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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.64 Uberlândia jan./abr 2018  Epub 20-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n64a2018-08 

Dossiês

Dossiê Reinscrever o conhecimento escolar no território do comum: uma introdução

Os Estudos Curriculares e o problema do conhecimento - uma entrevista com Elizabeth Macedo

Roberto Rafael Dias da Silva* 

*Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: robertoddsilva@yahoo.com.br


A professora Elizabeth Fernandes de Macedo, no decorrer das últimas duas décadas, tem se constituído como uma das principais pesquisadoras do campo dos Estudos Curriculares no Brasil. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), realizou estágios pós-doutorais na University of British Columbia e na Columbia University. Atualmente, é professora associada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Acerca de sua inserção nos estudos sobre currículo escolar, Elizabeth apresenta um conjunto representativo de produções científicas na área, assim como tem orientado inúmeras dissertações e teses sobre a temática. Ainda sobre sua inserção científica, com significativo reconhecimento internacional, podemos destacar que é presidente da International Association for the Advancement of Curriculum Studies, editora associada do Journal of Curriculum Studies e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (1B).

Nesta entrevista, concedida por e-mail ao professor Roberto Rafael Dias da Silva, Elizabeth Macedo, além de revisitar sua trajetória intelectual, estabelece um importante balanço crítico da questão orientadora deste dossiê, qual seja: os Estudos Curriculares e o problema do conhecimento. Manifestamos nosso agradecimento pela oportunidade de diálogo estabelecida, a partir desta entrevista, bem como pelas relevantes considerações que muito qualificaram esta produção científica.

Roberto Rafael Dias da Silva (RRDS) - Professora Elizabeth, para iniciar esta entrevista, gostaria que relatasse como as investigações acerca dos currículos escolares ingressaram em suas preocupações acadêmicas. Quais caminhos percorreu e quais foram suas principais influências teóricas neste período?

Elizabeth Fernandes Macedo (EFM) - Inicialmente, gostaria de apenas assinalar a dificuldade de responder questões como essa, em que se espera a capacidade do interlocutor de dar conta de si ou, pelo menos, de suas preocupações intelectuais de uma forma racional e coerente. Como recentemente fui impelida a exercício semelhante por ter que escrever um memorial para progressão a titular, parece-me ainda mais impossível fazê-lo e, ao mesmo tempo, talvez eu tenha uma resposta quase-pronta. Quase porque a cada leitura daquele texto ou a cada interpelação como esta que você me faz, sinto quantas incoerências e complexidades, quantas razões “irracionais” são mascaradas pela narrativa que faço de mim. Mas vamos lá, projetando sobre o passado uma ordem inexistente, eu lhe diria que meu primeiro contato com o campo do currículo se deu ainda no Mestrado, que cursei na UFRJ, por uma óptica bastante distinta daquela com que trabalho hoje. Naquele momento, travei contato com uma literatura de racionalidade bastante técnica - o que chamaria, de forma ampla, de desdobramentos da racionalidade tyleriana -, assim como com as abordagens cognitivistas do currículo nos EUA que em muito impactaram projetos curriculares brasileiros em ciências. Talvez seja importante dizer que minha formação de graduação é em Química e que atuava, nesta época, como professora dessa disciplina na Escola Técnica e nas redes estadual e privada. Para tentar ser mais justa com o curso de Mestrado que realizei - e que depois foi objeto de minha tese de doutorado - talvez fosse mais adequado dizer que ali (especificamente no departamento de Metodologia da Pesquisa e Avaliação Educacional) se valorizava uma tradição mais técnica do pensamento acadêmico americano, sem que deixassem de estar presentes algumas das críticas a ela dirigidas por outros teóricos. Li ali Tyler, Popham, Baker e Levy, assim como Cronbach, Stenhouse, Stake, Scriven e Cohen. Com um pouco mais de insistência, fui também apresentada a autores como Kliebard, Pinar, Greene. A ausência mais sentida era de autores críticos, já em voga no Brasil (estávamos em 1990, logo após o fim da ditadura, vivendo nosso primeiro governo não militar), o que conferia ao curso um perfil bastante distinto dos demais e estereotipado como conservador. Ainda assim, trabalhei em minha dissertação, em avaliação de currículo de química, com uma mescla entre a pedagogia histórico-crítica (que lia por mim mesma, pressionada pela força do marxismo na educação brasileira do período) e os projetos de Bruner e Ausubel de currículo por disciplina. Ainda que pouco ortodoxa, me senti autorizada a tal mescla por Libâneo no seu clássico livro sobre a pedagogia histórico social dos conteúdos. Conto essas coisas antigas, porque imagino que esta experiência foi importante para meu interesse pela história do pensamento curricular, assim como pelo seu estudo sob a óptica de internacionalização.

Quero também confessar que meu movimento rumo à pedagogia histórico crítica se deu mais por uma “imposição” da hegemonia do pensamento marxista do que porque ele atendesse meus anseios teóricos. Incomodava-me, e ainda me incomoda, a ideia de uma teoria social com ênfase no estrutural onde os sujeitos agem a partir de “posições” que ocupam na estrutura. Mesmo as soluções estruturais que mesclam estrutura e agência - e aqui refiro-me, por exemplo, a Bernstein e Certeau ou a trabalhos de Goodson e de Ball (especialmente aqueles em que o diálogo com Foucault é menos visível) - me parecem inadequadas. Meu primeiro porto, que a época chamaria de seguro (ai de mim), para tentar lidar com esse desconforto veio ao fim do meu Mestrado, do meu contato com Habermas, propiciado num curso de Filosofia da Educação, ministrado pela professora Creusa Capalbo (que quero registrar aqui porque foi, sem dúvida, o melhor curso de toda a minha trajetória de estudante e talvez isso não seja sem importância no meu namoro com Habermas). A Escola de Frankfurt surgia talvez como o marxismo que eu podia suportar com toda a preocupação com o mundo da vida que os autores traziam da fenomenologia. De Habermas, fui a Adorno e Horkheimer e, menos, a Marcuse, Benjamin e Fromm. Talvez mesmo essas preferências dentro da Escola de Frankfurt digam da vinculação entre educação e sociologia que eu então fazia, da rejeição a uma abordagem mais psicanalítica, assim como a uma discussão mais aprofundada da questão da linguagem. Mas não as chamaria propriamente de opções, acho que foram acasos. De qualquer forma, meus primeiros trabalhos de pesquisa mais consistentes no campo do currículo (entre eles minha tese de doutorado) se deram em um diálogo teórico com Habermas e sua teoria da ação comunicativa. No campo do currículo, nesta época, havia estudos que se utilizavam de Habermas, nomeadamente os textos de MacDonald - associado à leitura dele feita pelo colega Domingues - e Grundy. Havia outros de que não me recordo e não farei esforço para recuperá-los porque acho que o esquecimento é também aqui importante. Em sua maioria, os estudos dialogavam com “Conhecimento e Interesse”, classificando os currículos pelos interesses por que eram guiados, num procedimento paradoxalmente guiado pelo interesse técnico que se criticava como incapaz de dar conta de campos humanos como a educação. Diferentemente, tentei trabalhar com Habermas na construção de um conceito de currículo que pudesse ser depositário de uma ideia de emancipação claramente vinculada ao mundo da vida, às conversas cotidianas, à utilização da linguagem na atividade humana de comunicar-se com o outro. De uma das leituras do meu Mestrado, lembrava dos desafios postos por Greene ao campo do currículo, nos quais a autora apontava para a necessidade de o currículo se abrir à experiência dos sujeitos, permitindo-lhes compreender seu próprio mundo da vida. A tentativa de Habermas de estabelecer uma equivalência entre conhecimento prático e teórico, fundada na ação comunicativa, me pareceu útil para uma teoria radical do currículo onde o próprio conceito de conhecimento (e verdade) pudesse ser tematizado de forma normativa. Na época não me incomodava o horizonte racional em que Habermas trabalha, ele não me parecia incompatível com a ideia de currículo como espaço intersubjetivo. O abandono dessa ideia foi motivada justamente por uma rejeição do racionalismo e dos pressupostos que justificavam a utopia Moderna.

Quero aqui falar de uma inflexão para o que vou caracterizar inicialmente como pensamento pós-moderno, mas antes, acho que é importante destacar uma referência que não teve muito lugar na minha narrativa, mas que foi muito central na minha tese e em algumas coisas que escrevi então: as sistematizações que Ivor Goodson fez de estudos em história das disciplinas escolares. Como meu projeto de tese foi construído no grupo de pesquisa coordenado pelo Antonio Flavio (Moreira) - embora tenha me titulado pela UNICAMP -, operei ali com Goodson (e Habermas) no sentido de entender a produção do currículo da pós-graduação em educação desde seu surgimento aos anos 1990.

Voltando à inflexão pós-moderna, não tenho sobre ela muita cronologia. Se bem me lembro, de meados do meu doutorado em diante - um período de talvez uns 5 a 6 anos - foi marcado por leituras meio desconexas, aquela coisa de tatear. Um nome que, sem dúvida, influenciou a minha geração de curriculistas foi o do Tomaz Tadeu. O trabalho do Tomaz de garimpar e traduzir na literatura de currículo americana autores de perspectivas pós-críticas - assim como suas próprias pesquisas e escritos nessa linha - jogou a teoria de currículo no Brasil num outro patamar de sofisticação teórica. Para mim, funcionou também como uma espécie de bússola para outras leituras dentro da própria literatura americana com a qual eu já tinha contato desde o mestrado. Junto a essas leituras, apareciam nomes muito citados nessa época: Lyotard, Jameson, Morin, Bauman, Harvey, o próprio Foucault (com que tive contato muito mais pelos trabalhos dos colegas da educação). Fui me movendo por esse terreno com muita resistência a abandonar a teoria crítica.

Aos trancos e barrancos, minhas pesquisas passaram a lidar com a diferença cultural, ou com o multiculturalismo, como então denominava. Interessante que por mais que hoje o significante “diferença” seja sempre um dos descritores para os meus textos, não parei aí por escolha própria. Na época, eu trabalhava com Antonio Flavio (Moreira) em estudos sobre pensamento curricular e história do currículo e ele decidiu montar um projeto sobre o multiculturalismo no campo no Brasil. Reclamei que estávamos abandonando uma trajetória que vínhamos construindo - sou do tipo que bate na mesma tecla como se fosse piada, gozação -, mas fui. Como primeiro projeto, nessa fase de transição (isso foi em 2000), deslizamos por muitas referências, de diferentes matizes teóricos, mas aprendemos muito lendo uma ampla literatura sobre a diferença. Fui construindo ali algumas perguntas que ainda hoje me perseguem, com formulações um tanto distintas: como apostar na diferença em um mundo em que aprendemos a agir politicamente por meio de reivindicações identitárias? Minha herança frankfurteana me trai se esse “apostar” não consegue esconder um certo desejo de intervenção. E disso tratarei mais tarde.

A busca de novas referências para continuar falando de agência num mundo fragmentado, novamente não sei bem como, me levou para autores denominados pós-coloniais. Em Gilroy, as rotas transnacionais móveis, constituídas na resistência de sujeitos diaspóricos que contestam a continuidade da opressão colonial foram talvez o meu primeiro contato com um universalismo que não se fazia por meio de algo essencialmente partilhado pelos sujeitos, com uma solidariedade na diferença contingente e descontínua. Seguiu-se a esse contato, uma série de outras leituras, dentre as quais destaco H. Bhabha pela influência que sua concepção de cultura como enunciação da diferença teve e tem em minha apropriação da temática. Talvez devesse também aqui destacar a ideia de fluxo cultural de A. Appadurai que, segundo o autor, preexiste às culturas nomeadas - nomeação que estanca o fluxo e transforma a diferença em pura pluralidade. Completaria esse quadro de referências citando S. Hall com sua compreensão antropológica da diferença. Do diálogo com tais autores, fui buscando entender como estereótipos que marcam a diferença atuam expelindo o que não se encaixa nos limites simbólicos estabelecidos pelas culturas e projetando no outro a “parte má” do eu que nos persegue e com a qual não sabemos lidar.

O processo de conceituar diferença, me levou a rever o conceito de cultura, apoiada em Bhabha, Hall e Appadurai. Passou a me incomodar que a cultura estivesse sendo, em muitos casos, tratada, no campo do currículo, como “coisa”, como objeto de contemplação epistemológica ou como repositório de onde os conhecimentos - que seguiam constituindo o currículo - seriam selecionados. Com o apoio de Bhabha, passei a definir currículo como enunciação cultural, o que implica uma visão da cultura como eterna diferença e uma temporalidade liminar, não continuísta. Por longo tempo, a leitura de Bhabha me permitiu entender o currículo como processo de representação que endereça, sempre de forma ambivalente e incompleta, o Eu e o Outro. Ainda que o Outro como sujeito de toda a negatividade seja usado para justificar os processos de subjetivação propostos pelo currículo, muitos são os deslocamentos simbólicos nesse processo. Com isso, eu julgava possível deslocar as fixações autoritárias, entendendo-as também como produtivas.

Por meio tanto de Bhabha quanto de Hall, fui me aproximando da teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, que me deram um certo conforto no sentido de evitar um relativismo que me assustava. Nesse sentido, por alguns anos (cada vez menos, mas ainda), venho tratando da política curricular como um processo de signifixação por meio de lutas por hegemonia. Na abordagem dos autores, o antagonismo constitutivo do social (que impede a totalização estrutural), quando atravessado por uma lógica equivalencial, sofre uma estruturação contingente que permite falar em hegemonia sem alusão a qualquer fundamento. De forma geral, o uso que tenho feito da teoria do discurso me parece de ponta a cabeça, na medida em que meu interesse pelo estudo dos processos de hegemonização tem um desejo desconstrutivo. Mesmo com esse desejo, tenho, recentemente, me preocupado se não estou dando destaque exagerado aos jogos de poder que produzem as fixações - e colaborando para sua manutenção. Por isso, talvez, eu venha trabalhando menos com a teoria do discurso e tentado me mover pelos estudos mais explicitamente políticos de autores como Derrida e mesmo Butler.

No que falei até agora, Stephen Ball ficou esquecido e isso é, sem dúvida, um problema, se estou tentando dar conta de meus diálogos teóricos. Desde não sei nem dizer quando, os estudos em políticas de currículo que vim desenvolvendo (e meus estudantes também) tiveram em Ball uma referência importante. Foi ele um dos autores que nos deu certa tranquilidade de pensar as políticas para além do estrutural, com seu modelo de circularidade das políticas. Fui me afastando um pouco dele pelo incômodo de que o contexto de influência fosse assumido como originário das políticas enquanto os demais fossem tratados como contextos de representação. A isso se somou, o fato de, pelos anos 2007, a teoria do discurso ter me parecido mais útil para entender o funcionamento da política. Mais recentemente, em textos em que tenho analisado as políticas de centralização curricular - em especial a BNCC - acabei voltando a Ball, dialogando com as redes de políticas que ele vem estudando.

Certamente, não passei por todas as referências teóricas que fui encontrando pelo caminho, mas acho que isso dá conta de alguns encontros relevantes. Talvez fosse, ainda, importante falar do encontro com pessoas. Tem uma brincadeira que quando somos doutorandos fazemos em relação à ANPEd: vá lá encontrar e, quem sabe, conversar com sua bibliografia. Minha sensação aqui é que, uma vez que você tenha conversado com ela, ela perde o tom de referências. Só isso poderia fazer com que Antonio Flavio (Moreira), Nilda (Alves), Bill (Pinar) e Janet (Miler) estivessem fora dessa estória que vim contando. Claro que muito de minha formação se deu pela leitura e pelo contato com eles (com os dois últimos trabalhei em pós-doutorados em 2007 e 2013) e outros colegas do campo que aqui não chego a citar. De minha geração, Alice (Casimiro Lopes), claro, está sempre referida no que escrevo, até porque muito de nossos escritos - a quatro mãos ou com autor único - sistematizam diálogos teóricos que vamos tendo ao longo da nossa trajetória. E os estudantes, especialmente, meus doutorandos e ex-doutorandos que passaram (e ainda passam) por esses perrengues teóricos comigo.

RRDS - Nas últimas décadas tornou-se recorrente, tanto na literatura brasileira, quanto nos textos publicados internacionalmente, um conjunto de argumentos defendendo uma “crise do pensamento curricular”. Como a senhora tem compreendido esta questão e como podemos problematizá-la para pensar de outros modos?

EFM - A única discussão que fiz sobre isso, publicada num artigo do Currículo sem Fronteiras, foi motivada por uma interpelação do João Paraskeva. Sua provocação inicial tinha por finalidade direcionar as contribuições para um painel da Associação Americana de Currículo (AAACS). Nela, o autor destacava o famoso texto de Schwab sobre a crise no campo do currículo, argumentando que o campo tem vivido múltiplas crises e que elas podem ser generativas. Estou retomando a argumentação de Paraskeva de memória (e ela está aqui bem ao alcance da mão), porque quero ficar com a lembrança do incômodo que me moveu a responder à interpelação. E não era um incômodo novo, apenas ali estava como uma interpelação a responder por escrito.

Em situações menos formalmente acadêmicas, já tinha me deparado com a ideia de que o campo do currículo ou da educação (e possivelmente qualquer que seja ele) já teve dias melhores e que, atualmente (quando quer que isso seja), vive uma crise de qualidade. Imagino que todos nós já fomos assaltados por esta ideia, seja porque a ouvimos seja porque ela brotou na nossa cabeça. A crise propalada da pós-graduação, da educação, do campo do currículo é frequentemente acompanhada de certa nostalgia restaurativa, um projeto romântico de volta aos tempos dourados ou, em outras palavras, de que o futuro pudesse ser como o passado. Mas o que é o nosso passado em termos educacionais? Uma história de absurda exclusão, tão profunda que sequer podia ser tematizada, uma exclusão tão eficaz que seguia invisibilizada. Salta aos olhos o baixo nível teórico do campo educacional e curricular no Brasil das décadas de 1970 a meados de 1990, se você analisa o mercado editorial, acessa os pouquíssimos periódicos de então ou lê dissertações (e as poucas teses) defendidas no período. A literatura de currículo resumia-se a um punhado de livros textos que reproduziam receitas requentadas da tradição técnica americana. Lembro-me que, em minha primeira ANPEd no GT Currículo, em 1993, foram apresentados talvez uma meia dúzia de trabalhos e discutíamos fazer reuniões para conversar sobre os programas de nossos cursos. Éramos, provavelmente, nem 20 pessoas, uns 8 com doutorado. Em nível internacional, não creio que a situação seja muito distinta e me apoio para isso nos textos publicados no Handbook organizado por Pinar em que diferentes pesquisadores pensam sobre o campo do currículo nos países em que trabalham. A partir dessa percepção de que nunca tivemos essa qualidade de que lembramos com saudades, fico pensando: o que mesmo queremos restaurar?

Esse sentido de crise não estava na interpelação de Paraskeva, mas foi acionado em mim pela ideia de que a crise pode ser generativa de um futuro melhor e me causou o desconforto que moveu o meu texto. Talvez um desconforto com a ideia de um tempo linear, algo que Tomaz Tadeu um dia traduziu como uma tradição de “melhorismo” que a Modernidade nos legou. Fiquei pensando em que medida a ideia de crise não funciona como o disfarce ideal para que nos permitamos contar uma história algo linear rumo ao progresso. Na verdade, eu mesma acabei de fazer isso no parágrafo anterior quando recusei a nostalgia restaurativa com base num olhar para trás e perceber que hoje temos uma produção muito superior à dos anos 1970-1990 e uma educação menos excludente. Podia voltar atrás e apagar este parágrafo, mas não o farei, deixo-o como registro ou exemplo de como o melhorismo está lá à espreita. Além de esconder a linearidade com que vivemos a história, criando aqui e ali rupturas, o caráter generativo da crise permite ainda uma sensação de agência que pode levar à sua superação.

A crise é, nesse sentido, mobilizada o tempo todo para justificar a necessidade de toda e qualquer intervenção, para legitimar a ação. Uma ação, por exemplo, por uma nova teoria curricular porque o campo está em crise, como sugeriu Schwab, e como vemos hoje repetido em muitos de nossos textos. Uma teoria melhor surge da crise e, se não fosse a crise, seguiríamos na mesmice. Por uma base nacional para o currículo por um parâmetro curricular, porque a educação está em crise! Se nada for feito para aplacar a crise, seguiremos inexoravelmente para o atoleiro. Como se nada estivesse sendo feito diariamente por professores nas escolas para fazer face não à crise, mas aos imprevistos que pipocam aqui e ali. A crise permite pensar o futuro no movimento dialético, de modo que a temporalidade linear e o “melhorismo” possam se reconciliar com o discurso progressista.

Qual o meu problema com isso? Em nível teórico, meu incômodo não é propriamente com a ideia de crise, mas com a temporalidade na qual ela é possível, uma temporalidade linear que busca espremer o currículo entre o passado e o futuro. Não existe o presente do currículo nesta temporalidade e o presente enunciativo do currículo é, a meu ver, o momento da diferença, aquele em que o não previsto (a educação é isso) pode emergir. Na temporalidade linear, o conhecimento socialmente acumulado (no passado) é mobilizado com vista à emancipação do sujeito (no futuro). O presente é um lugar de passagem cuja importância será vislumbrada num suposto futuro (se a crise deixar). Não há nada de novo nisso que estou dizendo aqui, talvez apenas esteja pondo de outro modo, mais radical porque já marcado pelo esgotamento da Modernidade, a preocupação pragmática de Dewey e da Escola Nova. Desconfiar da linearidade temporal, mesmo daquela marcada por crises que a fazem soluçar, mas não se dobrar sobre si mesma, é necessário para uma teoria curricular que aposte na educação como empreitada intersubjetiva. Dewey fez isso ao falar do tempo da experiência, assim como Pinar se valeu do tempo psicanalítico em seu currere. Tenho tentado trabalhar essa ideia com a noção de liminaridade ou de enunciação, ambas roubadas de Bhabha. Assim, a ideia de crise se transforma em um problema, para mim, na medida em que ela reforça a temporalidade linear e a “embeleza” ao atenuar seu determinismo.

Para finalizar, queria abordar, ainda, a forma como essa questão é tratada nos discursos das políticas públicas. Faço um parênteses para evitar a leitura de que o estudo do pensamento curricular e o estudo das políticas curriculares são duas coisas distintas. Entendo que, quando nos dedicamos a entender o pensamento curricular, estamos estudando políticas curriculares, seja porque ele se constitui como uma luta para signifixar sentidos seja porque esta signifixação se refrata nas políticas públicas estatais. Dito isso, me permito reduzir o que vou dizer a seguir apenas às políticas públicas que buscam legislar sobre o currículo da educação fundamental, coisas como base comum nacional ou parâmetros curriculares nacionais. O papel desempenhado pela ideia de crise nesses documentos é muito esclarecedor do que venho tentando argumentar. Os guias curriculares se apresentam sempre como solução para um problema descrito em termos de uma crise do sistema atual. Dessa forma, quanto maior a crise, mais necessário e legítimo o remédio. Interessante salientar que, nesse caso, o discurso da crise é normalmente construído por meio de dados quantitativos (e, se possível, gráficos) que “mostram”, de forma inexorável, a crise. Há uma ampla literatura, remetendo a Foucault, que explora o controle produzido pelas estatísticas, que não vou aqui retomar. Irônico notar que, em geral, tais dados explicitariam que a solução anterior, apresentada nas mesmas bases da atual, não funcionou. Qual a função da crise neste cenário (e em qualquer cenário político, incluindo o pensamento curricular)? Controlar as possibilidades de emergência da diferença com a imposição do remédio, da cura para a situação de calamidade social. Como esse remédio é, muitas vezes, justificado pelo respeito à diferença, a contraposição a ele por seus efeitos sobre a diferença fica ainda mais difícil de explicar. Não creio que a maioria de nós tenha dificuldade de concordar com essa ideia quando ela se refere às políticas estatais, afinal eles, os seus formuladores, não são um de nós e não nos ouvem. Tenho tentado argumentar que eles são muitos de nós e que não é produtivo manter nossas críticas apenas às políticas estatais como se o nosso pensamento pedagógico fosse imune às pegadinhas da Modernidade.

RRDS - Acerca do pensamento curricular, seria interessante deslocarmos essa conversa para o conceito que caracteriza este campo - o conhecimento escolar. Em sua perspectiva, como podemos seguir examinando o conhecimento (e seu ensino), produzindo distanciamentos em relação às demandas neoconservadoras, hoje predominantes no Brasil?

EFM - Aqui tem muita coisa que não sei se consigo dar conta. Primeiro, acho que é preciso explicitar o que se quer dizer quando se usa a expressão demandas neoconservadoras. Entendo que, se estamos falando de demandas: (1) elas só existem na medida em que são demandadas, sendo, portanto, contextuais; (2) elas nunca se apresentam da mesma forma a cada reiteração e, nesse sentido, são performativas; e (3) os grupos demandantes não são pré-constituídos, são nomeados a partir da demanda. Com isso, quero evitar a reificação de um discurso neoconservador, a despeito de achar viável para fins de conversa e ação política, nomeá-lo. Tendo apenas a achar que precisamos cuidado porque a reificação é contra-produtiva para a ação política, porque ela obnubila a visão das formas de ação do poder. É, nesse sentido, que tenho salientado que demandas conservadoras têm sido acionadas em contextos diversos, por vezes, inclusive, em “discursos críticos”. Em alguns textos, tenho defendido que discursos em prol da emancipação e da cidadania podem ser conservadores, na medida em que se contrapõem a demandas em torno de políticas de ampliação da representação. A eterna polarização entre políticas de redistribuição e de representação pode ser uma iteração do discurso conservador ao assumir que políticas redistributivas são ameaçadas por políticas de representação. Refiro-me aqui, por exemplo, às críticas que autores críticos têm feito a perspectivas pós-estruturais no campo do currículo, com o argumento de que estas estariam contribuindo para a ampliação da desigualdade ao eleger a problemática da representação como central. Segundo, acho que é relevante diferenciar neoliberalismo e neoconservadorismo até para sermos capazes de perceber as articulações que estão em curso entre tais discursos. Destaco, por exemplo, as zonas de equivalência entre demandas dos conglomerados financeiros internacionais e demandas de grupos religiosos conservadores, que não as tornam as mesmas, mas aliados momentâneos no jogo político.

Acho que a pergunta não estava esperando esse prólogo tão longo, mas sim que eu focasse na questão do conhecimento escolar como, nos seus termos, conceito que caracteriza o campo. Ao mesmo tempo, você pergunta sobre como podemos seguir examinando o conhecimento (e seu ensino). Quero iniciar por distinguir essas duas frases da sua pergunta, porque acho que um dos problemas de entendimento de alguns dos meus argumentos diz respeito a aproximação entre essas duas ideias. Entendo que uma coisa é estudar o campo do currículo no Brasil e a centralidade que nele tem o conceito de conhecimento. Definir currículo como, por exemplo, seleção e organização do conhecimento escolar tem implicações sobre as formas de conceber a educação e a escola e efeitos sobre a forma como é pensada a diferença. A diferença aqui só pode assumir o sentido de diversidade a ser incluída a medida que a cultura do diverso for incluída no currículo como conteúdo. Outra, é pensar o currículo escolar, aquilo que acontece tanto nas escolas quanto nos lugares em que são escritos guias e materiais curriculares, e as formas como o conhecimento é signifiXado nesses momentos. Se essa signifiXação tem a ver com os sentidos produzidos para currículo no debate acadêmico sobre currículo - e tem, sem o que tal debate talvez nem existisse -, ela não se confunde como ele. Com isso, quero dizer que não sei como responder a segunda parte da sua pergunta, porque julgo que ela só pode ser respondida na luta política na qual demandas diversas estão no jogo e são sempre distintas de si mesmas (por isso quis destacar que o neoconservadorismo não pode ser reificado). Julgo pretencioso e problemático imaginar que é possível ou desejável definir como o conhecimento deve ser pensado para fazer face a demandas, quaisquer que sejam elas. Corremos o risco de cair num idealismo normativo, como se não houvesse relações de poder que tornassem nossa pretensão inócua (e ainda bem que o fazem, sem o que a vida fosse talvez melhor talvez pior, dependendo de quem detivesse o poder de normatizar, mas muito chata). Podemos, por exemplo, como temos feito, pensar em como deslocar as relações de poder na definição do que conta como conhecimento escolar em propostas de centralização curricular como a base nacional curricular e disputar os sentidos de conhecimento com grupos que advogam demandas conservadoras e liberais. Isso é importante, mas só acontece na luta política específica. Em alguns textos em que reflito sobre a construção da base, tenho buscado perceber como as articulações - por vezes inusitadas se reificamos ideias como esquerda, direita, liberal ou conservador - vêm produzindo efeitos políticos, construindo hegemonias, por intermédio da disputa sobre o que conta como conhecimento na sociedade e na escola. Em momento algum, no entanto, acho que é possível dizer “seria melhor se fosse desta ou daquela maneira”, porque conservadorismo, neoliberalismo e pensamento progressista não têm um conteúdo positivo a priori e, talvez principalmente, porque, a despeito de nosso desejo (e da nossa luta), esse melhor imaginado jamais se concretizará como tal. Ele pode ser, no máximo, também e apenas, uma demanda em disputa.

Dito isto, volto para a primeira ideia da sua pergunta, a que versa sobre a centralidade do conhecimento no campo do currículo (e eu vou aí acrescentar no Brasil, para ser mais modesta). Como destaquei na questão anterior, entendo o estudo do pensamento curricular como um estudo de política curricular em que estamos disputando os sentidos de currículo. Dessa forma, no espaço acadêmico, demandas pela significação de currículo disputam hegemonia e, tenho entendido, que, no Brasil, como em outros países onde a teorização critica da Nova Sociologia da Educação teve muita penetração (Austrália, África do Sul, por exemplo), a definição de currículo é impactada pela ideia de conhecimento entendido quase que como sinônimo de conteúdo: aquilo que será selecionado e organizado para ser ensinado nas escolas. A própria adjetivação do conhecimento como escolar pode ser indicativa dessa sinonímia e veja bem que não estou afirmando que porque é escolar está-se falando de conteúdos, é apenas uma ilação. Se seguimos um pouco mais na análise do pensamento curricular no Brasil, vemos que o binômio currículo-conhecimento tende a se estreitar ainda mais com a legitimação de um certo tipo de conhecimento: por vezes definido como científico, outras como conhecimento acumulado pela humanidade. Aqui, veja, a despeito das diferenças entre as “tradições teóricas” que sustentam essas significações, tenho entendido que elas se articulam na defesa de um sentido para o vínculo currículo-conhecimento. Alguns perguntam, mas conhecimento não poderia ser definido de outra forma? E me acusam de reificar o termo conhecimento. Aproveito a oportunidade para voltar ao que disse acima: é possível entender/definir conhecimento de muitas formas, mas quero fugir ao campo da idealidade. A princípio tudo é possível, mas nem tudo acontece porque as relações de poder que constituem a política controlam sentidos e criam indizíveis. Julgo que a produção de outros sentidos só pode surgir da desconstrução dos bloqueios que produzem o discurso que aí está como único possível e, novamente, isso só é feito em situação. Portanto, entendo meus textos, em que “acuso” a nós mesmos, acadêmicos do campo do currículo, de estarmos produzindo um discurso conservador ao aproximarmos currículo e conhecimento/conteúdo, são apenas tentativas políticas de deslocar essa hegemonia de significação do currículo.

Porque essa hegemonia começou a me incomodar tem a ver com o fato ter percebido, em minhas pesquisas sobre as questões da diferença, um recrudescimento da importância de definir conteúdos (nacionais) para o currículo escolar. E não estou falando de políticas nacionais como BNCC e PCN, mas de textos acadêmicos do campo do currículo (em sentido mais estrito dos pesquisadores que se definem como do currículo, assim como outros que lidam com currículo definindo-se como, por exemplo, de ensino de). Conforme as demandas por representação ganhavam força, mesmo nas propostas governamentais como os PCN, acirravam-se os discursos em defesa de um conteúdo universal básico, a que todos teriam que ter acesso através da escola. Os exemplos eram os mais banais, tipo as crianças não tem que aprender a ler e escrever na escola? Mas quem mesmo estava defendendo que isso não era importante a ponto de ser necessário definir isso como obrigatório em todos os currículos? A disputa não estava, obviamente, aí. Minha leitura passou a defender que o que se buscava com a defesa desse conteúdo universal básico era controlar o surgimento da diferença, seja aquela que as políticas afirmativas e identitárias estavam trazendo para a escola, seja aquela imprevisibilidade que caracteriza a educação - a possibilidade de ser em plenitude. Por isso, tenho entendido que a centralidade do conhecimento/conteúdo na teoria curricular - que significa currículo como sinônimo de seleção de conteúdos - torna a educação impossível posto que a reduz ao ensino. Veja bem, não é que a escola não possa ou não deva ensinar, não é que o professor pensar em conhecimento seja um problema. Não me julgo capaz de falar sobre o que se produz na escola do ar-condicionado da minha sala na Universidade (essa é uma outra luta política que acontece naquele lugar protagonizada por aqueles sujeitos). A minha luta política é pela disputa da significação de currículo no campo acadêmico e aí defendo que: a importância que temos dado ao conhecimento/conteúdo na definição do que é currículo responde a uma demanda por invisibilizar o que é imprevisível na educação (seja o conhecimento do outro não educado pelo espelho do Iluminismo, sejam os afetos e afetações que constituem os sujeitos da escola, sejam as múltiplas formas dos corpos, seja o “jeitinho” que não é só brasileiro e que todos damos para viver num mundo cheio de exclusões). Esse é, para mim, o problema que quero atacar ao fazer pesquisa no campo da educação e do currículo. Como podemos, na nossa ação política que, de alguma forma, irá produzir sentidos para currículo, criar discursos que desloquem e sigam deslocando normas que produzem o Outro abjeto, usando a expressão de Butler. Entendo que deslocar o sentido de currículo - produzido pela teoria curricular - de modo a que ele dê conta de reconhecer como legítimo “o que não é espelho” é, julgo, nossa responsabilidade. Isso terá efeitos na escola? Talvez. Provavelmente. Mas como sentidos em circulação na outra luta que lá se trava. Efeitos, aqui como ao longo das outras respostas, não é o resultado de uma causa, mas pretende dar conta de que o jogo político produz outros, muitos, plurais e imprevisíveis efeitos.

RRDS - Já que conversamos sobre as demandas neoconservadoras, no que se refere ao conhecimento escolar como podemos avaliar a Base Nacional Comum Curricular recentemente definida para as políticas brasileiras? Como políticas dessa natureza são recebidas pelas associações científicas da área da educação e pelos pesquisadores do campo dos Estudos Curriculares?

EFM - Um pouco da resposta a essas questões está embutida nas questões anteriores, de modo que não vou retomar o que lá foi dito, mas discutir um pouco a luta política que se travou pela significação de uma base nacional curricular comum. E, nesse sentido, quero retomar a ideia de que, primeiro, essas políticas não são recebidas pelas associações, mas são produzidas, também, por elas. E, segundo, de que as associações (articulações, mas uso o termo associações de propósito) são produzidas por demandas plurais dentro das Associações enquanto instituições. Ou seja, qual a posição da ANPEd? Embora ela tenha uma posição oficial, que muito nos honra que coincida com a posição oficial do GT de Currículo e da Associação Brasileira de Currículo (que trabalham de forma articulada), há, em seu interior, muitas associações (agrupamentos) de pesquisadores em torno de demandas específicas que, por vezes, se alinham com a defesa de uma base nacional curricular comum por razões diversas. Por exemplo, arte educadores (todos? Certamente, não, mas estou me referindo a demandas que constituíram esse grupo de pressão como um todo homogeneizado pelo nome) tenderam a ver na base uma possibilidade de legitimação de um saber expulso do sentido hegemonizado de conhecimento/conteúdos escolares. O mesmo ocorreu com o ensino de espanhol. A educação infantil participou ativamente das discussões (iniciais) da base. Grupos ligados ao ensino de disciplinas específicas sempre tiveram demandas por currículos nacionais e, muitos, atuaram na formulação da base. A primeira versão do documento, aliás, foi feita pelo CEALE/UFMG. Movimentos sociais - que têm uma atuação importante na constituição da ANPEd - disputaram a inserção de suas demandas na base. Mesmo entre os pesquisadores de currículo - que tenderam a ser mais críticos em relação à política - não há consenso e, vários membros desse “grupo” atuaram na formulação de documentos. Eu tenho uma posição terminantemente contrária a uma base curricular nacional - pelos motivos que elenquei acima, resumindo, pelos efeitos de controle sobre o imprevisível -, mas não acho produtivo ou adequado fazer uma caça às bruxas. Posso até não querer jantar com quem defende a base (*risos), mas, como pesquisadora, membro das associações, tenho a obrigação ética de disputar sentidos com esses colegas, de tentar deslocar o jogo de forças que, entendo, nos empurrou de volta para uma política excludente da alteridade como tal. Nem estou aqui falando de um outro específico, nomeável, mas da alteridade em si, a possibilidade de existir “não sendo espelho” (e quero destacar que até os espelhos refratam, de modo que a esperança segue acessa). Em relação à alteridade nomeável - talvez um pouco mais palpável para minha argumentação -, não é que tivéssemos ganho muito espaço recentemente na luta por representação, mas é inegável que tivemos conquistas que hoje estão, cada vez mais, ameaçadas.

Acho que é importante perceber que a formulação da base não se iniciou recentemente, trata-se de uma disputa que vem se travando desde, pelo menos, a elaboração da LDB. Os PCN foram, é bom lembrar, a primeira tentativa de base, abortada pelo CNE, em função da pressão de comunidades acadêmicas e Associações (não que ali houvesse acordo, posição única dentro dessas instituições). Ao longo do processo, muitas foram as demandas em jogo e muitas as articulações produzidas na disputa por um sentido de base. A elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais e a tentativa de hegemonizá-las como a base de que fala a LDB foi um dos movimentos mais consistentes na tentativa de restringir o escopo do controle que a base, como norma, vai exercer sobre a escola. Finalmente, PNE e três versões do documento, distintas, mas com a mesma pretensão de controlar a imprevisibilidade sem a qual, para mim, não há educação digna desse nome.

O jogo político ao longo desses anos envolveu muitas demandas e constituiu muitos grupos. Demandas que nos acostumamos a reconhecer por nomes (não excludentes porque dependentes da luta) - progressistas, identitárias, conservadoras, liberais, de direita, de esquerda - foram se articulando durante governos com perfis políticos distintos. Julgo que precisamos avaliar decisões que fomos tomando ao longo do percurso. Vejo os meus textos sobre a BNCC e sobre os PCN (e de vários colegas) como tentativas de fazer isso, seja investigando redes de equivalência entre demandas liberais e conservadoras, seja tentado entender como fomos entrelaçando nossas demandas críticas em tais redes. E, como destaquei nas questões anteriores, acho importantíssimo que ataquemos as construções dos discursos pedagógicos que bloqueiam o fluxo da significação, sabendo que as estamos atacando de dentro e que, portanto, não é possível deixar fluir sentidos sem limites. Apenas como provocação, como jogamos as políticas com foco na alteridade para o âmbito da SECADI e seguimos fazendo BNCC no MEC? E o uso do plural, nesse caso, não é majestático. Como julgamos que a articulação com grupos liberais na construção de uma base nacional poderia produzir um documento em que os direitos da educação seriam representados por ideais utópicos de emancipação e equidade? Um dos aspectos desse jogo político que tenho investigado - que já comentei na questão anterior - diz respeito ao quanto nossa teoria pedagógica, mesmo crítica, tem um desejo de controle que, por vezes, nos empurra a articulações de que, em seguida, nos arrependemos. Precisamos, e essa é “minha militância teórica”, desconstruir a máxima de que para educar é preciso saber onde se quer chegar. A lógica de projetar o outro é, nos termos com que nos acostumamos a definir posições políticas, neoliberal.

RRDS - Em um de seus últimos artigos, publicado na revista Currículo sem Fronteiras, encontramos uma significativa formulação acerca do reconhecimento, na medida em que este produz uma experiência de “estar com o outro” e “sutura a vulnerabilidade constitutiva da subjetividade”. Aliás, com relação a este ponto, fica evidente sua inspiração nos escritos políticos de Judith Butler. Gostaria que a senhora ampliasse essa reflexão, considerando as conexões entre conhecimento, reconhecimento e alteridade para a teoria curricular.

EFM - Aqui quero começar aproveitando essa oportunidade para tentar deixar mais claro um aspecto que talvez, a julgar pela leitura de um amigo com quem discuti o texto (Thiago Ranniery), não tenha ficado muito bem explicitado no meu argumento. Meu argumento brincou com os termos conhecimento e re-conhecimento, intentando criticar a ideia de um conhecer de novo o já dado. Com isso, posso ter criado a sensação de que o reconhecimento é indesejável, efeito que eu não gostaria de ter provocado. Em diálogo com Butler, ao contrário, entendo que a experiência educativa é a experiência de “estar com o outro”, que só é possível pela “vulnerabilidade constitutiva da subjetividade”. O reconhecimento como algo que emerge desse “estar com” é, entendo, o cerne da educação e o próprio sentido da luta política necessária. O reconhecimento que, argumentei, sutura (ou tenta fazê-lo, talvez fosse mais apropriado) essa vulnerabilidade - e aniquila o outro ou a alteridade constitutiva da subjetividade - é o que denominei projeto de reconhecimento. Tentei, com esse termo, me referir às propostas educativas estruturadas em torno de uma teleologia que define como o outro deve ser. Para tornar a discussão mais concreta, tem sido comum afirmar que a educação deve formar o cidadão crítico e que, para tanto, é necessário isto ou aquilo (o domínio de conteúdos, por exemplo). O que tentei chamar de projeto de reconhecimento é essa ideia de que é possível (e desejável) que uma proposta educacional defina, de antemão, o que ela imagina que o outro deve ser e como produzi-lo desta forma. Entendo que tal pretensão opera na tentativa de suturar a vulnerabilidade que permite ao outro se subjetivar no encontro com a alteridade.

Há, nas assunções que estou fazendo para produzir esse argumento, pelo menos, uma falta de atenção ao fato de que a sutura nunca sutura ou de que a norma nunca normatiza. Ou seja, de que mesmo que as propostas educacionais projetem o outro, sempre será possível existir de outra maneira, produzir-se em outros reconhecimentos que não aqueles projetados. Talvez essa falta de atenção enrijeça a leitura que estou fazendo de Butler, como argumenta Thiago, mas eu tenho gostado desses textos mais recentes (não sei se políticos, porque acho que sua teoria sempre se constituiu como política) porque consigo lidar - e nem assim tão bem - com uma questão que me inquieta (talvez enrijecendo o que Butler argumenta). Essa questão poderia ser definida, em termos mais clássicos, como a relevância da teoria que fazemos. E não falo de aplicabilidade, acho ilegítima a pretensão de dar conta dos problemas da escola ou da educação no fazer da teoria. Quando uso o termo relevância, estou me referindo à relevância política ou, em outras palavras, à possibilidade de intervir a partir do trabalho específico que realizo que é o trabalho de pensar teoricamente o campo do currículo. Talvez eu pudesse redigir meu problema da seguinte forma: se a vulnerabilidade é constitutiva da subjetividade e se o outro como alteridade sempre poderá existir e exigir reconhecimento, se a norma jamais poderá invisibilizar totalmente o outro que nela não tem lugar, para que essa intervenção que estou chamando de política? Para tentar evitar um novo mal-entendido, quero explicitar que não estou falando de uma intervenção calculada para chegar a algum lugar, mas da responsabilidade que eu (como acadêmica) julgo que tenho (qualquer um a tem em suas esferas de vida) de, como diz Derrida na página 14 de A Força da Lei, “intensificação máxima das transformações em curso”. Não se trata de intervir para criar, de uma vez por todas, um outro currículo totalmente distinto, mas de uma intervenção que nunca chegará a termo (porque não o termo a que chegar), e que, por isso, será sempre necessária.

O que me agrada nestes textos de Butler que tenho mais recentemente, de forma tímida, introduzido em alguns dos meus textos é a ideia de que somos todos constitutivamente vulneráveis e, por isso, nossa subjetividade é constituída na relação com o outro. Isso nos deixa vulneráveis ao outro, mas não legitima todo e qualquer “ataque” perpetrado contra o sujeito. Essa discussão fica muito clara no texto em que Butler dialoga com Anastasiou (Dispossessions), uma obra de que tenho gostado muito. No caso deste texto a que você se refere, meu argumento tentou dar conta disso: os projetos de reconhecimento sustentados pelo currículo apostam na definição a priori do que o sujeito escolarizado deve se tornar e isso é uma tentativa de suturar a vulnerabilidade. Mesmo que não o faça (porque nenhuma ação pode fazê-lo), a tentativa em si é ilegítima e torna a intervenção (teórica) em prol da intensificação de transformações necessária.

Tenho a pretensão de que a discussão que fiz neste texto dê continuidade a uma preocupação que tenho trabalhado já há algum tempo em relação ao espaço para a alteridade, não no currículo, mas no pensamento curricular. Primeiramente com Bhabha e em seguida com a teoria do discurso - tendo ambas me levado a Derrida - venho construindo o entendimento de que precisamos falar de educação ao falar de currículo. Nossa tradição ligada às teorias críticas e especialmente à NSE tem nos levado a uma aproximação pouco profícua entre currículo e ensino. O processo educativo é, a meu ver, um processo de constituir-se sujeito na relação com o outro, um processo sem fim, posto que o outro seguirá nos constituindo sempre. Talvez pudéssemos dizer que nos educamos quando nos “alterizamos” e, como nos “alterizamos” o tempo todo, nos educamos o tempo todo. E aqui mais uma vez sou levada de volta àquele meu problema: sem dúvida nos alterizamos o tempo todo, mas há processos sociais/relações de poder que buscam bloquear essa “alterização”. A intervenção política deve ser no sentido de atrofiar o bloqueio, intensificando a “alterização” em curso. É isso que entendo que a teoria curricular precisa fazer, que os professores e que cada um de nós precisamos fazer a cada minuto de nossas vidas. Alguns perguntam qual a especificidade da escola, então? Arrisco sugerir que sejamos mais ousados para sermos capazes de ver que cada escola tem sua singularidade (prefiro ao termo especificidade) e que a legitimidade da escola (que é o que está em discussão com essa questão) jamais poderá ser garantida a priori, ela terá que ser conquistada a cada ato responsável. Guilherme Lemos tem tentado me fazer pensar nisso em diálogo com Hannah Arendt para quem, segundo ele, a ação política se processa entre a esperança e o perdão e singularidade e pluralidade são auto referentes. Talvez esse venha a ser um caminho.

RRDS - Quais os atuais dilemas e perspectivas que se apresentam para a produção de pesquisas sobre currículo e política curricular no Brasil?

EFM - Não sei se sei responder a isso e, na verdade, talvez aqui seja onde eu mais precise usar a primeira pessoa como que para garantir que estou falando dos meus incômodos e das minhas esperanças, sem que eles estejam relacionados (mantenho minha rejeição a uma linearidade temporal). Leio a sua pergunta na linha de como podemos agir academicamente, neste campo de estudos, de forma responsável, atuando politicamente para ampliar as possibilidades de significação. Isso envolve luta por ampliação de acesso à pesquisa e à pós-graduação, mas também à divulgação do conhecimento produzido. Essa é uma luta por educação pública em todos os níveis e por financiamento público das Universidades. Financiamento não basta, é verdade, mas sem ele a pesquisa, como atividade institucionalizada, não existe. Entendo que a pujança dos campos de conhecimento - que leio como ampliação das formas de significação - não é apenas quantitativa, mas depende do quantitativo. É preciso encorpar a pesquisa em currículo (e em todas as áreas, diria) para que possamos constituir comunidades acadêmicas onde a alteridade e o pensamento menos consonante ao já dito aflorem. Novamente, não quero implicar que exista uma situação em que um ou outro inexista, mas que as estratégias de controle atuam por toda parte. Obviamente, elas não deixarão de atuar em uma comunidade mais robusta (em termos de tamanho, mesmo, mas não apenas), mas serão mais impactadas pelo pensar o outro.

Tenho duas experiências de “estrangeiridade” que quero comentar aqui. Uma é a de transitar por contextos nacionais diversos como pesquisadora do campo do currículo por obra de estar presidindo a “Associação Internacional para o Avanço dos Estudos Curriculares” (IAACS, em inglês). Vou usar os exemplos mais óbvios dos EUA e Canadá, em que o financiamento da pesquisa é infinitamente superior ao do Brasil. E estou me referindo ao financiamento público, na medida em que, mesmo nos EUA, o Estado é o grande financiador da pesquisa. Isso implica mais pós-graduações, mais pesquisadores formados, mais periódicos de qualidade (seja lá o que isso signifique para cada comunidade) e também maior demanda e pressão por recursos. Se tudo isso traz competição, controle e homogeneidade, traz também a necessidade de viver na diferença. Minhas andanças nesses dois países têm me ensinado a debater mais com o próprio campo e fora dele, a ler mais o que os colegas escrevem, a ter uma postura mais auto-reflexiva em relação ao meu trabalho. Não é que eu não tenha aprendido isso aqui como a prática da boa pesquisa, mas é que não tinha praticado isso aqui com tanta intensidade. Vou dar um exemplo que acho muito óbvio: a forma como lidamos com os pareceres em periódicos, nos dois lados do processo. Como pareceristas, avaliamos mais do que criamos um “diálogo” acadêmico com nossos colegas via atividade de avaliação. Poucas vezes recebi (ou dei) pareceres em que se solicitava a ampliação de uma ideia com base em estudos que eu não tinha considerado ou mesmo em que se sugeria uma bibliografia com a qual eu pudesse rever o texto. Quase todos os pareceres que recebo ou recebi ao longo da vida no Brasil são de aceitação ou rejeição total, alguns pedindo mudanças estruturais ou pontuais, mas só me lembro de um em que foi travado um amplo debate acadêmico, com sugestão de autores que aprimorariam meu argumento. E, confesso, que minha primeira reação ao parecer, foi pensar “que saco!”. Minha atuação como editora de periódicos internacionais, ao contrário, tem me feito ver como o debate entre avaliador e autor se faz mais forte, tanto por parte das contribuições dos avaliadores quanto da disponibilidade dos autores para rever seus textos.

A segunda experiência de “estrangeiridade” que tem me ajudado não é geográfica, mas tem a ver com áreas de conhecimento. Neste caso, um contato vinculado à atividade de gestão da pesquisa na Universidade e em agências de fomento. Interessante perceber como outras áreas - normalmente as biológicas e exatas - lidam com a institucionalização da pesquisa, assim como com a referenciação aos trabalhos do campo. Estão preocupados com os fatores de impacto, é verdade, mas talvez não seja só isso ou talvez isso tenha um lado positivo no sentido da ampliação das possibilidades de significar. E não estou aqui desconhecendo que alguns sentidos são impedidos de circular pela própria dinâmica dos financiamentos. Uma maior institucionalização da pesquisa em currículo, com o fortalecimento dos grupos, pode contribuir para esse debate acadêmico que gostaria que se intensificasse. Como damos conta de nossas pesquisas e das pesquisas daqueles a quem orientamos em termos de constituir um campo de ideias é um desafio que acho que permanece muito forte para nós. Uma pergunta que sempre me faço na leitura das muitas teses que avaliamos é: cadê os outros trabalhos desse grupo de pesquisa aqui referenciados? O mesmo ocorre, por vezes, na leitura de muitos de nossos artigos.

Há um outro incômodo, que não é muito distinto deste, mas que gostaria de citar separadamente. Ele diz respeito à nossa capacidade de tratar teoricamente nossas questões ou de localizar nossa teoria. Se considero, por exemplo, os projetos de pesquisa e artigos que recebo para parecer, há duas coisas que me incomodam. Primeiro, a maioria deles dialoga muito pouco com a teoria (de currículo, mas não apenas) e, muito frequentemente, uma teoria antiga. Não estou dizendo que o uso dos clássicos é ruim, mas que muito se tem produzido no diálogo com essas obras e que a ausência dessas referências, enfraquece nosso pensamento do ponto de vista teórico. Tenho tentado ser vigilante em relação a isso porque entendo que isso é crucial para a atividade acadêmica. Um segundo aspecto que me incomoda - e este muito mais difícil - é como temos dificuldade de produzir teoria situada - aproximar mais organicamente a teoria do nosso objeto tratando-o de forma contextual. Por vezes, tenho a sensação de que “importamos” nossos objetos junto com as teorizações produzidas para deles dar conta em outros contextos. Talvez na medida que sigamos produzindo conhecimento sobre o Brasil esse problema vá se diluindo.

Antes de finalizar, quero apenas reafirmar algo que já disse acima. Entendo que nossa capacidade de “intensificar as transformações em curso” no campo do currículo (e da educação) é hoje muito maior do que foi no passado em razão do trabalho responsável realizado ao longo de todos esses anos de pós-graduação.

Recebido: 06 de Novembro de 2017; Aceito: 23 de Maio de 2018

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