SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número63Oficina de criação do e no pensamento: o acontecimento como abertura da filosofia às artesOs paradoxos da representação na era da informação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.31 no.63 Uberlândia set./dez 2017  Epub 09-Mar-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v31n63a2017-17 

Dossiê Artes e Oficinas: incursões na filosofia de Deleuze-Guattari

Aprender, pesquisar e filmar: dimensões de atuação do documentarista-cartógrafo em oficinas de cinema

Aprender, investigar y filmar: dimensiones de actuación del documentalista-cartografo en talleres de cine

Learn, investigate and to film: performance dimension of the documentarist-cartographer in workshop to make movies

Cristiano Barbosa* 

*Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: cristiano@moinho.com.br


Resumo

O artigo discorre sobre um processo de filmagem-aprendizagem a partir de uma concepção de oficina de cinema documentário voltada para o contexto escolar, em que o oficineiro opera o acoplamento documentarista-cartógrafo. A cartografia enquanto um fazer e uma prática relacional se dá transformando o real, ao mesmo tempo em que o que é acessado é um real em devir, sempre em fuga. A própria cartografia se constitui deste modo, não representando ou reproduzindo um real supostamente pré-existente, mas criando, construindo e atualizando realidades com o fazer cartográfico. O documentarista-cartógrafo ainda pode ser um emaranhado de conexão de trajetórias em jogo e em negociação, uma posição flutuante do personagem documentarista-cartógrafo atravessado por três dimensões de atuação: aprendizagem, pesquisa e cinema; todas as três co-implicadas nesse fazer documental com a escola.

Palavras-chave: Oficina de cinema; Cartografia; Documentário; Lugar

Resumen

El articulo habla sobre un proceso de filmaje-aprendizaje a partir de una concepción de taller sobre cinema documental en torno al contexto escolar, en el cual el tallerista opera el acoplamiento documentalista-cartógrafo. La cartografía en cuanto hacer y práctica relacional se da transformando lo real, al mismo tiempo en que lo que es accedido es un real en devenir, siempre en fuga. La propia cartografía se constituye de este modo, no representando o reproduciendo un real supuestamente pre-existente, sino creando, construyendo y actualizando realidades con el hacer cartográfico. El documentalista-cartógrafo aún puede ser un entrelace (enredado) de conexión de trayectorias en juego y en negociación, una posición fluctuante del personaje documentalista-cartógrafo atravesado por tres dimensiones de actuación: aprendizaje, investigación y cinema; todas las tres co-implicadas en el hacer documental con la escuela.

Palabras-clave: Taller de cine; Cartografía; Documentales; Lugar

Abstract

The article discusses a process of filming-learning from a documentary cinema workshop concept focused on the school context, in which the clerk operates the documentary-cartographic coupling. Cartography as a doing and a relational practice happens by transforming the real, while at the same time what is accessed is a real one in becoming, always on the run. Cartography itself is thus constituted, not representing or reproducing a supposedly pre-existing real, but creating, constructing, and updating realities with make cartographic. The documentary-cartographer can still be a tangle of connecting trajectories in play and negotiation, a floating position of the documentary-cartographer character traversed by three dimensions of performance: learning, research and cinema; all three co-implicated in this documentary doing with the school.

Keywords: Cinema making workshop; Cartography; Documentary; Place

A realidade é uma coisa híbrida, multifacetada pela incidência de olhares diversos, espelho sem fundo de um homem, uma cultura, um país. Se a pensarmos como uma lâmina reflexiva, que nos reflete e nos faz pensar, se a compararmos à superfície de um lago, poderemos nos relacionar com ela de pelo menos três maneiras:

- Poderemos ficar sentados no barranco contemplando sua superficie (e acho que a pele das coisas é um universo imenso que revela muito do que no fundo se esconde). Existe aí a possibilidade de um distanciamento, uma relação filtrada por um olhar distante, um olhar passante, algo que incide e elege, no momento mesmo do encontro entre a imagem que é dada e os olhos que a percebem. Uma atitude, uma opção de posicionamento, como num campo de batalha, como a posição dos rifles em uma emboscada num faroeste americano, como as cenas iniciais de F for Fake, de Orson Welles - a câmera distante acompanha uma bela mulher que caminha pela rua sendo devorada pelos olhares desavergonhados dos homens pelos quais passa. - Poderemos, ainda sentados no barranco ou em pé na margem do lago, lançar uma pedra na água para vê-la reverberar, gerar um movimento tectônico em sua superfície, embaralhar seus elementos, desorganizar o aparentemente organizado. Essa pedra como um conceito, um dispositivo, uma proposição. Os trabalhos oriundos desse método são fundamentados no princípio de ação e reação. Uma proposição qualquer aciona um movimento que produz uma reação. São trabalhos que jogam com a noção do esvaziamento da autoria ou, pelo menos, nutrem o desejo do compartilhamento desta. Um jogo não se joga sozinho, jogos são também fundamentados em uma ação que espera uma reação.

- E, finalmente, poderemos nos lançar a nós mesmos nesse lago. Afundarmo-nos inteiros nessas misteriosas águas e, de dentro, abrir os olhos e ver o que acontece. Essa atitude imersiva reflete um desejo de entrega e investigação, uma propensão ao embate, à mescla, a vivenciar um pouco mais de perto o que se esconde dentro do espelho, no fundo das águas, encarar o peixe nos olhos, deixar-se levar pela correnteza ou hipnotizar-se com a calmaria do lago (GUIMARÃES, 2007, p. 70).

A epígrafe é do cineasta mineiro Cao Guimarães. Essa escrita nos apresenta uma boa síntese do modo como os documentaristas buscam se relacionar com a realidade e fazer desses encontros matéria-prima para a criação de seus filmes. Os três movimentos de criação documental propostos por Cao remetem-nos a uma relação com o real em que o lago seria uma realidade em construção. Tais movimentos são muito condizentes com os processos de formação, transformação e expansão das fronteiras do cinema documentário ao longo da sua história.

Uma relação mais contemplativa com a realidade, em que há um distanciamento entre o diretor e aquilo que ele deseja filmar, está mais vinculada ao documentário clássico, pois parte da concepção de que a realidade preexiste aos encontros. O lago está lá, vamos até ele e nos sentamos à sua margem para contemplá-lo. Portanto, é mais uma filmagem no e do real, um colocar-se à borda do lago mantendo uma relativa distância de suas águas. Em uma perspectiva do documentário moderno essa distância se reduz e as fronteiras que antes delimitavam filmadores e filmados se misturam ao lançarmos pedras no lago, interferindo nos fluxos dessas águas com vistas a acompanhar tais mudanças. Desse modo, busca-se filmar com o lago, atentando-se para as reverberações dessa intervenção. No documentário contemporâneo, por sua vez, ao mergulharmos no lago essa relação se intensifica. Essa submersão faz com que as fronteiras entre filmadores e filmados se expandam em decorrência da maior intensidade das negociações e contaminações ocorridas nesse lugar aquoso. Os documentários que emergem desses mergulhos nos convocam a nos lançarmos em suas águas, a ampliar os sentidos para as realidades que eles nos dão a ver. Os espaços que nesses documentários ganham expressão continuam vívidos.

Nessa perspectiva, nos propusemos a investigar a relação entre cinema e escola a partir da criação de um documentário em que mergulhamos no lago. Um mergulho para “vivenciar um pouco mais de perto o que se esconde dentro do espelho” (GUIMARÃES, 2007, p. 70), encarando os peixes e deixando-nos levar pela correnteza dos encontros acontecidos em oficinas de roteiro e criação de imagens com o público escolar. Um processo criativo que contou com a participação ativa de alunos, professores, funcionários e pais nas escolhas do que e como filmar, e nele vivemos uma experiência de aprendizagem cuja busca foi “desencadeada por algo que intensifica a sensibilidade e força todas as outras faculdades a irem além de sua inércia habitual ou da acumulação de um saber abstrato” (ORLANDI, 2011, p. 148). Inércia que foi abalada por fortes e mobilizadores encontros com a câmera, o cinema, a escola e todas as demais trajetórias que nos forçaram a pensar e a buscar caminhos para os problemas produzidos nessas oficinas, aqui pensadas como um lugar de negociação, cujos percursos criativos foram tecidos coletivamente, apostando-se sobremaneira num estar com.

Para realizar essa produção com a escola, nos inspiramos nos processos criativos de documentaristas contemporâneos que apostam nos encontros disparados no aqui-agora do ato de filmagem. Buscamos, como Eduardo Coutinho, nos contaminar com os outros e demais trajetórias em jogo, atentando-nos para as sensações que nos desestabililizaram, que nos forçaram a buscar soluções para os problemas que naquele contexto foram gerados. Um movimento criativo com e através do cinema que, à luz da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, consideramos ser cartográfico. Cartográfico, pois o documentarista encontrou-se imerso na realidade a qual ele intentava pesquisar/cartografar, procurando dar expressão a um mapa de relações espaço-temporais tecidos nesses encontros. Um mapa como algo inacabado, aberto e passível de fazer novas conexões a partir da sua capacidade de afetar, de produzir outros sentidos para o espaço que nele ganhou expressão, incitando-nos a “imaginar o espaço como sempre em processo, nunca como um sistema fechado, implica insistência constante, cada vez maior, dentro dos discursos políticos, sobre a genuína abertura do futuro” (MASSEY, 2008, p. 31).

Mas o que seria um processo cartográfico a partir de uma experiência em que nos lançamos num lago-escola com e através de oficinas de cinema?

Com base nas concepções filosóficas de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Suely Rolnik (1989) nos diz que o que o cartógrafo faz está ligado, desde o princípio, “às estratégias das formações do desejo no campo social”. A partir desta afirmação, começamos a analisar que o cartógrafo precisa se atentar a como os desejos criam estratégias, de variados modos, para que este fluxo se conecte e passe “desde os movimentos sociais, formalizados ou não, as mutações da sensibilidade coletiva, a violência, a delinquência... até os fantasmas inconscientes (...)” (ROLNIK, 1989, p. 66).

Nessa perspectiva, cartografar é acompanhar processos e, fazendo uma relação com as proposições da geógrafa Doreen Massey, acompanhar lugares sempre em construção, nunca fechados. O cartógrafo utiliza o que lhe servir de matéria expressiva e aquilo que o ajuda a operar nos planos dos sentidos e das sensações, lançando mão de variadas fontes para dar expressão às intensidades vividas no mergulhar com o real. Nas palavras de Rolnik (1989, p. 67), ao se reportar ao cartógrafo, “o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem”, pensando a própria linguagem enquanto “criação de mundos”, ou modos de expressar o seu estar com, que em nosso caso se fez com e através do cinema documentário.

De acordo com Deleuze e Guattari (2011), a cartografia enquanto um fazer e uma prática relacional se dá transformando o real, ao mesmo tempo em que o que é acessado é um real em devir, sempre em fuga. A própria cartografia se constitui deste modo, não representando ou reproduzindo um real supostamente pré-existente, mas criando, construindo e atualizando realidades com o fazer cartográfico.

Há uma forte relação entre os conceitos de cartografia e de rizoma propostos por Deleuze e Guattari. Ao discorrer sobre o rizoma, esses autores propõem:

fazer o mapa, não o decalque.(...). Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. (...). Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 30).

Diante desse conceito, podemos pensar que um movimento cartográfico é um ato criativo, sendo o mapa a expressão desse processo de produção com o real. Na criação com o real, o cartógrafo precisa deixar seu corpo vibrar com aquilo que o afeta e “fica inventando posições a partir das quais essas vibrações encontrem sons, canais de passagem, carona para a existencialização” (ROLNIK, 1989, p. 68).

Foi inspirado nessa ideia que buscamos experimentar a criação de um documentário em uma escola pública do Estado de São Paulo1. Um local onde gestamos um processo mais colaborativo e aberto, de modo a nos deixar conduzir pelo inesperado e buscar a efetivação de uma política construtivista de investigação, como nos remete Virgínia Kastrup:

Por sua vez, adotando uma política construtivista, a atenção do cartógrafo acessa elementos processuais provenientes do território - matérias fluídas, forças tendenciais, linhas em movimento - bem como fragmentos dispersos nos circuitos folheados da memória. Tudo isto entra na composição de cartografias, onde o conhecimento que se produz não resulta da representação de uma realidade preexistente. Mas também não se trata de uma posição relativista, pautada em interpretações subjetivas, realizadas do ponto de vista do pesquisador (KASTRUP, 2012, p. 49).

Assim, experimentamos vivenciar uma “política construtivista” através de um documentário, buscando operar o acoplamento documentarista-cartógrafo, um substantivo composto, não o cartógrafo adjetivando o documentarista, mas o encontro entre esses dois modos de estar no mundo. Tal acoplamento visou experimentar um fazer documentário na escola que mergulhou no lago para olhar nos olhos dos peixes e envolver-se com as demais trajetórias que co-habitaram aquele lugar-escola gestado nesse processo de negociação com o cinema. Nesse sentido, o movimento do documentarista-cartógrafo se processou na atualização das negociações de um estar com, em que um espaço de encontros foi esculpido e ganhou uma configuração através dos enquadramentos e ângulos realizados pela câmera, dos sons captados e pela duração dos planos e a articulação dos mesmos pela montagem.

Com base nesse princípio cartográfico de criação, apostamos na eventualidade e na força dos encontros para desencadear um fazer documentário em aberto com a escola. Um processo de produção que fez do local um lugar gestado nas relações entre as múltiplas trajetórias que se fizeram co-presentes, agenciadas pela trajetória do documentaristacartógrafo. Esse processo criativo fez com que aquele local-escola fosse tomado como um lugar-escola em que as negociações acerca de como e onde a câmera seria posicionada, quais enquadramentos e ângulos seriam escolhidos para recortar o espaço e qual seria a duração dos planos, aproximaram e agenciaram vínculos entre o documentarista-cartógrafo e as demais trajetórias humanas e não humanos que lá se fizeram copresentes.

Poderíamos compreender, como do modo mais corriqueiro, o lugar enquanto sinônimo de local, considerado apenas na sua dimensão extensiva e localizável do espaço, ou ainda como espaço de produção e afirmação de identidades, de acolhida e formação cidadã, que mesmo enquanto local está sempre em variação, mesmo que variações mínimas. Entretanto, Massey nos ajuda a ampliar essa concepção ao afirmar “o caráter elusivo do lugar”, incitando-nos a considerar o seu caráter efêmero, múltiplo e aberto, em permanente fazer-se. Nessa perspectiva, o local pensado como lugar intensifica as relações e produz variações de sentidos nas (des)conexões do aqui-agora dos encontros e não encontros. Nas palavras da autora:

Se o espaço é, sem dúvida, uma simultaneidade de estórias-até-então, lugares são, portanto, coleções dessas estórias, articulações dentro das mais amplas geometrias do poder do espaço. Seu caráter será um produto dessas interseções, dentro desse cenário mais amplo, e aquilo que delas é feito. Mas também dos não-encontros, das desconexões, das relações não estabelecidas, das exclusões. Tudo isso contribui para espacialidade do lugar (MASSEY, 2008, p. 190).

No sentido apontado por Massey para o lugar, este estaria vinculado às atualizações que propõe uma configuração espacial, um movimento entre realidade e real. A realidade como atualização de um real sempre em fuga; ou seja, pensamos o lugar como uma atualização das dimensões virtuais de um espaço sempre em movimento, em constante transformação, em constante produção de devires. Daí a ideia da geógrafa em afirmar o caráter elusivo do lugar, pensando-o enquanto evasivo, vago, de difícil compreensão e apreensão. Portanto, se o lugar não pré-existe aos encontros, sendo ele fruto de um aqui-agora, estamos convocados a pensá-lo enquanto construção, em que as múltiplas trajetórias humanas e não-humanas encontram-se em permanente reconfiguração. Isso nos coloca na busca por algo que se faz e se desfaz a todo momento. Numa perspectiva educacional estaríamos lidando com um processo intimamente ligado à aprendizagem, entendendo essa, não unicamente como uma acumulação de saberes e conhecimentos, mas enquanto procura construtiva que sempre habita um terreno movediço, não somente no sentido de um deslocamento extensivo, mas um movimento que se dá por intensidades.

A frase “dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe” (DELEUZE, 2013, p. 177), a que Orlandi (2011) se remete para desenvolver suas ideias acerca de um possível conceito de aprendizagem em Gilles Deleuze, é condizente com nosso movimento documentalcartográfico, pois aportamos na escola sem saber a priori o que iríamos filmar. O processo se deu em aberto, através de um movimento em que procuramos nos envolver com o aprendizado dos outros, fazendo-os se implicarem com nossos problemas e a criarem também os seus e, do mesmo modo, perseguindo questões que emergiam do inesperado que brotou naqueles encontros. Um processo que criou condições para que o aprendizado fluísse a partir das fissuras que os acontecimentos inusitados provocaram no campo do previsível.

Parafraseando Deleuze, diríamos que buscamos filmar não aquilo que sabíamos, mas o que nossas questões nos mobilizavam a encontrar, ou, em menção a César Leite (2011), experimentando “modos de afetação e produção de sentidos” no estar com, em que a própria pesquisa se tornou uma experiência de criação, em que procuramos nos distanciar da simples coleta e análise de dados.

Tenho procurado criar situações em que o percurso metodológico se faz no próprio processo de trabalho efetivo com os professores e com as crianças. E é pelas reflexões teóricas que procuro compor que se dão os movimentos que nas pesquisas chamo de “pesquisas abertas”. A partir disso, tenho chamado a própria pesquisa de experiência. A ideia é de que as pesquisas se preocupem com as experiências, ou seja, nos distanciamos da noção de que as investigações são compostas por seus “experimentos”, coleta de dados e análises. O que vivo nesse processo são experiências e modos de afetação e produção de sentidos, no e com o outro (LEITE, 2011, p. 70).

A experiência diferentemente do experimento, como nos propõe pensar Leite, inclui o pesquisador no processo, remetendo-nos a um tipo de empirismo sem um princípio que fundamentaria o processo de investigação, em que há um tipo de metodologia concebida independente dos encontros. Ao nos reportarmos a uma pesquisa enquanto experiência, nós só podemos estar dentro e em meio ao campo pesquisado, afirmando o processo investigativo na imanência das relações.

Consoante a esse conceito de experiência, o cineasta Cao Guimarães nos fala de uma mútua contaminação entre o filme e quem o faz, em suas palavras “poderíamos, da mesma forma, dizer: não é o cineasta que faz o filme, mas o filme que faz o cineasta. Ao fazer um filme, algo está nos fazendo e algo está se fazendo para além de nosso fazer. O filme se faz e com ele me faço” (GUIMARÃES, 2007, p. 69).

Gilles Deleuze em algumas obras coloca a questão da criação e do pensamento intimamente ligada a experimentação. Em seu primeiro livro Empirismo e Subjetividade: ensaios sobre a natureza humana segundo Hume2, o filósofo propõe aproximar o plano do sensível do processo de subjetivação e de experimentação, ao que o conecta com o mundo e faz com que a própria subjetividade se abra a um por vir. Assim, quando estamos vivenciando uma relação (um estar com), o que está dado como atualização, ao entrar em experimentação, se abre ao futuro, ao virtual, ao próprio devir, e, em última análise, à criação.

Na esteira da proposta de experimentação, o autor afirma em frases imperativas: “Experimentem, não interpretem nunca” (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 64); “Jamais interprete, experimente...” (DELEUZE, 2013, p. 114). Diante desses apelos, chegamos ao ponto de que o que se encontra em jogo é justamente os planos do sensível, outras relações de sensibilidades que só podem ser construídas no entre dos corpos, nas encruzilhadas das trajetórias que fazem conexões em certo plano de experimentação.

O que significa “aprender”? Este é o subtítulo do capítulo 3, A imagem do pensamento, do livro Diferença e Repetição de Gilles Deleuze (1988, p. 237). Neste mesmo capítulo Deleuze constrói, na relação com a história da filosofia, uma diferença importante entre cognição e pensamento. Diante das concepções de vários filósofos ao longo da história da filosofia, tais como Platão, Descartes, Kant, entre outros, o pensamento ficou ligado a uma naturalização da capacidade e da boa vontade humana, dependendo apenas de certa disponibilidade a pensar. Entretanto, Deleuze coloca essa visão em cheque afirmando que para que o pensamento aconteça, ele precisa necessariamente ser forçado, diferenciando-o do pensamento que se daria por boa vontade, que seria justamente uma imagem do pensamento já pensado, uma recognição, uma opinião. Assim, a partir do que desenvolve, o autor não se pensa por boa vontade, mas porque se é forçado a pensar. Essa “violência” no pensamento se dá justamente nos planos sensíveis, pelos encontros que nos colocariam na experiência do aprender, engendrando um processo de experimentação das sensibilidades e uma “educação dos sentidos”.

Aprender é tão-somente o intermediário entre não-saber e saber, a passagem viva de um ao outro. Pode-se dizer que aprender, afinal de contas, é uma tarefa infinita, mas esta não deixa de ser rejeitada para o lado das circunstâncias e da aquisição, posta para fora da essência supostamente simples do saber como inatismo, elemento a priori ou mesmo ideia reguladora (DELEUZE, 1988, p. 238).

Nesta experiência de aprendizagem, no estar com de um fazer cinematográfico, não poderíamos conceber um processo de pesquisa em que as diretrizes já estivessem colocadas enquanto um método rígido a ser aplicado e testado. Assim, buscamos combater uma perspectiva em que “o método é o meio de saber quem regula a colaboração de todas as faculdades; portanto, ele é manifestação de um senso comum ou a realização de uma Cogitatio natura, pressupondo uma boa vontade como uma ‘decisão premeditada’ do pensador” (DELEUZE, 1988, p. 238).

Não se trata aqui de nos voltarmos para uma construção premeditada, mas de operarmos a produção de um documentário na escola aberto ao que os encontros de múltiplas trajetórias e seus entrelaçamentos tiveram a potência de produzir. Um lugar de negociação, que, junto às experimentações forçadas por afetos e afectos, gestam espacializações. Dorren Massey nos apresenta uma citação de Jacques Derrida importante para pensarmos esse movimento de espacialização:

Espacialização é um conceito que também, mas não exclusivamente, tem o significado de uma força generativa. Como disseminação, como différance, ele traz consigo um motivo genético: não é apenas o intervalo, o espaço constituído entre duas coisas (que é o sentido habitual de espaçamento), mas também espacialização, a operação... Esse movimento é inseparável de temporalização e de différance. Espacialização é, aqui, ao mesmo tempo (o que normalmente chamaríamos), espacial e temporal (DERRIDA apudMASSEY, 2008, p. 84).

Diante desse movimento generativo da espacialização que, nesse fazer cinema com a escola, abre-a a novos devires ainda imprevistos, como poderíamos construir ferramentas para acompanhar esse processo, desvinculando o método dos fazeres a priores e pré-concebidos? Com o problema de encontrar os procedimentos que dariam conta dos movimentos que naquela escola se implicaram quando o cinema nela aportou, a cartografia foi tomada como um método de pesquisa com o intuito de “investigar um processo de produção” (KASTRUP, 2012, p. 32), em que não buscamos “estabelecer um caminho linear para atingir um fim”, ao contrário, procuramos criar um “território de observação” (KASTRUP, 2012, p. 50). Nas palavras da autora:

A cartografia é um método formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) que visa acompanhar um processo, e não representar um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre de investigar um processo de produção. De saída, a ideia de desenvolver o método cartográfico para utilização em pesquisa de campo no estudo da subjetividade se afasta do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas (KASTRUP, 2012, p. 32).

Com base nesse conceito de cartografia, nosso movimento foi experimentar um processo criativo de produção documental que nos permitisse rastrear e perseguir pistas que nos levassem a inventar outros modos de habitar aquele espaço escolar. Nosso desejo foi mobilizar os modos costumeiros de lidar com as relações de ensino e aprendizagem a partir da produção de um documentário, vivenciando percursos criativos com o cinema para “libertação do espaço de sua velha cadeia de significado e associá-lo a uma cadeia diferente, na qual pudesse ter, particularmente, maior potencial político” (MASSEY, 2008, p. 89). Esse potencial político defendido pela autora alinha-se à ampliação e à abertura aos vários sentidos possíveis de espaço que um documentário produzido e acompanhado à luz dessa ideia de cartografia pode disparar na Educação em geral e numa escola em particular. Seria, nesse sentido, uma política de abertura e não de restrição, agindo na produção de outros devires no modo como espaço e documentário são costumeiramente tratados no contexto escolar.

Retomando as reflexões em torno da proposta de cartografia enquanto método de pesquisa, para além de um fazer documental, consideramos que o processo de construção coletiva do documentário realizado na escola foi cartográfico. Um processo colaborativo em que mergulhamos no fundo das águas daquele lago e com seus peixes experimentamos a construção de um documentário que buscou agenciar outras percepções e formas de habitar aquele lugar-escola tecidos nesses encontros.

Nesse nosso movimento de pesquisa, a atuação de um documentaristacartógrafo foi pensada como aquele que opera um recorte espaço-temporal para nele construir um lugar de negociação, de modo a nos colocarmos em experimentação com o real. Desse modo, o documentarista-cartógrafo não se trata de uma pessoa específica, mas sim de um personagem que possui um tipo de atuação transversal e que transita entre os que se conectam às várias etapas que incluem um processo de produção fílmico. Assim, o documentarista-cartógrafo pode ser o pesquisador, ou mesmo o diretor, pode ser o cinegrafista, e, em alguns momentos, os alunos, pais, professores e funcionários que se envolveram na criação documental. O documentaristacartógrafo ainda pode ser um emaranhado de conexão dessas trajetórias em jogo e em negociação diante de uma produção documental com a escola.

Essa posição flutuante que o personagem documentarista-cartógrafo ocupa produz um tipo de operação atravessada por três dimensões de atuação: aprendizagem, pesquisa e cinema; todas as três co-implicadas nesse fazer documental com a escola.

Dimensão da aprendizagem na atuação do documentaristacartógrafo: filmar o que se procura

Filmar o que se procura, não o que se sabe é uma proposição que cunhamos, aproximando o ato de filmar do processo de aprender. Para realizar tal aproximação, nos valemos de duas condições: a primeira seria de alguém que mergulha no lago para olhar os peixes nos olhos, tendo que lidar com as incertezas dessa submersão, como é recorrente em alguns documentários contemporâneos; e, a segunda, das proposições acerca da experiência do aprendizado que Luiz Orlandi (2011) desenvolve com base nos três motivos pedagógicos que o filósofo François Zourabichvili extrai dos livros de Gilles Deleuze. São eles:

  1. A primeira passagem, retirada de uma entrevista dada por Deleuze em 1988, e intitulada Sobre a filosofia, é esta: “Dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe” (DELEUZE, 1992, p. 173).

  2. A segunda passagem, retirada do segundo capítulo da primeira parte de Proust e os signos, e já presente na primeira edição, a de 1964, é está: “Quem sabe como um estudante devém repentinamente ‘bom em latim’, que signos (amorosos ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviram de aprendizado?” (DELEUZE, 1987, p. 22).

  3. Finalmente, a terceira passagem, retirada do sétimo postulado (“A modalidade das soluções”) do decisivo cap. III (“A imagem do pensamento”) de Diferença e repetição, obra publicada em 1968, é assim montada: “Fazem-nos acreditar que a atividade de pensar, assim como o verdadeiro e o falso em relação a esta atividade, só começa com a procura de soluções, só concerne às soluções [...] Como se não continuássemos escravos enquanto não dispusermos dos próprios problemas, de uma participação nos problemas, de um direito aos problemas, de uma gestão dos problemas” (DELEUZE, 1988, p. 259; ORLANDI, 2011, p. 147).

O primeiro motivo ligado à dimensão da aprendizagem implicada na produção documental nos desafia a conceber um processo em aberto com relação a nos colocarmos num movimento de procura por algo que nos mobilize, mas que não sabemos ao certo onde pretendemos chegar. Um caminho vai se delineando nos encontros. Para isso é preciso haver aberturas ao que afecta e mobiliza os corpos em relação. Chega-se ao local de filmagem com um roteiro mínimo, uma espécie de plano de intenções e desejos, com o objetivo de vivenciar uma busca incerta, que efetive acontecimentos, que nos crie bons problemas e nos force a pensar. Um movimento de negociação com o real que visa dar expressão a essas outras percepções espaço-temporais através do cinema. O documentarista-cartógrafo se coloca em estado de alerta ao ser conduzido por tal procura que se desenvolverá no aqui-agora da filmagem.

Deleuze (2013, p. 173), ao pensar a função de dar aulas, nos afirma que a busca e não o que se sabe a priori é o motor das relações de aprendizagem, fazendo funcionar um laboratório de experimentação pedagógica: “É como um laboratório de pesquisa: dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe”. Assim, o documentarista-cartógrafo precisa criar o seu laboratório de pesquisa, vivenciar um processo de busca em aberto, que aposta no estar com, em que uma pedagogia da filmagem ocorre nos encontros, não antes deles, “o filme se faz e com ele me faço” (GUIMARÃES, 2007, p. 69).

O segundo motivo nos faz atinar para as múltiplas trajetórias em negociação, que, junto conosco, constroem experiências de aprendizado em aberto, em que os caminhos vão se delineando nos encontros dessas trajetórias que coabitam um lugar de experimentação com o real. Que signos serão mobilizados e agenciaram nesse processo participativo de aprendizagem? Na escola há signos demasiadamente estabilizados, que direcionam os modos como pensamos e agimos naquele local. Sala de aula, pátio, horta, quadra e cozinha são localidades com funcionalidades muito demarcadas, como também os objetos e os discursos neles dispostos. Nessa perspectiva de aprendizagem postada aqui, buscamos pensar situações com potencial de abalar esses signos fixados e territorializados no cotidiano escolar a partir de uma mobilização que também acontece nos encontros com outros signos.

O ato de filmagem de um documentário contemporâneo é mobilizado por signos que afectam os participantes do processo de modos muito variados, signos que se tornam sensíveis e sensibilizam os corpos em jogo. Esses signos, muitas vezes imperceptíveis num primeiro momento, operam sensibilizações nos encontros entre corpos e espaço, fazendo com que ambos entrem em movimentos, desconfigurando os signos fixados em processos que colocam os envolvidos em devires e buscas por se reconfigurarem através da decifração de tais signos. Nas palavras de Deleuze:

Ser sensível aos signos, considerar o mundo como coisa a ser decifrada é, sem dúvida, um dom. Mas esse dom correria o risco de permanecer oculto em nós mesmos se não tivéssemos os encontros necessários; e esses encontros ficariam sem efeito se não conseguíssemos vencer certas crenças (DELEUZE, 2010, p. 25).

O pensamento é um ato criativo e atua com o fora do ordinário, opera naquilo que escapa ao cotidiano e ao já pensado, se faz por outros signos que são criados a partir das violências dos signos já significados, fixados e direcionados, descolando os sentidos e os colocando em um movimento de busca por novas significações, de um modo bem diferente, conturbado e decisivo. “O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar” (DELEUZE, 2010, p. 91). Isso que “faz pensar” seria justamente os signos gerados pelos encontros, pelas trocas, pelas misturas construídas em um estar com. E é atento à construção de tais signos mobilizadores que o documentarista-cartógrafo está pronto a perceber o que “entorna o caldo do outro” (COUTINHO, 2006, p. 191). Seguindo a premissa deleuziana, a aprendizagem, neste sentido seria esse movimento de busca mobilizado por signos que violentam as crenças e os signos sedentários e fixados. Nesse movimento, a atuação do documentarista-cartógrafo estaria justamente em perceber quais são os signos que forçam o pensamento e que mobilizam os signos fixados que se apresentam nas negociações presentes no set de filmagem.

O terceiro e último motivo nos aponta para uma aprendizagem que se dá pela criação de problemas. Nesse sentido, precisamos estar atentos aos nossos próprios problemas para podermos entrar em uma experiência de aprendizagem, bem como nos deixarmos contaminar pelos problemas daqueles que conosco empreendem esse caminho à deriva, em que não sabemos ao certo o ponto de chegada. Problema no sentido daquilo que força o pensamento a buscar outros caminhos para além daqueles que estamos habituados a percorrer. Tais problemas emergem nessas (des) conexões construídas no estar com: com o outro, com o espaço, com as coisas e com as demais trajetórias que atravessam as relações. Esse movimento em aberto requer, num primeiro momento, que saibamos lidar com uma espécie de sondagem, em que os signos se tornam sensíveis, violentando nossos repertórios visuais e perceptivos, fazendo com que os problemas proliferem dos modos cotidianos já erigidos.

Nesse movimento, as trajetórias podem se evidenciar e tornaremse co-presentes, por exemplo, a partir dos questionamentos das pessoas que estão vivendo esta construção conosco, ou mesmo a partir de uma reorganização do espaço, ou pelo simples ato de ter um elemento novo naquele local, como a câmera. Questionamentos com força de provocar abalos nos nossos modos costumeiros de pensar, desafiando-nos a encontrar soluções criativas no estar com as pessoas, os espaços e as coisas. Tais problemas buscam romper a centralidade das decisões que partiriam de um diretor, no caso da produção fílmica, ou de um professor, no caso das relações escolares. Os papéis, nesse sentido, se dissipam e se transversalizam entre os envolvidos, diluindo as hierarquias, fazendo da aprendizagem e da própria produção documental processos em aberto que se colocam em movimentos de busca. Assim, os envolvidos se tornam sensíveis aos signos em relação e reivindicam a criação dos próprios problemas em um construtivismo que perpassa a dimensão da aprendizagem da atuação do documentarista-cartógrafo.

Ao pensarmos a criação de um documentário na escola, que problemas desejávamos enfrentar e quais territórios pretendíamos entrar em contato e, talvez, desestabilizar? Surgiriam outros sentidos e usos dos espaços escolares? A produção de um documentário poderia operar outros tipos de relações com as trajetórias presentes no contexto educacional? Uma oficina de produção de imagens pode desestabilizar o regime de signos num cotidiano escolar?

Pensamos que os três motivos apresentados nos ajudam a encontrar respostas para essa questões, pois alinham-se a uma ideia de filmagem-aprendizagem em que podemos pensar o trabalho de um documentarista-cartógrafo como aquele que empreende um modo de produção a procura por outras relações entre o cinema e a escola para além dos padrões habituais - roteiro rígido, entrevistas estruturadas, locações bem definidas etc. A proposta seria de se lançar num espaço de incertezas, aberto ao inusitado dos encontros, aos desvios e abandonos de rotas, apostando na “pluralidade de encontros como desencadeadores de disposições ou indisposições surpreendentes do ponto de vista do aprendizado” (ORLANDI, 2011, p. 148).

Não saber exatamente o que se quer filmar e se lançar num território movediço, em permanente reconfiguração nos coloca o desafio de abrir nossas percepções para encontros com um lugar desconhecido e considerar suas múltiplas trajetórias e signos, que configuram um espaço de experimentação. A aprendizagem e o filmar se fazem à procura de algo que se delineará nas negociações com o lugar de filmagem-aprendizagem, com as múltiplas trajetórias em jogo, aberto aos afectos, aos signos e àquilo que “entorna o caldo do outro” para criar os próprios problemas e, assim, construir um filme que cartografe e acompanhe tais processos em constante negociação.

Dimensão da pesquisa na atuação do documentarista-cartógrafo: a atenção cartográfica

A segunda dimensão na atuação do documentarista-cartógrafo se vincula à ideia de uma pesquisa-intervenção, pois se dá a partir de uma atenção colocada disponível a se sensibilizar ao que acontece nos encontros, na experiência desenrolada na procura de afetos e afectos com as múltiplas trajetórias intercambiantes e co-presentes numa oficina de criação fílmica. Uma procura que se faz à deriva, em que nossa “atenção seletiva cede lugar a uma atenção flutuante, que trabalha com fragmentos desconexos” (KASTRUP, 2012, p. 36), sendo que a atenção do documentarista-cartógrafo precisa flutuar e se desvencilhar de um foco preciso. Não se trata de um jogo às cegas, sem referências ou parâmetros de se colocar em uma pesquisa. O documentarista-cartógrafo porta algumas estratégias e parte de questões mobilizadoras que o guiarão, pensadas junto a concepções e prismas políticos, filosóficos, cinematográficos, que podem ser, no caso do fazer documental, a definição previa dos tipos de câmeras e lentes, o suporte de registro, as formas de captação do áudio e os componentes da imagem que irá operar, quais sejam: posicionamento da câmera, se ela permanecerá fixa ou se moverá (uma subjetiva na altura dos olhos com a câmera na mão, um travelling horizontal ou vertical etc.), que altura ficará, se o enquadramento será aberto ou fechado, se o tempo de duração do plano será curto ou longo, entre outras decisões técnicas que também são estéticas e políticas, pois “toda escolha estética é uma escolha política” (ALMEIDA, 1999, p. 36).

Escolhas essas que podem ser repensadas, redesenhadas, abandonadas, ganhar desvios, ramificar-se e tomar outras direções a partir de acontecimentos inusitados que desestabilizam as linhas que traçam um território de observação em um campo implicacional, em que os envolvidos, humanos e não-humanos, se co-implicam. Nas palavras de Kastrup: “O campo implicacional indica, então, esse sentido mais entre forças do que entre formas, no qual a dinâmica se faz não por projeção, decisão, propósito ou vontade de alguém, mas por contágio ou propagação (...)” (KASTRUP, 2012, p. 25).

Estamos diante de um modo de condução de uma pesquisa, em que o próprio pesquisar intervém nas múltiplas trajetórias que se atualizam num espaço de co-presença e mistura. Intervir, então, é fazer esse mergulho no plano implicacional em que as posições de quem conhece e do que é conhecido, de quem analisa e do que é analisado se dissolvem na dinâmica de propagação das forças instituintes características dos processos de institucionalização (KASTRUP, 2012, p. 26).

Nesse sentido o documentarista-cartógrafo cria pra si um campo implicacional, construindo com os processos já existentes uma pesquisa-intervenção em que os papéis se colocam abertos e disponíveis a intercâmbios, grafando os processos que sofreram variações e produziram subjetividades. Uma investigação em que o pesquisar já produz intervenções nos planos em jogo, fazendo os objetos, as relações, as percepções, os espaços e os corpos entrarem em variações contínuas, se diferenciando a todo tempo, numa multiplicidade de trajetórias que se presentificam.

Assim, a dimensão da pesquisa na atuação do documentaristacartógrafo se constrói a partir “do método cartográfico segundo o qual o trabalho da análise é a um só tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-subjetividade” (KASTRUP, 2012, p. 27). Essa é uma construção transversal que se encontra em jogo nas dimensões da prática da cartografia com a produção de um documentário na escola, em que os planos de experimentação se constroem de modo a tornar comunicantes as trajetórias em relação. Acompanhamos, nesse movimento, o traçado desse plano como a construção de um mapa aberto a novas conexões e que se expressa a partir de algumas premissas, considerando os aspectos estéticos e políticos do processo, entendendo que este mapa aberto não trata mais somente das representações de objetos, corpos e espaços, mas da própria criação e transformação das múltiplas trajetórias.

Quando já não nos contentamos com a mera representação do objeto, quando apostamos que todo conhecimento é uma transformação da realidade, o processo de pesquisar ganha uma complexidade que nos obriga a forçar os limites de nossos procedimentos metodológicos. O método, assim, reverte seu sentido, dando primado ao caminho que vai sendo traçado sem determinações ou prescrições de antemão dadas. Restam sempre pistas metodológicas e a direção ético-política que avalia os efeitos da experiência (do conhecer, do pesquisar, do clinicar, etc.) para daí extrair os desvios necessários ao processo de criação (KASTRUP, 2012, p. 31).

Nessa perspectiva, ao produzirmos um documentário com a escola, procuramos operar uma experimentação com o real, em que nos colocamos num movimento de busca por algo que não sabíamos ao certo, envolvendo-nos numa pesquisa que considerou as multiplicidades de desejos, os diferentes ritmos e temporalidades daqueles com quem nos relacionamos, deixando-nos afectar por eles e pelas múltiplas trajetórias em jogo, investigando como aquele lugar-escola, pensado como território de observação, poderia entrar em devires, se desterritorializar e se reterritorializar nesse processo de filmagem-aprendizagem.

Nesse intento de produção em aberto e da busca por construir um campo implicacional entre os envolvidos, o documentarista-cartógrafo traz a premissa de desenvolver quatro variedades atencionais, conforme propostas por Kastrup (2012). São elas: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento.

O rastreio se refere a uma sondagem, um tipo de prospecção, em que o documentarista-cartógrafo faz uma “varredura de campo” (KASTRUP, 2012, p. 40) no recorte espacial em que ele adota como território de observação. Não é uma varredura aleatória e sem propósitos. Ele tem objetivos preestabelecidos que o fazem eleger e perseguir algumas pistas, a localizar “signos de processualidade” (KASTRUP, 2012,

p. 40) e acompanhar as mutações de posições e de velocidades. No fazer documental na escola, no momento da filmagem, antes de escolhermos o posicionamento da câmera, fazíamos uma varredura no espaço, buscando escolher um local mais interessante para produzirmos os planos que havíamos concebido na oficina de roteiro. Em todas as locações escolhidas, o roteiro teve que ser adaptado, criando processos de negociação que faziam com que o local se transformasse em lugar de negociação entre as trajetórias em relação. O que balizou esse processo foram as imprevisibilidades das condições de luz, som, a disposição dos objetos que encontrávamos nestes cenários. Tínhamos, portanto, algumas pistas e signos pré-definidos, outros encontramos nessa sondagem espacial e os incorporamos, outros foram abandonados pela inviabilidade técnica ou pelas limitações da localização. Negociações com o espaço que exigiram que nossa atenção se abrisse, não só para a dimensão do visível, mas também do sonoro, do modo como algo ou alguma situação nos tocava e como ganhava algum contorno, apontando-nos um caminho.

Alguns planos foram filmados várias vezes e, assim, exigiam sempre outras varreduras, outros posicionamentos de câmera, forçando-nos a elaborar outras configurações para as trajetórias que queríamos evidenciar. Assim, o toque seria esse acontecimento que interrompe o rastreio, que desperta a nossa atenção e nos faz pousar, uma aterrissagem que “indica que a percepção, seja ela visual, auditiva ou outra, realiza uma parada e o campo se fecha, numa espécie de zoom. Um novo território se forma, o campo de observação se reconfigura” (KASTRUP, 2012, p. 43). O toque, nesse sentido, seria o que nos atraiu nesse processo, aquilo que, no calor dos encontros, nos violentou e forçou a nos desviar do previsto.

O pouso é um recorte espacial mais preciso, enquanto o rastreio é mais amplo. Kastrup explora a noção de janela atencional para pensar essas escalas de enquadramento que direcionam a nossa percepção; ou seja, o recorte territorial do nosso pouso. A autora, ao discorrer sobre esses procedimentos de enquadramento, nos propõe quatro escalas de observação: janela-micro, janela-página, janela-pátio e janela-paisagem. Essas janelas equivalem ao que no cinema poderíamos associar como sendo, respectivamente, plano detalhe, plano americano, plano médio e plano aberto. Em cada janela/plano, priorizam-se determinados elementos em detrimento de outros. Numa janela-micro o foco é mais evidente, há poucos elementos no quadro, já na janela-paisagem o foco pode ser mais disperso, pois o quadro nos traz mais elementos. Nesse sentido, o documentarista-cartógrafo definirá então aquele recorte espacial que mais lhe convier para destacar aquelas trajetórias que lhe tocaram e que lhe fizeram pousar, criando outros recortes e lugares com essas janelas/planos.

Cada janela cria um mundo e cada uma exclui momentaneamente as outras, embora outros mundos continuem copresentes. Cada visada através de uma janela dá lugar, em sua escala, aos diversos gestos atencionais, possibilitando também mudanças de nível (KASTRUP, 2012, p. 44).

Deste modo, o pouso se relaciona muito diretamente aos enquadramentos dos planos e aos modos como escolhemos filmar, fazendo uma relação com o fazer documental e o ato operado pela câmera, evidenciando mais uma vez a perspectiva estético-política implicados nos aparatos técnicos de produção.

Por fim, temos o reconhecimento atento em que se busca compreender o que acontece nos nossos encontros com as trajetórias configuradas nessas janelas atencionais, provocando um problema para o nosso sistema sensório-motor que efetua um reconhecimento automático, operando, com esse último tipo de atenção do documentarista-cartógrafo, a desestabilização do território de observação criado. A autora, ao discorrer sobre o conceito de reconhecimento atento do filósofo Henri Bergson, nos aponta que esta proposição se efetiva quando o nosso esquema de reconhecimento baseado no princípio de correspondência sofre um abalo, abrindo uma fissura para que nossa percepção não siga “um caminho associativo operando por adições sucessivas e lineares” (KASTRUP, 2012, p. 47). No reconhecimento atento a percepção percorre circuitos aleatórios, percursos que não se dão por associação, os caminhos não estão dados a priori, mas eles são criados no entre dessas fissuras.

Kastrup (2012) explora o conceito de reconhecimento atento para pensar como a estrutura sensório-motora da nossa percepção é abalada quando somos deslocados do nosso território costumeiro de observação. Ao desenvolver esse conceito não faz referência direta ao cinema, tampouco ao processo de criação de imagens, mas aponta como a percepção do cartógrafo é provocada quando algo inusitado, surpreendente, ocorre no seu território de pesquisa. No entanto, consideramos que esse raciocínio pode ser aplicado à nossa experiência de criação de um documentário, ao considerarmos a escola como um território de pesquisa. Um local educativo onde a trajetória do cinema pode provocar algum tipo de estranhamento, fazendo com que nossa percepção e dos demais agentes envolvidos não operassem somente por associação cumulativa de ideias, mas em forma de circuitos, não por recognição (decalque), mas por rizoma (mapa).

O que nos provoca esse estranhamento, essa perturbação no nosso sistema sensório-motor, e abre o nosso território de observação para outras percepções e conexões com o lugar criado nos encontros ocorridos na realização de um documentário na escola?

Diante da proposta da pesquisa como segunda dimensão na atuação do documentarista-cartógrafo, a partir das quatro variedades da atenção propostas por Kastrup (2012) - rastreio, toque, pouso e reconhecimento atento -, empreendemos um processo de filmagem-aprendizagem, em que vivenciamos uma experiência cartográfica de produção de relações, sensações e afectos e não somente de coleta de dados. “Nesse sentido, conhecer a realidade é acompanhar seu processo de constituição, o que não pode se realizar sem a imersão no plano da experiência” (KASTRUP, 2012, p. 31).

Uma produção incitada por problemas que foram criados com os participantes nas oficinas de roteiro e filmagens, como também a partir dos problemas trazidos por eles ou desencadeados nesses encontros. Problemas estes, que nos mobilizaram a procurar outros sentidos para o espaço configurado nesse fazer cinema, para além das abordagens extensivas presentes na educação escolar, dando-nos a ver e agenciando outras formas de habitar um lugar-escola criado com e através de uma produção documental em aberto.

Dimensão do cinema na atuação do documentarista-cartógrafo: o agenciador câmera

Na filmagem, pensada enquanto um território de observação, as negociações acerca de como e onde a câmera foi posicionada, qual foi o recorte espacial (selecionar e enquadrar), como se deu a organização dos elementos no quadro (dispor e colocar em relação) e em que momento foi acionado e desligado o botão de gravação (a duração do plano, o ataque), aproximaram e agenciaram vínculos entre o documentarista-cartógrafo e as demais trajetórias em composição. O cinema como acontecimento se processou nas relações entre filmadores e filmados, em que a câmera se abriu para esses encontros, para as negociações disparadas no entre dessas relações com o espaço. Nesse sentido, as conexões estavam sempre em aberto e em negociação num lugar eventual costurado por trajetórias de diferentes naturezas e intensidades.

Nesse território de filmagem-aprendizagem, propomos a terceira e última dimensão na atuação do documentarista-cartógrafo: a dimensão do cinema. Nesse fazer documental, enquanto um processo cartográfico, podemos considerar os planos criados como blocos de espaço-tempo3. Tal criação se relaciona aos três gestos cinematográficos que Bergala (2008) considera balizadores no processo de produção fílmico, quais sejam: eleger, dispor e atacar. Antes de apresentá-los vale ressaltar que esses três movimentos cinematográficos operam de modo não sequencial, podendo ocorrer de forma simultânea e implicados uns com os outros. A exposição sucessiva que colocaremos a seguir tem um caráter exclusivamente didático para melhor compreensão das diferenças vinculadas aos três atos de filmagem. As três operações mentais não correspondem a momentos específicos nem cronológicos, mas se combinam a cada momento.

O documentarista-cartógrafo junto à perspectiva do fazer fílmico proposto por Bergala, sempre operará esses três atos no universo de escolhas ao qual se encontra imerso. Essas escolhas perpassam por um ato inaugural de recortar o espaço, de eleger o que ficará dentro e fora do quadro, o que se pretende mostrar e ocultar, a refletir sobre o que queremos que o filme expresse, ou ainda, a agenciar a criação de novas imagens a partir dessa que estamos a emoldurar. Eleger, além da sua dimensão estética, é um ato político, pois está prenhe de intenções e proposição de sentidos. Opera-se um corte espacial que não se restringe ao visível, mas também ao audível, pois leva em consideração os sons: falas, suspiros, ruídos, barulhos etc. Um som dentro ou fora do quadro - o seu grau de intensidade - tem força de ampliar nossa percepção, de despertar nossa atenção para questões que os olhos não captam, ou que estão educados a desprezar. Desse modo, o documentarista-cartógrafo faz recortes espaciais com a câmera criando um território de observação audiovisual, selecionando as trajetórias visuais e sonoras que ali se encontram, como também sendo afetado por aquelas que fogem ao seu controle, as suas escolhas.

O segundo gesto cinematográfico dispor (ato de composição) refere-se ao modo como são dispostas/organizadas as trajetórias no enquadramento, para que algumas delas se evidenciem em relação às outras. Trata-se de propor uma composição que conduzirá nossa percepção por caminhos que, num primeiro momento, estavam muito dispersos. A composição dos elementos em relação, que aqui tomamos como trajetórias, pode ocorrer por diferentes critérios, vejamos dois deles: o primeiro se refere ao tamanho do enquadramento, à escala de observação do espaço recortado. Será um plano aberto, médio ou detalhe?; o segundo se refere ao eixo e ângulo de posicionamento da câmera. Ela ficará à altura dos olhos, da cintura ou dos pés? O ângulo será reto, de baixo para cima ou de cima para baixo? Qual será essa inclinação? Essas perguntas atravessam o movimento criativo do documentarista-cartógrafo, que precisa decidir quais perspectivas e prismas quer colocar em destaque no filme, considerando quais objetos e pessoas ficarão no primeiro plano, como pensar a luz, a sombra e as cores que ganharão notoriedade nesses planos, como também decidir se o som virá do campo ou do extracampo, entre outras disposições no ato de criação das imagens.

O terceiro gesto cinematográfico proposto é o atacar; ou seja, o disparo da câmera, que se refere à decisão de quando acionaremos o botão de gravação e quando o desligaremos. Um gesto que estabelece a duração do plano e a movimentação das pessoas e coisas diante da câmera. Em que momento a pessoa entrará ou sairá do quadro? Que momento e por quanto tempo aquele barulho ou ruído será captado? Decisões que podem abrir o bloco de espaço-tempo para conexões que fazem as trajetórias co-presentes se desestabilizarem e ganharem variação, gerando outros sentidos. Uma maior duração do plano pode fazer com que nossa percepção atente-se para as microrrelações de trajetórias que passariam despercebidas caso esse tempo fosse curto de mais. Uma maior duração, ao nos forçar a estabelecer uma relação mais intensa com a imagem, pode agenciar acontecimentos mínimos e intensos com força de provocar uma pequena fissura no nosso sistema sensório-motor, fazendo com que aquele bloco de espaço-tempo, esculpido pela câmera, possa entrar em devires, disparando sensações e outros modos de nos relacionarmos com a imagem que desterritorializa os regimes de relações e de signos fixados, mas que também reterritorializa o lugar eventual que a imagem nos apresenta.

No movimento dessa cartografia com o fazer cinema documentário na escola, a câmera funcionou como uma das trajetórias (des)articuladoras das relações espaciais. Uma máquina que além de registrar os acontecimentos, tornou-se um agente ativo da filmagem, produzindo desvios e escapes nos roteiros criados através das oficinas, mas também desencadeando várias negociações com a luz e o som do ambiente, com as pessoas e objetos, e com os demais corpos em composição naquele set de gravação. O que, como e onde filmar foram escolhas atravessadas por afetos, por sensações e pensamentos, por atitudes inesperadas dos filmadores (risos, barulhos, discussões etc.) e situações inusitadas ocorridas nas locações (vento, claridade, sombreamento, buracos e declividade do piso etc.). Uma série de acontecimentos que foram provocando desvios, variações e abandonos de ideias, mas que, ao mesmo tempo, nos fizeram criar outros caminhos, sensibilizando-nos a perceber outras possibilidades, a negociar com o espaço outros devires para as trajetórias em jogo no fazer cinema que aportou naquela escola, levando-nos a ver e a nos encontrar com outras escolas presentes ali mesmo, desde dentro da própria escola, através das relações co-construídas pela atuação que se pautou em nos colocarmos como um documentarista-cartógrafo.

Nesse movimento com o real, nosso desafio foi cartografar e dar expressão às potências, misturas e capturas, mas, sobretudo, apontar onde ocorreram rupturas e desestabilizações junto as trajetórias que se fizeram co-presentes no processo de produção e que ganharam configurações nas imagens, de tal modo que fizeram o espaço entrar em devires e produzir outras percepções num estar com o lugar-escola criado pelo documentário. Devires que se referem às misturas entre corpos de diferentes naturezas - alunos, professores, cenários, objetos, câmeras etc. -, em que ocorreu uma captura mútua de códigos, agenciando desterritorializações e reterritorializações. Tais devires se fizeram presente na construção de um documentário realizado por meio de oficinas que buscaram, através de um movimento cartográfico, considerar o espaço como “aberto, múltiplo e relacional, não acabado e sempre em devir” (MASSEY, 2008, p. 95).

Nossa aposta foi construir um recorte espaço-temporal em que pudéssemos experimentar a articulação das três dimensões na atuação do documentarista-cartógrafo, vivenciando um lugar de negociação em aberto. Nesse movimento, as oficinas operariam uma estratégia de resistência e de re-existência com relação aos modelos de aprendizagem, de pesquisa e de cinema que passam por estratégias pré-concebidas, por métodos elaborados previamente aos encontros e pautados em roteiros rígidos. Nosso intuito foi, por meio desse lugar de negociação de múltiplas trajetórias, vivenciar um processo de busca, de experimentação e de criação de novas formas de nos relacionarmos com o espaço, o cinema e a educação.

As dimensões de aprendizagem, de pesquisa e de cinema na atuação do documentarista-cartógrafo apostam nas criações de oficinas que funcionam como agenciadores de espaços de encontros para gerar experimentações de encurtamento de distâncias; isto é, aprender a reduzir distâncias, atentando-se para o movimento de passagem do não saber para o saber. É aí que podem ocorrer trocas intensivas entre o coletivo interessado em participar das ações. Nessas articulações com os outros, e não para os outros, as oficinas, por meio de um agenciamento maquínico, nos possibilita criar e cartografar novas formas de pensar o que ainda não era pensável.

Nessa perspectiva, entendemos a oficina como um campo aberto e favorável aos novos modos de operar a relação entre cinema e educação em que a mistura desses campos do saber, por meio de um lugar que prima pela experimentação, seria o agenciador de processos que causam e produzem modificações e diferenças nos modos de pensar o espaço, o documentário e a própria escola. Queremos com isso percorrer um caminho inventivo, combatendo a ideia de documentário como representação fidedigna do mundo, submetido a uma educação que quer simplesmente passar uma mensagem objetiva (isso é assim), ou simplesmente ilustrar um conteúdo, dar um exemplo, ou afirmar uma visão sobre algo. Mas um combate propositivo, que não nega ou menospreza o documentário clássico educativo, mas que procura experimentar processos criativos provenientes do documentário contemporâneo, com o objetivo de fazer variar e ampliar as relações com o real, e, por conseguinte, com o espaço escolar.

Nosso combate se deu através de uma oficina em que desejávamos que os envolvidos percebessem que estávamos construindo uma realidade com o cinema. É um tipo de aprendizagem em que as pessoas são convocadas a percorrer um caminho criativo, a negociar e inventar com a câmera um modo de estar no mundo. Nesse movimento o aprendiz é aquele que está em constante busca, ressignificando seus conhecimentos pré-estabelecidos. Uma procura estimulada por sua intuição e pelos impulsos disparados na relação com a câmera, de modo a experimentar os componentes da imagem cinematográfica (ângulo, enquadramento, som etc.). Logo, a aprendizagem, a pesquisa e o fazer cinema se dão na passagem viva de um não saber para um saber que não preexistia, mas que é criado por meio de uma experimentação com o real.

Referências

ALMEIDA, M. J. Cinema arte da memória. Campinas: Autores Associados, 1999. [ Links ]

BERGALA, A. A hipótese-cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; Cinead-LiseFE/UFRJ, 2008. [ Links ]

COUTINHO, E. Na altura do olho. In: WORCMAN, K.; PEREIRA, J. V. (Org.). História falada: memória, rede e mudança social. São Paulo: SESCSP: Museu da Pessoa: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 191-195. [ Links ]

DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira; Aurélio Guerra Neto; Celia Pinto Costa. Vol. I. São Paulo: 34, 2011. [ Links ]

______; PARNET, C. Diálogos. Tradução de José Gabriel Cunha. Lisboa: Relógio D’Água, 2004. [ Links ]

______. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. [ Links ]

______. Proust e os signos. 2. ed, Tradução de Antonio Piquet, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. [ Links ]

______. Conversações. 3. ed. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013. [ Links ]

GUIMARÃES, C. Documentário e subjetividade: Uma rua de mão dupla. In: AAVV. Sobre fazer documentários. São Paulo: Itaú Cultural, 2007, p. 68-73. [ Links ]

KASTRUP, V. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012. [ Links ]

LEITE, C. D. P. Infância, experiência e tempo. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. [ Links ]

MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade.Tradução de Hilda Pareto Maciel, Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. [ Links ]

ORLANDI, L. B. L. Deleuze: entre caos e pensamento. In: AMORIM, A. C. R.; GALLO, S.; OLIVEIRA Jr., W. M. (Org.). Conexões: Deleuze e Imagem e pensamento e..., Petrópolis, RJ: De Petrus; Brasília, DF: CNPq, 2011, p. 145-154. [ Links ]

PASSOS, E; KASTRUP, V; ESCÓSSIA, L. Apresentação. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012. [ Links ]

ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. [ Links ]

1O curta documentário “Cartografia dos encontros na escola” está disponível em:<https:// www.youtube.com/watch?v=cUbMd2sZlHA>.

2Livro publicado pela editora Presses Universitaires de France na França em 1953, cuja tradução brasileira feita por Luiz B. L. Orlandi pela Editora 34 teve a primeira edição publicada em 2001.

3Gilles Deleuze em sua palestra sobre o ato de criação de 1987 defende o cineasta como um criador de “blocos de movimento-duração”. Blocos aqui considerados como recortes de espaço-tempo, que, em função do registro e manipulação do som, o tempo de duração do plano, bem como a posição, o ângulo e movimentação da câmera, agenciam outras experiências com o lugar criado na e pelas imagens cinematográficas. DELEUZE, G. Ato de Criação. Publicado pelo Jornal Folha de São Paulo em 27/06/1999, tradução de José Marcos Macedo. Também disponível em: <http://brasil.indymedia.org/en/red/2008/05/419034. shtml?comment=on>. Acesso em: 15 maio 2015.

Recebido: 05 de Dezembro de 2017; Aceito: 21 de Fevereiro de 2018

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons