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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.64 Uberlândia jan./abr 2018  Epub 20-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n64a2018-15 

Artigos

Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre

Of the irreducibility and of the inseparability between perception and imagination in Sartre

De l'irréductibilité et de l'inséparabilité entre perception et imagination chez Sartre

Thana Mara de Souza* 

*Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do curso de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: thana.souza@gmail.com


Resumo

Pretende-se mostrar, nesse artigo, como se dá a relação entre percepção e imaginação na filosofia de Sartre a partir de suas obras iniciais, principalmente A imaginação e O imaginário. Veremos como o ponto de partida - a irredutibilidade das consciências, que leva à separação radical de direito entre percepção e imaginação; leva o autor à conclusão da inseparabilidade dinâmica entre elas. Longe de constituir uma contradição, o pensamento sartriano aponta para uma tensão entre os termos e para a manutenção dos aspectos estático e de direito e ao mesmo tempo, dos aspectos dinâmicos e de fato; sem que um anule o outro.

Palavras-chave: Sartre; Percepção; Imaginação; Tensão

Abstract

We intend to show, in this article, how is the relationship between perception and imagination in the philosophy of Sartre from his early works, especially The Imagination and The Imaginary. We will see how the starting point - the irreducibility of consciousness, which leads to the radical separation between perception and imagination; leads the author to the conclusion of dynamic inseparability between them. Far from being a contradiction, the Sartrean thought points to a tension between the terms and to the maintenance of static and law aspects and at the same time, of the dynamic and in fact aspects; without one nullify another one.

Keywords: Sartre; Perception; Imagination; Tension

Résumé

Nous avons l'intention de montrer, dans cet article, comment est le rapport entre perception et imagination dans la philosophie de Sartre à partir de ses premières œuvres, en particulier L’Imagination et L’Imaginaire. Nous allons voir comment le point de départ - l'irréductibilité de la conscience, qui conduit à la séparation radicale de droit entre perception et conscience; conduit l'auteur à la conclusion d’inseparabilité dynamique entre elles. Loin d'être une contradiction, la pensée sartrienne montre une tension entre les termes et l'entretien des aspects statiques et de droit, et en même temps, des aspects dynamiques et de fait; sans qu’une annule l’autre.

Mots-clé: Sartre; Perception; Imagination; Tension

A filosofia de Sartre aparece a muitos dos comentadores e filósofos contemporâneos como sendo ainda uma filosofia moderna, incapaz de estabelecer outro ponto de partida que não seja o da dicotomia entre sujeito e objeto. É, por exemplo, a crítica recorrente de Merleau-Ponty a Sartre, que envolve não apenas a ontologia quanto também os aspectos éticos, políticos e estéticos1.

E de fato, não há o abandono, no pensamento sartriano, da análise, da compreensão formal e estática dos termos separados - o que, no entanto, não torna, a nosso ver, sua filosofia moderna. E isso porque com a separação de direito, vem junto sempre a inseparabilidade de fato, algo que não é observado por seus contemporâneos, na medida em que, para esses, um anula o outro. Sartre, entretanto, mantém sua filosofia numa tensão entre a separação de direito e a inseparabilidade de fato, seja na relação entre Para-si e Em-si, ou mesmo na questão ética do universal singular. É o modo como também a questão da imagem aparece em sua filosofia: sem nunca se confundir com a percepção, é ao mesmo tempo impensável sem estar ligada a ela. Embora parta de uma separação considerada óbvia por ele e muito criticada por Merleau-Ponty no curso “Le problème de la passivité”, Sartre se encaminha, ao longo de seus livros sobre a questão da imagem, para a afirmação paradoxal (e não contraditória) de que concretamente percepção motiva a imaginação e nela se completa, e que imaginação mantém o real negado e a ele se volta, dando sentido geral ao que antes não havia, de tal modo que, de fato, é impossível realizar aquilo que de direito é necessário: a irredutibilidade das consciências.2

E mesmo que haja modificações ao longo da filosofia sartriana, tanto na maior ênfase à historicidade (que não era inexistente antes) quanto à mudança do ponto de partida, que desde O ser e o nada, pelo menos, com a maior influência de Heidegger, passa a ser a junção de fato e não mais a separação de direito3, é possível verificar que ambas se mantêm em seu pensamento, nunca se anulando. É por isso que nos propomos aqui a mostrar que, se a imaginação se distingue claramente da percepção, ao mesmo tempo, em outro aspecto (dinâmico, concreto e de fato) são inseparáveis.

O livro A imaginação de 1936 deixa claro que, mais husserliano do que heideggeriano4, Sartre não vai na mesma direção de seus contemporâneos: “de um modo geral, é preciso desconfiar da tendência moderna a substituir ao atomismo associacionista uma espécie de contínuo amorfo no qual as oposições e os contrastes se diluem e se desvanecem” (SARTRE, 1967, p. 69).

Ao mesmo tempo em que critica a direção filosófica de sua época, que tende a diluir todos os contrastes, também coloca para si a necessidade de sair do atomismo associacionista, presente não apenas na psicologia como também e principalmente na filosofia. Essa é inclusive a tarefa do livro como um todo: estabelecer uma crítica ao modo como a filosofia moderna e a psicologia, de modo derivado, colocaram uma não distinção clara entre imagem e objeto percebido, e com isso foram incapazes de compreenderem o papel essencial da imagem e sua relação com o real.

Na medida em que a imagem é colocada como cópia imperfeita, menor, errada, do objeto real, torna-se impossível, segundo Sartre, distinguir uma da outra, e quando isso ocorre, o papel e importância de cada um ficam incompreendidos. É para evitar esses erros teóricos que Sartre propõe critérios a que uma teoria da imaginação deve satisfazer, que são: “toda teoria da imaginação deve satisfazer a duas exigências: deve dar conta da discriminação espontânea que o espírito opera entre suas imagens e suas percepções, e deve explicar o papel que desempenha a imagem nas operações do pensamento” (SARTRE, 1967, p. 97) - critérios esses que já apareceriam, segundo Frajoliet, até mesmo no diploma superior de Sartre, quando, além de distinta da percepção, a imaginação só poderia existir engajada em um corpo.5

Para não reduzir a imagem e a imaginação a coisa menor e errada, em uma distinção de grau que no limite se torna incapaz de mantê-la, é preciso partir da distinção imediata e de natureza entre elas, tal como o senso íntimo, sem ser atrapalhado pelas abstrações filosóficas, tende a realizar sem problemas.

No momento em que faço a afirmação ‘tenho a imagem de Pedro’, me dou conta de que sempre soube que era uma imagem. Somente, sabia-o de uma outra maneira: em uma palavra, esse saber se identifica com o ato pelo qual eu constituía Pedro em imagem. (SARTRE, 1967, p. 104).

É o que, sem ainda apontar para Husserl e sua noção de intencionalidade, a Introdução de A imaginação já mostra de forma muito clara e didática, e que nos propomos a acompanhar a fim de demarcar os critérios para a teoria da imaginação que será desenvolvida em O imaginário.

Logo no início da Introdução, Sartre lança mão de um exemplo: olho para uma folha branca sobre a mesa e percebo suas formas e suas características6, conhecendo-as pouco a pouco, sem que essa coisa seja assimilada por minha consciência. Autônoma, a coisa escapa ao domínio da consciência - o que nos levaria a uma proximidade muito maior com o realismo do que a maior parte dos críticos é capaz de ver na dita “primeira fase” de Sartre, já que a coisa tem sua existência anterior à consciência.

Mas esse modo de existência da folha sobre a mesa ocorre apenas na percepção. No parágrafo seguinte, a situação é modificada, na medida em que não olho mais a folha, mas sim o papel cinzento da parede. E sem que nada se modifique no quarto, eis que aquela mesma folha branca aparece. Ou, em outras palavras, a imagem da folha aparece. E é justamente da relação entre a coisa-folha e a imagem-folha, entre real e irreal, que toda teoria da imaginação deveria dar conta, sendo essa a questão apresentada por Sartre: trata-se de fato da mesma folha?

Com esse simples exemplo, o que o filósofo francês coloca em questão é a identidade ou não entre a coisa percebida e a imagem imaginada, e a ela a resposta é:

sim e não. Afirmo, sem dúvida, que é a mesma folha com as mesmas qualidades. Mas não ignoro que esta folha ficou lá no seu lugar: sei que não desfruto de sua presença; se quero vê-la realmente é preciso que me volte para minha escrivaninha (...). A folha que me aparece neste momento tem uma identidade de essência com a folha que eu via há pouco. E, por essência, não entendo somente a estrutura, mas, ainda, a individualidade mesma. Essa identidade de essência, porém, não está acompanhada por uma identidade de existência. É bem a mesma folha, a folha que está presentemente sobre minha escrivaninha, mas ela existe de outro modo. Eu não a vejo, ela não se impõe como um limite à minha espontaneidade; tampouco é um dado inerte existindo em si. Em uma palavra, ela não existe de fato, existe em imagem. (SARTRE, 1967, p. 06).

Embora longa, a citação se faz necessária porque anuncia o modo pelo qual Sartre coloca a imagem em relação ao real: no plano da existência, como irredutíveis; e no plano da essência, como idênticas. É possível responder “sim e não” à questão sobre se imagem e coisa são iguais sem cair em contradição porque as respostas dizem respeito a planos distintos - e se no plano da essência, podemos dizer que a folha que agora imaginamos é igual à folha que percebemos antes; o modo de existência da imagem e da coisa são muito distintos: à primeira falta essa inércia e presença que caracterizam a segunda e fazem esta escapar à consciência.

E tendo modos distintos de existência, não é possível confundi-las: imagem e coisa são apreendidas espontaneamente como distintas; algo que apenas uma metafísica ingênua seria capaz de negar. Mas é ainda necessário explicar como essa distinção imediata é realizada pela consciência, o que nos leva da Introdução à parte final de A imaginação, quando a referência a Husserl e sua noção de intencionalidade, reinterpretada por Sartre, torna-se fundamental para fazer com que o ato de perceber seja acompanhado da consciência não tética de perceber, e que o ato de imaginar seja acompanhado da consciência não tética de imaginar.

É, pois, a partir do filósofo que “renovou a noção de imagem” (SARTRE, 1967, p. 109) que Sartre termina a primeira parte (crítica) de sua teoria da imaginação, mostrando, por um lado, o quanto a noção de intencionalidade permitira resolver os problemas criados pela metafísica ingênua, e por outro, o quanto o próprio Husserl se manteve nos problemas clássicos ao reintroduzir uma hylé na consciência: “Pareceria pois que Husserl (…) tenha ficado prisioneiro da antiga concepção, pelo menos no que diz respeito à hylé da imagem, que continuaria sendo para ele a impressão sensível renascente” (SARTRE, 1967, p. 115). Para Sartre, é preciso ir além e radicalizar os pressupostos husserlianos ao fazer da consciência um movimento sem interior - e ao esvaziar totalmente essa consciência, torná-la, em primeiro lugar, distinta daquilo de que tem consciência, e em segundo lugar7, consciência não tética de si mesma, o que implicaria no “saber” no momento mesmo em que o ato é efetuado. Assim, a diferença entre percepção e imaginação estaria no diferente “modo de animação dessas matérias” (SARTRE, 1967, p. 114) e no fato de que, ao animar de um modo ou outro tal objeto, a consciência se mostra consciente (de) si, sem que isso seja inicialmente identificado ao conhecimento ou à reflexão.

Desse modo, Sartre anuncia em A imaginação a necessidade de partir da distinção de natureza entre o que é a coisa real e a imagem irreal, de forma a nunca confundir o que é percebido e o que é imaginado, e leva essa distinção indubitável até mesmo aos exemplos mais radicais (alucinação e sonho) em O imaginário. E não por acaso, seguindo a conclusão de A imaginação, podemos ver ali que a primeira característica da imaginação é a de que ela é uma consciência. Vejamos então como essa consciência é pensada e delimitada para permitir a separação de direito entre percepção e imaginação.

Antes mesmo do texto iniciar, Sartre faz uma introdução na qual explica que tomará a palavra “consciência” em um sentido específico: não como um estado inerte, passivo ou como substância, mas como uma estrutura que tem particularidades, tais como ser consciência perceptiva ou consciência de imagem. Trata-se então de descrever o modo como a imagem se dá à consciência a partir da noção de intencionalidade de Husserl. No entanto, ao ir em busca de Husserl, o filósofo francês tem a pretensão de radicalizá-lo e ir, de fato, “às coisas mesmas”, fazendo um movimento em direção ao realismo, tal como veremos mais à frente8, e fazendo com que a percepção deixe de manter a primazia que a história da filosofia lhe deu: “a imagem surge como uma vivência específica, como uma modalidade intencional específica da consciência se situar no confronto com o mundo” (ALEXANDRE E CASTRO, 2006, p. 109).

É contra a subordinação da imagem à percepção e de explicá-las por meio de uma teoria do conhecimento que Sartre pensa uma teoria da imagem, colocando como ponto de partida que a imagem é uma consciência (primeira característica) que coloca seu objeto como um nada (terceira característica) e que quase o observa (segunda característica). Por meio dessa “estática da imagem”, pretende-se colocar a consciência imaginante como tendo uma “natureza” totalmente distinta da percepção que, embora também consciência, se porta de modo distinto, colocando a presença de seu objeto e observando-o de verdade. E se apenas a reflexão é capaz de tematizar essas estruturas e observar suas distinções, não podemos dizer que no momento da ação há uma inconsciência das modalidades. Isso seria, segundo Sartre, dizer que uma consciência, no estado irrefletido, é inconsciente de si mesma, “o que é uma contradição” (SARTRE, 1985, p. 30). Mesmo que essa contradição só seja apontada com maior precisão em O ser e o nada (no capítulo II da Primeira Parte e no capítulo II da Quarta Parte), já aqui em O imaginário temos a crítica à noção de inconsciente freudiano: desde que deixemos de pensar a consciência como conhecimento9, essa noção de inconsciente é perigosa, já que introduz novamente substância e espaço no que agora é movimento e fluidez, e desnecessária, já que podemos mostrar como uma consciência pode não se confundir com reflexão e mesmo assim, permiti-la.

É o que a terceira característica da imagem mostra: uma consciência imaginante de uma árvore “deve, portanto, não tendo outro objeto senão a árvore como imagem e não sendo ela própria a não ser para a reflexão, abrigar uma certa consciência de si mesma. Diremos que ela possui uma consciência imanente e não tética de si mesma” (SARTRE, 1985, p. 30-31).

Antes mesmo do momento da reflexão (que permite a compreensão do movimento e estrutura dos atos da consciência, colocando-a como tema), o próprio ato de voltar-se para um objeto traz consigo, em um único movimento, um voltar-se não teticamente para si mesma, sem ainda se colocar em questão, mas já com um certo “saber”10 de si mesma, que então permitiria a existência posterior da reflexão e faria com que, a cada momento, a “marca” da consciência colocasse-se como tal - ou perceptiva, ou imaginante, por exemplo. Se a consciência transcendente de árvore coloca a árvore de forma tética, ao mesmo tempo, de forma imanente e não tética, é consciente de colocar esse objeto de uma forma ou outra.

Desse modo, a noção da consciência como consciência de um objeto e ao mesmo tempo consciência (de) si, sendo o uma forma de “indicar que ele não responde senão a uma obrigação gramatical” (SARTRE, 2006, p. 20), permitiria pensar que percepção e imaginação são ambas consciências que colocam seus objetos de forma totalmente distinta e indubitável (como coisa ou como imagem), sendo, portanto, impossível a confusão entre elas, operada pela filosofia e a psicologia. “É preciso - já que podemos falar de imagens e que esse termo tem um sentido para nós - que a imagem, tomada em si mesma, guarde em sua natureza íntima um elemento de distinção radical” (SARTRE, 1985, p. 31). E mesmo que apenas a reflexão tematize essa questão e nos faça compreender a distinção radical, esta já está presente no próprio ato de voltar-se ao objeto, dado que é sua natureza íntima. É, pois, o modo como a consciência visa seu objeto, algo revelado pela reflexão, mas presente e consciente desde o ato, que permitirá a Sartre marcar a diferença radical entre irreal e real, entre imagem e coisa, tal como anunciado em A imaginação e realizado na primeira parte de O imaginário. E quais são esses modos?

Em primeiro lugar, a distinção nos aparece em relação ao que o filósofo francês chama de observação ou quase-observação - tema da segunda característica da estática da imagem. Enquanto na percepção eu observo os objetos, dados por perspectivas, de um lado de cada vez, na imaginação não é exatamente isso que ocorre. “Tudo isso já foi dito cem vezes: o próprio da percepção é que o objeto só aparece como uma série de perfis e projeções” (SARTRE, 1985, p. 23), e por isso ele aparece no modo da observação: é necessário que observemos, que aprendamos com esses modos de aparição e apenas depois deles nomearemos o objeto (tal como um cubo, que nunca consigo apreender totalmente de uma só vez, mas preciso fazê-lo girar para vermos seus seis lados em apreensões consecutivas). A cada olhar, a cada percepção, um novo aspecto desse objeto me aparece, um novo detalhe surge; e é por isso que existe, segundo Sartre, “alguma coisa de excessivo no mundo das ‘coisas’: há sempre, a cada instante, infinitamente mais do que podemos ver” (SARTRE, 1985, p. 25, 26). 11

O mundo das “coisas” sempre ultrapassa aquilo de que sou consciente nesse exato momento, não se restringindo ao momento no qual o percebo. E ao perceber, ao ser consciência de alguma coisa, “sei” (ou melhor, sou consciente não teticamente) que me volto para esse objeto de forma a observá-lo - o que não ocorre na imaginação. Aqui parece, à primeira vista, que também “vemos”12 a imagem por perfis, mas não há mais a necessidade de “dar a volta no cubo” ou “esperar que o açúcar derreta” (SARTRE, 1985, p. 24), já que “o cubo em imagem se dá imediatamente como tal” (SARTRE, 1985, p. 24). No momento mesmo em que imagino, em que faço surgir um cubo em imagem, coloco-o como um cubo, de tal forma que não é propriamente correto dizer que aprendemos com a imagem13, já que ela se dá imediatamente tal como é. Mesmo que não seja nítida ou esteja incompleta, essa imagem é assim colocada por aquele que imagina, e ela não se modifica a não ser que a consciência que a criou assim o resolva. “Ora, eu posso reter o quanto quiser uma imagem em minha visão: não encontrarei nada além do que tiver colocado. Essa observação é de uma importância capital para distinguir a imagem da percepção” (SARTRE, 1985, p. 25).

Um dos “elementos” da “natureza íntima” da percepção, que a distingue da imaginação, é o de que, na primeira, observamos a coisa, que ultrapassa nossa consciência e tem uma espessura própria, enquanto que, na segunda, quase-observamos o que nos aparece. E quase-observar significa aqui que estamos na atitude de observar e esperamos ver por perfis e ângulos, mas não é de fato uma observação, que nos trará conhecimento através das diversas apreensões, mas uma quase-observação que não aprende nada. E isso ocorre porque a imagem não excede a consciência que a imagina, de forma que não portará consigo, tal com o objeto real, essa espessura própria, independente da consciência. É o que Sartre colocará como quarta característica da consciência imaginante: a espontaneidade, ou, em outras palavras, o modo como a consciência imaginante tem consciência não tética de si mesma.

De forma bastante resumida, Sartre coloca que o que faz a consciência imaginante quase-observar a imagem é também o que a faz se ver como espontânea, do mesmo modo que o que faz a consciência perceptiva observar seus objetos é o mesmo que a faz se ver como passiva. Ou seja: nessa relação entre consciência e objeto, uma se vê como espontânea, que “produz e conserva o objeto em imagem” (SARTRE, 1985, p. 35) e a outra se vê como passiva, sem ter esse elemento de criar o objeto real. Trata-se, aqui, da consciência (de) si, que ocorre no mesmo momento em que observamos ou quase-observamos a coisa ou a imagem. Uma consciência que desde aqui já é colocada como uma consciência que “não coloca nada, não ensina nada, não é um conhecimento: é uma luz difusa que a consciência desprende por si mesma, ou, para abandonar as comparações, é uma qualidade indefinível que se liga a cada consciência” (SARTRE, 1985, p. 35), o que significa que, mesmo antes da reflexão indicar o modo dessa relação como observação ou quase-observação, as consciências já se apreendem, de forma não-reflexiva, como espontânea ou passiva, e portanto, como distintas.

É, preciso, no entanto, tornar o devido cuidado com a noção de passividade da consciência perceptiva, já que em O ser e o nada e até mesmo em textos anteriores, como “Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade”14, Sartre coloca que toda e qualquer consciência é espontaneidade de ponta a ponta, o que, para nós, não leva a uma contradição, na medida em que o sentido de espontaneidade utilizado é distinto: enquanto nos outros textos o que está em jogo é a estrutura própria da consciência e sua distinção imediata com aquilo de que é consciente, aqui em O imaginário a questão é sobre a produção do objeto. E nesse sentido é que é possível falar em passividade da percepção, dado que há sempre esse “demais”, essa infinidade de modos de doação do objeto real, algo que não ocorre na imaginação porque a imagem, irreal, se dá como justamente não existente ou não presente 15- ou seja, como a terceira característica da imagem que veremos a seguir.

A reflexão nos mostra, pois, em primeiro lugar, que o movimento da consciência perceptiva é de observação, enquanto o da consciência imaginante é o da quase-observação; e que nesse ato de voltar-se para o objeto, observando-o ou quase o observando, a consciência perceptiva se vê como passiva (i.e., como não produtora do objeto que percebe) e a consciência imaginante se vê como espontânea (i.e., como criadora da imagem que imagina). Mas a relação indica não só o modo como a consciência se vê, mas também o modo de existência do objeto colocado. Ao mesmo tempo, a partir da noção de intencionalidade, que faz toda consciência ser consciência de..., vemos a relação (o “de”), a consciência se “vendo” (o [de]) e o objeto sendo colocado como presente ou como um nada - o que constitui, em O Imaginário, a terceira característica da imagem: “A consciência transcendente de árvore como imagem coloca a árvore. Mas a coloca como imagem, ou seja, de uma certa maneira que não é o da consciência perceptiva” (SARTRE, 1985, p. 31).

O objeto percebido aparece como existente e presente, e só assim conseguimos observar seus vários modos de doação, enquanto que a imagem aparece sempre como ausente ou inexistente, ou melhor dizendo, não-presente ou não-existente - o que expressa melhor a ênfase sartriana na colocação da imagem como um nada. Quero atingir não uma cópia enfraquecida de um objeto, mas o próprio objeto. Ocorre, no entanto, que esse objeto talvez não esteja aqui onde estou, tal como Pierre, que gostaria de ver e que está agora em Berlim. O que faço, então, é trazer a ausência de Pierre, é fazer surgir, aqui, a sua não-presença. Não se trata, desse modo, de uma ausência de tese, mas de uma tese que, ao ser colocada, se destrói. “Nesse sentido, podemos dizer que a imagem envolve certo nada. Seu objeto não é um simples retrato, ele se afirma: mas ao se afirmar, se destrói. Por mais viva e tocante que seja uma imagem, ela dá seu objeto como não sendo” (SARTRE, 1985, pp. 34, 35). Quero ver Pierre, mas devido à sua viagem para Berlim, na impossibilidade de percebê-lo, faço surgir sua não-presença, Pierre como imagem, que é um modo de não vê-lo e não tocá-lo. E é justamente por não existir aqui que não posso observá-lo.

Assim, “essa posição de ausência ou inexistência só se encontra no plano da quase-observação” (SARTRE, 1985, p. 32). No momento posterior ao ato, no momento da reflexão, vemos revelar-se uma estrutura perceptiva que se distingue em tudo da estrutura imaginante; com a primeira comportando uma relação de observação, um objeto colocado como presente e existente, e uma consciência não tética de si como passividade; e com a segunda comportando uma relação de quase-observação, um objeto colocado como ausente ou inexistente, e uma consciência não tética de si como espontaneidade. E embora em O imaginário sejam descritas separadamente, essas características se dão juntamente - é no momento mesmo em que observo uma coisa que a coloco como presente e me “vejo” como passividade; assim como é no momento mesmo em que quase-observo uma imagem que a coloco como ausente ou inexistente e me “vejo” como espontaneidade16. E é por meio dessa descrição, permitida pela reflexão, mas presente no momento irrefletido, que Sartre mostra a distinção radical e imediata entre percepção e imaginação, mantida até mesmo em atitudes aparentemente mais confusas, como a do sonho e da alucinação17.

A partir da descrição dessa estrutura, todo O imaginário é escrito para mostrar que, seja nos exemplos de imagem material (quando há uma matéria que serve de analogon para a criação da imagem)18, seja nos exemplos de imagem mental (quando, sem essa matéria que resta, fica mais difícil estabelecer a reflexão), a distinção radical entre percepção e imaginação se mantém, de tal forma que

A imagem e a percepção, longe de serem dois fatores psíquicos elementares de qualidades semelhantes que simplesmente entrariam em combinações diferentes, representam as duas grandes atitudes irredutíveis da consciência. Segue-se disso que elas se excluem mutuamente. (SARTRE, 1985, p. 231).

De direito e estaticamente irredutíveis e excludentes, percepção e imaginação são, ao mesmo tempo, inseparáveis, tal como a conclusão do livro mostra. Como, no entanto, estabelecer essa passagem?

Há, segundo Guigot em Sartre: liberté et histoire (2007, p. 67), uma “tensão entre o irreal e o real no interior do homem”, que aparece claramente na conclusão de O imaginário quando, depois de ter mostrado a impossibilidade de confundir real com irreal, percepção com imaginação, coisa com imagem, Sartre chega à afirmação de que uma motiva o aparecimento da outra, enquanto a outra mantem o que aquela apreendeu. Se estaticamente percepção e imaginação são irredutíveis uma à outra, dinamicamente elas se completam - o que, aliás, não é propriamente uma surpresa, dado que nos exemplos utilizados ao longo do livro era já possível ver como a imaginação aparece após um sentido ser doado ao mundo.

A separação radical de direito entre percepção e imaginação nos encaminha, aqui, para a inseparabilidade radical de fato, na medida em que a percepção se completa numa imaginação e esta conserva e se volta para o real negado:

Desse ponto de vista apreendemos, por fim, a ligação do irreal com o real. De início, mesmo se nenhuma imagem se produz nesse instante, toda apreensão do real como mundo tende, por si mesma, a completar-se pela produção de objetos irreais (...). Mas reciprocamente, uma imagem, sendo negação do mundo de um ponto de vista particular, não pode jamais aparecer senão sobre um fundo de mundo e em ligação com o fundo. (SARTRE, 1985, p. 356).

A apreensão do real tende a se completar pela produção de objetos irreais e reciprocamente a imagem sempre aparece sobre o fundo de mundo, ou seja, de um real com sentido. Assim, se não se pode confundi-los, real e irreal se motivam e se conservam, um tendo sua completude no outro, e outro mantendo o primeiro na negação que não anula o negado. É por meio da imaginação que a ultrapassagem maior, que permite dizer que há um mundo como mundo, com tal sentido (mundo no qual não há centauros, mundo no qual não mais existe meu amigo Pierre), ocorre, dado que é por meio do poder nadificador dela que o afastamento é possível. Embora toda consciência seja intencionalidade e portanto, relação com o que não é, o imaginário coloca, além disso, a não-presença ou a não-existência da imagem no mundo, permitindo um afastamento que a percepção, por colocar o que existe aqui, não consegue realizar. Assim, se toda e qualquer consciência é liberdade, a percepção encontra-se de tal forma próxima do real, inserida no mundo das urgências, que não se vê como tal; e é preciso um afastamento maior, possibilitado pela dupla nadificação da imaginação19, para que a liberdade se mostre de forma mais forte e inseparável de todo ato da consciência. A percepção, desse modo, motiva o aparecimento da consciência imaginante para que esta, por meio do colocar o não no mundo, faça surgir o “sentido implícito do real” (SARTRE, 1985, p. 360). É nesse sentido que Sartre dirá que “toda situação concreta e real da consciência no mundo é impregnada de imaginário enquanto se apresenta como uma ultrapassagem do real” (SARTRE, 1985, p. 358).

Mas se aqui mostramos o caminho que leva da percepção à imaginação por meio de uma “impregnação” que possibilita doar sentido implícito ao mundo, é preciso também mostrar que o caminho contrário ocorre, ou seja, que a imaginação também manterá uma ligação concreta com o real, de forma que, se não se confundem, não podem ser pensadas dinamicamente de forma separadas. É por isso que na citação feita na página anterior, Sartre mostra primeiro essa ida da percepção à imaginação para depois dizer que reciprocamente20, a imagem só se sustenta com a manutenção do real negado como pano de fundo, e a ele se volta constantemente para melhor imaginar - algo que já aparecia na primeira parte de O imaginário, quando a distinção entre o signo e a imagem era colocada, entre outros termos, porque na medida em que o signo levava ao que indicava, era esquecido, o real como analogon era sempre revisitado pela consciência imaginante na formação de sua imagem.21

A imaginação não é alienada ou abstrata - ou pelo menos não necessariamente -, mas mantem-se como um ato que nega o real mantendo-o e por meio de uma consciência que se mantém no real22: “O irreal é produzido fora do mundo por uma consciência que permanece no mundo” (SARTRE, 1985, p. 358).

É, pois, no real que a consciência imaginante cria o irreal, e se nessa criação se afasta mais do real que a consciência perceptiva, não deixa de estar necessariamente ligada a ele. Esse ponto será essencial para compreender depois como a obra de arte, obra concreta do imaginário, pode ao mesmo tempo ser engajada. Mas, para nossa questão neste artigo, é fundamental apontar que se de um lado a percepção chama pela imaginação, esta não é um ato que se desliga de qualquer laço com o real, tornando-se, assim, abstrata e sem relação concreta com o mundo. Pelo contrário: o movimento de ida da percepção à imaginação ocorre também com um movimento de volta desta àquela, conservando-se o real como pano de fundo ao qual a consciência sempre se volta e mantendo-se no real a consciência que imagina.

Nas palavras de Francesco Valentini, na ‘imaginação a consciência responde ao mundo, mas não limitando-se a evitá-lo, antes criando um mundo seu, que é precisamente o mundo imaginário’. Contudo, esta ‘resposta’ não quer dizer nem que a consciência é ilusão, porque todo o sentido advém dela, nem que a consciência imagenizante se situa fora do mundo, onde a apreensão imediata do real (como mundo) se opera. (ALEXANDRE E CASTRO, 2006, p. 59).

Imaginar é construir algo (imagem) que foge ao mundo sem que deixemos, no entanto, de permanecermos-no-mundo, e sem que essa imagem consiga se sustentar sem o reenvio constante ao real. Assim, a imaginação nos reenvia à percepção, assim como esta nos levava àquela, em um movimento no qual não podemos ignorar o outro lado da moeda23, que não existe sem essa relação intrínseca entre percepção e imaginação.

“Ele precisou (…) chegar a um dinamismo no qual o imaginário não é função ou faculdade a determinar de maneira autônoma, mas sim a expressão viva da liberdade humana, cujo paradoxo é o de ser uma realidade que secreta o irreal” (GUIGOT, 2007, p. 66). O humano, paradoxo de ser uma realidade que secreta o irreal, apreende o real em direção ao sentido implícito dado pela imaginação, capaz de negar a existência ou presença do objeto, mas só irrealizando na medida em que se preserva na realidade. Somos real que cria irreais, e criamos irreais permanecendo na historicidade24. Eis, então, como é impossível, para Sartre, pensar a dinâmica da consciência sem relacionar de forma necessária o real com o irreal, a percepção com a imaginação, sem que essa dinâmica anule, no entanto, o elemento estático da irredutibilidade entre ambas, sem o qual a compreensão do próprio papel ímpar da imaginação seria prejudicada, na medida em que, se separáveis apenas por grau ou inseparáveis, não mais poderíamos entender o papel fundamental do irreal em nossa realidade. É para mostrar como o imaginário não é uma cópia ou algo inferior e imperfeito, mas um exercício da consciência capaz de infestar o mundo de nada, e assim, apreender-se de forma mais lúcida como liberdade, que a distinção de direito é mantida e colocada lado a lado com a inseparabilidade de fato.

A conclusão de O imaginário coloca ao mesmo tempo duas afirmações que, longe de serem contraditórias, necessitam uma da outra para uma melhor compreensão, primeiro, de cada um dos termos; segundo, de como eles concretamente aparecem juntos e terceiro; da filosofia de Sartre como um todo. Nossa hipótese é a de que podemos “ler” a filosofia sartriana em sua totalidade - o que não é possível de ser comprovada apenas em um artigo - como uma tensão que manteria, numa relação sem síntese, ao mesmo tempo, a necessidade de pensar as irredutibilidades e as inseparabilidades, não tendo que decidir por uma ou por outra, mas mantendo uma e outra, numa pretensão de, com isso, ir além do realismo e do idealismo, como a Introdução de O ser e o nada anuncia. Desse modo, podemos ler na conclusão tanto a frase “Ora, a tese da consciência imaginante é radicalmente diferente da tese de uma consciência realizante” (SARTRE, 1985, p. 346), que insiste na necessidade de estabelecer uma distinção radical e estática entre imaginação e percepção, quanto a frase “Não poderia haver consciência realizante sem consciência imaginante, e reciprocamente” (SARTRE, 1985, p. 361), que, por sua vez, insiste no fato de que, radicalmente distintas, dinâmica e concretamente há, entre imaginação e percepção, uma relação intrínseca e recíproca, de forma que não podemos nem confundi-las nem separá-las.

No entanto, se Sartre repete em ao menos dois momentos (os quais citamos no artigo) que essa relação dinâmica é recíproca, é possível perceber, aprofundando-se na questão, que não há uma total simetria entre a dependência da imaginação em relação à percepção e a dependência desta em relação àquela. Embora O imaginário não trate desse desnível e afirme a reciprocidade da relação, O ser e o nada coloca uma nota de rodapé25 que nos permite compreender melhor não apenas como Para-si e Em-si se mantém separados e ligados, mas também essa relação dinâmica tensa entre percepção e imaginação:

Seremos tentados, talvez, a traduzir a trindade em termos hegelianos, e fazer do em-si a tese, do para-si a antítese e do em-si-para-si ou Valor a síntese. Mas é preciso observar aqui que, se ao para-si falta o em-si, ao em-si não falta o para-si. Não há, pois, reciprocidade na oposição (...). Além disso, a síntese ou Valor (...) é totalidade irrealizável. (SARTRE, 2006, p. 130-131, nota de rodapé 1).

Embora exista a tentação de aproximar essa dinâmica sartriana da dialética hegeliana, Sartre alerta para as divergências radicais em relação a este: se quisermos chamar de dialética, será com o cuidado de não admitir a realização da síntese, que agora é totalidade visada mas impossível de ser alcançada, e também de não fazer da tese e da antítese uma oposição recíproca, já que ao Em-si não falta o Para-si, e a este falta o Em-si. E o mesmo pode ser dito, mesmo que contrariando a intenção de reciprocidade em O Imaginário, da relação entre percepção e imaginação, e é o próprio Sartre que indica, em alguns momentos da conclusão, que à percepção não se segue necessariamente uma imaginação, deixando entrever que aquela tem uma prioridade de existência, que não se traduz, por sua vez, em maior importância, dado que em outro plano, no do sentido, é a imaginação que vem dar sentido de “mundo” à percepção.

Se o Para-si só é na medida em que se volta ao Em-si, a imaginação também não existe sem que o real apareça e seja mantido como fundo negado, o que faz com que a filosofia sartriana, desde seu primeiro momento, muito mais do que os filósofos seus contemporâneos foram capazes de compreender, esteja voltada mais ao realismo que ao idealismo, ou como diz Mouillie, a um neorrealismo que orienta a fenomenologia no caminho oposto ao de Husserl: “O retorno às coisas mesmas será, em Sartre, direcionado a uma crítica ao essencialismo husserliano em proveito de uma apreensão do dado concreto de nossa experiência, em sua característica contingente e factível” (MOUILLIE, 2001, p. 79). Desde a crítica inicial, operada principalmente em A transcendência do Ego e em A imaginação, é possível perceber essa nova orientação da fenomenologia em direção a um realismo ontológico (MOUILLIE, 2001, p. 78) que se afirmará mais claramente em O ser e o nada, na afirmação da anterioridade do ser em relação ao nada, algo que já podíamos perceber nas características mostradas na primeira parte de O imaginário, quando, ao mostrar a distinção entre a imagem e a coisa, real, Sartre dizia (como apontamos no início do artigo) que o objeto real sempre excedia a percepção, sendo “demais”, tendo sempre perfis e perspectivas que a percepção nunca conseguirá apreender. Esse “excesso” do real em relação à consciência que o percepciona é o que em O ser e o nada se tornará na antecedência do ser em relação ao nada, de modo que poderíamos dizer, junto com Giovannangeli (2001, p. 102), que

O atraso na consciência é, dito de outro modo, inseparável do atraso da consciência sobre o ser. Como não notar que essa interpretação do atraso em termos de ontologia fenomenológica parece vir junto, e até mesmo fundar, com um novo custo, o movimento do pensamento sartriano?

e com Frajoliet (2008, p. 562), que

Sartre se opõe totalmente a essa última peripécia da fenomenologia transcendental husserliana (...) ao colocar que, se a consciência transcendental constitui o sentido de todo ente concebível (...) - o ser desse ente escapa por princípio a toda constituição.

O ser é anterior ao nada, do mesmo modo que o real é anterior ao irreal. Em uma citação já utilizada nesse artigo, Sartre diz que a percepção tende a se completar em uma imaginação e que pode ser que nesse instante não seja produzida imagem alguma, enquanto que a imagem não pode jamais aparecer sem estar ligada ao real, o que mostra uma dissimetria na relação, dado que a imagem não existe sem o real e este existe mesmo que nenhuma imagem surja agora. No plano da existência, o ser antecede o nada assim como o real antecede o irreal: se o formar uma imagem a partir desse real percebido é uma possibilidade que pode ou não ser efetivada, dependendo das motivações, não é possível a imagem existir sem que ela negue o real e o sustente. É o que é repetido algumas páginas seguintes em O imaginário: “Não se segue disso que toda percepção do real deva se transformar em imaginário, mas como a consciência é sempre ‘em situação’ porque é sempre livre, há sempre e a cada instante uma possibilidade concreta de produzir o irreal” (SARTRE, 1985, p. 358). Se à percepção pode se seguir uma imaginação, esta, por sua vez, “só pode aparecer sobre um fundo de mundo e em ligação com o fundo” (SARTRE, 1985, p. 356). E é por isso que, embora Sartre fala de reciprocidade da relação, há, aqui, uma relação que ocorre em planos distintos: no da existência e no do sentido. E se a percepção não tem sua existência vinculada necessariamente à imaginação, é, porém, no outro plano que poderemos encontrar sua completude.

Há, então, uma primazia da existência do real e da consciência perceptiva - o que faz com que, nesse sentido, Sartre se aproxime do realismo -, mas essa primazia não se traduz em uma subordinação da imaginação à percepção26 porque aquela, por sua vez, terá uma primazia do sentido, como veremos agora. Assim, a relação da imaginação à percepção se dá no plano da existência, enquanto que a relação desta àquela se dá no plano do sentido, mantendo uma relação mútua que não se revela propriamente como reciprocidade, mas como “realidades ‘ambíguas’ ou ‘duplo jogo de oposições unilaterais” (SARTRE, 2006, p. 131, continuação da nota de rodapé que indica a relação entre Para-si e Em-si) - o que, por um lado, aproxima Sartre do realismo por colocar a precedência da apreensão do real e do ser; e por outro, não o torna totalmente realista, já que esse real apreendido só terá sentido, só se tornará “mundo” na formação de uma imagem.

A imaginação, dependente do real para existir, é a que o transcende, e, ao fazer isso, dá sentido à própria vivência e desvela o humano como liberdade. É por isso que o real se completa no irreal e se torna com sentido a partir dele.

Quando o imaginário não é colocado de fato, a ultrapassagem e a nadificação do existente estão imersos no existente, a ultrapassagem e a liberdade estão aí, mas não se descobrem, o homem está esmagado no mundo, transpassado pelo real, ele está muito perto da coisa (SARTRE, 1985, p. 359).

Sem imaginário, o ultrapassar e a liberdade, presentes na apreensão do real (percepção), não se mostram facilmente porque parecemos esmagados pelo real, diante das urgências que o cotidiano nos “exige”. Mas ao imaginar, ao colocar a não-presença ou a não-existência no mundo, melhor nos apreendemos como liberdade e descobrimos então que todo ato, mesmo o mais banal e repetitivo deles, é já um transcender o dado - algo que só é possível porque somos liberdade. E nesse mesmo ato de imaginar, transformamos o real em “mundo”, ou seja, fazemos do dado um mundo no qual falta… ou não existe… Por exemplo, criar a imagem de um centauro é fazer desde real um mundo no qual centauro não há. Imaginar é, pois, doar sentido ao real, é caracterizá-lo de uma forma ou outra, de acordo com o que imaginamos - e isso só é possível nesse movimento de afastamento, que possibilita um transcender e um descolamento maior, sem que, no entanto, se realize totalmente, sem que se rompam os vínculos com o real.

Nesse desgarramento que a consciência imaginante permite, o real se funde num fundo negado e se torna um “mundo” no qual tal elemento não está presente ou não existe, especificando aquilo que falta ao dado, e com isso, o sentido do real. “Assim, o imaginário representa a cada instante o sentido implícito do real” (SARTRE, 1985, p. 360) por meio da nadificação dupla, que coloca o irreal no mundo. Sem essa passagem, consciência pareceria passiva e o real pareceria impor suas urgências e necessidades, o que a imaginação consegue mostrar como falso.

Mesmo que Sartre não dê muitos elementos para pensarmos, em O imaginário, no modo como a imaginação doa sentido ao real transformando-o em mundo, é interessante notar que logo após afirmar novamente que a consciência imaginante apreende “do sentido particular da situação” (SARTRE, 1985, p. 361) apareça, na conclusão, um esboço sobre a constituição e o papel da obra de arte, que é obra da consciência imaginante e que será melhor trabalhado em Que é a literatura?, quando o engajamento, como forma de revelação da liberdade que somos, se tornará papel da prosa. Sem trazer mais uma temática para nosso artigo, ao menos é possível indicar como o artista constrói seu irreal a partir da compreensão da impossibilidade de constituir o real como deseja, na tentativa de, no imaginário, criar um mundo que fosse o exato correlato de seu desejo. Isso faria com que, na constituição do imaginário, o real surja aos olhos daquele que imagina (e no caso da arte, também do espectador) como um mundo constituído também por lacunas, ausências e inexistências.27

O sentido intrínseco do real só é dado nesse transcender que transforma o real em um mundo específico, com horizontes de ultrapassagem em direção ao que não existe ou não mais existe que viria suprir a falta. Imaginar o oásis é tornar ainda mais áspera a sede que existe, é constituir esse deserto, real, como mundo no qual falta água, assim como imaginar o amigo morto é tornar esse real, aparentemente completo, um mundo no qual a ausência denuncia o vazio.

Desse modo, sem a imaginação, não haveria como colocar o sentido do real (que sempre o ultrapassa). E sem sentido, não há propriamente o que dizer do real, e é por isso que Sartre insistirá que consciência e mundo surgem ao mesmo tempo: mesmo que o real seja anterior à consciência, nada se pode dizer dele sem essa consciência. E o sentido desse real só se torna possível para essa consciência que se desgarra a tal ponto que coloca o não no pleno, o que torna a imaginação, no pensamento sartriano, fundamental para o desvelamento da consciência, do mundo e da relação entre consciência e mundo.

É nesse sentido que dissemos que, se por um lado a apreensão do real (percepção) tem uma primazia da existência, a criação do irreal (imaginação) tem uma primazia do sentido: se a imaginação precisa do real para existir, este só adquire um sentido a partir do imaginário, em uma relação intrínseca que, não recíproca, tal como anunciada em O imaginário, aparece como um “duplo jogo de oposições unilaterais” e faz com que Sartre se aproxime do realismo, ao estabelecer, no plano da existência, a primazia do real, e ao mesmo tempo do idealismo ao estabelecer, no plano do sentido, a primazia do irreal - não sendo, portanto, nem um nem outro.

Imaginação e percepção se colocam, no pensamento sartriano, como sendo dinamicamente ligadas de forma intrínseca, como uma vizinhança comunicante28, mesmo que não reciprocamente, sem que esse movimento concreto anule a distinção formal e estática entre elas.

Sem distinção radical estática entre percepção e imaginação, não haveria como explicar a importância e a singularidade da projeção do desejo em direção ao que não é (papel do imaginário); e sem relação intrínseca e dinâmica, não haveria como compreender o fluxo da consciência intencional. Assim, ao manter a tensão da irredutibilidade e da inseparabilidade, Sartre conseguiria dar conta, como diz Guigot (já citado na página 14), dos paradoxos da realidade humana. E esse é o modo como o filósofo também colocará sua ontologia e sua moral, com Para-si/Em-si, universal/singular mantendo a mesma tensão, o mesmo “jogo de oposições unilaterais” que percepção e imaginação, tal como mostrado aqui - separáveis de direito e inseparáveis de fato, estaticamente distintas e dinamicamente ligadas, sem que uma das afirmações anule a outra e sem que essas distinções se “resolvam” em uma síntese. A tensão permanece, e é por ela que seremos capazes, na filosofia de Sartre, de compreender os paradoxos de sermos real que secreta irreal sem sair do real, Para-si que transcende o Em-si sem deixar de ser facticidade, singular que projeta a universalidade sem justificar, com isso, suas escolhas livres.

Referências

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1Cf., por exemplo, a terceira parte do livro A fenomenologia da percepção, quando é feita a crítica à noção de liberdade de Sartre, que seria, segundo Merleau-Ponty, abstrata e A prosa do mundo, principalmente “A ciência e a experiência da expressão”, quando é feita a crítica ao papel do leitor de romance, tal como aparece em Que é a literatura?

2A questão de fato e de direito é uma referência à Introdução de O ser e o nada, quando Sartre coloca o fracasso do realismo e do idealismo em “explicar as relações que unem de fato essas regiões de direito incomunicáveis, qual outra solução podemos dar a esse problema?” (SARTRE, 2006, p. 33). E nossa hipótese é a de que Sartre tenta solucionar esse problema mantendo a separação de direito e ao mesmo tempo a união de fato.

3É nítido que ser-no-mundo aparece, como tema, apenas em O imaginário e é aprofundado em O ser e o nada. Para isso (MOUTINHO, 1995).

4Embora Sartre nunca tenha sido totalmente husserliano, tendo ido a essa filosofia para falar das coisas mesmas em um sentido muito mais realista do que Husserl colocava. Essa questão pode ser verificada em SARAIVA, 1994.

5FRAJOLIET, 2001.

6Essencial, para o que mostraremos depois, no final do artigo, sobre a questão do neorrealismo em Sartre: “o ser não depende de forma alguma de meu capricho” (SARTRE, 1967, p. 5).

7A enumeração está aqui apenas para mostrar que há esses dois movimentos, mas não ocorrem de forma cronológica ou lógica. Os dois movimentos se dão ao mesmo tempo.

8Para aprofundar essa relação, ver Maria Saraiva, como já citado na nota 6, e a tese de doutorado de Ildeu Coelho. Sartre e a interrogação fenomenológica do imaginário (defendida em 1978 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP).

9SARTRE, 1994.

10Um “saber” que não é propriamente saber, porque ainda não formulado como tal e não tematizado. Por isso as aspas.

11Temos aqui mais um elemento que nos levará, na parte final do artigo, a colocar uma hipótese de neorrealismo sartriano, o que, no entanto, só poderá ser tratado de forma mais precisa na pesquisa sobre a ontologia.

12Entre aspas porque não se trata efetivamente de ver.

13Isso não quer dizer, no entanto, que não seja importante. O sentimento diante do irreal, na quarta parte de O imaginário mostra o quanto o imaginário revela os desejos do humano que imagina. Além disso, é por meio do imaginário que o sentido implícito do real como mundo é dado, como será mostrado no final do artigo.

14SARTRE, 2006.

15No real, teríamos o que Giovannangeli chama de Le retard de la conscience (Bruxelas: Ousia, 2001) ou o que Sartre chamará em O ser e o nada de transfenomenalidade do ser do fenômeno, enquanto que no irreal o modo de existência é distinto. SOUZA, 2012. Disponível em: http://www.principios.cchla.ufrn.br/arquivos/31P-119-140.pdf. Acesso em: 30 maio 2016.

16Exemplo que facilita compreensão, mas não é totalmente correto, já que o “Eu” não surge no momento irrefletido. Para isso, cf. SARTRE. A transcendência do ego. Lisboa: Colibri, 1994.

17Essa é a principal crítica de Cabestan e Barbaras a Sartre no livro Sartre et la phénoménologie, de MOUILLIE (Lyon: ENS Éditions, 2001): como explicar a espontaneidade da imaginação e a indistinção nesses casos? Para uma resposta a essas críticas. SOUZA, 2015. Disponível em: http://www2.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/42/7.pdf. Acesso em: 30 maio 2016.

18MOUILLIE, 2001, p. 99.

19Como Sartre falará no capítulo 1 da Primeira Parte de O ser e o nada.

20Iremos questionar a seguir até que ponto essa relação é de fato recíproca.

21SARTRE. L’Imaginaire. Parte II (o signo e o retrato) do capítulo 2 (A família da imagem) da Primeira Parte.

22Vários comentadores apontam incoerência em pensar obra de arte como imaginário e ao mesmo tempo como engajamento, não compreendendo essa distinção entre a consciência que imagina (e permanece no real) e a imagem colocada no irreal. Paulo Alexandre e Castro indica, por exemplo, que Dufrenne falaria da contradição entre fazer da arte um irreal e depois fazer dela, engajamento (ALEXANDRE E CASTRO, 2006).

23Expressão muito utilizada por Sartre em O ser e o nada para falar da relação entre Para-si e Em-si, e também para falar da temporalidade estática e dinâmica.

24LEOPOLDO; SILVA, 2004.

25que são essenciais, aliás, nas obras de Sartre, para matizar o teor mais forte das afirmações dos textos.

26Problema apontado da metafísica ingênua em A imaginação e no início do nosso artigo.

27SARTRE, 2004.

28Para usar termo muito feliz de Franklin Leopoldo e Silva em Ética e literatura em Sartre.

Recebido: 08 de Julho de 2016; Aceito: 18 de Janeiro de 2017

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