetivados. Tão logo, não é de modo grosseiro que faz uma desestratificação, pois desfazer o organismo nunca foi destruí-lo (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 23) e sim cultivar agenciamentos e circuitos que possibilitem passagens e variação na distribuição de intensidades. Desestratificar é sustentar um corpo aberto a conexões, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 24). É justamente a esta experiência, que se procede enquanto um conjunto de práticas propiciadoras da circulação de intensidades livres e, portanto, de abertura para o plano de composição, que Deleuze e Guattari chamam de CsO.

Em nosso trabalho, então, a ideia do programa sado-masoquista descrito no referido texto como uma sucessão de procedimentos cuidadosamente pensados para produzir certos efeitos nos soou interessante, porque também entendíamos, como artistas (das áreas da dança e das artes marciais) que a inventividade, ou seja, a tessitura de um novo corpo, não surge espontaneamente; ela requer primeiramente esforço para sair de uma zona de conforto e cultivo de práticas, as quais sustentem uma abertura à ampliação e variação dos modos de relação exercitados.

Para pensarmos nossos processos experimentais, também consideramos o perfil das pessoas com as quais viemos trabalhando, que são de formações diversas e estão engajadas geralmente em campos como educação e saúde, nos quais há um exercício exacerbado do intelecto e/ou de um repertório afetivo pragmático-funcional, cuja expressividade é empobrecida pelas exigências dos contextos institucionais em que trabalham.

Assim, montar em programas tem sido um modo de criar percursos onde houvesse experimentações propiciadoras de alterações nos modos de respirar, de se mover, de variar a circulação sanguínea por via do aumento ou diminuição da temperatura corporal, de contrair e relaxar os músculos, provando variações de tensionamento, de acelerações e lentidões nas caminhadas, de redimensionamento do espaço. Interessanos, pois, elaborar um processo ao mesmo tempo rigoroso, liberador e, acima de tudo, educativo, transformador e inventivo. O texto a respeito do CsO nos deixava claro que uma experimentação, ainda que deslocada dos moldes e princípios científicos, seria algo delicado de ser feito, algo que requereria uma nova forma de rigor.

Tendo já experimentado algumas práticas corporais da área Psi, tais como exercícios bio-energéticos, biodança, psicodrama e esquizodrama, nos incomodamos com alguns aspectos destas práticas: em alguns momentos eram muito pouco afeitas à invenção, em outros, eram demasiadamente voltadas a produzirem uma imagem caricata de liberdade corporal, através da catarse física ou supostamente sexual; também nos incomodávamos com a pouca amplitude e exigência dos movimentos corporais, sempre muito confortáveis, compassivos para com os limites dos corpos rígidos e empobrecidos pelo modo de vida disciplinar do típico homem branco, trabalhador, ausente de si e distante das potências do corpo. Além disso, a tendência destas práticas a recaírem numa modulação emocional apelativa, choramingosa, centrada em histórias pessoais, individuais, para elaborarem análises despolitizadas e descoladas das dimensões sociais, econômicas, históricas nos preocupava bastante.

Por isso, quando pensamos em rigor, estamos tentando escapar pelo menos destes pontos de captura e, ainda, buscando elaborar experimentações capazes de provocar a inventividade dos corpos sem confiar tanto em algum espontaneísmo supostamente libertador. Parecia-nos claro: espontaneamente também se produziu, na história, eventos como o fascismo e as tiranias. Guattari e Deleuze bem dizem que o Estado, por exemplo, é uma aparição miraculosa. A ideia de que transformações podem surgir sem serem determinadas por forças nos parece abstração, quer dizer, mesmo o gesto mais espontâneo só pode ser efeito de forças. Tal como não nos interessa produzir corpos atléticos, voltados para a alta performance, tampouco não nos satisfazemos com o fato de que muitos trabalhos corporais no meio Psi costumam tomar como modelo os corpos adoecidos e neurotizados do capitalismo e, por isso, acabam sendo ainda muito caridosos para com a rigidez e estereotipia expressiva dos corpos. A normalidade passa muito incólume quando se mantém os corpos de sua modulação média e conhecida.

Dessa maneira, desde nossa primeira proposição experimental inspirada no texto sobre o CsO, temos sempre uma primeira parte do percurso programada e coordenada para produzir tensionamentos e alargamentos nos modos estabelecidos e dominantes de constituição corporal, a saber, corpos com tendões e articulações rígidas, musculaturas encurtadas, espremidas pelas demandas da vida típica de trabalhador sedentário, capacidade respiratória diminuída, repertório de afetos, gestos e movimentos desertificado ou estereotipado, contaminado por representações e caricaturas midiáticas, familiares, estatais etc. A este primeiro estágio das experimentações, damos o nome de “abrir o corpo” e temos aí a preocupação inicial de provocar desgastes, raspagens e esgarçamentos nos corpos. Não é apenas um aquecimento: alongar a musculatura e os diafragmas, ampliar os movimentos e gestos, desfazer as rostidades e as posturas corporais, abrir espaços respiratórios, permitir percepções finas das partes do próprio corpo e dos outros corpos, aguçar o sentido de presença, avivar a sensibilidade com relação a sonoridades, cores, texturas, desconstruir tabus quanto a tipos de posição de corpo e movimento, como fazer homens rebolarem, mulheres empinarem os quadris. Por outro lado, este primeiro momento também pretende propiciar a germinação de novos gestos, novas posturas, movimentos inusitados, afetos singulares e até sem sentido. E mesmo assim, neste abrir o corpo, mesmo havendo experimentação de novos afetos, não consideramos que haja aí inventividade, pois esses afetos surgidos se dão por um esforço orientado. Sabemos que a saída de uma zona de conforto necessariamente produz novos afetos e a inventividade está em agir sobre os afetos considerando as linhas de forças que estão em jogo, multiplicando os gestos, produzindo ainda uma terceira, quarta, quinta movimentação expressiva do corpo. É na presença de uma rede tensões que um corpo se inventa de um modo singular, como um entardecer, no qual o jogo de luz, temperatura, umidade e correntes de ar frio e quente formam um corpo único e heterogêneo chamado por do sol.

Temos percebido que, nessa primeira parte, de fato há a saída de uma zona de conforto e o cultivo de práticas propiciadoras de outros modos de relação. No entanto, também viemos percebendo que não havia alteração inventiva dos modos experimentados através de um exercício de estar receptivo e atuante na nova relação de forças em que os corpos imergiam. Havia sim alterações próprias ao processo de realização de um exercício, que cada corpo naturalmente realiza com alguma variação. Neste caso, contudo, consideramos estar apenas lidando com diferenças relativas, isto é, com diversidades, nas quais o ponto de vista é deslocado, mas o modo de relação e o objeto são mantidos. É pensando nisso que, então, procuramos cuidar para que os participantes tenham atenção às zonas de conforto apresentadas por meio de frouxidões e enrijecimentos nos movimentos, ou seja, um esforço a mais ou a menos que o necessário para a execução. Através dessa atenção exercitamos, junto com os participantes, a presença a si, importante desde o alongamento, que costuma ser prelúdio desta primeira parte. Falamos aqui de uma presença que é, além de atenção às sutilezas dos exercícios, uma disponibilidade para com os novos fluxos afetivos, os quais multiplicam as possibilidades de expressão corporal.

Os participantes de nossas experimentações sempre nos deram o retorno de que achavam muito importante o cuidado e precisão com que sugeríamos os exercícios. Chamamos de crueldade a este rigor e cuidado para com os exercícios, desta vez inspirados na noção de crueldade de Artaud. “Tudo que age é crueldade” (ARTAUD, 2006, p. 96). A crueldade, para Artaud, se refere diretamente à capacidade alquímica que a arte tem de agregar mais realidades à realidade, multiplicar o real, produzindo um mundo “perigoso e típico”, cheio de inumanidades em que seus elementos, “assim que mostram a cabeça, apressam-se a voltar à escuridão das águas”. Esta força de criação e de dobragem da realidade constitui um mundo em que “o homem, com seus costumes ou com seu caráter, conta muito pouco” (ARTAUD, 2006, p. 50). Com efeito, propomos os exercícios de modo ímpio, tal como fazem tantos diretores e professores de teatro, dança e artes marciais. Suspeitamos que, se os participantes nos sentem cuidadosos, talvez seja porque efetivamente temos muito pouco respeito ou compaixão pelos pequenos medos burgueses, pelos melindres de gênero, pelos psicologismos e pelas fantasias neuróticas de impotência.

Então, neste momento de abrir o corpo sempre iniciamos com exercícios respiratórios. Trata-se de aliar uma respiração lenta e ampla, preferencialmente concentrada no abdome, com movimentos sutis de pernas e braços que façam com que o peso do corpo possa ser levado à sola dos pés e, desse modo, se promova uma conexão entre pensamento, corpo e contato com o solo. A intenção neste exercício é oxigenar o corpo de modo mais sutil, alongando músculos abdominais e intercostais, mas também pretendemos aí desacelerar a atividade mental, liberando-a de ações imaginativas e representativas de teor transcendente, que vedam o corpo à ação sutil de se conectar ao ambiente de forças atuantes. São exercícios que se aproximam muito do que alguns psicólogos corporalistas chamam de grounding; porém, para nós, a importância do exercício está em combater a transcendência, ou seja, não pensamos em nenhum objetivo energético ou desrepressor. Preferimos pensar que o momento de respiração é uma tentativa de “imanentização” dos corpos, de produção daquilo que Nietzsche chamaria de “amor à terra”. Queremos aí, iniciar o exercício da presença. O tensionamento é justamente ocupar a mente tão somente com o fluxo respiratório e a expansão e retração do corpo, que consideramos ser um dos mais germinais e elementares movimentos e sensações que se pode ter. Já neste momento tão inicial é comum que alguns participantes tenham dificuldades, chegando até a chorar ou sentirem-se sufocados, por estarem aflitos em respirar mais amplamente, ou porque nunca puderam experimentar descontrair o peito e os trapézios para inspirar o ar usando também o abdome. Também acontece de percebermos as mãos fazerem movimentos sem vitalidade, como se não tivessem irrigadas por sangue, musculatura e pulsação. Ora, sabemos bem que a concentração da respiração na parte alta do peito é justamente efeito de uma corporeidade que se descola da terra, da imanência, atravessada que está pela necessidade constante de concentrar suas forças no alto do corpo (cabeça, peito e ombros), para pensar, para resolver tarefas burocráticas, escolares, domésticas etc. Assim, como forma de rigor e cuidado, procedemos colocando nossas mãos sobre o umbigo do participante, pedindo que relaxe os ombros e tente respirar empurrando e puxando nossa mão com a barriga. Também colocamos nossas mãos sob as mãos do participante, e pedimos que empurrem com um leve nível de tensão, para que o movimento ali avive dedos, palmas, braços e ombros.

Durante a abertura do corpo gostamos de utilizar cambalhotas e rolamentos das artes marciais ou da dança, como meio de aquecer o corpo, criar uma atmosfera lúdica e, ainda, embaralhar o sentido propioceptivo de verticalidade, o qual também é promotor de controle. Aí, é comum que um ou outro participante se sinta travado e incapaz de virar uma cambalhota, tomado pela fantasia de que irá quebrar o pescoço. Para nós, novamente, trata-se de um efeito malévolo da vida adulta, supostamente madura, que rouba a desenvoltura corporal, a disponibilidade para experimentar afetos e movimentos, especialmente os redondos. Entendemos que este tipo de fantasia é ilusória e entristecedora do corpo; por isso, nossa crueldade está, no caso da cambalhota, em achegarmo-nos ao lado da pessoa, não permitindo que desista, ajudando-a a sustentar-se de ponta cabeça, sobre o topo da cabeça, até que consiga vergar o pescoço e rolar pelas costas. É bastante assustador como um exercício simples, tão natural em crianças pequenas, passa a ser algo tão terrível a ponto de produzir choro e desespero em alguns participantes. Compreendemos que incapacidades deste tipo sejam um signo do nível de adoecimento ao qual somos facilmente submetidos se não nos atentamos às seduções do modo de vida hegemônico. Por isso, quando podemos acompanhar estas pessoas num pequeno processo como este, elas comumente se emocionam alegremente por terem conseguido e até tentam repetir as cambalhotas, ainda que desajeitadamente.

Cabe dizer aqui, que não nos importam as razões pelas quais os corpos apresentam certos limites, ainda que sejam eles traumas. Nossa questão é podermos produzir um encontro e uma nova experiência que, de todo modo, possibilite aberturas e ampliação do que o corpo pode fazer e sentir. É neste sentido que dizemos não respeitar medos e demais afetos tristes capazes de paralisar os corpos. Há ainda exercícios mais complexos que utilizamos para ampliar o repertório gestual e sensível dos corpos, como a experimentação de níveis de tensão muscular variados envolvendo sensações de texturas, que vão do mais rarefeito ao mais denso, passando por nuances de liquidez e viscosidade. Fazer-se conduzir por alguma parte do corpo ao dançar uma música instrumental como se uma esfera metálica percorresse o interior do corpo, ou caminhar como se os pés penetrassem um chão de lama, abrindo os dedos dos pés são outros exemplos de exercícios que utilizamos no momento de abertura do corpo.

Assim, se na primeira parte cuidamos do exercício de uma presença, na segunda parte do programa atemo-nos ao cultivo de uma errância com essa vivacidade exercitada: é proposto um plano de experimentação livre de comandos diretivos. Denominamos “intempérie” este segundo momento. Aí, pretendemos que os corpos possam, em parte, se utilizar das aberturas e recursos expressivos construídos e desconstruídos inicialmente. Com o intuito de enriquecer esse segundo momento nós coordenadores inserimos estímulos tácteis, ópticos, auditivos e olfativos, administrados de modo processual e atento às sutilezas do que se passa, buscando compor com os movimentos dos participantes. São cheiros, gotículas de água gelada e aromatizada borrifadas, músicas instrumentais em que há uma modulação rítmica irregular com melodias imprevisíveis. Neste momento, podemos também vendar os olhos dos participantes, assim como levá-los a espaços preparados, no qual se disponibilizam materiais como bolsas com água colorida, pedras, algodão, cordas, telas. Ora, na intempérie, a questão é também produzir um meio, uma selva ou oceano, que permita fazer emergir uma nova expressividade nos corpos, gestos e caminhares singulares, danças e narrativas esquizoides inventivas, nascidas de uma corporeidade constituída de forças e partículas poéticas. Entendemos que aí, as linhas de força são poéticas, mas, nem por isso, são singelas ou confortáveis; pelo contrário, este é o momento em que os corpos são jogados num campo de forças desaconchegante, tal como se estivessem, justamente, numa intempérie climática.

Procuramos, pois, produzir um agenciamento estético-expressivo justamente no jogo desses elementos sinestésicos, criando uma atmosfera movente juntamente com um corpo sobre o qual se exerceu um trabalho de refinamento do regime de sensibilidade. É através destes recursos que apostamos na possibilidade de acessar um plano de consistência, plano caótico de intensidades do qual, uma vez acessado, não se retorna.

Em nossa primeira experimentação, baseada nos conhecimentos que até então tínhamos cultivado - como psicólogos, educadores, artistas e estudiosos da filosofia da diferença - obtivemos algumas experiências interessantes e compreensões do lugar que ocupávamos em meio a essa trama de formações. Ela foi oferecida no I Encontro de Esquizodrama promovido pelo Instituto Félix Guattari em Uberaba/MG no ano de 2009. Neste encontro, que também foi um Pré-Congresso Internacional de Saúde Mental e Direitos Humanos, houve a participação de profissionais da saúde, estudantes universitários das áreas de humanidades e usuários do CAPS Maria Boneca (Centro de Atenção Psicossocial de Uberaba). Propusemos nesse evento uma experimentação corporal com o nome de “Clínica do Corpo e do Corpo sem Órgãos”. Houve a participação de 71 pessoas, entre elas, usuários do CAPS, trabalhadores da saúde e estudantes de psicologia, serviço social e artes. Ao fim desta experimentação, um dos usuários nos apontou que o vivido naquela oficina foi uma experiência semelhante ao processo de crise que enfrentam. Um profissional da saúde relatou ter vivenciado uma morte em que tudo escurecia e o corpo se dissolvia, ressurgindo depois com um frescor de nascimento. Também vimos gestos e sons emitidos pelos corpos fazerem diálogos não intencionais à distância, como se houvesse uma ligação rizomática ente corpos que estavam deitados em pontas opostas da sala.

Esses relatos trazem muito a tônica ímpia e cruel de nosso trabalho. O conjunto de procedimentos que havíamos criado dava acesso a um plano de composição, cujo CsO fabricado fazia circular intensidades de teor esquizo, no sentido de “uma luta interior ativa que ele mesmo desenvolve contra os órgãos” (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 09). Este efeito se deu em virtude de trabalharmos com um conjunto de práticas que intervinham no arranjo de forças que nos antropomorfizam; por exemplo, procuramos desconstruir o andar bípede e a preponderância da sensação de sermos seres vertebrados através de caminhadas que iam gradativamente fazendo os corpos voltarem ao caminhar rastejante, passando pelo andar de quatro até chegar em movimentos de verme. Quando experimentamos aquilo que em nós nos avizinha de um molusco, como nossas vísceras moles, ou tomamos contato com aquilo pelo qual somos ainda animais, como o deslocamento rastejante, intervimos afetivamente nos estratos que nos conformam a certos modos de sentir, agir e pensar. Nesse direcionamento, também propusemos apalpar as vísceras procurando efetivamente tocar algumas de suas partes, em seguida oferecemos um copo de água gelada para ser bebido pelos participantes e iniciamos uma caminhada rastejante com os olhos vendados sob a audição de uma música experimental de vozes andróginas. Nesse agenciamento, em que se rasteja vendado, com as vísceras remexidas e experimentando outros modos de encontro com demais corpos, torna-se possível a circulação de intensidades não-humanas.

Em algumas experimentações, entre o abrir o corpo e a intempérie, inserimos ainda um pequeno momento de transição, que chamamos “iminência”. Trata-se de um curto momento, que tem dois objetivos: sem interrupção, sinalizar aos participantes que não mais haverá exercícios conduzidos por nós e, então, poderão concentrar-se na expressão de uma performance, caminhada ou dança singulares, gerida na intempérie que virá e, ainda, é a ocasião de disponibilizar um momento de passagem, que sirva para trazer o efeito de fim e início ao mesmo tempo. Por isso, na iminência, oferecemos um objeto, uma mudança clara de música ou ambiente, que entendemos dever funcionar como a moeda que as almas gregas ofereciam ao barqueiro do rio Aqueronte quando da travessia para o mundo dos mortos. O objeto pode ser um pedaço de galho pintado, uma bolinha de gude colorida, um trapo de tecido, assim como a passagem pode se dar justamente fazendo os participantes passarem por uma cortina, argola ou porta, indo para outro recinto. A cada experimentação pensamos em algo que esteticamente rico para este pequeno instante. A intenção é que os objetos sirvam também para iniciar uma conexão inumana e criativa, para preparar a luta com as forças que está na iminência de acontecer durante a intempérie.

Nossas experimentações podem durar até quatro horas, pois é comum apresentarmos uma pequena introdução teórica, junto com uma discussão temática antes de iniciarmos os exercícios corporais. Este momento pode levar até uma hora. Em geral, desde as respirações iniciais, até a iminência e início da intempérie, levamos mais uma hora ou hora e meia. A intempérie pode durar de vinte a trinta minutos, dependendo de como o coletivo de participantes trabalha. Ao fim, deixamos cerca de cinco ou dez minutos, para que os participantes possam retornar gradativamente de suas viagens e performances; aí, trazemos uma música mais serena e baixa, sugerimos que os participantes toquem seus corpos suavemente, trazendo a sensação de contorno. Também pedimos que respirem calma e profundamente, para que voltem a sentir o mais simples fluxo de vida. Encerramos com um momento em que os participantes podem compartilhar com o restante do grupo suas experiências, seja com os exercícios do abrir o corpo, seja com a performatização da intempérie. O ponto final consiste numa última respiração em roda, na qual todos ouvimos o som do ar sendo expirado pelo grupo todo. Faz-se esta respiração com o sentimento de estarmos fechando coletivamente um processo.3

Algumas problematizações que fazemos sobre nossas práticas

Com essas experimentações, vemos serem produzidos, de um modo muito intenso e forte, novos corpos às margens do humano. Entretanto, como dissemos, procuramos não fazer com que a experimentação passe por uma via catártica, na qual se vivencia uma descarga energética baseada em exacerbação e certo sentimento de vingança para com a repressão e controle. Entendemos que a catarse de fato libere forças, mas, por outro lado, ela ainda mantém demasiadamente um território de significações e subjetivações em função de um corpo-eu-humano-com minha historieta pessoal. Nossas experimentações oferecem um transbordamento, tal como na catarse, mas não nos estabelecemos sobre um território “humano demasiado humano”. Os transbordamentos que vemos acontecer em nossas experimentações vêm por efeito de uma luta com as estratificações que nos humanizam. Tomamos o corpo como campo de batalha entre forças que o liberam para plano de consistência e forças as quais o estratificam; por isso vemos efeitos de enlouquecimento, dissolução dos limites corporais e morte serem relatados pelos participantes.

Com isso, diferentemente de práticas corporais propostas segundo norteamentos Psi no qual se afirmam “pare, reencontre o seu eu”, nós procuramos trilhar outro caminho, pois queremos fabricar CsOs, os quais sejam resultantes de um cultivo de práticas que fazem circular intensidades desconhecidas, poéticas, gestadas num mundo de afetos insuspeitos. Assim, ao invés de paradas, produção de lentidões. É pela lentificação após acelerações bruscas ou movimentos rápidos que desviamos da catarse. Ao mesmo tempo, nos servimos dessa manobra como modo de produção de micro percepções e de realce de rastros de movimentos, os quais continuam acontecendo molecularmente no corpo, na forma de inúmeras desacelerações diferenciadas. Há inclusive movimentos involuntários que gaguejam nessas desacelerações.

Com efeito, a partir do momento em que nos propusemos a realizar experimentações distintas das que comumente se fazem no meio Psi, passamos a ter que nos inquietar com outros problemas e questões. A aposta na não diretividade do segundo momento tinha o intuito de que os participantes se encontrassem nessa batalha de forças, procurando se aliar a elas, para que tramassem uma nova composição, no exercício de um novo afeto. Percebemos ao longo de nossas experimentações que esse modo de fazer gerava alguns efeitos que não convinham quando tomamos por referência o sentido de produção afetos não subjetivados. O repertório de movimentos e gestos que muitas vezes surgia nesse momento era, apesar de criativo e desenvolto, muito bem conhecido. Os participantes diziam que a surpresa estava no reavivamento da vontade em retomar o cultivo de um corpo de práticas já exercitadas anteriormente: alguns participantes faziam movimentos de capoeira, outros de balé contemporâneo, outros de danças africanas. Ora, o que passou a nos incomodar foi que, neste momento de não diretividade, os participantes recorriam a este campo de gestos e movimentos costumeiramente entendidos, dentro de um senso-comum, como sendo movimentos fluidos, não formais, não programados e malemolentes. Com efeito, parece-nos que se aproximavam novamente de clichês, pois, por mais que se diga, por exemplo, que o balé contemporâneo faz um trabalho de saída da forma, contrapondo-se ao balé clássico, é muito fácil identificarmos sua corporeidade e movimentos típicos, bem como o tipo de malemolência das danças e artes de matriz africana é bastante reconhecível.

Quer dizer, passamos nos incomodar, primeiramente com as reterritorializações, ou as formas de recognição que vinham após as raspagens feitas durante o abrir o corpo. Em uma das oficinas que oferecemos no Congresso Internacional de Saúde Mental e Direitos Humanos das Madres da Praça de Maio em 2010, na Argentina, tivemos um exemplo bastante curioso deste tipo de retorno a uma imagem pré-fabricada de liberdade: no momento da intempérie, logo depois de colocarmos os participantes vendados e misturando-se com toques de pele e música, num espaço bastante pequeno e quente para as quase cem pessoas que ali estavam, vimos um casal se aproximar, se encostar em uma pilastra que havia na sala e começar a beijar-se freneticamente. É muito fácil pensarmos de cara que se trata de um momento de liberdade erótica, porém, logo nos veio a percepção de que aquela cena poderia ser muito bem transportada para um contexto qualquer do que se convencionou chamar popularmente de “balada”. O beijo lascivo entre duas pessoas que mal se enxergam e não se conhecem é de fato a performatização de afetos bastante fluidos. Porém, nos pareceu claro que era um modo muito rápido e fácil de recolocar dentro de expressões conhecidas o campo de forças desterritorializantes em que os corpos estavam mergulhados. Era uma cena típica, uma caricatura do que se passa em todo final de semana nas casas noturnas e bares urbanos. O que nos interessa desde sempre é que os corpos justamente se vejam encurralados, coagidos a encontrarem movimentos e meios de expressão novos, inusitados para si e para o mundo, sem, contudo, cairmos num relativismo típico do liberalismo econômico, que reitera o “cada um do seu jeito em seu quadrado pessoal”.

Outras vezes, vimos surgir uma exaltação do experimento no sentido da produção de uma alegria, mas uma alegria passiva, noção que mais adiante iremos esclarecer. Dessa maneira, passamos a ver que havia um aumento efetivo da capacidade de ter certas ideias ou ter certas ações, mas que ficavam presas às circunstâncias experimentais da oficina. Dito de outro modo: a inventividade ficava reclusa às condições dadas e não se experimentava a inventividade como a própria produção de condições. Dessa maneira, surgia um discurso dualizante em que as coisas se dividiam entre o que se passava na experimentação e o que se passava na vida fora dela, a qual, no entanto, consideramos ser também experimentação, ser também um campo de afirmação e batalha.

Educação dos afetos: os afetos é que educam se a alegria aumenta a força de agir

Então, a partir do momento em que passamos a nos deparar com estas questões, é que começamos a pensar nossas experimentações como formas de educação dos afetos. Sabemos da ambiguidade estranha contida nesta expressão. Inicialmente parece se tratar de uma educação que pretende corrigir os afetos, isto é, ortopedizá-los, tal como tradicionalmente já ocorre na educação escolar disciplinar, na qual não cabe errância.

Porém, o que estes termos ambíguos querem destacar é uma outra duplicidade: por um lado, as experimentações mergulham os corpos num mar de sensações e, assim, oferecem experiências em que aparecem sempre novos e inesperados afetos, cuja força é capaz de produzir nos corpos novas formas de expressão, condução dos movimentos, compreensão do que se passa consigo etc. Neste sentido, educação dos afetos quer dizer, educação na qual os afetos é que educam, transformam, formam. Daí, vem imediatamente o segundo sentido desta expressão. Se não se trata de uma prática correcional e disciplinar, nem por isso ela deixa de ser inexorável e forçosa para os corpos. Não mais correção e nem coerção, mas coação, ou seja, ação sinérgica e enérgica de distintas forças. Ora, parece ingenuidade pensar que haja alguma forma de neutralidade ou brandura em qualquer prática corporal. Mesmo a mais doce massagem, ou a aparentemente menos rígida dança possui suas formas, suas direções, sentidos, sua resolutividade e diligência. Assim, ao invés de sonharmos com práticas corporais angelicais e melífluas, preferimos assumir que todo movimento corporal e toda educação implica um certo nível de violência. Como diria Nietzsche, somente um modo de vida muito submetido e enfraquecido pode desejar e conceber forças sem efeitos, realidades sem força e movimentos neutros. Tão logo, a educação dos afetos não se refere mais a um tipo de violência que viola a potência expressiva dos corpos, interrompendo, deprimindo, determinando ou reprimindo; desta vez, trata-se de uma violência que justamente quer provocar, instigar, ativar a potência criativa dos corpos. Vejamos, pois, mais um pouco do aparato conceitual de que nos valemos para pensar estas nossas práticas e os seus respectivos efeitos.

