SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número64Hannah Arendt e a Conquista do EspaçoDa irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.64 Uberlândia jan./abr 2018  Epub 20-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n64a2018-14 

Artigos

Iluminismo colonial. A natureza e os índios no poema de Basílio da Gama, “O Uraguai”

Colonial enlightenment: Nature and the indians in Basilio da Gama’s poem, “O Uraguai”

Lumières coloniales: La nature et les indiens dans le poème “O Uraguai” de Basilio da Gama

Sonia Campaner Miguel Ferrari* 

*Doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora Assistente-Doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). E-mail: soniacamp@pucsp.br


Resumo

O poema O Uraguai, de Basílio da Gama, escrito no século XVIII, é entendido principalmente, como um poema alegórico que homenageia o Marques de Pombal e sua política iluminista. Percorre-se, neste ensaio, algumas interpretações do poema e procura-se apontar, em virtude das particularidades e ambigüidades do projeto iluminista português, outras possibilidades de interpretação do poema a partir dos elementos considerados acessórios: a natureza e os índios.

Palavras-chave: Iluminismo; Colonialismo; Alegoria; Natureza; Índios; Epopéia

Abstract

Written in the XVIIIth century, the poem Uraguai of Basílio da Gama has been considered an allegorical homage to Marquis of Pombal and his illuminist politics. We present here some interpretations of the poem and also point other possibilities of interpretations due to the particularities and ambiguities of the Portuguese illuminist project, and using nature and Indians, elements considered accessories by the tradition.

Keywords: Illuminism; Colonialism; Allegory; Nature; Indian; Epopee

Resumée

Le poème O Uraguai, écrit par Basilio da Gama au XVIIIe siècle est entendu essentiellement comme un poème allégorique qui honore le Marques de Pombal et sa politique éclairée. Nous presentons dans ce texte certaines interprétations du poème et cherche à souligner, en raison des particularités et des ambiguïtés du projet portugais des Lumières, d'autres possibilités d'interprétation du poème à partir d'éléments considérés comme des accessoires: la nature et les Indiens.

Mots-clés: Lumières; Colonialisme; Allégorie; Nature; Indiens; Épopée

Apresento aqui uma leitura do poema de Basílio da Gama, O Uraguai centrada na interpretação do significado do Canto IV do mesmo, seja dentro da economia do próprio poema - relacionada com a unidade de ação e os requisitos básicos para a produção de um poema épico, retomando algumas das interpretações de estudiosos da literatura brasileira - seja na relação que o tema do Canto IV estabelece com o movimento cultural da época em Portugal e no Brasil. Para tanto, é necessário abordar a temática a partir dos temas: 1) O iluminismo em Portugal: o mecenato pombalino; 2) A estrutura do poema: o louvor a Pombal através da saga do herói Gomes Freire de Andrada; 3) Um poema épico no século XVIII brasileiro? Algumas interpretações do poema de Basílio da Gama; 4) A interpretação de Ivan Teixeira; 5) O Canto IV: iluminismo e natureza n’ O Uraguai; 6) O poema como alegoria e as alegorias do poema.

1. O Iluminismo em Portugal

Sabemos que o Iluminismo se caracteriza pela extensão do pensamento racional cartesiano e da visão da Física mecânica de cunho experimental a outras áreas da atividade humana que não se restringem à filosofia e à ciência. Essa extensão caracterizou-se na transformação do pensamento escolástico, na introdução desses métodos nas academias, e no surgimento mesmo de academias, laboratórios de investigação etc. Caracterizou-se também na adoção de estratégias políticas que estariam de acordo com os novos tempos: o incentivo à pesquisa, a transferência, gradativa, do ensino, das mãos religiosas para as laicas, ou, como ocorreu em Portugal, das mãos dos jesuítas para as mãos dos oratorianos, culminando no banimento dos primeiros daquele país. Isso se deu “sob o pretexto de que [os jesuítas] contrariavam o progresso geral do Estado e a clareza das idéias do ensino”1, ou seja, não estavam em consonância com os projetos de esclarecimento estabelecidos nesse momento pelo Marquês de Pombal, o então ministro do rei D. José I.

Portugal, como país católico, procura seguir a maré do pensamento moderno, no entanto essa sua condição lhe impõe limitações claras. Ivan Teixeira2 aponta essa diferença na forma que o Iluminismo assumiu na península ibérica; nesses países católicos, a autonomia individual é limitada pela própria condição existencial do homem: este encontra-se sob a dependência de um ser supremo que comanda as leis da natureza e da própria condição humana, e que tem como representante na terra o rei. Essa concepção acaba por ampliar o poder real. Por outro lado, nos países sob a influência da reforma luterana, que preconiza uma maior autonomia do homem em face das escrituras sagradas, tem-se uma consciência maior dos impasses morais vividos pelo homem e da autonomia que o homem tem diante desses impasses3.

Podemos então notar que os ventos iluministas sopram por toda a Europa, mas assumirão formas variadas de acordo com a paisagem que têm pela frente. Sabemos também hoje que com base na idéia de que o homem é essencialmente um ser racional, muitas ações não propriamente racionais foram justificadas. Não podemos, portanto, homogeneizar essa concepção que, é verdade, trouxe inúmeras possibilidades de mudanças nas relações antes estabelecidas, mas também muitas possibilidades de argumentar em favor da manutenção de algumas das relações já consolidadas.

No estudo intitulado A concepção de natureza no século XVIII em Portugal, Pedro Calafate apresenta as ambigüidades inerentes não só à realização do projeto iluminista em Portugal, mas aquelas que são inerentes ao próprio projeto iluminista: o conceito de natureza se presta bem a essa discussão, pois não há conceito mais vago do que esse. A impossibilidade de definir com precisão o que seja natureza mostra a limitação das formulações gerais, dos conceitos genéricos. Calafate cita Teodoro de Almeida, para quem “a não determinação rigorosa do seu conceito e do seu significado preciso acabaria por transformar a natureza numa idéia vazia que, à força de possuir tantas acepções não possuiria, afinal, nenhum conteúdo em particular”4. A dificuldade de formular de modo claro e não ambíguo o significado do termo natureza, dificuldade essa partilhada também, por exemplo, por d’ Alembert no verbete “natureza” da Enciclopédie5, indica que algo escapa às formulações racionais, científicas e fundadas na observação preconizadas pelo movimento iluminista.

Calafate nos dá alguns exemplos de escritores e teóricos portugueses que procuraram dar conta dessa idéia e que consideram que por detrás dessa pluralidade de significados há algo que talvez se recuse a essa redução conceitual. No entanto, o homem do Iluminismo não abre mão dessa conceituação, e da ordenação da natureza.

Parece haver a respeito do termo natureza e das idéias que designa, em particular na cultura setecentista, o “sentimento íntimo”, entre autores e ledores, de que compreendem ou podem explicitar, se necessário o seu conteúdo, embora tal sentimento se faça acompanhar da impressão, mais ou menos intensa, de que se trata de uma idéia complexa. É precisamente esse sentimento que vemos enunciado no texto de Teodoro de Almeida ao colocar na boca de um seu personagem (a) expressão…: ‘nós a conhecemos bem, ainda quando a não podemos bem definir.’6

O que autor do ensaio procura mostrar é a permanência de inconsistências e irracionalidades no discurso iluminista. Por exemplo, contra as “maquinações”, ou seja, artificialidades dos jesuítas, autores pombalinos reivindicam a simplicidade de um método natural7, sendo que somente seus autores garantem a sua veracidade. A natureza aparece então como a justificativa para a ordem e a finalidade definidas pelo projeto iluminista a partir dos métodos matematizantes das ciências físicas. Em Portugal, tal lógica do mecanicismo desembocou “numa filosofia religiosa”, isto é, numa filosofia que aceita os resultados de um discurso científico como expressão de uma realidade física passível de ser conhecida, mas, que se revela como símbolo. O que de fato nos interessa aqui é exatamente isso: a manutenção da idéia de símbolo em pleno movimento iluminista. É importante apontar esse contexto de concepção filosófica, pois é nele que se justificam as ações tomadas à época do Marquês de Pombal, mecenas que acolheu na corte portuguesa o poeta Basílio da Gama.

2. A estrutura do poema: o louvor a Pombal através da saga do herói Gomes Freire de Andrada

Basílio da Gama escreveu O Uraguai em 1769. O poeta nasceu na então Capitania de Minas Gerais em 1741, em São José das Mortes, hoje Tiradentes. Estudou para jesuíta no Colégio da Ordem, expulsa dos domínios portugueses, sendo que seus membros ficaram então livres para que se desligassem, em 1759. Basílio da Gama preferiu voltar à vida civil e continuar seus estudos no Rio de Janeiro, num seminário do qual foi expulso por ter escrito uma sátira. Em 1760 estava já em Roma, junto aos jesuítas novamente. Ficou ali até 1767, tendo sido admitido em 1763 à Arcadia Romana. Há especulações a respeito de como Basílio da Gama teria conseguido tão rápida ascensão, mas de fato o que nos interessa é que nesse período ele escreve alguns poemas, e que em 1767 encontrava-se novamente no Rio de Janeiro. Dois anos depois ele terá escrito O Uraguai, mas já em Lisboa, para onde foi mandado preso em 1768 por causa de uma lei, de 28 de agosto de 1767, que estabelecia penalidades para as pessoas ligadas de algum modo aos jesuítas. A pena era de 8 anos de degredo para Angola. Basílio da Gama livra-se da pena ao escrever um poema sobre o casamento da filha do futuro Marquês de Pombal, que lhe arranjou o perdão. Tanto cai nas boas graças do Marquês que em 1774 é nomeado Oficial da Secretaria do Reino, cargo de importância que ocupou até a morte.

O assunto do poema O Uraguai é a luta da tropa aliada, espanhola e portuguesa, contra os índios que viviam nas Missões jesuíticas do atual Rio Grande do Sul, no sul do país. Segundo o Tratado de Madrid (de 1750), que reviu as fronteiras entre as colônias portuguesas e espanholas estabelecidas no Tratado de Tordesilhas, deveria haver uma troca de territórios: os portugueses deveriam sair da Colônia de Sacramento, hoje República do Uruguai, cedendo-a aos espanhóis, em troca da área ocupada pelas missões jesuíticas, que recebia na época o nome de Sete Povos. Os índios, incitados pelos jesuítas, recusavam-se a tornarem-se súditos dos portugueses. Os dois países concordam em desalojá-los pela força, o que se inicia em 1754. Esta primeira campanha, relatada rapidamente no Canto I do poema, ocorre com a vitória dos índios. Uma segunda campanha, a de 1756, é a descrita no poema. As aldeias são destruídas, os índios mortos, mas os portugueses ainda não podem contar com êxito definitivo. O comandante da campanha, Gomes Freire de Andrada, Governador do Rio e de Minas, retira-se do local levando consigo muitos aldeados, e as missões são extintas.

Basílio da Gama encontrava-se no Rio de Janeiro, e presenciou a partida dos soldados em direção à campanha. Mas não tem acesso a não ser aos relatos indiretos de participantes da campanha. Por outro lado, ao escrever seu poema, encontrava-se em Lisboa. Podemos supor que a idéia da elaboração desse poema, considerado épico por vários estudiosos8, nasceu ali, no momento em que se prepara a batalha, e recebeu, mais tarde, acréscimos que se devem ao contato de Basílio da Gama com o Marques de Pombal.

Como dissemos, Basílio da Gama toma como tema de seu poema essa segunda campanha, de 1756, contra as missões jesuíticas. O poema é composto por cinco cantos. O Canto I descreve o encontro das tropas espanholas com as portuguesas. O comandante português Gomes Freire relata ao espanhol, durante um banquete, o ocorrido na primeira campanha: sua derrota diante dos índios e das águas do rio Uruguai. O Canto II relata o avanço das forças aliadas e o encontro da cultura européia com a indígena. Basílio da Gama descreve esse diálogo, esse choque cultural entre as duas culturas, de modo a colocar na boca dos índios Sepé e Cacambo uma concepção de mundo fundada na idéia de que eles, os índios, têm uma razão mais universal que a dos portugueses, e também que a dos espanhóis. Na boca de Cacambo Basílio põe uma espécie de queixa de quem habita do lado oeste do Atlântico, pois os países da Europa tomam decisões que afetam esses povos, sejam eles os habitantes primitivos desta terra - os índios - ou os colonos. Diz o poema:

Com o largo oceano de permeio,

Em que os suspiros dos vexados povos

Perdem alento. O dilatar-se a entrega

Está nas nossas mãos, até que um dia

Informados os reis nos restituam

A doce e antiga paz. Se o rei de Espanha

Ao teu rei quer dar terras com mão larga

Que lhe dê Buenos Aires, e Correntes

E outras, que têm por estes vastos climas;

Porém não pode dar-lhes os nossos povos.

E inda no caso em que pudesse dá-los,

Eu não sei se o teu rei sabe o que troca

Porém tenho receio que o não saiba.

(O Uraguai, Canto II, versos 61 a 73)

O diálogo entre Cacambo e o General mostra também que esse choque cultural é também um embate político. Cacambo quer ficar em suas terras, aquelas que ele ara, onde caça e pesca, onde vive e sobrevive sua gente. Nessa terra nenhum rei tem poder: Vê que o nome dos reis não nos assusta/O teu está muito longe (vs. 108-109). No entanto, o índio completa a frase afirmando que não temos outro rei mais do que os padres (vs.110). Esse diálogo põe o índio como representante daquele que vive no lugar: ele tem orgulho de ali estar, mas o herói português não o deixará esquecer que sua paz e tranqüilidade dependem do rei que é “vosso pai”. Diz o general:

Quer o benigno rei que o fruto seja

Da sua proteção. Esse absoluto

Império ilimitado, que exercitam

Em vós os padres - como vós vassalos -

É império tirânico, que usurpam.

Nem são senhores, nem vós sois escravos.

O rei é vosso pai: quer-vos felizes”

(versos 127- 133)

Está claro, como quer Ivan Teixeira, que Basílio da Gama compõe esses versos com o intuito de fazer a propaganda da política pombalina anti-jesuítica. Mas está claro também que o poeta coloca na boca do índio o sentimento daquele que habita aquelas terras: o que têm eles a ver com as contendas dessas gentes da Europa? Podemos também notar que a qualidade dos índios - grandes almas, grandes guerreiros, livres, justos - é afirmada com o objetivo de engrandecer a campanha do herói, mas essas qualidades são as qualidades reconhecidas como essenciais aos cidadãos, cidadãos que enquanto estiverem submetidos a um poder - o da Coroa Portuguesa - deverão prestar obediência a ela. Esse canto termina com o combate entre europeus e indígenas no qual estes são derrotados e se retiram, e ainda com a morte de Sepé. No Canto III o poeta nos leva até Cacambo que, tendo sonhado com a imagem de Sepé que o incita a continuar a luta, volta ao acampamento dos aliados, ateia fogo à vegetação em torno do local e foge, logo em seguida, atirando-se às águas do rio. Já do outro lado da margem, padre Balda - o jesuíta e vilão da história - manda prender e matar Cacambo, para poder casar seu filho ilegítimo, Baldetta, com Lindóia, mulher de Cacambo, e desse modo assumir também a posição de cacique. Tanajura, a feiticeira da tribo, por meio de suas artes, permite a Lindóia ter a visão do terremoto de Lisboa e a expulsão dos jesuítas, com o que a morte de seu marido parece ter sido vingada. O Canto IV, ao qual voltaremos mais adiante, relata o avanço das tropas em direção às missões. Basílio descreve uma região alta e enevoada, de grande beleza natural. Na aldeia, no entanto, todos se reúnem para o casamento de Baldetta e Lindóia. Mas a moça dirige-se a um bosque próximo, onde se deixa picar por uma cobra venenosa. Seu irmão, Caitetu, nota sua ausência e prevê o pior. Vai encontrá-la já morta, e sobre ela ainda a serpente que a picou. Enquanto isso, um índio anuncia a chegada à aldeia dos europeus. Por ordem dos jesuítas os índios ateiam fogo à aldeia enquanto aqueles fogem. O Canto V, “considerado o pior de todos e visivelmente mal acabado” na opinião de Antonio Cândido 9, tem como assunto principal a pintura no teto da igreja, que alude à idéia de um império universal da Companhia de Jesus, e seus atos condenáveis para realizá-lo. É novamente uma peça de propaganda política na medida em que enfatiza a péssima obra jesuítica e a validade do esforço do Marquês de Pombal para expulsá-los de Portugal e da Colônia. O poema termina com uma exortação à musa e ao sucesso futuro do poema.

3. Um poema épico no século XVIII brasileiro?

Algumas interpretações do poema de Basílio da Gama

A partir da leitura do poema algumas questões se colocam: Por que o poeta escreve um poema em intenção épico em pleno século XVIII, momento em que não há mais lugar para a épica? É de fato um poema épico?

Uma análise do conteúdo do poema e das circunstâncias em que foi escrito pode nos responder essa pergunta, mas antes trata-se de refletirmos a respeito da relação entre as formas estéticas e o conteúdo de que dispõe o autor. É certo que a posição ocupada por Basílio da Gama junto à corte, ao lado do Marques de Pombal, tem um papel nas escolhas que faz o poeta, mas isso não é determinante.

Diz Antônio Cândido: “Embora tenha dado a O Uraguai uns disfarces de epopéia, quase tudo o afasta do gênero: o assunto, reduzido e atual, quebrando a norma da distância épica; o tamanho pequeno, incompatível com as regras; a presença da sátira e do burlesco, que são a própria negação destas e aproximariam a obra do poema herói-cômico, isto é, a anti-epopéia deliberada”10. Conclui Cândido que “é um poema narrativo de assunto entre épico e político, banhado por um lirismo terno ou heróico, que permite ver com simpatia o índio brasileiro”11. Ou seja, segundo Cândido, o autor tenta adaptar a certo formato épico os temas que estão à sua disposição no momento: a política pombalina anti-jesuítica, um certo sentimento anticolonial que aparece na fala dos índios, ao lado de um sentimento de dependência em relação à metrópole, a beleza natural da colônia. Segundo o próprio Cândido, e ainda Antonio Bosi, o poema já se inseriria num movimento entre a classe de letrados brasileiros que têm em mente a criação de uma literatura brasileira: “historicamente considerado, o problema da ocorrência de uma literatura no Brasil se apresenta ligado de modo indissolúvel ao ajustamento de uma tradição literária já provada há séculos - a portuguesa - às novas condições de vida no trópico”12. Refere-se aqui ao período barroco, século XVII. A essas características, o século XVIII veio acrescentar “uma concepção até certo ponto nova que representa, nas idéias em geral, a influência das correntes ilustradas do tempo; a literatura do Classicismo de inspiração francesa e do Arcadismo italiano”13. Esse último período teria sido uma pequena “Época das Luzes”, tendo colocado questões relativas à independência política, à emancipação intelectual, além de ressaltar as qualidades, positivas e negativas do povo da colônia.

Podemos nos fazer primeiramente uma pergunta14: por que Basílio da Gama recorreria à forma épica para escrever o poema em questão, levando-se em conta que tal forma perdeu sua razão de ser no período moderno, o mesmo que viu nascer o romance, e mais tarde a crônica jornalística? Se, como vimos, para Antonio Cândido o autor não mantém nenhuma das características que definem uma epopéia, para Bosi15 o intuito original do autor foi épico, e para Sergio Buarque16 trata-se de uma epopéia americana “invadida pelo lirismo” devido à influência do Arcadismo italiano.

Ora, se levarmos em conta a afirmação de Lukács17 para quem as formas não são imunes à evolução histórica, ao assumir os conteúdos de cada época a título de matéria contingente, essas formas sofrem transformações. Ainda, segundo Lukács, a epopeia retrataria uma espécie de paraíso caracterizado na Teoria do Romance como um mundo sem alienação no qual o sentido era imanente à vida.O poema de Basílio da Gama retrata um conflito que se opõe à idéia de unidade expressa no poema épico. Se a intenção de Basílio da Gama era a de criar uma obra épica para fazer a propaganda da política pombalina, os elementos com que tem de lidar para tanto fizeram de seu poema algo distinto de uma epopéia. Basílio da Gama é um poeta brasileiro, isto é, um colono, educado entre os jesuítas, mas que conserva, mesmo em Portugal, a consciência das diferenças entre a metrópole e a colônia. Isto não significa dizer que Basílio da Gama defende a independência da colônia, mas que tem ainda diante de si o que significa viver na colônia em contraste com a metrópole. As ambigüidades18 contidas no poema são as que se devem a uma posição em que se encontra alguém que se refere à sua terra como posse de outro - o general Gomes Freire é visto como aquele que fala em nome de uma autoridade distante, mas que em nenhum momento é contestada -, mas que reconhece que o habitante natural da terra, o índio, tem também uma razão, e luta por ela em condições desfavoráveis em relação à do europeu, a não ser pelo fato de que, no poema, Basílio da Gama credita aos jesuítas o ensinamento de uma arte guerreira aos índios.

Os elementos presentes no poema: a propaganda da política pombalina, o combate aos jesuítas, o lirismo na exposição da beleza da nova terra e da pureza do amor entre os índios, o reconhecimento e a valorização das qualidades do povo da terra e que os fazem merecedores do lugar em que nasceram - tais elementos não nos levam a considerar o poema como épico. Para alguns, basta a glorificação da política pombalina para considerar épico o poema, pois nesse gênero nos deparamos com um acontecer “determinado pela busca de valores coletivos, religiosos e familiares, gerando uma situação de conflito que caracteriza o ‘destino nacional’”19. Segundo essa afirmação, o “caráter nacional” de um povo só se afirma nas guerras e conflitos.

O que corre perigo no episódio narrado por Basílio da Gama, do ponto de vista da metrópole e do poeta que teme outros inimigos, não é a cultura, a língua ou qualquer outro aspecto que poderia servir para caracterizar algo como a “identidade” indígena, mas é a posse da terra pela coroa portuguesa, que aqui aparece como protetora da natureza que é frágil diante dos inúmeros aventureiros que dela querem lançar mão. Podemos por isso aproximar o poema de Basílio da Gama a um romance em versos, no qual mais de um drama se desenrolam: 1) o do embate entre o Marques de Pombal e os jesuítas: para o primeiro, a necessidade de expulsar os catequisadores e afirmar sua autoridade, para os últimos, a manutenção do trabalho realizado, usando inclusive os índios para fazer valer o seu intuito; 2) o dos índios, que já perderam sua paz e estão em vias de perder também sua terra e sua liberdade; 3) o de Lindóia, que perde seu marido e se vê na contingência de ter que desposar quem não quer.

4. A interpretação de Ivan Teixeira

Em seu livro Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, Ivan Teixeira propõe a seguinte leitura do poema de Basílio da Gama:

Pela perspectiva do seguinte ensaio, o núcleo da significação de O Uraguai encontra-se no louvor ao Marquês de Pombal, que implica o ataque aos inacianos, e não na valorização do índio enquanto elemento típico da terra do autor. Sem desconsiderar o imenso valor artístico do poema, importa ao presente ensaio examiná-lo como parte do discurso ilustrado português, na medida em que glosa uma de suas principais constantes temáticas (pombalismo+antijesuitismo= domínio das Luzes), adotando uma das formas poéticas preferidas da Ilustração, o encômio alegórico, para cuja realização o poeta se valeu de alguns componentes do poema épico.20

Segundo Ivan Teixeira, o Marquês de Pombal se enquadra perfeitamente aos ideais propagados pelo iluminismo: e isso significa o estabelecimento de condições para que haja uma administração eficiente do Estado, baseada em “critérios racionais”. A Universidade tem um papel importante nisso: “por meio de professores ela deveria criar e promover a luz do saber, difundindo-a para todos os compartimentos da Monarquia”21. Países como a Inglaterra, a França, a Holanda e a Áustria constituíam-se em “centros irradiadores do progresso” onde foi criado um “conceito de administração pública legitimado por forte aparato racionalista”22.

Fazia parte desse ideal administrativo também criar uma retórica favorável a essa política, e o Marquês sabedor da importância desse aspecto para o sucesso de suas atividades foi um grande incentivador e criador de um forte esquema de propaganda.

O poema de Basílio da Gama O Uraguai é uma das peças dessa propaganda da política pombalina. Nesse poema Basílio da Gama retrata o Marquês de Pombal no Canto IV como aquele “que libertaria os indígenas do domínio opressivo dos jesuítas”23, além de a figura do Marquês dominar “toda a abertura de O Uraguai24. Com essas afirmações o autor pretende contestar a idéia segundo a qual há n’O Uraguai uma “dimensão indianista, naturista ou nativista, entendida como fator de brasilidade e estímulo nacionalista”25. Para ele “a presença do índio não passa de suporte para a celebração de Pombal, associada à desqualificação dos jesuítas”26.

Pretendemos apresentar aqui uma interpretação que não se opõe em todos os pontos à de Ivan Teixeira, mas que acrescenta algo mais ao sentido da presença dos índios e da natureza no poema em questão. Se nossas reflexões iniciais referem-se ao modo como o iluminismo se disseminou em Portugal, os índios e a natureza não são somente elemento de suporte ao elogio da política pombalina, mas permitem detectar no poema traços de uma concepção filosófica do poeta brasileiro que refletem as concepções da metrópole e do próprio brasileiro letrado do século XVIII relativas a esses elementos que são objetos das reflexões dos iluministas, mas que ao mesmo tempo não se deixam reduzir aos seus principais conceitos.

5. O Canto IV: iluminismo e natureza n’O Uraguai

Queremos acrescentar algo à afirmação de Ivan Teixeira, para quem todo o poema é uma louvação do Marquês de Pombal e da sua política: “se um crítico se perdesse na contemplação dos pormenores e não captasse a mensagem da alegoria, essa seria talvez uma visão parcial e redutora do teto de Andrea Pozzo. Isto é, projetou-se o afresco como a glorificação da Companhia - que, depois de dominar os quatro cantos da terra, foi alçada com imensa pompa para o reino de Deus. O mesmo se pode dizer da tradição crítica brasileira, que isola a exaltação da América em O Uraguai, sem se dar conta de que a essência arquitetônica do texto é a encenação alegórica de um ambicioso louvor ao conde de Oeiras, o maior combatente da Companhia de Jesus”27.

No entanto, a compreensão da mensagem da alegoria se faz também pela contemplação dos pormenores, pois é nestes que se encontra aquilo que o discurso iluminista não alcança. É nesses pormenores que se encontra a ambigüidade dos discursos, e em particular do poema de Basílio da Gama. Apontar essa ambigüidade não significa negar o caráter da mensagem do poema como um todo, mas apenas apontar as suas fissuras.

Gostaria de me ater exatamente num desses pormenores - a presença dos índios e da natureza no poema - para voltar à temática da primeira parte deste trabalho, ou seja: como poderia aparecer uma concepção iluminista num poema escrito em Portugal por alguém originário da Colônia como Basílio da Gama? Se, como dissemos antes, o discurso iluminista comporta contradições, mesmo na tentativa de formular um discurso racional, coerente e de acordo com os mais modernos métodos de investigação e composição28, e isso acontece na Europa, como poderia Basílio da Gama não deixar transparecer em algum momento traços dessas fissuras?

Não estamos com isso afirmando que o poema de Basílio da Gama exalta as qualidades da natureza e do índio brasileiro como uma forma de colocar aí um discurso patriótico. No Brasil colônia o empreendimento civilizador da metrópole foi de conquista e exploração comercial no seu início; de catequização e aculturação do índio, e expulsão de suas terras29, no entanto Basílio da Gama parece estar longe de intentar colocar o índio na posição de um contestador do poder dos países da Europa, e mais próximo de tratar o índio e natureza como “objetos” de um sujeito poderoso e capaz de protegê-los daqueles que procuram usá-los ou destruí-los. Desse modo, ele é porta-voz de uma concepção filosófica que vê o índio e a natureza como inferiores porque inconscientes (não conhecedores) da ordem e da finalidade, ameaçados pela ação dos jesuítas. Assim, o Marquês de Pombal aparece portador da causa inteligente30, da ordem a ser estabelecida na colônia. O papel do rei, do soberano, é o de garantir a ordem humana de acordo com a ordem divina, e esta se expressa na natureza; a ordem natural é divina. No entanto, essa ordem natural é descaracterizada pelos jesuítas. Como os índios estão ainda muito próximos da natureza, não têm consciência dessa ordem, e são conduzidos, por causa de sua ingenuidade, pelos ardis dos jesuítas. Mesmo assim, Basílio da Gama não pode deixar de glorificar a majestosidade da paisagem colonial; sua exuberância é visível. Mas é exatamente essa beleza e essa exuberância que a tornam um chamariz para os aventureiros. Ao mesmo tempo em que Basílio da Gama glorifica as ações do Marquês e as reconhece como necessárias para a manutenção da paz e da harmonia na colônia, a presença da natureza e dos índios no poema revela o quanto é árdua essa tarefa, pois o homem deve reafirmar a sua paz em detrimento daquilo que ele perdeu e que os índios de certa forma representam.

Alfredo Bosi aponta uma “dubiedade” relativa ao tratamento do tema do índio e da natureza no poema, e segundo o estudioso ela se deve ao fato de que em O Uraguai, encontramos tanto uma “justificativa do massacre das missões do Sul”31 pelas tropas comandadas por Gomes Freire - e essa justificativa é a do poder da metrópole - como uma caracterização desse mesmo índio massacrado como valente, altivo, capaz de defender sua terra em nome de uma idéia do que é ser livre (Canto II, versos 48-110). No entanto, as palavras proferidas pela boca de Sepé e Cacambo, como vimos, não soam como discursos em defesa da pátria livre, mas em defesa de um ideário que está em perigo com a presença dos jesuítas. O comandante português opõe, à idéia de uma liberdade “escravizada” pelos jesuítas, a idéia de liberdade que significa obediência ao rei de Portugal (II, 119-126). Segundo a fala do índio Sepé, a liberdade foi herdada junto com a terra que receberam de seus antepassados: se lhes tiram a terra, lhes tiram também a liberdade. Como é possível que esse rei possa lhes conceder liberdade se quer lhes tirar a terra? (II, 176-190). No entanto, em tudo o que cerca o poema, não só o índio, mas também o homem branco, já a perdeu.

A batalha travada entre europeus e índios sela a discussão: como afirma Bosi, o índio tem razão, mas no embate entre a sua razão e a do europeu vence a deste. Ao ver de Basílio da Gama, o índio, na verdade já não é mais livre: ou se deixa proteger pelo rei português, ou se deixa aculturar e escravizar pelos jesuítas. No Canto III Sepé aparece a Cacambo, incitando-o a arrancar da Europa sua fortuna (III, 49-74). Cacambo, inspirado por essa imagem fantasmagórica, dirige-se ao acampamento do inimigo, e põe fogo na vegetação seca. A coragem e a determinação do índio são valorizadas de tal modo que Basílio da Gama o compara com Ulisses, quando este contempla a ruína de Tróia. O índio é também um herói: corajoso, determinado e astuto. Ele luta por um ideal e não irá abandoná-lo facilmente. No entanto, para Basílio da Gama o ideal que o índio simboliza não vai se realizar a menos que ele ceda ao poder da coroa portuguesa. Nos versos 22 a 54 do canto IV Basílio descreve a paisagem natural, entremeada por pequenas casas, pacífica e bela, que logo após será destruída pelo padre jesuíta. O futuro não está garantido enquanto esses padres lá estiverem. Lindóia não suporta esse poder destrutivo, e tira sua vida para não ter que se submeter a ele. No entanto, o poema aponta a possibilidade de um outro poder, o dos portugueses, capaz de manter intactas a beleza e a exuberância dessa terra. Nos versos 214-219 do canto IV Basílio promete à “Amável indiana” a vingança por sua morte: essa vingança é o cumprimento das promessas feitas pelo poeta nos versos IV, 287 e V, 140. Em IV, 287 a promessa é feita ao gênio da inculta América: promete o poeta a esse gênio, que o faz levantar em suas asas, a paga pelo sofrimento que um dia os jesuítas o impuseram. Em V, 140, o poeta promete aos que canta no poema o sucesso deste mesmo, isto é, sua história será conhecida no futuro, e neste serão conhecidas as maldades realizadas pelos jesuítas e o pulso forte e magnânimo do Marquês que salvou a Colônia e os colonos desse infortúnio.

Para Antonio Cândido o Canto IV é o mais belo de todos, e apresenta, de fato, a mais bela descrição da natureza do lugar. A visão do campo a partir do alto da montanha corresponde a uma visão paradisíaca: a beleza do local contrasta com as más intenções dos jesuítas, segundo a visão de Basílio da Gama e seu porta-voz, o herói Gomes Freire. Enquanto os portugueses e espanhóis se aproximam, os índios estão reunidos em local onde se realizará a cerimônia de casamento entre Baldetta, o filho de Balda e Lindóia. Ela, no entanto, retirou-se para um jardim próximo, chorosa. Além de querer, com esse episódio, expressar mais uma faceta da maldade de Balda, por que Basílio da Gama interpõe, num poema que se pretende épico, este episódio. Quem é Lindóia, o que ela representa? Ela é bela, mas também vulnerável. Sem aquele que a ama e a defende, ela fica à mercê dos que a querem para usurpar o seu poder- o poder que ela tem como pertencente à família nobre da tribo. Lindóia é uma alegoria da ambigüidade presente no poema: a beleza da natureza e a liberdade dos índios deixados sem proteção ficariam à mercê dos salteadores e aventureiros, daqueles que querem apenas retirar dela o que tem de precioso, e depois deixá-la morrer à míngua. A terra é bela, no entanto vulnerável. Lindóia prefere morrer a ter de se entregar àquele que representa o mal32. A solução para ela talvez fosse a chegada do soldado que, representando o braço do rei, garantiria sua segurança. Balda trata a morte de Lindóia com indiferença, e o poeta promete a Lindóia um futuro que não demora a cumprir-se: a pátria será sua, porém, com a proteção do rei.

6. O poema como alegoria e as alegorias do poema

Segundo Teixeira, o poema tanto é uma alegoria como apresenta elementos alegóricos em sua composição. Para o estudioso, O Uraguai deve “primeiro ser lido como um louvor alegórico Marques de Pombal, em que entram como acessórios o índio e o jesuíta”33. As alegorias do poema que autorizam a conceber o poema todo como um “louvor alegórico” são: a alegoria antijesuítica do teto da Igreja de São Miguel, no Canto V, e a presença dos índios e da natureza nos Cantos II, III e IV.

A forma da composição do poema e as imagens utilizadas permitem aproximá-lo da alegoria. Ao definir a alegoria o autor acima reconhece que a alegoria apresenta sempre dois níveis de significado. Para exaltar o Marques de Pombal Basílio da Gama tem que falar tanto dos jesuítas, que o Marques combate, como dos índios, como as personagens para as quais dirige o seu cuidado. Mas a alegoria não é somente “transposição semântica que mostra uma coisa nas palavras e outra no sentido”34. Ela é ainda “figura de linguagem que permite perceber a tensão entre o efêmero e o eterno”35, porque ela acusa o efêmero e ao fazê-lo aponta para o fim dessa condição vertiginosa, aponta para a descoberta do eterno. Tal afirmação nos permite distinguir outros dois níveis de sentido representados pela alegoria anti-jesuítica e pela morte de Lindóia.

A alegoria anti-jesuítica enfatiza a ideia de uma desordem provocada pela ação dos jesuítas, seja na Europa ou nos lugares do mundo em que estiveram presentes. No Brasil, teriam subvertido os índios e os utilizado para seus próprios fins. O trabalho de catequização não tinha outra finalidade a não ser a de realizar interesses alheios aos dos índios, e também aos da coroa portuguesa. Conforme vimos, a abertura do poema é dirigida ao Marques de Pombal, e a ele se refere como um herói cujo feito é expresso pelos versos: “paz, justiça, abundância e firme peito/ Isto nos basta a nós e ao mundo”36. Ele encarna a causa inteligente da ordem a ser estabelecida em Portugal e na colônia. Ora, a colônia era vista como terra a ser cultivada, natureza sem dono que só poderia realizar seu fim - pois não está consciente dele - se houver alguém que a oriente, um soberano. O papel do soberano é o de garantir a realização da ordem divina, da causa inteligente, é o de conduzir e ordenar a história com seu cetro. Os índios, ainda muito próximos da natureza, não teriam, segundo os colonizadores, consciência dessa ordem por serem considerados muito ingênuos, infantis. Por isso, seus “protetores” consideram que se deixam levar pelos ardis dos jesuítas.

Por outro lado, a exuberância da paisagem brasileira não dá a Basílio da Gama elementos para glorificar a sua majestosidade, mas, ao contrário, a sua fraqueza e necessidade de proteção. A presença da natureza e dos índios como segunda alegoria presente no poema nos fornece outros elementos de consideração.

Em primeiro lugar, o diálogo entre os índios Sepé e Cacambo e o general das forças portuguesas, no qual os índios expõem suas razões, defendem seus costumes, seu modo de vida, suas terras, sua liberdade. Certamente, um diálogo em que a defesa do índio é elaborada do ponto de vista do colonizador. Também na batalha os índios “trazem a marca de uma América arquetípica, vista de longe, segundo esquemas europeus”37.

É o episódio da morte de Lindóia que pode nos fornecer novos elementos de consideração embora, é certo, ainda do ponto de vista da cultura europeia. Esse episódio é lugar-comum da tradição ocidental, mas, no entanto, ele representa a lugar em que tal tradição manteve a possibilidade de oposição ao esquema de ordenação iluminista que a cultura européia trouxe para as terras de além-mar. Enquanto índia e mulher, Lindóia é alegoria tanto da natureza exuberante cujo destino será a exploração e a destruição, quanto da colônia como figura social e política vinculada à metrópole. A morte de Lindóia indica a única escolha possível de ser feita quando não se aceita nem a ordem dos jesuítas, descrita por Basílio da Gama como cruel e vitimizadora, e nem a ordem do estado soberano português. Lindóia morre, e com sua morte aponta para uma outra solução possível. Conforme nos diz Wohlfarth:

‘Wo Gefahr ist,/ Wächst das Rettende auch’38: Tal é a lei da alegoria. O movimento da Queda, abismando-se no abismo, acaba por se reverter. O abismo se reduz assim à sua própria nulidade. Assiste-se assim a uma dialética do ser e do nada em que este último, não podendo ser, deve finalmente negar-se. O mal - enquanto nada abissal - não é, e o desespero sem fundo do alegorista não poderia, em conseqüência, ter a última palavra.39

Referências

BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. Tradução e prefácio de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense: 1984. [ Links ]

BENJAMIN, W. Obras escolhidas vol. 3: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. [ Links ]

BENJAMIN, W. Goethes Wahlverwandschaften. In: Obras Escolhidas vol. 2. Gesammelte Schriften, v. I, 1. Frankfurt: Suhrkamp, 1980. [ Links ]

BOSI, A. As sombras das luzes na condição colonial. In: Literatura e resistência. São Paulo: Cia das Letras, 2002. [ Links ]

CALAFATE, P. A idéia de natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, s.d. [ Links ]

CÂNDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. [ Links ]

CÂNDIDO, A. A dois séculos d’O Uraguai. In: Literatura e sociedade. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. [ Links ]

DAMIÃO, Carla M. “Sobre o significado de épico na interpretação benjaminiana de Brecht”. In Leituras de Walter Benjamin, org. M. Seligmann-Silva, São Paulo, Fapesp/Annablume, 1999. Encyclopédie ou dictionnaire raisoné des sciences, des arts e des métiers, Par une societé des gens de Lettres, mis en ordre et publié parM. Diderot et M. D’Alembert. Paris: Chez Briasson, 1751-1780, 35 volumes. [ Links ]

GAMA, B. O Uraguai. São Paulo: Agir, 1964. [ Links ]

HOLLANDA, S. B. Uma epopéia americana, I, II, III. In: O Uraguai. O espírito e a letra II. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. [ Links ]

LUKÁCS, G. A teoria do romance. Tradução, posfácio e notas de José Marcos M. de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; ed. 34, 2000. [ Links ]

ROUANET, S. P. As Minas Iluminadas, a Ilustração e a Inconfidência. In: A teoria do romance. Tempo e História. (Org.). NOVAES, Adauto. São Paulo, Secretaria Municipal da Cultura/Cia das Letras, 1992. [ Links ]

SUBIRATS, Eduardo. A lógica da colonização. In: Tempo e História. (Org.). NOVAES, Adauto. São Paulo: Secretaria Municipal da Cultura/Cia das Letras, 1992, p. 399-410. [ Links ]

TEIXEIRA, I. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. São Paulo: EDUSP, 1999. [ Links ]

WOHLFARTH, I. L’Esthétique comme prefiguration du materialisme Historique: La Théorie du Roman et Origine du Drame Baroque Allemande. In: RAULET, G.; FURNKÄS, J. (Org.). Weimar, Le tournant esthétique, Paris: Econômica, 1988. [ Links ]

1TEIXEIRA, 1999, p. 24.

2TEIXEIRA, 1999, p. 25-26.

3 Walter Benjamin, em Origem do Drama Barroco Alemão, sublinhou as diferenças entre os dramas espanhóis e os dramas alemães devido à diferença de caracterização da posição existencial do homem entre católicos e protestantes. Para o pensador alemão, a personagem do soberano nos dramas alemães mostra um conflito maior por estar consciente de sua limitação para a realização da tarefa reservada ao rei, enquanto que o rei católico mantém aberta a possibilidade de recorrer ao poder divino para a resolução de impasses cujo alcance seja maior que o do braço do rei.

4CALAFATE, s.d., p. 8.

5Encyclopédie ou dictionnaire raisoné des sciences, des arts e des métiers, Par une societé des gens de Lettres, mis en ordre et publié par M. Diderot e M. D’Alembert, 35 volumes, Paris, chez Briasson, 1751-1780. Nesse verbete D’Alembert remete aos vários sentidos da palavra natureza ao longo da história da filosofia, que vai desde o conjunto das coisas criadas, sejam elas materiais ou espirituais, até às leis que regem essas mesmas coisas, ou àquilo que faz com que uma coisa seja ela mesma etc.

6CALAFATE, s.d., p. 16.

7CALAFATE, s.d., p. 19.

8Cf. o item 3 deste trabalho.

9CÂNDIDO, 1995, p. 192. Cf. Ivan Teixeira, op. cit., uma leitura que se opõe a essa opinião de Antonio Cândido. O autor de Mecenato Pombalino mostra as relações entre as características desse Canto e outras representações da arte dos anos 1700. Para este autor, a descrição do teto da Igreja que se vê nesse Canto relaciona-se à imagem do teto da Igreja de Santo Inácio pintado por Andrea Pozzo entre 1691 e 1694 utilizando a fórmula ut pictura poiesis (a poesia é uma pintura que fala). Ali é elogiada, sob a forma pictórica, a Companhia de Jesus, enquanto que o teto descrito por Basílio da Gama, em vez de glorificar a Companhia “acusa-a de inúmeros crimes e usurpação de poderes. Ao contrário, Pozzo, que era jesuíta, interpreta a soberania da Companhia, tanto na Europa quanto no resto do mundo, como a justa causa da apoteose de Santo Inácio. Logo, Basílio executa uma imitação às avessas, inventariando os motivos pelos quais toma os jesuítas por objetivo de vitupério no poema” (p. 500).

10CÂNDIDO, 1995, p. 193.

11CÂNDIDO, 1995, p. 193.

12CÂNDIDO, 2000, p. 84.

13CÂNDIDO, 2000, p. 88.

14A pergunta que nos fazemos é semelhante àquela que fez Walter Benjamin no projeto do livro sobre Baudelaire. Ali Benjamin pergunta sobre o uso, pelo poeta moderno, da alegoria, modo de expressão que aparece nos dramas barrocos, objeto da investigação do filósofo alemão em sua tese de livre-docência, Origem do Drama Barroco Alemão.

15BOSI, 2002, p. 91.

16HOLLANDA, 1996, p. 604.

17LUKÁCS, 2000.

18BOSI, 2002, p. 87.

19DAMIÃO, 1999, p. 188. A autora examina duas posições divergentes acerca da noção de épico e a de teatro épico em Brecht. A citação acima remete ao estudo de Bornheim, 1992.

20TEIXEIRA, 1999, p. 33.

21TEIXEIRA, 1999, p. 27.

22TEIXEIRA, 1999, p. 27-28.

23TEIXEIRA, 1999, p. 32.

24TEIXEIRA, 1999, p. 492.

25TEIXEIRA, 1999, p. 55.

26TEIXEIRA, 1999, p. 32.

27TEIXEIRA, 1999, p. 498

28CALAFATE, s.d. o Prefácio e principalmente o Capítulo 1, em que o autor apresenta as características contraditórias do século das Luzes em Portugal. Cf. TEIXEIRA, 1999.

29SUBIRATS, 1992, p. 399-410

30Noutro poema de Basílio da Gama cujo tema são os “infortúnios de José de Seabra”, o Marquês de Pombal aparece como o “factor, o criador, o fabricante, o demiurgo” (TEIXEIRA, 1999, p. 98): “Olhou Fabio que he justo, e então pondera/Que a vaidade deste homem que elle ama,/ Contra o mesmo factor logo se altera”( GAMA apud TEIXEIRA, 1999, p. 97).

31BOSI, 2002, p. 91.

32Ao contrário do que diz Teixeira, Lindóia não se entrega, mas resiste como pode.

33TEIXEIRA. 1999, p. 501.

34TEIXEIRA. 1999, p. 494.

35WOHLFARTH, 1988.

36GAMA, 1964, p. 19.

37TEIXEIRA, 1999, p. 503.

38Tradução livre: “Onde há perigo, / Cresce também o que salva”.

39WOHLFARTH, 198, p. 134.

Recebido: 21 de Novembro de 2016; Aceito: 22 de Novembro de 2017

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons