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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.64 Uberlândia jan./abr 2018  Epub 20-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n64a2018-10 

Artigos

Cura mítica e cura psíquica no Cármides de Platão

Mytical healing and psychic healing in Plato’s Charmides

Cura mítica y cura psíquica en Cármides de Platón

Luciano Coutinho* 

*Doutor em Estudos Clássicos / Filosofia Antiga pela Universidade de Coimbra - UC. Professor do curso de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: lucianocoutinho1@gmail.com


Resumo

Platão, no Cármides, estabelece uma reflexão filosófica em torno do processo humano de cura. Partindo do mito trácio de Zalmoxis, o filósofo ateniense faz sua personagem Sócrates expor que tal processo é regido pela psyche humana e não por princípios externos a ela. Para tanto, Sócrates substitui o caráter mágico em torno desse processo, sustentado pela crença trácia, por um caráter psicológico. Nesse sentido, tentaremos evidenciar como Platão opera com tais princípios e sustenta sua própria teoria acerca da cura psíquica.

Palavras-chave: Platão; Cármides; Cura Mítica; Cura Psíquica

Abstract

In the Charmides, Plato establishes a philosophical reflection on the human healing process. Based on the Thracian myth of Zalmoxis, the Athenian philosopher makes his character Socrates argue that this process is governed by the human psyche and not by external principles. Therefore, Socrates replaces the magical characteristics around this process, sustained by Thracian belief, by psychological characteristics. In this sense, we will try to emphasize how Plato operates with those principles and maintains his own theory about psychic healing.

Keywords: Plato; Charmides; Mythical Healing; Psychic Healing

Resumen

En Cármides, Platón propone una reflexión filosófica sobre el proceso de cura para el hombre. A partir del mito tracio de Zalmoxis, el filósofo ateniense lleva a su personaje, Sócrates, a exponer que tal proceso de cura se rige por la psyche humana y no por principios externos a ella. En consecuencia, Sócrates reemplaza el carácter mágico de esta cura, que se basa en la creencia tracia y según lo presenta el mito de Zalmoxis, por un proceso psicológico. En este sentido, intentaremos evidenciar cómo Platón opera con tales principios y de que manera sostiene su propia teoría acerca de la cura psíquica.

Palabras clave: Platón; Cármides; Cura Mítica; Cura Psíquica

Apresentação do problema

Muitos mitos da antiguidade apresentam imagens dedicadas à busca da boa saúde.

Os getas da Trácia, segundo as Histórias1 de Heródoto, por exemplo, acreditavam numa divindade que seria capaz de sanar as necessidades de seus convivas. Zalmoxis2 era considerado pelos getas um deus capaz de sanar, a partir de poderes mágicos, os problemas de seus convivas, além da capacidade de lhes conferir imortalidade. Como um verdadeiro mitologos, Platão, muito comumente, elabora suas teorias a partir de imagens míticas3 - algumas vezes criadas por ele, outras vezes recriadas a partir de elementos míticos precedentes a ele. Interessado em refletir o processo de cura na vida prática da humanidade, Platão, em seu diálogo Cármides, parte do repertório mítico em torno de Zalmoxis, para desenvolver sua própria teoria acerca do processo de cura.

Nesse sentido, tentaremos demonstrar quais estratégias o filósofo ateniense utiliza para fundamentar uma teoria que substitui o caráter mágico, presente no mito originário de Zalmoxis, por um caráter psicológico. Para tanto, faremos uma breve incursão no mito originário de Zalmoxis nas Histórias de Heródoto, para, posteriormente, enfrentarmos o problema da recriação desse mito no Cármides de Platão, a fim de buscarmos demonstrar como o filósofo ateniense sustenta uma teoria psicológica do processo de cura a partir de alterações e substituições de elementos do mito originário.

Os rituais zalmoxianos de cura nas Histórias de Heródoto

As Histórias, de Heródoto tratam da figura de Zalmoxis sob duas variantes: uma a partir da crença dos getas; outra a partir dos gregos que viviam na Trácia. Para estes últimos, Zalmoxis era apenas um homem que fora escravo de Pitágoras, mas para os primeiros, ele era um deus com poderes de sanar as necessidades de seus seguidores, e de lhes conferir imortalidade. Para analisar a simbologia mitológica dos poderes da divindade trácia, a variante geta será nosso guia.

Duas imagens são imprescindíveis, na variante geta do relato originário de Zalmoxis presente nas Histórias de Heródoto, para a discussão dos poderes de Zalmoxis em torno do processo de cura: 1) o ritual de morte e de ressurreição de Zalmoxis; 2) o ritual de morte do conviva zalmoxiano.

  • 1- o ritual de morte e de ressurreição de Zalmoxis, em Heródoto, envolve alguns importantes elementos míticos para a compreensão dos poderes mágicos de cura em torno da divindade: 1.1) a câmara subterrânea; 1.2) a imagem de katabasis; 1.3) os jantares dogmáticos.

    Nesse primeiro ritual, tentaremos analisar os poderes míticos ligados propriamente à divindade. Em outras palavras, buscaremos verificar como o mito apresenta os poderes de Zalmoxis em torno da temática de cura, considerando a variante geta, e os fundamentos desses poderes nessa mesma variante. Assim, analisaremos cada um desses elementos míticos separadamente:

    • 1.1- a “câmara subterrânea”4 (Hdt. Hist. 4, 95, 10) é o lugar para onde Zalmoxis teria ido, durante seu período de morte, para posteriormente retornar de lá à vida. Esta câmara simboliza uma obscuridade que nos remete à imagem de uma caverna: na leitura de Estrabão, Zalmoxis teria vivido como um homem em um “lugar cavernoso”5 (Str. Geogr. 7, 3, 298), que estaria - segundo adiciona Burkert6 - no interior de uma montanha. Concordamos com a leitura antropológica de Eliade (2002, pp. 424-425) ao afirmar que Zalmoxis não foi um xamã; mas não podemos desprezar a simbologia xamânica em torno de sua figura: “um xamã mítico, ou um protótipo de xamã” (DODDS, 2002, p. 150);

    • 1.2- a imagem de katabasis7 indica um ritual, em que as provações atestam o aprendizado contra as intempéries da própria morte. Se considerarmos a simbologia xamânica em torno de Zalmoxis, essa lógica interna do ritual indica a fundamentação do poder de cura adquirido depois de tal experiência. Se aceitarmos a figura de Zalmoxis como um tipo de protótipo de xamã, a imagem de iniciação xamânica poderá ser bastante válida:

      Segundo outra informação dos iacutos, os maus espíritos levam a alma do futuro xamã para o Inferno e lá a encerram numa casa durante três anos (um ano apenas para os que irão tornar-se xamãs inferiores). É ali que o xamã passa pela iniciação: os espíritos cortam-lhe a cabeça e a deixam de lado (pois o candidato deve ver com os próprios olhos o seu desmembramento); em seguida, cortam-no em pedacinhos, que são distribuídos aos espíritos das diversas doenças. Só com essa condição o xamã adquire o poder de curar. Seus ossos são então recobertos de nova carne, e em certos casos dão-lhe também sangue novo (ELIADE, 2002, p. 53).

    • 1.3- os jantares dogmáticos8 (Hdt. Hist. 4, 95, 11), mais ligados à figura de Pitágoras9 - um tipo de “mago e xamã” (CORNELLI, 2011, p. 61) - que propriamente a Zalmoxis, indicam a busca pela dogmatização em torno da crença na imortalidade10.

      Com esses três elementos, é possível perceber que as imagens míticas em torno de Zalmoxis, segundo a crença geta, fundamentam a crença ritual de seus convivas, que buscam a neutralização das intempéries da vida prática. O fundamento por trás de tais elementos é que, se Zalmoxis passou pela morte e ressuscitou, seus poderes são tais que poderiam até mesmo causar o mesmo princípio de imortalidade a seus seguidores. Para além disso, na vida prática, seus poderes poderiam ainda sanar as necessidades que perturbam seus seguidores. A imagem de deus curador, portanto, é fundamentada pela sua experiência no plano ínfero. Com tal experiência, Zalmoxis teria adquirido o conhecimento contra os males e as enfermidades da vida prática. Assim, seus seguidores buscam ritualisticamente comunicarem-se com a divindade, a fim de sanarem seus problemas e conquistarem a imortalidade.

  • 2- o ritual de morte do conviva zalmoxiano, em Heródoto, também envolve elementos míticos importantes para se compreender os poderes mágicos em torno das promessas de cura a seus convivas: 2.1) o mensageiro sorteado; 2.2) a mensagem; 2.3) a cura dos problemas.

    Nesse segundo ritual, tentaremos analisar as práticas dos seguidores zalmoxianos e os poderes almejados por eles a partir dessas práticas rituais. Dito de outra maneira, buscaremos esclarecer em que medida o ritual zalmoxiano, relatado em Heródoto, estabelece a crença em um poder fundamentado na divindade e transmitido magicamente para seus seguidores. Para isso, analisaremos os três elementos míticos também separadamente:

    • 2.1- o “mensageiro”11 (Hdt. Hist. 4, 94, 5) “sorteado”12 (Hdt. Hist. 4, 94, 4) indica que a escolha do eleito é feita de maneira bastante prática e não a partir de princípios morais13. O eleito, se assim podemos dizer, é escolhido à sorte para ser enviado a Zalmoxis. Este envio consiste em ser trespassado “pelas lanças”14 (Hdt. Hist. 4, 95, 10), que têm como propósito causar-lhe a morte. Com isso, espera-se que ele vá ter com a divindade para lhe transmitir as “necessidades”15 (Hdt. Hist. 4, 94, 6) dos convivas;

    • 2.2- a mensagem transmitida supõe, por sua vez, ser recebida pela divindade. A imagem que sugere a garantia da recepção da mensagem por parte de Zalmoxis está na crença de que, se o eleito morrer nas lanças, é sinal de que o deus lhe foi “propício”16 (Hdt. Hist. 4, 94, 11). Isto significa que a mensagem será, segundo a crença geta, certamente entregue. É pela mensagem que a divindade teria conhecimento das necessidades de seus seguidores. Com ela, supõe-se que Zalmoxis poderá sanar os problemas dos convivas do mensageiro, fazendo uso de seus poderes curadores;

    • 2.3- a cura dos problemas, em Heródoto, é expressa pelo desejo maior do ritual zalmoxiano de morte, que supõe ao mensageiro a tarefa de comunicar à divindade as necessidades momentâneas (Hdt. Hist. 4, 94, 6)17. Zalmoxis, como um tipo de protótipo de xamã ou de xamã mítico, teria poderes para sanar as necessidades de seus seguidores. Mesmo que Heródoto não utilize a expressão iasthai (curar) para se referir a esse poder zalmoxiano, comunicar as necessidades equivale, no contexto da variante geta, buscar a cura dos problemas por meio da divindade. Tais curas têm por fundamento os poderes divinos, que, magicamente, seriam direcionados aos seguidores.

É possível perceber, a partir desses elementos, que as imagens rituais em torno dos seguidores de Zalmoxis fundamentam uma prática que se supõe mágica. Por meio desse processo mágico-ritual, seria possível vencer os problemas da vida. O deus curador, portanto, tendo conhecimento das necessidades de seus convivas, procede de modo mágico para reparar e curar tais problemas. O processo é mágico porque Zalmoxis não faz seus seguidores buscarem a cura para seus problemas, mas antes resolveria, ele próprio, os problemas dos convivas.

A cura mítica do fármaco zalmoxiano no Cármides de Platão

Platão, no seu diálogo Cármides, faz uma referência direta ao mito de Zalmoxis. Em sua referência, no entanto, ele recria o mito originário, a fim de apresentá-lo segundo uma versão própria.

Para tanto, Platão altera18 o agente de cura do mito originário, Zalmoxis, por um “fármaco”19 (Chrm. 155b6) zalmoxiano. Platão, em sua recriação do mito trácio, retira da divindade trácia o poder direto de ação de cura, e propõe, ainda miticamente, um elemento mais técnico para representar esse poder: o tal fármaco com poderes encantados de cura. Embora ligado a Zalmoxis, o fármaco reclama por certa independência em relação à própria divindade, na medida em que sua utilização poderia ser feita por não-seguidores de Zalmoxis, conforme ocorre com a personagem Sócrates.

Platão cria um elemento com poderes de cura no diálogo e liga-o ao mito trácio: o fármaco aprendido por Sócrates de “um médico discípulo de zalmoxis”20 (Chrm. 156d5). Constituído por um “encantamento” (Chrm. 155e5)21 mágico e por uma “erva”22 (Chrm. 155e5), o fármaco seria causa de “cura”23 (Chrm. 156e1) para as enfermidades do soma e da psyche da humanidade. Nessa versão, não é a divindade, pelo menos diretamente como em Heródoto, a responsável pelo processo de cura, mas o encantamento do fármaco zalmoxiano.

No mito originário, a variante geta apresenta a figura de Zalmoxis como agente direto de cura. Seus poderes divinos seriam o fundamento para tal capacidade. Para que a divindade sane os problemas de seus seguidores, é indispensável que lhe seja enviado um mensageiro, a fim de que lhe comunique as necessidades dos convivas. Assim, os problemas individuais e comunitários só podem ser sanados pela divindade, como fica evidente na variação geta da versão herodotiana, por meio da organização ritual de seus seguidores. Os poderes de Zalmoxis são direcionados a seus seguidores apenas. Esse ponto é fundamental na compreensão do mito trácio, porque nos demonstra que a divindade só poderia agir se houvesse, por parte do mensageiro e seus convivas, a crença na própria divindade. A variante geta do mito originário de Heródoto, portanto, atesta-nos uma necessidade causal: a crença em Zalmoxis.

Platão, no entanto, ao alterar o agente de cura do mito originário por um fármaco mágico, estabelece uma nova relação entre crença e conquista de cura. Nessa nova relação, a crença na divindade é dispensável, uma vez que o “encantamento” do fármaco zalmoxiano assume, em um primeiro nível do diálogo, o papel mítico direto de agente de cura. Nesse sentido, o utilizador do fármaco precisaria dar crédito aos poderes do encantamento, que, no diálogo, podem ter ação efetiva sobre não seguidores de Zalmoxis. Afinal, sua ação seria diretamente na psyche do utilizador do fármaco, segundo o médico discípulo de Zalmoxis que ensinara o fármaco a Sócrates: “Para tudo quanto é bom ou mal no corpo e no homem-todo, a psyche é causa”24 (Chrm. 156e6-8).

Por um lado, nessa primeira alteração do agente de cura, Platão mantém o caráter mágico próprio do mito, por outro, retira da divindade o poder de decisão acerca do processo de cura. No relato originário, a cura depende de uma ação ritual comunitária, que busca oferecer um sacrifício para a obtenção da graça divina da cura. Na recriação do mito trácio por Platão, no Cármides, a cura depende de um fármaco encantado que teria poderes mágicos de cura para agir na psyche humana.

Em outras palavras, o que dependia de uma empreitada ritual coletiva dos convivas, nas Histórias, passa a ser, no Cármides, um princípio subjetivo.

Platão, de tal maneira, desloca o agente de cura para o fármaco zalmoxiano encantado, e, com isso, introduz em sua recriação do mito trácio um elemento fundamental para sua teoria psíquica de cura: o poder inato e natural da psyche25 humana de promover auto-cura.

A teoria psíquica de cura no Cármides de Platão

Depois de alterar o agente de cura de “Zalmoxis” para um “fármaco” zalmoxiano em sua recriação do mito trácio no Cármides, Platão faz sua personagem Sócrates alterar o fármaco zalmoxiano em “belas palavras”26 (Chrm. 157a4-5) em suas conclusões filosóficas. O intuito por trás dessa estratégia é o que temos chamado de “substituição”27 do caráter mágico em torno do processo de cura por um caráter filosófico, que elucida tal processo como um princípio psicológico28 e não mágico.

A personagem Sócrates, nesse sentido, passa a refletir a capacidade da psyche humana de ser agente de cura de si própria e de seu soma, mas não em função dos poderes de um fármaco encantado, conforme crê o médico trácio. Em outras palavras, Platão pretende elaborar uma teoria que sustenta o processo de cura como um princípio dado não por uma causa externa e mágica29, mas antes por uma causa interna e natural.

Sócrates busca demonstrar que a psyche tem poderes inerentes a ela própria, para causar bens e males ao homem-todo (Chrm. 156e6-8) de modo independente de agentes mágicos externos. E, para tirar o resquício de caráter mágico desse processo, Sócrates recontextualiza a psyche humana de modo mais ativo, na medida em que busca demonstrar que o “encantamento” serve apenas como “técnica terapêutica”30 para gerar temperança na psyche. Afinal, sendo temperante a psyche poderia dar início ao processo de cura a si própria e ao seu soma, em outras palavras, ao homem-todo31.

O encantamento presente no fármaco zalmoxiano perde, portanto, seu caráter mágico nas reflexões de Sócrates. Com isso, a personagem sustenta a teoria de que o encantamento tem sua importância, mas como um tipo de terapia psicológica para causar temperança na psyche.

A primeira questão para se compreender a teoria de Platão acerca da cura psíquica no Cármides, portanto, está na dupla significação que Platão cria para a expressão psyche: 1) ora funcionando como ente substancial, alma; 2) ora funcionando como princípios psíquicos, mentais.

  • 1- Primeiramente temos de observar que os três elementos do ritual de Zalmoxis analisados no tópico anterior (1.1- a câmara subterrânea; 1.2- a katabasis; 1.3- os jantares dogmáticos) cumprem, conforme a variante geta nas Histórias de Heródoto, função objetiva. Compreendido isto, tentaremos, em segundo lugar, perceber como Platão opera esses elementos de maneira simbólica e os propõe como princípios subjetivos da psyche humana no Cármides.

    Depois de sua descida a um plano ínfero, Zalmoxis teria passado objetivamente, como morto, três anos em uma câmara subterrânea. Posteriormente, teria adquirido poderes de cura e retornado à vida. Diante de tal experiência e poder, ele teria oferecido jantares para dogmatizar seus seguidores acerca da imortalidade. Platão, todavia, propõe a alteração de cada um desses elementos como princípio interno e subjetivo da psyche humana.

    • 1.1- a câmara subterrânea é alterada em um tipo de obscuridade psíquica do jovem Cármides. A advertência de Sócrates - “olha com atenção para dentro de ti”32 (Chrm. 160d5-6) - demonstra bastante bem essa subjetivação da câmara subterrânea. Nessa teoria, Platão busca sustentar a ideia de que a psyche humana é o local onde se deve buscar o autoconhecimento;

    • 1.2- a katabasis, nesse mesmo contexto, assume um caráter subjetivo, tornando-se, na prática, um tipo de mergulho da psyche em si própria. Seria com esse auto-mergulho que a psyche poderia alcançar o autoconhecimento, não acessível em estado de consciência;

    • 1.3- os jantares dogmáticos, ao serem subjetivados no diálogo, perdem seu caráter de imposição dogmática e assumem um caráter filosófico de autorreflexão, que se pressupõe interna e natural. Esta relação não se daria de fora para dentro, como dogma, mas de dentro para fora, como auto-compreensão que se externa de forma psicossomática no grau de saúde ou de enfermidade do homem-todo.

    Na recriação platônica do mito trácio, a expressão psyche é apresentada como um ente substancial metafísico, compreendido como “alma”. Este ente, na concepção dos trácios do diálogo, poderia alcançar até mesmo a imortalidade na utilização do tal fármaco zalmoxiano. Se no relato originário herodotiano a imortalidade deste ente era dogmatizada por Zalmoxis33, no resultado final da teoria psicológica desenvolvida por Platão no diálogo, a psyche é levada a refletir acerca de suas capacidades psíquicas, mentais. Esta mudança de significado da expressão psyche pode ser observada na maneira irônica com que Sócrates, depois de citar a capacidade zalmoxiana de conferir imortalidade, silencia-se durante todo restante do diálogo a esse suposto poder mágico. Seu silêncio, em primeiro lugar, dá-se por não crer que um fármaco encantado seja capaz de “conferir imortalidade a alguém”34 (Chrm. 156d5-6), e, em segundo lugar, porque Sócrates parece não estar preocupado - no Cármides pelo menos - com discussões acerca da imortalidade35, mas antes com a capacidade psíquica, mental, que a psyche humana tem de ser agente direto de cura e de enfermidade do homem-todo.

  • 2- Temos de observar, consequentemente, que os três elementos do ritual do mensageiro zalmoxiano (2.1- o sorteio do mensageiro; 2.2- a mensagem; 2.3- a cura dos problemas) também cumprem, no relato herodotiano, função objetiva. Ou seja, o mensageiro, segundo a crença geta nas Histórias de Heródoto, era sorteado e enviado, depois de sua morte, para comunicar as mensagens de seus convivas a Zalmoxis. O intuito objetivo dessa empreitada é receber da divindade a cura para os problemas informados pelo mensageiro. Platão, no entanto, recorre, no Cármides, à subjetivação de tais elementos.

    O ritual zalmoxiano consiste das seguintes etapas: o mensageiro é sorteado para ser atirado às lanças, morrer e ir ter com Zalmoxis, a fim de informá-lo das necessidades de seus convivas. Diante disso, almeja-se a um tipo de cura dos problemas individuais e coletivos dos seguidores de Zalmoxis. Platão, no entanto, propõe a subjetivação de cada um desses elementos:

    • 2.1- o sorteio do mensageiro, enquanto lógica interna no mito originário, perde, na recriação platônica, seu caráter amoral e assume uma moralidade eletiva. Sócrates pergunta a Crítias quem dentre os jovens é o mais belo e sábio (Chrm. 154a1-154b1). Cármides é eleito, nesse sentido, por Crítias, para representar “a beleza e a sabedoria”36 (Chrm. 153d4) dentre os jovens atenienses. Sócrates, posteriormente, tenta demonstrar que a psyche do jovem não é bela, portanto, não é sábia. Com isso, Platão altera também a imagem do sorteio para um contexto subjetivo de moralidade. Ou seja, para alcançar a cura não basta um ritual objetivo dedicado a uma divindade, é preciso antes que a psyche tenha ações belas e sábias;

    • 2.2- a mensagem objetiva, presente no mito originário herodotiano, torna-se um tipo de mensagem subjetiva que a psyche transmite ao homem-todo. É com esta mensagem de busca interior de autoconhecimento37 que ela determina seu próprio grau de saúde, estabelecendo, quando necessário, a cura das enfermidades psíquicas, somáticas ou psicossomáticas do homem-todo;

    • 2.3- a cura dos problemas dos seguidores de Zalmoxis é subjetivada, tornando-se um processo psicossomático dado pela psyche humana.

Na recriação platônica do mito trácio, o ritual zalmoxiano de cura assume o caráter mágico do ritual do mensageiro zalmoxiano presente no relato originário herodotiano. Ao ter seu agente de cura alterado em belas palavras por Sócrates, todavia, esse caráter mágico é substituído por um caráter psicológico, em que a psyche torna-se o agente do processo de cura do homem-todo. As belas palavras tornam-se, portanto, técnica terapêutica para fazer a psyche alcançar, por si própria, a temperança.38 As belas palavras fazem nascer39 a temperança na psyche, não de maneira mágica, mas de maneira natural. De tal maneira, Platão sustenta a ideia de que as belas palavras seriam um tipo de terapia psicológica que auxiliariam a psyche humana a tornar-se capaz de promover a cura do homem-todo.

Considerações finais

Platão, no Cármides, retoma os rituais zalmoxianos de cura presentes nas Histórias de Heródoto, a fim de alterar seus elementos e substituir seu caráter mágico por um caráter psicológico. Para tanto, a cura mítica e mágica sustentada por elementos míticos zalmoxianos é substituída por um princípio psíquico de cura. Assim, todo processo apresentado como externo, no relato originário herodotiano, é alterado em um processo interno, cuja psyche torna-se causa de bens e de males do homem-todo.

É nesse sentido que o fármaco zalmoxiano é alterado pela personagem Sócrates por belas palavras. Estas seriam como técnica terapêutica que auxiliam a psyche humana a tornar-se temperante e ser agente de cura do homem-todo. Nesse sentido, Platão antecipa a teoria psicossomática, sustentando a ideia de que a psyche humana, por si própria, é responsável pelos males e pelos bens do homem como um todo.

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1O relato em torno de Zalmoxis, ao que se sabe, está originariamente nas Histórias (4, vv. 93-96) de Heródoto. Por isso, em Katabasis e psyche em Platão (COUTINHO, 2015a), ele é chamado de mito originário.

2Herodianus apresenta-nos várias grafias para o nome da divindade trácia: “Zámolxis, também chamado Zálmoxis e Sálmoxis” (514, 25); trad. nossa para: Ζάμολξις, λέγεται καὶ Ζάλμοξις καὶ Σάλμοξις. A divindade é também chamada de “Gebeléizis” (Γεβελέϊζιν) (Hdt Hist. 4, vv. 94, 4). Outras variações também são possíveis: Salmoxis, Zalmoxix, Salmoxix, Zamoxix, ou Samolxix.

3A expressão é derivada do grego mythos (μῦθος) e tem um vasto leque de significação: “discours public, rumeur, nouvelle, dialogue, conseil, objet du discours ou du la conversation, fable, récit non historique, mythe, récit fabuleux, conte, faire des contes, dire des mensonges, apologue” (BAILLY, 1935). No Cármides, a expressão é utilizada para fazer referência a histórias ligadas a forças divinas.

4κατασκευάσασθαι ἀνδρεῶνα.

5Cf. trecho completo: “cavernous place that was inaccessible to anyone else he spent his life there” (Trad. de Jones).

6Cf. Burkert (1972, p. 158).

7A expressão em Heródoto é καταβὰς (Hist. 4, 95, 17).

8Zalmoxis costuma dogmatizar “antes e depois dos jantares” (τοὺς πρώτους καὶ εὐωχέοντα).

9Dodds (2002, p. 148) menciona que Pitágoras, nas lendas em torno de seus jantares dogmáticos, dizia a seus convivas que eles se tornariam daemones ou deuses.

10Cf.: ἀναδιδάσκειν ὡς οὔτε αὐτὸς οὔτε οἱ συμπόται αὐτοῦ οὔτε οἱ ἐκ τούτων αἰεὶ γινόμενοι ἀποθανέονται (Hdt. Hist. 4, 95, 12-13).

11ἄγγελον.

12λαχόντα.

13Contrariamos, nesse ponto, a leitura de Dodds, ao sugerir que a cultura xamânica e sua simbologia são a causa para a noção de que o ser humano tem origem divina, colocando corpo e alma em desacordo no mundo ocidental. Diz assim o passo completo: “A 'alma’ não era nenhuma prisioneira relutante do corpo, mas sim a vida ou o espírito do corpo, sentido-se perfeitamente à vontade ali. Foi nesse momento que o novo padrão religioso fez sua fatídica contribuição - ao creditar ao homem um “eu” oculto, de origem divina, e por conseguinte colocar em desacordo corpo e alma, este padrão introduziu em meio à cultura européia uma nova interpretação da existência humana. Trata-se da interpretação que chamamos de puritana. De onde veio tal noção? Desde que Rohde a chamou ‘uma gota de sangue estranho nas veias dos gregos’, estudiosos têm realizado suas pesquisas em busca desta gota. A maior parte deles têm olhado na direção leste, para a Ásia menor ou mais longe ainda” (DODDS, 2002, p. 143).

14ἐς τὰς λόγχας.

15δέωνται.

16ἵλεος. A expressão “propício”, no contexto do relato originário, significa ter sido aceito por Zalmoxis após à morte.

17Cf.: ἐντελλόμενοι τῶν ἂν ἑκάστοτε δέωνται.

18Cf. o princípio básico acerca do processo de “alteração” nas recriações de mitos originários em Platão desenvolvido por Coutinho (2015a, p. 33-39).

19φάρμακον.

20τῶν Θρᾳκῶν τῶν Ζαλμόξιδος ἰατρῶν.

21ἐπῳδὴ.

22φύλλον.

23ἰᾶσθαι.

24πάντα γὰρ ἔφη ἐκ τῆς ψυχῆς ὡρμῆσθαι καὶ τὰ κακὰ καὶ τὰ ἀγαθὰ τῷ σώματι καὶ παντὶ τῷ ἀνθρώπῳ.

25A expressão psyche (ψυχή) é de difícil tradução em línguas modernas. Sobre esse tema, aconselhamos a leitura de A psicologia de Platão, de Robinson (2007), As origens da alma: Os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristóteles, também de Robinson (2010); e “Platão: a descoberta da alma” de Iglesias (1998).

26τοὺς λόγους τοὺς καλούς.

27Cf. o princípio básico acerca do processo de “substituição” nas recriações de mitos originários em Platão desenvolvido por Coutinho (2015a, p. 33-39).

28Robinson (2007, p. 41; 2010, p. 67), embora não explique o processo, intui a problemática como uma antecipação da teoria psicossomática. Coutinho (2013; 2015a) aprofunda a problemática apresentando passo a passo a teorização da psicossomática no Cármides.

29 Entralgo (1958, p. 163-180), embora não desenvolva a questão como um problema de percepção entre o externo e o interno em relação à psyche humana, foi um marco importante na análise profunda da retirada do caráter mágico do processo de cura no Cármides.

30Para Entralgo (1958, p. 166), o encantamento torna-se “epodé terapêutico”.

31Para Robinson (2010, p. 68-69), no Cármides, a psyche (traduzida como “alma”) equivale ao homem-todo. Tuozzo (2011, p. 119), no entanto, acusa Robinson de não explicar como o soma, um ente corpóreo, poderia ser parte de um ente substancial metafísico, a psyche, entendida por Tuozzo também como “alma”. Consideramos a contra-argumentação de Tuozzo bastante válida, mas acreditamos que a problemática se resolve quando se compreende a psyche, no Cármides, como princípios psíquicos, mentais, e não como um ente metafísico. Seria anacronismo afirmar que Platão tem uma concepção neurocientífica acerca de um monismo entre corpo e mente, no entanto, acreditamos que Platão apresenta uma forte intuição acerca do que é a psyche enquanto atributos psíquicos / mentais que estão ligados a toda percepção corpórea da realidade. Coutinho (2015b) demonstra essa questão em uma Conferência no Congresso de Neuropsicologia na Universidade Católica de Braga, Portugal, em 2014, que culminou em um artigo intitulado “Intuitions about neuroscientific problems of the cure in Plato: the communication between soma and psyche in the Charmide and in the Republic”.

32μᾶλλον προσέχων τὸν νοῦν καὶ εἰς σεαυτὸν ἐμβλέψασ. Para Sócrates, olhar para dentro de si é o primeiro passo para reconhecer que a temperança consiste em saber o que se sabe e não fingir (Chrm. 155b5: προσποιήσασθαι), como gostaria Crítias, que sabe o que não se sabe.

33Van De Ben (1985, p. 14), baseado numa leitura equivocada de Dodds (2002, p. 168, nota 60), afirma e defende que, por não haver no relato originário de Heródoto a utilização da expressão psyche, os getas acreditariam que a imortalidade dar-se-ia a partir da transposição corporal, sem morrer. Embora Dodds considere essa leitura apenas uma hipótese, ele não percebe, assim como Van Der Ben, que no ritual zalmoxiano do mito originário herodotiano, a expressão “propício ao deus” (ἵλεος ὁ θεὸς) (Hdt. Hist. 4, 94, 11), no contexto em que o mensageiro é jogado “nas lanças” (ἐς τὰς λόγχας) (Hdt. Hist. 4, 94, 10), determina exatamente o fato de se buscar a morte corporal do mensageiro no ritual. Por isso, mesmo que a expressão psyche não seja utilizada no relato herodotiano, isso não quer dizer que a imortalidade seja corporal. Se quisermos fazer um paralelo com Pitágoras, figura lendária relacionada a Zalmoxis na variante grega do relato herodotiano, não encontramos indícios concretos de que Pitágoras tenha utilizado o termo psyche em seus ensinamentos: “[à] prova disso, o mesmo Empédocles, ele próprio pensador da imortalidade da alma, e também de âmbito pitagórico, ainda não usa o termo psyche em suas teorias da imortalidade, e sim o termo daímones (31 B115 DK)” (CORNELLI, 2011, p. 114). Assim como no caso da crença geta, isso não quer dizer que não haja nas lendas em torno de Pitágoras a noção de um ente substancial metafísico: alma. De qualquer maneira, Platão adiciona explicitamente a expressão psyche em sua recriação do mito de Zalmoxis no Cármides, a fim de elucidar exatamente a problemática dos fatores externos e dos fatores internos que conduziriam a psyche à sua capacidade curadora: se causado por fatores externos, a psyche é entendida como ente substancial metafísico e, com isso, dependerá de um ente também substancial metafísico para a causalidade do processo de cura; se causado por fatores internos, a psyche é sustentada como princípios psíquicos, mentais, inerentes a ela própria e, com isso, dependerá de si própria para estabelecer a causalidade do processo de cura.

34οἳ λέγονται καὶ ἀπαθανατίζειν.

35Isso não quer dizer que o tema da imortalidade não tenha importância no Cármides, pelo contrário, o silêncio de Sócrates também diz muito acerca de princípios fundamentais relacionados à imortalidade da alma. Ferrari (2013) apresenta uma importante leitura acerca de alguns desses princípios em torno da imortalidade no Cármides.

36ἢ σοφίᾳ ἢ κάλλει.

37O argumento de Sócrates acerca da autorreflexão, segundo afirma Dyson, leva-o a perceber que a temperança, enquanto autoconhecimento crítico, é a sabedoria que “consiste em conhecer o que ele conhece e não pensar que conhece o que não conhece” (DYSON, 1974, p. 104).

38Platão elabora uma ironia de difícil compreensão no final do diálogo, no momento em que faz Crítias sugerir ao jovem Cármides que este demonstrará temperança, “se permitires-te a Sócrates encantar”: ἢν ἐπᾴδειν παρέχῃς Σωκράτει (Chrm. 176b6-7). A ambiguidade desta frase sugere, por um lado, que Crítias não teria compreendido nada dos argumentos de Sócrates acerca da temperança, pois não teria percebido que a temperança é antes um princípio dado internamente pela psyche e não uma ação externa a ela, por isso, nesse sentido, Crítias estaria sugerindo que o jovem Cármides deveria se permitir encantar pelo “encantamento” de Sócrates, como uma referência ao fármaco trácio aprendido por ele. Por outro lado, a ambiguidade indica que Crítias teria compreendido, pelo menos em partes, os argumentos socráticos e, por isso, estaria sugerindo que o jovem Cármides deveria permitir encantar-se, tendo Sócrates como mestre direcionador, mas, para isso, Platão utiliza-se do verbo “encantar” (ἐπᾴδειν), ironizando todo o processo em jogo, na medida em que o verbo remete não ao contexto mágico do fármaco zalmoxiano aprendido por Sócrates, mas ao ato de encantar-(se) psiquicamente. Coutinho (2014) discute tal questão em um artigo publicado no Boletim de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra e assume o segundo caso como o mais viável.

39Cf. trecho completo: “dessas palavras nascem a temperança nas psychai” (Chrm. 157a5-6 - ἐκ δὲ τῶν τοιούτων λόγων ἐν ταῖς ψυχαῖς σωφροσύνην ἐγγίγνεσθαι).

Recebido: 13 de Outubro de 2016; Aceito: 19 de Abril de 2017

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