Da obra de Deleuze, já é bastante conhecida a afirmação de que um corpo se define pelos afetos de que é capaz (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 47). Sem serem elementos de uma compreensão reflexiva ou intelectual, destaca Deleuze, estes afetos são sempre transições, que acontecem quando uma quantidade de realidade se afirma no espírito como força de existir. Como o próprio Spinoza traz, não é que o espírito compara reflexivamente um estado e outro, uma porção de realidade e outra. O afeto é a afirmação de uma perfeição maior ou menor, a passagem de uma perfeição menor ou maior, mas entendendo que esta perfeição que se afirma no espírito não é, senão, uma quantidade de realidade presente como movimento do corpo (SPINOZA, 2009, p. 152). É neste sentido que o afeto é sempre expressão dos corpos.

Notemos que se fala de uma porção de realidade a qual se afirma no espírito, causando-lhe um afeto-sentimento, ou seja, o espírito aí sofre a afirmação involuntária - inconsciente - da realidade. Não é o espírito que tem uma ideia, “é menos nós que temos as idéias do que as idéias que se afirmam em nós” (DELEUZE, 2009, p. 7). É a perfeição que se afirma no espírito e a apreensão ou conhecimento desta perfeição se dá por um padecimento. Entretanto, este afeto só existe enquanto passagem, a qual se nota a partir do estado do corpo, ou seja, a quantidade de realidade ou perfeição aí conhecida só se faz enquanto realidade no corpo, na forma de uma força de existir, que é sentida. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (SPINOZA, 2009, p. 98).

Os afetos são sempre confusos e complicados, isto é, múltiplos e também irredutíveis. Deleuze destaca, pois, esta irredutibilidade do afeto às ideias que temos, ou seja, ao trabalho intelectual. O afeto é uma variação em nós, relativa a uma realidade, é uma variação que compreende o aumento ou diminuição da capacidade de agir e da força de existir. “Afetos são devires” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 42). Os afetos podem, pois, ser alegres ou tristes, conforme sejam capazes de, respectivamente, aumentar ou diminuir nossa capacidade de agir. A alegria é a passagem ou afeto de uma perfeição menor para uma maior; já a tristeza, a passagem de uma perfeição maior para uma menor (SPINOZA, 2009, p. 141). É assim que os corpos são ditos poderem fazer parte de infinitos maiores ou menores, conforme o agenciamento de encontros que os tomam e os afetos que lhe passam.

Se os afetos são irredutíveis às ideias que temos, é justamente porque são ligados às variações de estados corporais, são transitoriedades, fluxos, não podendo ser identificados a um estado individualizado ou a outro. Um afeto é, além disso, a afirmação de um corpo sobre outro e também efeito que um corpo produz sobre outro. Nesta relação, o afeto não explica e nem envolve - portanto, não expressa - a natureza do corpo afetado e, isso quer dizer, profundamente, que o afeto não envolve as singularidades do corpo afetante e, tampouco expressa as singularidades do corpo afetante (DELEUZE, 2002, p. 83). É que, por expressão, devemos entender, operações sempre duplas e simultâneas de explicação-compreensão, desenvolvimento-envolvimento, implicação-complicação ou co-implicação (DELEUZE, 2010, p. 12). Logo, um afeto pode ser expressivo, quando ele desenvolve, explica e implica as singularidades de um corpo, enquanto este, ao mesmo tempo, envolve, compreende, co(i)mplica a porção de realidade que aí agencia tal afeto. Mesmo assim, um corpo só começa a conhecer outro corpo pelos seus afetos, isto é, por como ele é aí marcado. Em outras palavras, no corpo, a força de conhecer e de pensar, isto é, de ter ideia, só é ativada quando de um afeto. Isso não quer dizer, contudo, que esta primeira mobilização do pensar seja ativa, ou seja, a ideia aí, na verdade, é necessariamente inadequada, pois diz apenas de efeitos despregados de sua causa, que são as singularidades do corpo afetado e do corpo afetante. Inadequada é toda ideia inexpressiva, ou seja, que não explica e não é envolvida pelas singularidades dos corpos. A despeito disso, serão estes afetos que se colocarão como algo a ser pensado pelo pensamento, ainda que, neste tempo do conhecer, sejam ainda ideias inadequadas. Acontece que, no encontro entre corpos, estes sofrem de afetos seguidamente, ou seja, têm ideias umas depois das outras, estados vêm sucessivamente e estes afetos nos dão um problema efetivo ao pensamento, eles complicam o encontro. Lembremos que Deleuze diz repetidas vezes que o pensamento não pensa a não ser por força de uma violência que o faz pensar (DELEUZE, 2006, p. 210). Ora, o afeto é esta inadequação que se dá como primeiro encrispamento, primeiro ruído à sensibilidade de um corpo e que, quase imediatamente, deriva em um problema. Esta encrispação, “sensibiliza a alma, torna-a ‘perplexa’, isto é, força-a a colocar um problema, como se o objeto do encontro, o signo, fosse portador de problema - como se ele suscitasse problema” (DELEUZE, 2006, p. 204).

Temos aí, a primeira potência do corpo: padecer a ponto de nos dar um problema, ser diferença ao pensamento, ser um enfrentamento a ele. Claro, ainda uma potência contraditoriamente passiva, mas que já o aproxima de uma intensividade, tirando-o do limite da razão estanque e letárgica, arrastando consigo o pensamento. Portanto, encontramos nos afetos os primeiros indícios de que é no corpo que se realiza uma ética, um nível de potência e, deste modo uma forma de conhecimento irredutível às ideias representativas que temos. É pelo corpo que se inicia no aprendizado do mundo, ou melhor, que o mundo começa a nos educar. A força de transportar o problemático ao pensamento, é esta uma potência do corpo, é a primeira questão do conhecimento. Aí, já se está deixando o nível mais baixo de conhecimento. Ora, é aí que começa a educação.

Se tratamos dos corpos a partir de suas relações e encontros, também envolvemos aí, a alma como aquilo que deve apreender tão velozmente possível aquilo que se passa nestes encontros ou, ainda, compreender o mais rapidamente o corpo em que nos transformamos em um encontro. Tanto existe um pensamento ligado ao corpo, quanto um pensamento do próprio corpo, uma lógica específica do nível dos corpos que se dá a pensar, se dá a ser conhecida para o pensamento.

Inicialmente os afetos só podem indicar uma condição passiva e triste dos encontros; por outro lado e imediatamente, são os afetos que nos conduzem a um conhecimento consistente e amplo das potências dos corpos. Os afetos que passam num encontro de corpos são ditos serem alegres os tristes, conforme sejam linhas resultantes de uma composição ou decomposição dos corpos. Contudo, as alegrias podem ser ditas ativas ou passivas. Com efeito, da existência de prazer, de riso ou das formas mais caricatas de alegria não se pode concluir que a relação, os afetos e a realidade dos corpos envolvidos sejam alegrias ativas, pois, a rigor, a alegria de um encontro pode ser passiva, se ela, além de sentimentos, não nos dá mais nada a conhecer sobre nosso corpo, sobre o mundo e sobre as relações, se ela não nos faz agir mais, ampliando nossa capacidade expressiva e a realidade pela qual somos capazes de nos sensibilizar. A alegria é necessariamente aumento da potência de agir. “Podemos dizer que a alegria aumenta nossa potência de agir, e a tristeza a diminui” (DELEUZE, 2002, p. 106, grifo do autor). Mas a alegria passiva é aquela que, apesar do sentimento positivo que faz fluir, recoloca ou reafirma o padecimento dos corpos, a manutenção dos estados de coisas, a continuação num campo de sensibilidade identificável e reconhecido socialmente. Enquanto a alegria ativa produz aumento de potência, a alegria passiva faz crescer justamente a passividade, a inercia e, ainda pior, reposiciona os corpos nas tramas de poder, uma vez que oferece reconhecimento e recognição.

O encontro de composição, por seu turno, faz com que os corpos envolvidos devenham um terceiro corpo que não é mais nem um, nem outro e muito menos a intersecção dos dois, já que a intersecção supõe igualdades. É um novo corpo, uma nova potência e a ampliação da capacidade de agir. A alegria quando é ativa traça a diferença, a potência de que dois corpos partilham. De forma alguma ela é igualdade. É a diferença que se compartilha e se faz comum. Se, num primeiro nível de conhecimento, os afetos só traziam padecimentos aos corpos, deixando-os ao relento de uma condição triste, no segundo nível de conhecimento, que se inicia com encontros de composição, as alegrias ativas permitem ultrapassarem-se os afetos e ativar-se a potência de conhecer e pensar. Aí é que o afeto pode ser dito expressivo, por envolver e desenvolver as singularidades dos corpos.

Em outras palavras, poderíamos dizer que, ao ser produzida num encontro entre corpos que convém uns aos outros, a alegria ativa traça uma fibra e uma zona de vizinhança entre eles. A fibra é “uma linha contínua de bordas, de acordo com a qual uma multiplicidade muda” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 33), ou seja, ela é região preenchida por um material desterritorializado, pura trepidação e esfarelamento de formas, transformadas em filamentos de diferença. Já enquanto se a considera uma zona de vizinhança, a alegria ativa é região de “co-presença de uma partícula” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 64) Desta forma, conforme este trecho da obra de Deleuze e Guattari, a zona de vizinhança demarca topologicamente uma região em que se torna indiscernível a saída de um corpo de sua modulação e a sua entrada em outro corpo ou outra modulação (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 65). O traçado dessa região deviriente é o início da elevação de nossa força de conhecer: “a primeira ideia adequada que nós temos” (DELEUZE, 2010, p. 259).

Neste momento o pensamento é arrastado, obrigado a pensar, torna-se força de conhecer. A partir da concretude das alegrias ativas é que se faz com que partes se componham e produzam um corpo, uma existência, uma vida. Há aí um processo ético. Vemos bem que uma existência não é a existência de um indivíduo, mas sempre uma composição coletiva, sempre uma complexidade de poderes afetivos.

Então, quando do encontro com mais corpos que componham, o que acontece é a passagem à existência de outro novo corpo, que se constitui sob uma relação singular. Há aí uma mútua potencialização; os corpos são afetados de alegria, passam a ser capazes de afetar um ao outro com afetos alegres e, por isso, passam a aumentar sua força de existir e seu poder de agir. Ora, como diz Spinoza (2009, p. 168) mesmo, a alegria é tanto efeito de um aumento de potência como também funciona como provocação para um aumento da força de existir. Deleuze diz muito perspicazmente, que a alegria nos torna inteligentes e que não há nada de inteligente na tristeza, uma vez que ela apenas faz diminuir nossa capacidade de agir (DELEUZE, 2009, p. 18). Se retomamos o princípio spinozano de que existir é agir, mas que junto do agir há sempre uma igual força de conhecer que se expressa, então, efetivamente, só a alegria nos coloca em condições de aprender e pensar.

Portanto, quando forjamos o termo educação dos afetos para designar nossas práticas com experimentações corporais, estamos tentando destacar a capacidade que elas têm mostrado de produzir composições entre os corpos tais que os levem impiedosamente a produzir alegrias ativas, aumentos de sua capacidade de agir e pensar. Quer dizer, os encontros com os odores, com os materiais e exercícios que oferecemos são meios de afetar e ser afetado, de levar os corpos a tensionarem seus campos afetivos para lá onde não conhecem, para as zonas de não saber, para fora das expressões e movimentos representáveis, identificáveis e reconhecíveis. A alegria que buscamos fazer passar pelas experimentações são estas alegrias rigorosas e precisas, as quais advém de encontros de corpos estranhos, não convencionais e que, por isso mesmo, levam os corpos a pensarem não mais sob os desígnios sensatos e pacatos da razão, nem através de uma sensibilidade capturada por sentimentos bem-vindos aos jogos estabelecidos de poder. São alegrias pouco confortáveis, que só podem se realizar na ausência da vontade de reconhecimento, sentimento típico dos homens de poder, do homem normal, médio, capitalizado, pretenso vencedor e bem-sucedido. Em outros termos, nossas experimentações procuram oferecer experiências corporais, que obriguem os corpos a expressarem-se fora dos termos da representação e é enquanto tal que se fazem práticas educativas. Nelas se incluem os afetos, mas por uma extrapolação dos afetos instituídos, por dessubjetivação do homem. É pelos afetos produzidos na imanência dos encontros das experimentações que se dá tal trabalho educativo: são os afetos estapafúrdios que educam, eles é que metabolizam um tipo sofisticado de alegria.

Corpo(i)ética: aprender uma poética dos corpos

No desenvolvimento deste trabalho com experimentações corporais, com base nas percepções que colhemos e nos depoimentos de nossos participantes, passamos a nomeá-lo práticas Corpo(i)éticas.

Inicialmente, desejávamos apenas realizar oficinas de experimentações, sem grandes pretensões. De modo bastante pueril - mas não infantil -, movidos pela crueldade de um devir-criança, simplesmente nos perguntávamos: “o que se passaria, o que aconteceria aos corpos se...?” Se os enrolássemos em filme plástico umedecido com água tingida de vermelho ao som da peça “Visage” de Luciano Bério; se fizéssemos tocarem seus órgãos internos com auto-massagens após intensas respirações; se colocássemos balões e bolas de gude para serem materiais com que se tenta criar uma relação intensa junto com aromas de ervas usadas em religiões africanas; se usássemos exercícios de quadril da Dança do Ventre ou rolamentos do Aikido para trabalharmos as relações com o quadril e com a gravidade; o que aconteceria, o que se passaria? E se pudéssemos tematizar nossas experimentações sobre elementos de conceitos como máquina de guerra e devir-mulher? Era apenas isso que nos movia a bolar oficinas, o simples exercício de criatividade.

Pois bem, conforme viemos desenvolvendo este trabalho, passamos a ser incomodados por muitas perguntas. Para que serve isso tudo afinal? Tínhamos a clara assunção de que nosso trabalho é, antes de tudo, inútil. Mas, ele poderia ser inútil como uma pintura, ou uma peça de dança? Ele poderia ser dito desnecessário, despretensioso e, contudo, não ser frívolo? Por um lado, não aspirávamos que as experimentações fossem terapêuticas, embora soubéssemos que elas nunca deixariam de sê-lo. Compreendíamos que o aspecto terapêutico era um efeito inevitável e, por isso mesmo, não o tínhamos como meta: sempre confiamos que o efeito terapêutico de todo modo acontecia e seria bem-vindo.

Então, embora sendo artistas do corpo, nunca deixamos de pensar e perceber um pouco como psicólogos. Não tínhamos como objetivo, tal como qualquer bailarino ou ator, a construção estrita de uma obra de arte. Mesmo assim, sempre nos agradou mais a ideia de que as experimentações fossem prioritariamente estético-expressivas do que terapêuticas; tínhamos e ainda temos o desejo de que as experimentações sejam obras de arte, de que as performances, caminhadas e processos criados por nossos participantes sejam peças de arte inclusive apresentáveis a um público. Sentíamos que éramos movidos por um ímpeto artístico em primeiro lugar e, no entanto, não nos limitávamos a ele. Assim, ouvindo os depoimentos dos participantes no final das oficinas e observando as transformações perceptíveis neles ocorridas, notamos que nossos experimentos tecem nos corpos uma nova pele sensível, pela qual circulam e passam fluxos de imagens, sensações, narrativas, acontecimentos, cenas, as quais são, antes de mais nada, poéticos. As experimentações engendram, ainda que temporariamente, corpos portadores de um aspecto delirante e alucinatório, faz-se neles uma poiese esquizoide, um esvaziamento ou travamento da percepção consciente e sensata, correlata à produção de poéticas singulares e insuspeitas.

Alguns dos participantes dizem não conseguir descrever imediatamente o que sentiram e, no entanto, sabem que algo de muito intenso se passou. Outras vezes, dizem que seus corpos ganhavam vida própria, movendo-se ou dançando sem o comando da mente. Quer dizer, a autonomia afetiva e gestual do próprio corpo assume a frente, destituindo o frágil comando da razão consciente e legitimando a marítima verdade dos afetos, das sensações. Os depoimentos mais ricos, por isso, nos parecem ser aqueles que justamente relatam o aparecimento de sensações corporais poéticas.

Talvez, o relato mais belo e poético que tenhamos já ouvido de uma de nossas participantes tenha sido este: “Durante os exercícios eu comecei a sentir um vento percorrer todo o meu corpo e até agora estou sentindo este vento passando.” Experimentar um tal afeto inumano no corpo fez esta moça emocionar-se e chorar, seu corpo transbordava um excesso não conhecido de afeto. Nada a ver com histórias pessoais, trata-se de potências e realidades produzidas ali, na imanência e na abertura promovida pela experimentação. Realizamos esta experimentação durante a noite fresca, num estacionamento aberto e asfaltado, em que havia algumas árvores e a lua estava cheia. Colocamos, como questão, a provocação possível que o contato do corpo com o asfalto mobilizava, estando sob aquela lua, num grupo grande. Como o asfalto, sua textura, tensiona e mexe com seu corpo, como entra por sua pele e o provoca? Houve um participante que disse, ainda, ter sentido como se copulasse com o asfalto. Aí, não podemos deixar de lembrar de Guattari e Deleuze falando dos “n sexos” possíveis à multiplicidade da sexualidade. Deste modo, lembramos que, para Deleuze e Guattari, o trabalho de toda arte é criar seres de sensação. O vento-passando-no-corpo-da-moça-na-noitede-lua-cheia-sobre-o-asfalto é um novo ser de sensação, é um pedaço de poesia que ganha vida e é a aprendizagem, para a moça, acerca de uma potência do seu corpo, é a produção de uma nova realidade e sensibilidade.

Nas palavras dos autores, então, a arte é um dos modos de pensamento e o que a caracteriza é seu trabalho de criação e conservação de “blocos de sensações, isto é, um composto de perceptos e afetos” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 213). As obras de arte são blocos de sensação. Os perceptos e afetos são, porém, independentes de um sujeito ou consciência percipiente e sensiente; são “seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido”. Quer dizer, a sensação certamente é sentida, ou melhor, ela faz sentido; contudo, não depende de ser sentida por um sujeito para que valha como vida, como naco de existência legítima. Por isso é que passamos a chamar estas nossas práticas de Corpo(i)ética: corpo, cor, poiese, ética e poética se conjuram e se conjugam em nossas experimentações.

Com efeito, alcançar uma sensação, torná-la viva num material, ou melhor, tornar o material vibrante com a sensação é tarefa bastante sofisticada e complexa. Pintar um céu de azul não é apenas um problema de preenchimento ou verossimilhança, porque o azul pode querer sangrar ou mesmo mostrar garras. Logo, o que a arte faz é tirar os materiais da dominação histórica e social, desconstruindo a relação utilitária e formalista que se tem com a matéria. O material é sempre molecular para a arte e assim também o são para nossas práticas corporais. São dois os tempos da criação artística, dois tempos simultâneos: a sensação se realiza no material e o material entra na sensação (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 248 e 249). Nem a sensação existe fora desta realização, nem o material vibra ou se fende se não puder entrar na sensação. Em nossas oficinas, por exemplo, é comum que alertemos os participantes a não tomarem as formas dos materiais como indícios de seu uso como ferramentas. Quando utilizamos ovos como material da intempérie, por exemplo, exigimos que se tenha respeito por eles. Um ovo é um ovo e, por isso mesmo, pode ser inúmeras outras coisas, desde que sejam vivas, ganhem uma existência deviriente no encontro com os corpos: transformá-lo num objeto de massagem só porque é redondo não é respeitá-lo; pelo contrário, é tragá-lo para dentro dos hábitos culturais, das sensações ordinárias, quer dizer, dos afetos muito conformes à ordem dominante, é corromper a força artística e limitá-la à força terapêutica, colocando em primeiro plano o lidar com um adoecimento ou fraqueza instalada. Mesmo se o terapêutico é entendido enquanto exercício de promoção e insuflação das forças da vida, sem se limitar à cura de uma patologia, consideramos que a criação artística, consegue ser mais precisa inclusive neste trabalho, na medida em que tem como tarefa primeira e essencial a invenção de realidades, de sensibilidades e de relações expressivas com os materiais.

Desta maneira, uma bexiga, com suas qualidades molares - ser redonda, elástica, leve - não passa de um brinquedo ou um enfeite, mas quando abraçadas com o peso do corpo, no chão, em posição quadrúpede, sob o efeito também de música e olhos vendados, pode se transformar em casulo, em útero, pode transformar o conjunto corpo e bexiga numa criatura fêmea, pendurada num galho, gestando filhotes desconhecidos, tal como sentimos ao realizamos nós mesmos uma experimentação preparatória para uma de nossas oficinas. Assim, os aspectos molares da bexiga são lançados numa relação molecular ao ser realizada uma conexão com o corpo. Respeita-se o fato de ser uma bexiga, justamente porque se toma suas formas como forças, para construir uma relação poética. Produz-se uma poética dos corpos. Problematiza-se de modo direto a potência inventiva dos corpos, convoca-se o ser devir-criança e sua força de criar.

Desta maneira, quando forjamos a expressão Corpo(i)ética para denominar estas nossas práticas, fazendo uma única palavra ser a fusão de sentidos de outras cinco, é para destacarmos que se trata de um trabalho no qual, a partir dos afetos mobilizados imediatamente nas matérias corporais - incluindo-se corpos inumanos -, se possa multiplicar as potências, num exercício de produção de poéticas. A ética aí aparece duplamente: por um lado, no trabalho de mobilização e multiplicação de potências a partir da capacidade de afetar e ser afetado dos corpos, por outro, num trabalho mais sutil de produção de conhecimento, aprendizagem e educação. Acreditamos que as oficinas de experimentação oferecem encontros nos quais se aprende a respeito de corpos insuspeitos tecidos na imanência dos exercícios realizados, dos movimentos e materiais experimentados: aprende-se sobre as belezas e poéticas possíveis aos corpos, poéticas cujas forças sempre se mostram surpreendentes tanto para os participantes, nos quais esta aprendizagem se processa, quanto para nós, que pretendemos nos fazer educadores e transformadores das sensibilidades.

A produção de potências a partir dos encontros é em si uma alegria e, portanto, já um processo ético. Contudo, mais amplamente, o trabalho educativo de proporcionar experiências de aprendizagem e tessitura de poéticas é que constitui uma alegria propriamente ética, porque implica em se criar problemas ao pensamento e, ao invés de resolvê-los, torná-los estéticos e expressantes de gestualidades singulares, de performances e narrativas corporais inventivas. Ora, não podemos esquecer que a problematização ética feita por Spinoza passa inevitavelmente pela produção da liberdade ancorada numa crítica dos modos de conhecimento e dos tipos de alegria produzidas nos encontros. A respeito disso, elucida ainda Deleuze (2002, p. 64), que as maneiras de conhecer implicam imediatamente as maneiras de viver. Por esta razão é que passamos a dar muita importância a que, na intempérie os corpos procurassem performatizar seus processos afetivos, dando lugar e realidade aos problemas que surgem no encontro com materiais como pedras, algodão, água colorida, taças, folhas secas etc. Ao mesmo tempo, compreendemos que no encontro com os materiais, se desorganizam a sensibilidade instituída nos corpos; os problemas aí produzidos dão realidade e expressão a uma profusão de novos problemas, deslocando o status quo afetivo e tecendo performatividades corporais singulares.

Com relação aos efeitos relatados pelos participantes em seus corpos, parece importante destacar que eles muitas vezes nos dão depoimentos dias ou meses depois das oficinas. Dizem que enquanto faziam as experimentações não sentiam nada de especial e, no entanto, se percebiam muito afetados por uma inexplicável e transformadora alegria nos dias posteriores: passavam a ouvir mais música e cantarolar, por exemplo. Além disso, há efeitos também para algumas pessoas que não participam das oficinas: quando realizamos uma experimentação durante a madrugada, numa praça pública da cidade de Uberaba, houve pessoas que, reunidos com amigos para beber na praça, ao verem a movimentação dos participantes de nossa experimentação disseram “Eu é que bebi, mas estou vendo uma menina que não bebeu nada abraçada em uma árvore.” Na ocasião, planejamos a oficina numa praça e de madrugada, justamente para que pudéssemos nos aproveitar dos afetos inumanos e das hecceidades da noite - o cheiro, a lua madrigal, a brisa depois da meianoite - para compor materialmente a oficina e, ainda, questionarmos o uso do espaço público e a pobreza de possibilidades culturais da cidade, na qual se dizia haver o costume de fazer diversão ser sinônimo imediato e naturalizado de encontrar-se para beber. Nesta oficina, no momento da iminência, pusemos todos os participantes a caminharem juntos pela praça, com as cabeças enfiadas até os ombros numa grande lona azul, sobre a qual íamos atirando flores. A cena performática de se ter um corpo só, com várias cabeças ligadas por uma superfície azul era belíssima, inclusive porque cada um dos participantes ia caminhando e mudando a expressão facial segundo o que se passava em seus corpos com aquele experimento: alguns choravam, outros viravam os olhos e mostravam a língua, outros apenas giravam a cabeça com os olhos fechados.

Em cada experimentação, evidentemente, a poesia produzida é bastante específica, mesmo quando repetimos os processos. Ademais, nem sempre os participantes conseguem sintetizar o que experimentaram na forma de belas palavras. A força, intensidade e elaboração da poesia varia de acordo também com a vida que cada corpo porta e sustenta. Alguns participantes não chegarão à realidade de sentirem um vento no corpo, mas só o fato de vencerem o medo de respirar ou virar uma cambalhota parece ser um trabalho de metamorfose poética. Afinal, se dar uma cambalhota fosse uma frivolidade, crianças não o fariam com tanta alegria e nem haveria fantasias tão ameaçadoras poluindo os corpos adultos. Tão logo, importante é ressaltarmos que há sempre a realização de um efeito artístico nos corpos: expressam-se inventivamente, secretam belezas imprevistas e singulares, descobrem uma capacidade de criar artisticamente, sem caírem em gestos caricatos e representativos. Notamos que nestas experimentações os corpos são tragados ou impelidos a expressar-se, considerando que a expressão, no sentido ético, é necessariamente produção de singularidades e novas realidades, novas sensibilidades. Afinal, a expressão, duplamente, implica e complica, explica e multiplica, isto é, faz com que se aumente o que pode um corpo, aumenta sua capacidade de agir, amplia sua sensibilidade e envolve suas singularidades. Em outros termos, a possibilidade de expressão amplia a quantidade de realidade a que os corpos são sensíveis.

É com este intuito, portanto, que hoje temos produzido oficinas, pensando-as como intervenção simultaneamente artística, educacional e ética. Com nossas experimentações, trabalhamos no sentido também de sofisticar o sentido de alegria, levando este afeto ao seu termo produtivo, inventivo, o qual, para nós, significa tensioná-lo a ultrapassar a simples noção de felicidade e euforia psicológica, tornando-a força corporal de agir mais, inventar e expressar singularidades.

Enfim, é preciso dizer que não consideramos nosso trabalho sistematizado e tampouco encerrado nos conceitos e descobertas até aqui construídos. Atualmente, um de nossos problemas tem sido desafiar mais esta prática, fazendo-a tentar funcionar dentro de escolas públicas, problematizando sua potência de fazer secretar poéticas num agenciamento institucional endurecido e capilarizado pelo funcionamento estatal e disciplinar.

Referências

ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [ Links ]

DELEUZE, G. Cursos sobre Spinoza. Forataleza: Eduece, 2009. [ Links ]

______. Diferença e repetição, Rio de Janeiro: Graal, 2006. [ Links ]

______. Espinosa - Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. [ Links ]

______. Spinoza et le problème de l´expression. Paris: Minuit, 2010. [ Links ]

______;GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.3, São Paulo: Editora 34, 1996. [ Links ]

DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.4, São Paulo: Editora 34, 1997. [ Links ]

______. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. [ Links ]

SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. [ Links ]

2Trabalho realizado e desenvolvido juntamente com as parceiras e profissionais Ângela Vieira, Juliana Bom-Tempo (Psicologia) e Lisiane Yonezawa (Terapia Ocupacional).

3Cabe destacar que nosso trabalho é em muito composto por técnicas, exercícios, conceitos e princípios aprendidos junto à Taanteatro Companhia de Performance, Dança e Teatro, dirigida por Maura Baiocchi e Wolfgang Panek.

1Trabalho realizado e desenvolvido juntamente com as parceiras e profissionais Ângela Vieira, Juliana Bom-Tempo (Psicologia) e Lisiane Yonezawa (Terapia Ocupacional).

Recebido: 05 de Dezembro de 2017; Aceito: 22 de Fevereiro de 2018

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