SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número64EDITORIAL - Educação e Filosofia v. 32 n. 64Sentidos de público e comum nas políticas curriculares: que efeitos na definição de conhecimento escolar? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.64 Uberlândia jan./abr 2018  Epub 20-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n64a2018-02 

Dossiês

Dossiê Reinscrever o conhecimento escolar no território do comum: uma introdução

Reinscrever o conhecimento escolar no território do comum: uma introdução

Roberto Rafael Dias da Silva* 

*Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: robertoddsilva@yahoo.com.br


Longe de finalizar toda luta e toda relação de poder, a emancipação como instituição do comum tem por efeito transferir o conflito para uma nova arena ou novo terreno (Pierre Dardot).

Os sentidos referentes ao conhecimento escolar são aqueles historicamente situados em um campo controverso. Inúmeras tradições remeteram-se a esta questão valendo-se de poderosas metáforas como “conversa complicada” (Willian Pinar), “questão controversa” (Gimeno Sacristán) ou mesmo “território contestado” (Tomaz Tadeu da Silva). O que parece recorrente aos diferentes argumentos é que, inevitavelmente, os debates sobre aquilo que a escola ensina dimensionam-se em um campo político. A hipótese mobilizada para este texto de apresentação remete-se à perspectiva de que se torna necessário reinscrever o conhecimento escolar no território do comum, justamente em um tempo em que a composição das políticas públicas é permanentemente reposicionada pela primazia da responsabilização dos indivíduos e pela mudança nos agenciamentos públicos realizados pelo Estado. Repolitizar a discussão acadêmica sobre o conhecimento escolar constitui-se como tarefa indispensável para o nosso tempo.

Sob tal horizonte, a ser ampliado a seguir, o presente dossiê temático inscreve-se no campo dos Estudos Curriculares e procura estabelecer uma reflexão sistemática e interdisciplinar acerca da questão das políticas de constituição do conhecimento escolar. Foram compilados estudos sobre a temática proposta desenvolvidos por pesquisadores de variadas instituições de ensino superior, situadas tanto no contexto brasileiro quanto em países europeus e latino-americanos. No contexto de nosso país, este dossiê justifica-se pelas emergentes discussões acerca do desenvolvimento de políticas para a definição de um currículo nacional, materializadas na recente proposição de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Em elaboração recente, Pacheco (2014) propõe-se a produzir uma reflexão sobre a questão do conhecimento na atualidade, em sua relação com a formação humana. O ponto central, para desencadear sua argumentação, é a instituição da escola, enquanto ferramenta pública. Com tal processo de institucionalização, ao longo do tempo, “pretendeu-se, acima de tudo, impor um modelo de conhecimento, construído a partir de interesses muito diversos, que permita estabelecer elos entre as gerações” (PACHECO, 2014, p. 7). A escola, enquanto arranjo institucional, ainda na percepção de Pacheco, “é a história dessa operação em torno do conhecimento” (p. 7). A seleção, a organização e a possibilidade de transmissão cultural de determinados conteúdos caracterizam a tarefa pública da escolarização.

Enquanto invenção do projeto de formação escolar, engendrada a partir de determinadas tecnologias políticas, os currículos escolares assumem centralidade nestes espaços de educação e de formação. Por diferentes percursos, no âmbito dos currículos encontramos a legitimação de formas específicas de conhecimento, socialmente reconhecidas e valorizadas, cuja seleção é desenvolvida em um terreno imanentemente político. Em razão disso, lembra-nos Pacheco, “o corpus do conhecimento escolar é, por conseguinte, a longa tradição da existência de propostas curriculares, elegendo-se, nesta seleção, organização e transformação o que as circunstâncias temporoespaciais ditam como sendo as mais válidas. Acrescentam-se, ainda: as circunstâncias económicas, sociais, culturais e ideológicas” (2014, p. 8). Em outras palavras, pensar a constituição dos conhecimentos escolares implica em uma leitura abrangente.

Do ponto de vista dos Estudos Curriculares, a potencialidade analítica dessa questão é evidenciada por distintas tradições. Young (2013), em uma perspectiva realista-social, apresenta a relevância social e epistemológica dos conhecimentos a serem ensinados nas escolas. Mais que simplesmente transmitir formas estáticas de conteúdos passados, defende que o propósito dos currículos é “capacitar a próxima geração de modo que ela possa construir sobre esse conhecimento, criando um conhecimento novo, pois é assim que as sociedades humanas progridem e os indivíduos se desenvolvem” (YOUNG, 2013, p. 3).

De acordo com o sociólogo britânico, a tarefa dos Estudos Curriculares seria “partir não do aluno como aprendiz, mas do direito do aluno ou do seu acesso ao conhecimento” (YOUNG, 2013, p. 18). Essa opção analítica sugere que a interrogação central dos currículos - “qual conhecimento?” - seja potencializada tanto epistemologicamente, quanto no âmbito da justiça social. Essa perspectiva tem sido nomeada como “realismo social”, uma vez que, conforme Moore (2012), busca produzir alternativas aos dois modos convencionais de pensar a questão do conhecimento no âmbito da sociologia da educação, a saber: o positivismo e o construtivismo social.

Sob outras condições argumentativas, Popkewitz (2009) auxilia-nos a elaborar uma crítica política da escolarização, alicerçada em uma “epistemologia social”. Para problematizar o conhecimento na escola, essa forma de abordagem nos leva a pensar sobre “as políticas da razão como práticas históricas regidas pela reflexão e a ação” (p. 19). Inspirado no conceito foucaultiano de governamentalidade, o autor problematiza as políticas de reforma da escolarização, a partir de uma ênfase na noção de aprendizagem permanente. Tal noção, ao privilegiar a competência dos aprendizes, “enfoca a atual seleção de conteúdos, na qual as ferramentas de tradução e inscrição do currículo estão relacionadas com os modos de vida que têm pouco a ver com as disciplinas escolares propriamente ditas” (POPKEWITZ, 2009, p. 129). Os currículos escolares de nosso século, de acordo com o autor, enfatizam cada vez mais as questões ligadas a conduta dos aprendentes. Isso também evidencia a relevância social e pedagógica de seguirmos a pensar sobre o conhecimento na escola.

Dessa maneira, então, o campo de relações estabelecido entre políticas de constituição do conhecimento escolar e a questão da formação humana, sobretudo no que tange à seleção dos conhecimentos a serem ensinados nas escolas públicas de nosso país, apresenta-se como mais importante foco do campo dos Estudos Curriculares. A partir deste campo conceitual que este dossiê temático foi organizado, valendo-se de perspectivas teóricas variadas, que abordem o problema do conhecimento desde uma perspectiva crítica, interdisciplinar e historicamente situada. A seguir são apresentados cada um dos textos que compõem esta produção acadêmica.

O primeiro artigo intitula-se “Sentidos de público e comum nas políticas curriculares: que efeitos na definição de conhecimento escolar?”. Neste texto, a professora Carmen Teresa Gabriel, em uma perspectiva pós-fundacional, investiga os modos pelos quais a articulação entre conhecimento escolar, escola pública e currículo comum vem sendo mobilizada nos debates em torno da construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Sua investigação, exposta no artigo, permitiu descrever determinadas estabilidades na definição de conhecimento escolar em meio às lutas pela significação dos significantes comum e público que adjetivam respectivamente currículo e escola nos textos analisados.

Posteriormente, no segundo texto deste dossiê, Cláudia Galian e Daniel Stefenon interrogam acerca das dificuldades na definição dos conhecimentos a ser ensinados nas aulas de Geografia. O artigo está ancorado em resultados de uma pesquisa que pretendeu evidenciar as escolhas consubstanciadas em documentos curriculares de produção recente no que se refere à definição da importância do conhecimento escolar de Geografia e do que constitui conhecimento relevante a ser abordado nas aulas dessa disciplina. Do ponto de vista teórico, fundamenta-se nos estudos de Basil Bernstein, sobre a recontextualização, e nos escritos recentes de Michael Young, na ideia de conhecimento poderoso.

Juares Thiesen e Zenilde Durli, no terceiro artigo aqui compilado, costuram uma importante provocação teórica acerca da seguinte pergunta: Estará morto o conhecimento escolar ‘poderoso’?. Em seu texto, os autores mapeiam um conjunto de questões relacionadas com conceito(s) de conhecimento escolar, especialmente no que se refere à problemática de sua significação em termos de valor e funções atribuídos pelas distintas perspectivas teóricas do campo dos estudos curriculares. Sob sua abordagem teórica, propõem-se a reafirmar que diferentes perspectivas mobilizam e/ou fixam distintos sentidos para este conceito.

No quarto artigo deste dossiê, intitulado “Conocimiento y currículo”, o pesquisador colombiano Mario Diaz-Villa apresenta alguns elementos para a compreensão das complexas relações entre currículo e conhecimento, a partir dos seus discursos constituintes. O foco do artigo está em definir a natureza dos diversos espaços epistêmicos através dos quais se produz conhecimento e conhecimento sobre currículo e, complementarmente, visa descrever a forma com que o currículo se expressa nos processos de reprodução cultural.

A seguir, no quinto artigo integrante deste dossiê, Carolina Lima Vilela analisa um conjunto de textos de livros didáticos, compreendendo-os como uma das possibilidades de apreensão da materialidade do discurso do conhecimento escolar em Geografia, buscando identificar como se entrelaçam os enunciados que vem sendo considerados como válidos para significar este conhecimento. Inspirada nos estudos de Michel Foucault, a pesquisadora constrói sua argumentação para explorar os ditos que estão em disputa na afirmação de certas disciplinas escolares, particularmente a questão da Geografia em seu estudo.

Para concluir esta apresentação do dossiê temático, retomando a intenção de reinscrever o conhecimento escolar no território do comum, importa destacar a relevância de mobilizar um posicionamento crítico acerca das políticas neoliberais e neoconservadoras, hoje predominantes. Tais políticas, sobretudo no contexto brasileiro, parecem definir uma governança escolar que opera por meio de dispositivos padronizadores, da compreensão da qualidade através da avaliação externa ou mesmo da redução do conhecimento a princípios utilitaristas. Reconhecendo as lutas políticas que perfazem os estudos sobre currículo, implicadas nas variadas tradições teóricas que atravessam os artigos que constituem este dossiê, aposta-se na emancipação como instituição do comum, transferindo o conflito para uma nova arena ou um novo terreno, como sinalizou-se desde a epígrafe desta apresentação.

Boa leitura a todos!

Referências

MOORE, R. (2012). Social realism and the problem of the problem of knowledge in the sociology of education. British Journal of Sociology of Education, 1-21. [ Links ]

PACHECO, J. (2014). Educação, formação e conhecimento. Porto: Porto Editora. [ Links ]

POPKEWITZ, T. (2009). El cosmopolitismo y la era de la reforma escolar. Madrid: Ediciones Morata. [ Links ]

YOUNG, M. (2013). A superação da crise em estudos curriculares: uma abordagem baseada no conhecimento. In M. Favacho, J. Pacheco & S. Sales (Orgs.). Currículo, conhecimento e avaliação: divergências e tensões. Curitiba, PR: CRV. [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons