SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número64Educar para viver na cidade de DeusIluminismo colonial. A natureza e os índios no poema de Basílio da Gama, “O Uraguai” índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.64 Uberlândia jan./abr 2018  Epub 20-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n64a2018-13 

Artigos

Hannah Arendt e a Conquista do Espaço

Hannah Arendt and the Space Conquest

Hannah Arendt et la Conquête de L'espace

Augusto Bach* 

*Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste. E-mail: augustobach@yahoo.com.br


Resumo

Neste artigo esclarecemos a relação entre as descobertas científicas e suas consequências políticas, de acordo com as análises que Arendt oferece em seu ensaio A Conquista do Espaço. O dilema a que Arendt se refere consiste na ausência de consciência cidadã desde o início da idade moderna e seu predomínio tecnológico sobre a natureza. Como resultado, a humanidade se encontra dividida entre cidadania e manipulação científica. Como repensar a responsabilidade mundana pelas ações no mundo moderno, onde o conflito da consciência política tem se tornado cada vez mais raro, é a principal questão deste artigo.

Palavras-chave: Arendt; Política; História; Espaço

Abstract

In this article we highlight the relationship between scientific discoveries and its political outcomes, according to Arendt´s analysis in her essay The Conquest of Space. The dilemma Arendt refers to is an absence of conscience since the outset of modern age and its technological prevalence before nature. As a result, humankind is troubled by the division between citizenship and scientific manipulation. How to rethink wordly responsibilities for actions in modern circumstances, where the struggle of political conscience have become less and less clear, is the main quest of this article.

Keywords: Arendt; Politics; History; Space

Résumé

Dans cet article, nous clarifions le rapport entre les découvertes scientifiques et leurs conséquences politiques selon les analyses qui sont proposées par Arendt dans son essai La Conquête de l'espace. Le dilemme de l'auteur est le manque de conscience citoyenne depuis le début de l'ère moderne et sa prédominance technologique sur la nature. Comme résultat, l'humanité est divisée entre citoyenneté et manipulation scientifique. Comment repenser la responsabilité mondaine pour les actions dans le monde moderne, où le conflit de la conscience politique est devenu de plus en plus rare? C'est la question de cet article.

Mots-clés: Arendt; Politique; Histoire; Espace

Introdução

“Se eu pudesse anexaria os planetas”

(Cecil Rodhes)

Consta que durante o teste de explosão da primeira bomba nuclear no deserto de Los Alamos no Novo México, o cientista Robert Oppenheimer tenha se lembrado de um verso das escrituras hindus que de modo significante enunciava: “Agora eu me torno a Morte, o Destruidor de Mundos”. Sabe-se, ao mesmo tempo, que não é de praxe encontrar-se em cientistas, tão retirados do convívio comum durante o exílio e o afazer de suas pesquisas, uma preocupação aguda com um estado de coisas criado possivelmente por suas ações. Há quase setenta anos depois do lançamento por Truman das duas bombas sobre Hiroshima e Nagasaki e dos cientistas terem efetuado a fissão do átomo sem maiores hesitações, liberando processos energéticos que ordinariamente só ocorrem no sol, a sobrevivência da raça humana sobre a Terra permanece uma questão alheia ao âmbito das Ciências Naturais. Ipso facto, longe de atender a requisitos humanísticos como simplicidade, beleza e harmonia para suas teorias e ações, a recordação poética de Oppenheimer parece sugerir mais uma confissão de quem perdeu a capacidade de compreender as consequências de seus atos e o fato de habitar um mundo em que, a partir daí, qualquer justificativa pela palavra perdera seu poder de realização e transformação dentro desse mesmo mundo.

Diferente não é a situação em que se encontram as Ciências Sociais, desde quando a “conduta social” foi promovida a modelo de todas as áreas da vida, ao tentarem determinar o comportamento humano justamente quando este terminara por transferir à esfera da natureza um componente próprio à sua condição: a liberdade ou a capacidade de iniciar processos que são resultados inevitáveis da própria ação humana. Pois bem, o desencadeamento de forças naturais antes insuspeitadas e a impredizível reação em cadeia iniciada pela explosão da primeira bomba nuclear em meados do século XX, ambos acionados pelo know-how humano, serão justamente escolhidos por Hannah Arendt como o marco inicial do mundo moderno em que vivemos pelo simples significado político que encerram. Ciência e política não mais falam a mesma linguagem - um problema devido não tanto à amoralidade científica ou à difundida ignorância pública dos cientistas, mas pelo fato de o método científico por si mesmo encabeçar perigosos precedentes para a vida pública. Se a História sempre fora feita pelo homem que, consequentemente, podia entender os processos que desencadeou ao contemplar sua totalidade e abarcar o seu sentido, o mesmo não se poderá dizer desde o início do mundo moderno. Depois dos acontecimentos que assolaram o século XX, Arendt se viu obrigada a rejeitar a premissa hegeliana de que as ideias tenham vontade própria, ou de que a história se movimente em uma predeterminada direção. Para ela são antes as ações dos homens, suas palavras e decisões que constituem a vida política, que colocam os eventos em movimento e que os bloqueiam ou desviam de maneira inesperada e imprevisível. Em outras palavras, se a Coruja de Minerva alça voo só ao anoitecer, encontramo-nos sob a conjuntura de uma nova forma de vida que resiste na penumbra, entre o dia e a noite. Esta nossa circunstância, para que possamos salvar a ela relembrando as palavras de Ortega y Gasset, exige de nós um tipo de salvaguarda diferente da linguagem científica cuja formalização crescente esvaziou de sentido nossa percepção e senso comum. Não apenas porque a quintessência da condição humana - a Terra - encontre-se em risco de destruição física de sua vida orgânica, mas também pela incapacidade de pensarmos e falarmos sobre aquilo que nós mesmos fomos capazes de fazer; de que são testemunhas não apenas os físicos nucleares em sua linguagem e apelo a um enunciado para o qual não há enunciação possível.

É bem verdade que a glória da ciência moderna se deve ao fato de ter sido hábil, desde cedo, em desembaraçar-se de tais preocupações humanas que ainda ecoavam na consciência de Oppenheimer. A descoberta da fissão do átomo é apenas uma etapa entre várias na conquista da natureza, na rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada e no desejo de fugir à condição humana como tal. Metodologicamente, a ciência moderna fiou-se em premissas impessoais que parecem ter um poder prático e explanatório bem maior do que todas as considerações humanísticas sobre a natureza colocadas doravante em descrédito. De acordo com a visada de nossos cientistas, nada do que possamos observar através de nossos sentidos, enquanto seres morais e políticos, forneceria algo de real. Totalmente destacados de nossas preocupações terrenas, os olhos do cientista inserem o homem dentro de um processo autônomo que responde por tudo aquilo que realmente é. Como veremos mais adiante, tamanha emancipação possibilitou ao homem libertar-se dos grilhões da experiência terrestre e ao seu poder de cognição, dos grilhões da finitude. O resultado da moderna ciência teórica foi a tecnologia, com cujos resultados o cientista enquanto cientista não está concernido. Nas raras ocasiões em que cientistas se tornam preocupados com a capacidade destrutiva desencadeada por suas descobertas e se esforçam pelo seu uso pacífico, assevera Arendt, eles não estariam mais pensando como cientistas, mas agindo enquanto cidadãos.

Esta ausência de responsabilidade, inevitável à emancipação da atitude científica, passa pelo crivo existente desde a era moderna entre conhecimento científico (entendido no sentido moderno como know-how) e nossa capacidade de pensar, a mais alta dentre nossas capacidades humanas. O correspondente divórcio entre conhecimento técnico e pensamento, a inviabilidade da tradução de verdades científicas em discurso e a amoralidade do cientista enquanto cidadão perante os possíveis efeitos de suas ações são eventos históricos que constituem as experiências e os temores que assaltam como pano de fundo a redação de sua obra intitulada A Condição Humana. Se nela Arendt preferiu se ater a pesquisar as origens da alienação do mundo moderno em sua tentativa de libertar o homem de sua prisão na terra, em seu “duplo voo da Terra para o universo e do mundo para o dentro do homem”, refletindo sobretudo acerca do que estamos fazendo; faz-se mister trazermos à baila suas análises que envolvem a questão entre a tecnologia criada pelo homem em sua relação moderna com a natureza, que aprofundou a alienação com o mundo, abrindo outra questão: o que não estaríamos pensando? Com o fito de esclarecermos algumas dessas aporias, bem como a região nebulosa em que se move o pensamento de Arendt, lançaremos mão prioritariamente neste artigo das considerações contidas nos ensaios A Conquista do Espaço e a Estatura Humana e O Conceito de História - Antigo e Moderno, publicados ambos em seu clássico Entre o Passado e o Futuro que por sua vez retoma o espírito e a letra de A Condição Humana. Não obstante, se é verdade que a letra mata e o espírito vivifica, registre-se que uma possível resposta para tais inquietações jamais poderia deixar de se encontrar dentro do próprio âmbito humano; isto é, em termos de bom senso e linguagem cotidiana pelos quais coordenamos a percepção de nossos cinco sentidos.

A estatura humana, a conquista do espaço e a fabricação do mundo

“Passo a passo à eternidade

Um passo em falso: a cara no chão

Um grande passo pra humanidade

Um pequeno veneno pra cada um de nós…”

Enquanto o ensaio A Conquista do Espaço e a Estatura Humana, à primeira vista, possa causar estranhamento ao leitor como o mais breve e datado dos escritos contidos no corpus de Entre o Passado e o Futuro, ele ao mesmo tempo abre questionamentos que permanecem conectados à atualidade. Como típico resultado das angústias de um clássico intérprete de sua época, ele continua a instigar leituras e releituras através dos tempos ao elaborar conceitos e categorias que perseveram na compreensão da realidade, a despeito da escassa literatura que tenha se debruçado sobre a questão em tela. Conexos ao principal tema abordado, a estatura ou dignidade do ser humano na era da manipulação científica, estão presentes a ameaça da ciência à legalidade da humanidade, a limitação dos poderes de nossa compreensão acerca do que estamos fazendo, bem como o adesismo de Arendt à pergunta levantada: “Como pode alguém duvidar de que uma ciência que capacita o homem a conquistar o espaço e ir à lua tenha aumentado sua estatura?” Intercalada senão subentendida ao longo de todo o texto, também se pode encontrar a sugestão da existência de uma teia complexa de relações por parte do moderno empreendimento científico de deslocar a humanidade de uma crença religiosa do papel humano dentro de uma ordem criada (na qual Deus criara o homem para este ocupar um papel proeminente no universo criado) e o seu mais fundamental esforço em fazer dos humanos, figuras aparentadas aos deuses.

Conquanto Arendt sempre tenha admitido que o homem seja o mais alto ser que conheçamos - pressuposto que jamais deixou de compartilhar com a humanitas romana de Cícero - seu posicionamento é o de que uma ambição de conquista e dominação do mundo exterior habita o coração do projeto científico moderno; cujas consequências parecem se esquecer de incluir sua própria mortalidade factual entre as condições para que seus esforços científicos sejam possíveis. Primeiramente, a conquista do espaço poderia aumentar a estatura do homem na simples medida em que ele deseja ter como lar (oikia) um território tão vasto quanto possível. Desde as primeiras etapas da era moderna, os mapas e cartas de navegação antecipavam-se às invenções técnicas mediante as quais o espaço terrestre se tornaria cada vez menor e próximo. O encolhimento e abolição de fronteiras se acentuariam com a capacidade de observação científica da mente humana e seu uso de números, símbolos, modelos para condensar e diminuir a escala de distâncias geográficas da Terra. Por outro lado, tal diminuição das distâncias terrestres só pôde ser conquistada ao preço de um afastamento definitivo entre o homem e seu habitat, de aliená-lo do seu ambiente imediato e terreno. Contudo, ao assumir a renúncia a uma visão antropocêntrica, a suposta exigência que acompanharia o entendimento científico da realidade física em admitir a diminuição da estatura humana - resultado de seu afastamento - seria enganosa; na medida em que motivações mais fundamentais jazem no deslocamento do papel divino como demiurgo do mundo. Ao substituírem Deus, os homens gradativamente aprimorados em seu poder de controle por meios científicos podem ocupar o espaço antes ocupado por deuses, não obstante desprovidos agora do amor mundi que impregnava ainda a cultura romana. Tal empreendimento de superação de limites, que não é característica peculiar à era moderna e sim inerente à condição humana, teria encontrado nova guarida ao colocar a natureza agora sob as condições da própria mente do homem; isto é, sob um ponto de vista localizado fora da própria natureza e do mundo. Ao mesmo tempo e paradoxalmente, Arendt termina seu ensaio dizendo que a conquista do espaço, a despeito da magnitude de sua empreitada, tende a rebaixar sua estatura senão a destruí-la por completo.

Ora, a noção do homem como amo e senhor de toda a terra é típica da era moderna. Enquanto as eras antigas sustentaram que os céus eram ocupados por entidades divinas e sua compreensão pela história e pela ciência (teckné) pressupunham a natureza como o domínio da imortalidade, o homem moderno a chama de espaço, um vazio ou nada, que representa o lugar de especial sedução para a extensão de seu domínio. Se cantar significava desde tempos imemoriais abrir a boca para que forças superiores como a ira de Aquiles pudesse se anunciar; e decantá-la em termos de poesia homérica significaria torná-la digna de pensamento; ao menos em seu início a era moderna se caracterizou pela adoção de critérios instrumentais que passaram a nortear o âmbito da experiência humana. Na virada do mundo antigo e medieval para a modernidade, a engenhosidade humana e seu empenho na busca de resultados passaram a ser vistos como modelos para se avaliar a excelência das atividades do homem. Dentre as categorias escolhidas por Arendt desde A Condição Humana para realizar sua descrição fenomenológica da ação, sempre fora a fabricação (fabrication, Herstellen) - a obra do homo faber (work, Werke) - a responsável pela reificação e construção de um mundo feito de coisas compartilhadas pelos homens. Com sua produtividade vista à imagem e semelhança de um Deus criador, o homem adquiriu a capacidade de intervir nos processos naturais e, com o recurso dos instrumentos apropriados, de inventar novos objetos e utensílios com o fito de construção de um artifício humano que lhe fizesse sentir-se em casa neste mundo. Precavendo-se contra os perigos de sua própria subjetividade, a ereção de um mundo comum a partir do que a natureza oferece permitiu estabelecer as fronteiras defensivas entre os elementos naturais e o artefato cultural humano nas quais todas as civilizações historicamente sempre se encerraram; isto é, ergueu-se a objetividade do mundo feita pelo homem na medida em que as coisas deste mundo têm justamente a função de estabilizar a vida humana. Assim, dirá Arendt em notórias passagens de A Condição Humana que

“O homo faber é realmente amo e senhor, não apenas porque é senhor ou se arrogou o papel de senhor de toda a natureza, mas porque é senhor de si mesmo e de seus atos. […] A sós, com sua imagem do futuro produto, o homo faber pode produzir livremente; e também a sós, contemplando o trabalho de suas mãos, pode destruí-lo livremente.”

A primeira premissa sustentada por Arendt em suas análises é a de que toda ferramenta ou utensílio criado por sua ideia ou imaginação, que sirva de intermediação entre o homem e a natureza, destina-se a tornar a vida humana mais fácil em seu labor diante da natureza, e menos dolorosa sua transitória e finita passagem neste mundo. Como fazedor de instrumentos e máquinas que venham em seu auxílio, o homo faber criou um mundo a partir de mediações cujas qualidades sempre foram concebidas exclusivamente em sentido antropocêntrico. Teleologicamente articulada, sua atividade é planejada de acordo com a lógica de meios e fins com o fito de se atingir metas previamente definidas em prol da humanidade. A segunda, e mais importante, é a de que as coisas do mundo que nos rodeiam precisam depender de desígnios humanos e atender a padrões estáveis de utilidade, harmonia e beleza em suas construções, a partir dos quais elas possam ser organizadas. Seus resultados devem poder ser traduzidos na linguagem do mundo de nossos cinco sentidos e inspirados em um amor pela concórdia de nossa imaginação; simetria e paz reinante na ordem geral do universo. Através da fabricação, o homem institui um campo de significação capaz de dar sentido à vida e aos objetos que o circundam.

Todavia, em tal processo, a relação entre criatura e criador parece ter revelado uma insuspeitável novidade. A civilização que valorizou os atributos da fabricação estava alicerçada sobre fundamentos pouco sólidos. Se a modernidade, desde seu início, destacou a figura do homo faber, concomitantemente ao longo dos séculos sua atividade cedeu espaço ao labor enquanto responsável pela manutenção e reprodução da vida do homem. Com o advento da Revolução Industrial, a figura dos artesãos, que de início ainda possuíam a dimensão norteadora da fabricação, converteu-se gradativamente em animal laborans. Conquanto a atividade da obra ou fabricação suponha o isolamento como pré-requisito, ela estabelece ao menos um vínculo com o mundo tangível de coisas que produziu sem deixar de partilhar a experiência generalizada de inter homines esse. Pois na ausência de fabricação de artefatos culturais, o mundo não se tornaria abrigo para a manifestação da existência humana e sua capacidade política de iniciar processos. Sem a constituição desse campo de significação conjuntural chamado mundo, o homem correria o risco de perder-se no labirinto de urgências do ciclo vital encerrando-se na luta pela sobrevivência, incapacitado de apresentar algo de si aos outros e às gerações vindouras.

Já a atividade do labor ou trabalho, por sua vez, ao se favorecer da conveniência da criação de utensílios, seria uma tarefa na qual o homem não está mais junto ao mundo nem convive com outros, mas está sozinho com seu corpo perante a urgência em manter-se vivo. Justamente por isso Arendt a considerou a mais anti-política das atividades do homem, bem como capaz de desfazer o caráter mediato das coisas criadas pelo homo faber ao subsumi-las ao ritmo do processo de atividade metabólica que transforma objetos de fabricação em objetos de trabalho, e objetos de uso em objetos de consumo. Apagando-se assim, de modo bárbaro e cada vez mais as fronteiras entre a natureza e a cultura, é a tarefa destinada a cada geração de receber com seu poder de iniciativa o legado da anterior (e de elaborar o seu próprio àqueles que depois de nós virão ao mundo) que se encontra em risco.

Em termos concisos, o que está em jogo é o perigo que a voracidade do movimento vital implica ao mundo ao ser assumido como preocupação única e o consequente descarte das outras atribuições dignas da condição humana. “Desde que fizemos da vida nossa suprema e primacial preocupação, não nos resta espaço para uma atividade baseada no desprezo por nosso próprio interesse vital”, diria Arendt em O Conceito de História, entre outras famosas passagens reveladoras de sua preocupação com o mundo.

No contexto da sociedade moderna, a glorificação do labor teria canalizado as forças naturais para uma lógica de produção e consumo que terminaria por destruir a finalidade do próprio mundo. Com a expressão “sociedade”, ora se referindo a uma “sociedade de consumidores”, ora a uma “sociedade tecnológica” ou a uma “sociedade de trabalhadores”, Arendt está aludindo ao crescimento de um espaço em que tanto o âmbito público como o privado já não encontram mais salvaguarda; em que o trabalho e o labor foram expandidos em atividades para suprir não mais apenas às necessidades da vida, mas a uma inédita superfluidade de bens e técnicas de se fazer mais bens, inclusive os de potencial destrutivo como a bomba atômica. Devido ao progresso tecnológico e à automação da produção, muitos trabalhadores estariam inclusive sendo liberados do fardo de seu labor, mas jamais da mentalidade privada do animal laborans. Com isso, o acesso a padrões estáveis que o processo de produção implicaria ficou bloqueado; ou seja, perdemos a capacidade de responder por aquilo que estamos fazendo e eliminou-se a presença de marcos regulatórios do próprio processo natural. Em nosso ganha-pão de cada dia, tornamo-nos incapazes de distinguir ou deliberar (eubolia) sobre aquilo que estamos fazendo. Tal qual Eichmann em Jerusalém, o máximo que poderíamos declarar é que estamos meramente a executar um serviço.

Aos olhos de Arendt, esse fato arrisca negar parte de nossa realidade como seres de ação política. Quando o mundo da ciência e da tecnologia se sobrepõe progressivamente à natureza, não apenas as ações humanas perdem a possibilidade de encontrar um lugar adequado no mundo, mas os eventos históricos e naturais deixam de estar enraizados na experiência humana ganhando autonomia e espontaneidade próprias. Para Arendt, isto representou um afastamento em nossa civilização da fabricação como atividade privilegiada para a ação enquanto modo principal de apropriação externa e interna da natureza; o que implica uma relação exterior do homem seja com o contexto conjuntural de suas ações, seja com seus resultados (fato que jaz no vértice da relação entre o cientista e sua irresponsabilidade mundana). A descoberta da fissão do átomo ou a construção de máquinas para a produção e controle de energias desconhecidas no âmbito doméstico são exemplos citados para iluminar o papel da tecnologia moderna. Dada sua afinidade com o tema da ruptura, as armas nucleares, resultado do empreendimento científico-tecnológico, “exprimem o processo de contínua transposição das barreiras antes tidas como naturais, ao dissolver o que era dado pela natureza e aquilo que era construído pela cultura”, no belo-dizer de Celso Lafer. A introdução da ação e a transportação de nossa impredizibilidade para um domínio antes pensado como regido por leis inexoráveis é identificado mais rigorosamente por ela com o crescimento da física nuclear; ciência que nos permitiu “agir sobre a natureza como costumávamos agir sobre a história.” Só que desta vez sem o aparato mental herdado da antiguidade que ainda permitia atribuir objetividade ao mundo. Na medida em que muitos cientistas, criadores de bens de tecnologia de ponta, também estariam apenas executando um serviço, sem demais elucubrações acerca de seu papel perante o resultado de suas ações e com suas verdades podendo ser demonstradas em fórmulas matemáticas - em puro enunciado ou provadas tecnologicamente “verdadeiras”- eles permanecem impossibilitados de prestar contas delas (de suas ações em palavras), no próprio exercício conjuntural da liberdade pública de permuta de opiniões. Distante de nos garantir uma mais firme posição no ambiente natural e social que nos cerca, pois, o conhecimento científico terminou por gerar ainda mais insegurança e incerteza acerca de nossa posição mundana.

“Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja.”

Mas se modernamente as coisas por si mesmas passam a carecer de sentido e objetividade, elas poderão ser traduzidas num movimento maior que as englobe: a ideia de natureza como um “processo biológico em larga escala” e doravante sem fim. Se os antigos podiam se valer da compreensão e memória para dotar de sentido suas ações, escapando assim da mortalidade factual (uma bíos com uma história de vida identificável do nascimento à morte que emerge da dzoé - a vida biológica), o elemento de conexão entre a ciência e a ação sobre a natureza passa a ser agora a tecnologia; que revelaria as implicações políticas da ciência enquanto empreendimento social desde o início do século XVII e os primórdios da Revolução Industrial. A era moderna teria disseminado uma penetrante consciência histórica de que somos todos produtos de um processo temporal que nos determina e que o entendimento das leis do desenvolvimento desse processo providenciaria um guia indispensável de como devemos organizar nossa vida coletiva. É ele quem doravante torna tudo significativo carregando consigo o monopólio de universalidade e significação. Em outras palavras: o domínio da história - que inicialmente exigia a compreensão da conjuntura mundana e de que a algo significante deveria corresponder o entendimento e significado atribuído pela sociedade de seu próprio tempo - cedeu lugar ao curso objetivo e universal dos eventos. A compreensão moderna de história como “processo”, que independe da teia de relacionamentos humanos e de sua pluralidade, provaria seus malefícios na mais estéril e mortal passividade política que a história jamais conheceu: nosso mundo moderno.

“Nesse contexto, no entanto, é importante estar consciente de quão decisivamente difere o mundo tecnológico em que vivemos [...] do mundo mecanizado surgido com a Revolução Industrial. Essa diferença corresponde essencialmente à diferença entre ação e fabricação. A industrialização consistia basicamente na mecanização de processos de trabalho, e no melhoramento na elaboração de objetos, e a atitude do homem face à natureza permanecia ainda a do homo faber, a quem a natureza fornece o material com que é erigido o edifício humano. O mundo no qual viemos a viver hoje, entretanto, é muito mais determinado pela ação do homem sobre a natureza, criando processos naturais e dirigindo-os para as obras humanas e para a esfera dos negócios humanos, do que pela construção e preservação da obra humana como uma entidade relativamente permanente.”

Pois bem, haja vista nosso sentido e interpretação da história terem se transformado - e refletido mudanças de concepções e propósitos humanos que envolvem na modernidade um crescente reconhecimento da habilidade dos humanos em exercer uma apropriação cada vez maior sobre as forças da natureza e das relações comuns de modo instrumental - chegamos finalmente à nossa atual engenhosidade de conquistar o espaço mediante a aptidão de manejar a natureza sob um ponto de vista exterior à terra da mesma maneira como aprendemos a liberar processos energéticos que anteriormente só ocorriam nos astros. Vejamos, à guisa de conclusão deste breve artigo, algumas das consequências da transmissão de nosso poder de iniciativa à esfera da natureza.

O mundo moderno e seu observador suspenso

“… Cara a cara (a conquista do espelho)

Passo a passo (a conquista do espaço)

- Lá do alto deve ser bonito

- Aqui de cima até que é normal

- Minha cabeça presa entre dois mundos…

- Meu corpo flutua: mundo nenhum.”

(Humberto Gessinger, A Conquista do Espaço)

Como vimos de abordar, o desenvolvimento de uma nova relação do homem com a natureza; acompanhado da emergência da distinção entre ciências “naturais” e “sociais”, ou seja, entre o cientista e o humanista; transformou a natureza em um complexo de forças manipuláveis que isentam o homem de qualquer papel normativo em suas investigações. Simplesmente não pensamos mais a ação política como algo estritamente conectado à compreensão da realidade e à preservação da obra humana; temos antes a tendência de considerar o conhecimento como independente da ação, sem demais implicações da subjetividade humana nas condições de seu acesso à verdade. Doravante, o conhecimento científico se abrirá em uma direção indefinida de um progresso cujo fim não se conhece e cujos benefícios serão convertidos apenas em acúmulo de mais conhecimentos. Os perigos desse agir sobre a natureza são óbvios: a peculiar fatalidade da sociedade moderna de que sua enorme capacidade de transformar a natureza seja cega e de que seus atores sejam incapazes de identificar, ou muito menos de compreender, as consequências de sua própria atividade.

Num mundo em que cientistas se tornam rapidamente capazes de fazer a história mediante a exploração do universo, o historiador se mostrou, ao seu turno, crescentemente incapaz de justificar como esse processo modelou a sociedade a partir de uma ciência social que rapidamente se tornou antiquada aos novos parâmetros exigidos por uma ação humana transportada agora para os domínios da natureza e da história. Com isso, perdeu-se a base de sustentação de uma vida pública comum cuja objetividade assentava-se na validade da experiência do mundo sentido. A insistência das Ciências Históricas em se valer dos modelos fornecidos pelo arcabouço conceitual da tradição de pensamento político-contemplativo, em sua tentativa de pensar o “novo” introduzido pelas Ciências Naturais de sua própria época, colocou-as sob uma espada de Dâmocles nos tempos modernos: a auto-incompreensão histórica e a confusão filosófica acerca do problema da objetividade e imparcialidade.

Ao perdermos a outrora vívida e consciente conexão com o resultado de nossas atividades, o colapso dessa dimensão hermenêutica seria para Arendt, existencialmente, a insignificância ou o sem-sentido. Logo, a noção moderna de história entendida processualmente representa tanto a falha de sentido e significação como a celebração da vida enquanto mais alto propósito humano (em oposição à bela e boa vida dos antigos e ao orgulho (thymós) dos memoráveis “ditos e feitos de Aquiles” tão bem recordados pela objetividade e imparcialidade homérica no decantamento rapsódico de sua ira - Menin). Em nosso entendimento da história, todavia, a mera sequência temporal assumiu uma dignidade que nunca antes detivera. Acontecimentos humanos singulares, que para os antigos carregavam consigo mesmos seu sentido, cederam sua capacidade de revelação e transformação do mundo em nome de um abrangente mecanismo de significância: o processo histórico derivado da introdução tecnológica no ambiente natural. Aí radicaria a diferença entre o conceito antigo e moderno de história. Tanto a historiografia grega quanto a romana, por muito que diferissem entre si, tinham como assente o significado ou lição de cada acontecimento. Todas elas continham e revelavam em seu aparecimento sua parcela de sentido própria aos limites de sua compreensão, sem apelar a um processo indefinido de desenvolvimento que lhes atribuísse significação. Ao se tornarem eticamente neutras ou livres de valor, as estórias que uma cultura científica poderá contar serão doravante desprovidas de gosto ou conteúdo moral, de responsabilidade pelo mundo.

A questão de se o sucesso da moderna ciência aumenta ou não a estatura do homem não será mais preocupação para o cientista pelo simples fato de deixar de ser questão política disputável, isto é, de gosto. Na medida em que na modernidade as condições de acesso ao conhecimento científico não mais concernem à espiritualidade humana, resultado da separação entre técnica e pensamento, o homem nada mais encontra senão o próprio caminho indefinido da busca do conhecimento. Assim, o papel do cientista não é mais o de nos dizer se os propósitos da ciência são utilizados para o bem ou para o mal, o justo ou o injusto, e sim o de encadear a natureza numa teia de relações processuais que interferem diretamente com ela.

“Para o cientista, o homem nada mais é do que um observador do universo em suas múltiplas manifestações. O progresso da Ciência moderna demonstrou, assaz convincentemente, a que ponto esse universo observado [...] escapa não apenas à grosseira percepção humana, como mesmo aos instrumentos extremamente engenhosos que se construíram para seu aprimoramento. [...] O objetivo da Ciência moderna, que eventualmente levou-nos literalmente à lua, não é mais ‘aumentar e ordenar’ as experiências humanas; [...] é muito mais descobrir o que jaz por detrás dos fenômenos naturais tais como se revelam aos sentidos e à mente do homem”

Arendt, em sua arqueologia corrosiva da modernidade, argumenta que a divisão entre a ação política e o entendimento científico é essencialmente uma divergência de linguagem, com sua fonte na insuficiência do senso estético de percepção, tão caro aos antigos, da moderna ciência. Para ela, apenas a presença de outros que veem e ouvem o que vemos e ouvimos, com seu juízo em comum e imaginação, garantiria a realidade do mundo e de nós próprios. Todavia, tal amor pelo mundo foi a primeira vítima da “triunfal alienação do mundo da era moderna”; carregando consigo a questão da dignidade humana que só podia ser pensada em relação à estatura do homem no mundo, sua importância e seu valor. É de todo modo digno de nota que, ao contrário de Oppenheimer, apenas os cientistas de geração mais velha tenham ainda se preocupado com as consequências do que fora criado por suas obras e pela legalidade de seus raciocínios. Em seu ensaio A Conquista do Espaço, Arendt chega a citar os físicos Planck, Bohr e Schroedinger como exceções, associando-os ao antigo desejo de simplicidade, harmonia e beleza de astrônomos tal qual Copérnico, ao contemplar as órbitas dos planetas a partir do Sol e não da Terra. Não obstante a perda de contato entre suas visões físicas do mundo e nossos sentidos se tornasse cada vez mais evidente, todos eles, pouco antes da Revolução Atômica e da conquista do espaço sideral, ainda exigiam que os resultados matemáticos de suas pesquisas pudessem ser traduzidos em linguagem comum a nossos sentidos para que, quiçá, fossem-nos de alguma valia existencial e não prática. Numa palavra, eles estavam longe do formalismo matemático que se tornaria o acorde fundamental da geração contemporânea de cientistas que os sucederam. Enquanto em nossa sociedade o declínio de valores compartilhados bem pôde ter sido acompanhado pela dissonante intensificação e enriquecimento de toda escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, tão bem representada por Oppenheimer em sua evocação de um verso hindu, o aspecto a notar é que esta intensificação sempre acontecerá ao preço da afirmação da realidade do mundo e dos homens. Posto que alcance muitos de seus objetivos, o homem decairá em estatura porquanto estejam perdidas as condições nas quais sua humanidade possa vicejar.

Mas não será por acidente que a pretensão, meta e objetivos da ciência moderna possam poderosamente moldar nossa concepção e experiência da história. Se ora o mundo moderno é datado por Arendt politicamente com o lançamento de satélites ao universo em 1957 como “o primeiro passo para libertar o homem de sua prisão na terra’”, ora com o “passo em falso” do lançamento de bombas nucleares e a possibilidade de sua destruição; sabemos que a era moderna teria começado cientificamente desde o século XVII.

A alienação humana em face da Terra e do mundo; bem como a convicção do homem moderno de que, em sua busca de verdade e conhecimento, ele não poderia mais confiar na evidência dada aos sentidos; seria corolário da própria perda de confiança na capacidade reveladora de verdade desses sentidos. O desejo da ciência moderna de enxergar a realidade por trás do engano da “ilusão antropocêntrica” fez com que todo progresso teórico e científico se desse às custas de qualquer ilusão acerca da estatura humana. Se a percepção sensível imediata não nos abriga para viver no mundo, se sua objetividade não pode mais ser garantida, voltamo-nos agora não para os objetos sentidos do mundo, mas para o fato da sensação qua sensação como o único fundamento seguro de confirmação da experiência. Desde que nosso político juízo de gosto fora reduzido à mera esfera da sensação, como entes sencientes não estamos aptos a alcançar nenhuma verdade ou mesmo estarmos certos sobre qualquer coisa, quando nosso moderno ceticismo passou a desconfiar da capacidade reveladora dos sentidos. Como resultado, as ciências naturais se tornaram cada vez mais experimentais e, no processo, começaram a interferir diretamente na natureza. Tal interferência, de acordo com Arendt, não conheceria limites justamente por preparar o terreno para outras iniciativas progressivamente. Daí a noção de história e natureza como um processo em que todos os fins são degradados em meios para outros fins, e assim sucessivamente.

“Foi precisamente mediante uma abstração dessas condições terrestres, através do apelo a um poder de imaginação e abstração que alçaria, por assim dizer, a mente humana acima do campo gravitacional terrestre, e que o contemplaria do alto, em algum ponto do universo, que a Ciência moderna realizou sua proeza mais gloriosa e ao mesmo tempo mais desconcertante.”

Resumidamente, de acordo com a arqueologia de Arendt, tudo teria começado com a invenção de Galileu do telescópio, ensejando o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra a partir do flutuante ponto de vista do universo: a descoberta do ponto de Arquimedes. Ela teria marcado o estágio inicial para a humanidade a partir do qual os segredos do universo foram revelados à cognição humana com a mesma ‘certeza da percepção sensorial’; isto é, colocou-se “diante da criatura presa à Terra e dos sentidos presos ao corpo aquilo que parecia destinado a ficar para sempre fora do seu alcance”. Isto demonstrou que o homem poderia, através de sua engenhosidade técnica, transcender as limitações de seu corpo e de seu pertencimento gravitacional à Terra e chegar a um entendimento da natureza previamente acessível somente através da especulação abstrata. Ao mesmo tempo, a invenção do telescópio demonstrou que os sentidos humanos eram insuficientes e ilusórios em sua busca de compreensão da natureza. Contudo, longe de iluminar o mundo físico, o abandono de nossa percepção sensorial pela verdade produzida por instrumentos técnicos nos deixou um universo cujas qualidades conhecemos não mais do que elas afetam nossos instrumentos de medida. No dizer do poeta: nossa cabeça presa entre dois mundos…

Como exemplo de tal alienação e suspeição sobre o que nos é dado pelo mundo, Arendt se refere ora à postura do filósofo Descartes ora à revolução copernicana: ao simples fato de que não são mais os astros que giram em torno da Terra e sim esta em torno deles. Tal desconfiança dos sentidos, e transformação do mundo em um universo de cujo processo carecemos a compreensão, teria autorizado nos diversos ramos do saber moderno uma ausência de responsabilidade pelo mundo tão cara à sua postura. Numa das maiores ironias já escritas ao narcisismo humano desde Freud, Arendt conclui seu ensaio com Heisenberg ao afirmar que quanto mais confiamos em instrumentos que nos deleguem a mais remota realidade das partículas ou de distantes galáxias, mais verdadeiro se torna o fato de que o objeto de pesquisa não é mais a natureza em si mesma, mas a investigação do homem sobre a natureza na qual, nas palavras do próprio Heisenberg, o homem encontra apenas a si mesmo. Numa palavra, encontra-se sozinho e jamais em companhia. Perante o possível descarte da pluralidade humana, anunciado desde a abstração flutuante do ponto de vista de Arquimedes e pelo formalismo dos símbolos matemáticos da moderna ciência, a estatura humana estaria sendo rebaixada senão destruída: mundo nenhum…

A mesma época moderna, segundo a pensadora, teria terminado no limiar do XX ao se cristalizar na ameaça de repetição de um mal que, agora sob faceta nuclear, ensaia em potencial a derrocada do mundo que habitamos ao possibilitar novamente a erradicação da pluralidade humana da face da Terra. Com efeito, como não reconhecermos que este mal não seria radical, e sim penetrante e por isso mesmo banal, ao se espalhar como fungo pela superfície da terra afora, possivelmente nas mãos de quem quer que seja?

Mas quiçá nem sempre fora assim. Lado a lado à corrosiva arqueologia da modernidade operada por Arendt, podemos encontrar sugestivas alusões de como ela esboça uma alternativa de resposta à responsabilidade individual perante o mundo e às tarefas reservadas à comunidade política na era moderna. Conquanto descrente em sua época no que tange às advertências dos políticos contra a utilização do novo poder atômico (Arendt se refere à tentativa do então presidente americano Eisenhower em 1958, chamada associação “Átomos para a Paz”), ela também aponta para o fato de que o conhecimento científico-tecnológico tenha se tornado uma questão política de primeira grandeza e à possibilidade de resistência perante a possibilidade factual de sua realização. Deixemos, todavia, essas interrogações para outra oportunidade.

Referências

AGUIAR, Odílio. Condição humana e educação em Hannah Arendt. Revista Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 2, n. 44. 2008. [ Links ]

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Tradução de Roberto Raposo, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. [ Links ]

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. [ Links ]

CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. [ Links ]

DUARTE, André de Macedo. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt, São Paulo: Paz e Terra, 2000. [ Links ]

LAFER, Celso. Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2003. [ Links ]

LAFER, Celso. Na confluência entre o pensar e o agir: sobre uma experiência com os conceitos de Hannah Arendt. In: A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. [ Links ]

LEBRUN, Gerard. Hannah Arendt: um testamento socrático em Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1992. [ Links ]

VILLA, Danna Richard. Politics, philosophy, terror: essays on the thought of Hannah Arendt. Princeton: Princeton University Press, 1990. [ Links ]

WAGNER, Eugênia Sales. Hannah Arendt: Ética & Política, São Paulo: Ateliê Editorial, 2006. [ Links ]

YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Why Arendt Matters, Yale: University Press, 1944. [ Links ]

Recebido: 12 de Fevereiro de 2016; Aceito: 01 de Setembro de 2016

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons